Palavras-chave Reconstrução do eu e do outro na escrita escolar

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Reconstrução do eu e do outro na escrita escolar
Resumo
Ana Cristina Salviato Silva
O presente artigo analisa o processo de produção da redação
escolar. Procura identificar as vozes do discurso contidas nesse
tipo de texto e questiona o conceito de originalidade na produção
textual escolar. O trabalho é fundamentado na teoria da Análise
do discurso.
Autor
Palavras-chave
Originalidade, Texto Escolar, Análise do Discurso
Ana Cristina Salviato Silva
Professora Doutora em Estudos Lingüísticos,
docente dos cursos de Comunicação Social
- Jornalismo e Publicidade e Propaganda do Centro Universitário das Faculdades
Associadas de Ensino - FAE.
E-mail:
[email protected]
Recebido em 30/abril/2008
Aprovado em 03/junho/2008
Pensamento Plural: Revista Científica do
, São João da Boa Vista, v.2, n.1, 2008
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Reconstrução do eu e do outro na escrita escolar
1.
Introdução
Este artigo é fruto de uma reflexão iniciada a partir do
contato com a teoria da Análise do Discurso, aplicada à análise da produção do texto escolar. Nesse foco, a pesquisa
não está centralizada na investigação “policial” das ideologias subjacentes nos textos jornalísticos, publicitários ou literários, como é comum nos trabalhos fundamentados na
AD. Preserva-se, obviamente, o objetivo de encontrar a voz
da alteridade, dando a ela, porém, um papel diferenciado no
texto.
O objeto de análise surgiu por meio da convicção de que
quando se fala na “voz do Outro” na escrita não se está
necessariamente apontando uma voz intrusa, mas sim, alguém que ocupa naturalmente o seu lugar no discurso.
Nasce, então, o desafio de compreender melhor o processo pelo qual o Outro ocupa o seu lugar, quais são os
limites desse Outro em um texto e, como perguntou Barzotto
“quem é o Outro de quem eu, com as minhas palavras, deveria me diferenciar?”, e ainda, “quais são as palavras deste
Outro, para que eu possa saber quais serão as minhas?”(1999, p. 13).
Com essas questões em mente, escolheu-se um objeto
de análise, procurando observá-lo a partir da pergunta-chave que permeia o presente trabalho: De quem são as palavras...? Trata-se de uma das redações consideradas acima da
média no Vestibular 2000 da UNICAMP. Dizemos “objeto
principal” porque à medida que o trabalho progrediu, julgamos de grande importância analisar não só a redação, mas
também a proposta (incluindo a leitura prévia oferecida) e a
expectativa da banca examinadora, publicada no site da universidade após a aplicação do referido vestibular.
lar a adequação ao discurso do Outro se dá de forma mais
intensa por tratar-se de um discurso adolescente, recorre-se
à leitura de Rassial:
[...] as transformações da puberdade, inicialmente no que elas modificam o estatuto do outro, a
desqualificação dos pais em constituir o modelo
do adulto, a decepção frente à passagem edípica
que se revela enganadora e por isso mesmo, face
a todos os discursos antigos, a saída do lar familiar em direção ao laço social exigem uma nova
construção identificatória. (1997, p. 102).
Assim, o adolescente tem uma longa trajetória de mudanças, deparando-se com uma das primeiras barreiras que
demarcarão o seu espaço social: a disputa, a luta por uma
vaga (incluindo sua aceitação no mercado de trabalho, para
a maioria que sequer passa por um vestibular). Ocorre então, nas palavras de Rassial, “uma reconstrução do supereu,
do ideal do eu e do eu ideal” (1997, p. 108). O adolescente
começa a recorrer às vozes que o incluirão no espaço pretendido, ou seja, à voz da ética, do politicamente correto,
dos clamores sociais e das opiniões consideradas críticas.
Crê, assim, que o seu supereu será o texto perfeito do ponto
de vista social e estrutural; o ideal do eu será formado com
base naqueles em quem se apóia, se espelha para escrever
(o professor, o crítico do jornal, o escritor); e, por fim, o eu
ideal estará no produto do seu trabalho, a redação final,
composta por ele a partir das muitas vozes que o circundam.
Pergunta-se, então: de quem são as palavras presentes
em uma redação que visa à conquista de uma vaga na universidade? Ou ainda, as palavras de quem devem ser usadas
para a obtenção do êxito?.
2. O Contexto de PProdução
rodução
3. A Alteridade na Escrita
“O que é afinal um sistema de ensino senão uma
ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; [...] senão uma
distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e saberes?” (FOUCAULT, 1998, p. 69)
A redação nos vestibulares ocorre em uma situação artificial de comunicação. Ao iniciar seu texto, o vestibulando
está consciente de que não se trata de um momento de pura
expressão no qual ele escreve o que deseja, mas sim, o que
convém escrever. É possível afirmar que toda situação comunicativa também é assim, uma vez que há um consenso de
que todo o sujeito situa o seu discurso em relação aos discursos do outro. Porém, o que se pretende enfatizar é que na
situação de vestibular esta adequação do discurso dá-se de
uma maneira mais intensa, primeiramente, por tratar-se de
uma situação competitiva, eliminatória, e segundo, por tratar-se de um discurso escolar e adolescente.
Toda comunicação insere-se em um contexto e, conseqüentemente, sofre uma rede de influências cuja intensidade
dependerá de cada caso específico. Em uma situação de disputa como o vestibular, a comunicação contida na redação é
uma comunicação vertical, como bem colocou Almeida
(1986), em seu estudo acerca da redação no concurso para
o Magistério em Minas Gerais. O autor afirma que o candidato que pleiteia uma vaga encontra-se em situação de inferioridade, tendo consciência de que é parte mais fraca e,
assim, “cabe a ele sintonizar o seu discurso com o discurso
do seu interlocutor” (1986, p.24). Na comunicação vertical
não há espaço para discussões: o discurso deve ser construído
adequando-se ao do sujeito que o julgará.
Para justificar a afirmação de que na redação do vestibu-
A redação utilizada para a análise foi considerada acima
da média no vestibular 2000 da UNICAMP, ou seja, analisou-se uma redação-padrão para que o estudo possa ir além
da crítica aos modelos, observando, sobretudo, os processos que envolvem a busca do Outro na linguagem. A proposta iniciou-se da seguinte maneira:
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“Em várias instâncias têm surgido iniciativas que
podem resultar em uma nova política em relação
à água, até hoje considerada um bem renovável à
disposição dos usuários. Abaixo estão trechos
de notícias relativamente recentes com informações sobre algumas dessas iniciativas.” (Proposta de redação do vestibular da UNICAMP. Ano
2000. Extraída do site www.convest.unicamp.br/
vest_anteriores. em 10 de out. de 2001).
Os textos serão citados à medida que forem necessários
à análise. Finalmente, a proposta:
“Redija uma carta a um deputado ou senador contrário à criação da Agência Nacional da Água
(ANA). A carta deverá argumentar a favor da criação do novo órgão que, como a ANP, a ANATEL
e a ANEEL, terá a finalidade de definir e supervisionar as políticas de um setor vital para a sociedade. Nessa carta, você deverá sugerir ao congressista pontos de um programa, a ser executado
pela Agência Nacional da Água, programa que
deverá incluir novas formas de controle.” (Id.
ibidem.)
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SILVA, A. C. S.
Antes mesmo de focar a redação propriamente dita, fazse necessário tecer alguns comentários acerca da proposta.
Almeida (1986, p. 28) deixa claro em seu estudo que a proposta está intimamente ligada à redação, como uma relação
de estímulo-resposta, ou seja, a proposta de uma redação,
incluindo o tema, a maneira de apresentá-lo e as instruções
para a elaboração do texto são um fator de extrema importância para a produção. Assim, se uma proposta não for bem
elaborada, não se pode exigir uma produção clara; o próprio estilo de linguagem da proposta, seu grau de concisão,
de objetividade, pode servir de parâmetro para a redação.
A proposta citada inicia-se apresentando de uma maneira clara e concisa o tema geral da redação: as novas políticas
em relação à água. Os textos, tirados de jornais, revistas e
internet, abordam diferentes focos em relação ao assunto: o
primeiro, fala a respeito da possibilidade da criação de uma
agência de água no país; o segundo, acerca do consenso
entre vários países quanto à não gratuidade da água a fim de
evitar a escassez; o terceiro, fala da demora por parte dos
legisladores em aprovar leis que protegeriam os recursos
hídricos do país e, finalmente, o quarto texto, denuncia o
protecionismo da lei para com aqueles que ocupam de forma
ilegal as áreas de mananciais.
Esses vários textos de teor não só informativo, mas também crítico, são vozes já fornecidas das quais o candidato
pode e deve fazer uso em seu texto. Elas não constituem ali
apenas um respaldo para a produção, mas ditam também os
rumos ideológicos que devem ser seguidos. Assim, a sintonização do discurso por parte do candidato é, em um primeiro
momento, automática e inconsciente. Isto pode ser observado inclusive na proposta propriamente dita. Em momento
algum é proposto ao candidato dar a sua opinião, comentar
acerca de, refletir a respeito de. Ao contrário, o que percebemos neste primeiro momento é que nesta situação de concurso, o conteúdo já está definido:
• REDIJA uma carta...
• A carta DEVERÁ argumentar A FAVOR DA...
• O órgão TERÁ a finalidade de...
• Você DEVERÁ sugerir pontos de um programa...
• O programa DEVERÁ incluir...
O que leva a crer que o conteúdo - e não somente a
estrutura - estão pré-definidos na proposta. Caberá ao candidato eficaz, organizar de modo inteligente e, porque não
dizer também criativo, o texto que de antemão já lhe foi
entregue. Ele irá, a partir da leitura da proposta, conjugar as
vozes que lhe foram apresentadas a outras conhecidas, desde que sigam o mesmo cunho ideológico e que não contestem os rumos já delimitados.
Vejamos, enfim, a redação:
São Paulo, 28 de novembro de 1999.
Senhor deputado Cezar Campos,
Soube, por meio de jornais e revistas, que o
senhor é contrário à criação da ANA (Agência
Nacional de Água), alegando que seria mais um
dos “onerosos e espalhafatosos órgãos do
governo”. Como cidadã, concordo com o senhor:
há inúmeros órgãos governamentais ineficientes
e burocráticos. Porém, como Engenheira Sanitária, vejo a necessidade de intensificar as políticas
de proteção ambiental de todas as maneiras possíveis.
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Certamente o senhor sabe da importância da
água dentro de uma sociedade, não apenas para
a saúde da população, mas também em termos
econômicos. E, certamente, o senhor não é
contrário à punição de quem faz mal uso desse
bem, tais como indústrias pesadas e poluidoras.
Há também grandes usuários que, mesmo sem
poluir a água, fazem largo uso dela – e isso, estando certo ou não, é uma grave agressão ao
meio ambiente, e, portanto, merece também uma
“punição” (taxas e tributos maiores do que os
pagos por cidadãos comuns). Pois bem, a Lei já
dá conta desse tipo de regulamentação, cobrando inclusive pesadas multas de quem polui e, em
alguns casos, determinando a prisão em até cinco anos.
Contudo, senhor Campos, sabemos que a lei
é raramente cumprida, mesmo em se tratando de
uma questão de vital importância e prioridade.
Os órgãos governamentais tradicionais, quer por
corrupção, quer por ineficiência, já não dão conta
da fiscalização sequer – que dirá da punição. É
por razões como essas que a criação da ANA se
faz urgente e necessária.
A prioridade da ANA seria a fiscalização e
punição, portanto. Funcionaria como uma espécie de “órgão de defesa da água”, estando subordinada diretamente ao Ministério do Meio
Ambiente. A agência teria poder de ação tanto
sobre a esfera pública quanto a privada, podendo
multar, inclusive, programas governamentais que
se mostrassem prejudiciais ao Meio Ambiente.
Seus processos jurídicos deveriam ter prioridade
em tribunais, ou então seriam julgados por juízes
especiais, designados apenas para essa função,
haja vista a importância da água como bem
econômico, social e geopolítico – o Brasil ainda
não tem problemas com países vizinhos por conta de recursos hídricos, mas essa situação pode
vir a ocorrer um dia.
Por isso, é preciso que haja desde já
conscientização. O governo não pode, tal como
representante legítimo da sociedade, fechar os
olhos aos abusos que vêm sendo cometidos em
relação à “água brasileira”.
Outro ponto importante da criação da ANA,
e aparentemente o que mais causa a sua rechação
à criação da agência, é a ineficiência das empresas
estatais. Para burlar esse fato, a ANA deveria ser
um órgão misto, do qual participariam governo,
ONG’s e representantes diretos de vários setores
da sociedade.
No caso da poluição dos mananciais, por
exemplo, seriam feitas auditorias entre a ANA,
ONG’s e representantes da população que habita a região. Além disso, haveria ouvidorias para a
denúncia de órgãos que estivessem utilizando mal
os recursos hídricos. Essa me parece ser a maneira mais democrática e honesta para que a ANA
possa realmente dar certo, sem se tornar “onerosa e espalhafatosa”.
Pensamento Plural: Revista Científica do
, São João da Boa Vista, v.2, n.1, 2008
Reconstrução do eu e do outro na escrita escolar
Contudo, isso não basta para que a ANA dê
certo. É necessária, antes de qualquer coisa, a
conscientização da população acerca da importância – e da limitação – dos recursos hídricos. E
o governo é o órgão mais indicado para esse
projeto de reeducação ambiental.
Nós, cidadãos conscientes, esperamos uma
resposta séria de vocês, governantes e representantes da sociedade.
Atenciosamente,
C.B.M.
na produção de seu texto. Por isso, não se pode esperar que
uma redação do vestibular seja uma obra inédita e original. A
redação é voltada para um objetivo único: a aprovação e,
por isso, não é um texto permanente. Ele é, por natureza,
efêmero e pontual – nasce no momento da prova e expira
após a avaliação dada pela banca.
Foucault (1998), ao falar acerca das dimensões do discurso, estabelece duas distinções. Primeiramente, distingue os
discursos cotidianos - que desaparecem no próprio ato de sua
enunciação -, daqueles que são ditos e permanecem, como,
por exemplo, os textos religiosos, jurídicos, etc. Posteriormente, o autor diferencia os discursos “fundamentais ou criadores” dos discursos secundários, ou seja, aqueles baseados na
repetição e no comentário. É por este último que podemos
compreender a redação na situação do vestibular.
Foucault afirma que no comentário,
(Redação classificada em primeiro lugar no vestibular da UNICAMP. Ano 2000. Extraída do site
www.convest.unicamp.br/vest_anteriores. em 10
de out. de 2001).
Na redação do vestibular, todo o escrito é elaborado
visando à aprovação no teste. Mais do que em qualquer
outra situação comunicativa, o ambiente competitivo desta
prova leva o candidato a escrever aquilo que “convém” e não
exatamente, aquilo que ele deseja. Sua redação é elaborada
tendo em vista a expectativa de uma banca examinadora que
já forneceu de antemão os caminhos que ele deve percorrer
[...] o desnível entre o texto primeiro e o texto
segundo desempenha dois papéis que são solidários. Por um lado permite construir (e indefinidamente) novos discursos, fundando uma possibilidade aberta de falar. Mas, por outro lado, o
comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas empregadas, senão o de dizer
enfim, o que estava articulado silenciosamente
no texto primeiro.(1998, p. 24-25)
O comentário pode ser observado na redação analisada
quando a contrapomos com os textos da proposta:
Quadro 1
1: Análise comparativa: texto da proposta X redação analisada
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SILVA, A. C. S.
Estes exemplos mostram que o candidato recorreu às palavras encontradas nos textos dados, para compor um novo
texto. Diz-se novo, não no que se refere ao conteúdo, mas, no
acontecimento do retorno dessas palavras que serviriam como
armas estratégicas nesta situação de disputa, de concorrência.
É importante lembrar que a redação escolhida para análise foi considerada acima da média pela banca examinadora. Tal fato mostra que o candidato conhecia o Outro que o
avaliava, demonstrando tal habilidade não só por meio da
apropriação das palavras dos textos fornecidos (que possuíam um teor tanto informativo quanto ideológico, como se
mostrará à frente), mas também provando conhecer os pensamentos desse Outro. O candidato utilizou-se do discurso
que acreditava ser “o correto” para a ocasião, ou seja, o
discurso cuja ideologia já lhe havia sido passada de forma
sutil nas propostas. Tal afirmação se fundamenta na observação de um texto fornecido (obviamente, depois das provas):
pela banca examinadora no qual eram explicitadas as expectativas da banca quanto à redação. Com este material em
mãos comparou-se a redação em análise com a expectativa
da banca, constatando que as palavras da primeira
correspondem às da segunda:
Quadro 2 : Comparação entre a expectativa da banca e a redação produzida
Observa-se nos exemplos acima que o candidato
correspondeu plenamente à expectativa da banca examinadora: ele usou as palavras desejadas por ela. Cremos que tal
fato não se deu por coincidência ou simplesmente por força
da lógica, do óbvio. O candidato, envolvido naquela situação de disputa, demonstrou conhecer bem as palavras do
Outro que o provava e reconheceu a necessidade de utilizarse dessas palavras para alcançar êxito. Almeida, ao falar do
uso de estereótipos nas redações, afirma: “Não temos, geralmente, muita opção quando escrevemos. Incorremos com
freqüência ao discurso requisitado, esperado, valorizado e
aprovado” (1986, p. 63). Afinal, é o discurso vigente, o discurso ideológico. Sendo assim, o candidato faz em seu discurso uma alusão à realidade, criando estereótipos de linguagem que, segundo Almeida (1986), podem corresponder
ao pensamento, mas não à ação. Daí uma das constatações
deste trabalho, de considerar que o texto produzido no ves60
tibular é efêmero: ele não dá a conhecer quem o escreveu,
uma vez que é composto por uma antologia de textos e palavras consideradas “corretas”, “aceitáveis”; sua duração
corresponderá ao tempo necessário para ser corrigido; sua
finalidade não é informativa, persuasiva ou lúdica – ele está
ali para provar que sabe repetir com propriedade. Essas hipóteses são apoiadas também nas palavras de Foucault: “A
repetição indefinida dos comentários é trabalhada do interior pelo sonho de uma repetição disfarçada: em seu horizonte não há talvez nada além daquilo que já havia em seu ponto
de partida, a simples recitação”. (1998, p. 25)
Resgatando a questão que norteia o trabalho proposto –
de quem são as palavras...? – observou-se até aqui que na
redação do vestibular estão muito presentes as palavras dos
textos fornecidos e, principalmente, a ideologia da comissão
organizadora presente na composição da proposta e confirmada nas expectativas da banca. Porém, outras palavras esti-
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Reconstrução do eu e do outro na escrita escolar
veram presentes na redação. Palavras vindas de um repertório ideológico do candidato, de um consenso sócio-cultural
do qual compartilha.
Bakhtin afirma que “em todos os domínios da vida e da
criação ideológica, nossa fala contém em abundância palavras de outrem, transmitidas com todos os graus variáveis de
precisão e imparcialidade” (1998, p. 139). A própria evolução ideológica é, segundo ele, “um processo de escolha e de
assimilação das palavras de outrem”(1998, p. 142).
Este processo pode ser percebido na redação analisada
à medida que o candidato referia-se a questões políticas,
judiciárias e científicas:
Como cidadã, concordo com o senhor: há inúmeros órgãos governamentais ineficientes e burocráticos. (parágrafo 1);
Os órgãos governamentais tradicionais, quer por
corrupção, quer por ineficiência, já não dão conta da fiscalização [...] (parágrafo 3);
O governo não pode, tal como representante legítimo da sociedade, fechar os olhos aos abusos
que vêm sendo cometidos em relação à água brasileira. (parágrafo 5);
[...] o que mais causa a sua rechação à criação da
agência, é a ineficiência das empresas estatais.
(parágrafo 6);
Nós, cidadãos conscientes, esperamos uma resposta séria de vocês, governantes e representantes da sociedade. (parágrafo 9).
Como se pode observar, a imagem do político e do governo brasileiro, segundo o candidato, não é nada positiva.
O que perguntamos é se isso reflete uma consciência política legítima do candidato, ou se não são palavras ouvidas
desde as rodas de conversa até os mais variados veículos de
comunicação.
Assim, por mais que o discurso anti-governista possa não
se dar em vão, o seu propagar tornou-se uma linguagem estereotipada: criticar o governo confere ao indivíduo uma imagem intelectualizada, uma máscara de “cidadão consciente”.
Para Bakhtin (1998, p. 142), o ensino de disciplinas verbais conhece duas modalidades básicas escolares da transmissão que assimila o de outrem: “de cor” e “com suas
próprias palavras”.
A palavra “de cor” é exemplificada nas existentes nos
textos sagrados, científicos, contra os quais – pelo menos a
rigor - não há contestação. Se observarmos na redação analisada, as passagens que se referem ao problema ambiental
que a falta de cuidados com a água pode trazer, não dão
margem à discussão: são afirmações aceitas por ambas as
partes como verdadeiras e inquestionáveis.
Por outro lado, falar “com nossas próprias palavras” é,
até certo ponto, [...] fazer um relato bivocal das palavras de
outrem, [pois as nossas próprias palavras], não devem dissolver a originalidade das palavras alheias, trazendo consigo um caráter misto, reproduzindo nos lugares necessários
o estilo e as expressões do texto transmitido (1998, p. 142).
Essas duas definições ajudam-nos a compreender o processo de criação da redação analisada. Como já se observou nas passagens em que o candidato refere-se ao governo
e aos políticos, o mesmo ocorre ao falar da lei: palavras que
já foram cristalizadas na mente de toda uma população –
palavras que ele já trazia “de cor”, “de memória”:
Pensamento Plural: Revista Científica do
A lei é raramente cumprida (parágrafo 3).
Tais palavras são encontradas em qualquer jornal ou revista que abrirmos – quer nos dias atuais, quer nos textos da
época:
[...] o problema é que a Justiça sempre tomou
partido dos dominantes [...] (Revista Istoé, 10/
05/2000, p.35).
Nesse mar de lama do judiciário o juiz tem vida
curta. (Istoé, 17/05/2000 – Cartas)
Além de tais palavras já fazerem parte do universo ideológico do candidato – o que já justificaria seu uso – elas
foram requeridas pela proposta:
Enquanto os ambientalistas preocupam-se em
mobilizar a opinião pública e sensibilizar os governos, os legisladores querem enquadrar os
abusados nas normas da lei. (Texto 3)
[...] quem permitiu essa ocupação? (dos mananciais). As prefeituras locais, sem dúvida, mas também a secretaria do meio ambiente, por falta de
vigilância. (Texto 4)
Nestes dois trechos é bem clara a oposição entre os
ambientalistas – no papel dos bons – e dos políticos – no
papel de maus. Assim, observando os valores passados na
proposta de redação, são características dos ambientalistas:
ser favoráveis à criação da ANA (Agência nacional de água);
contrários à ocupação dos mananciais e, por isso, vistos
como bons cidadãos. Os políticos, por sua vez, são caracterizados negativamente devido às seguintes ações: chamam
os ambientalistas de “abusados”; não regulamentam as leis
de proteção; usam a lei para o favorecimento próprio; são
maus e corruptos.
Desse modo, por meio de uma linha ideológica implícita
sugerida pela banca, as palavras que levariam o candidato ao
êxito já lhe foram dadas desde o início. Coube a ele combinálas às que já trazia consigo e estruturá-las de forma criativa.
Para Bakhtin (1998), o homem torna-se livre ao humanizar
o texto de memória, ou seja, ao mesclá-lo às suas próprias
palavras. Apesar da posse das palavras de outrem, o candidato não ficou fora de seu texto. Ele reproduziu as palavras
alheias no lugar e no momento necessários; na ocasião,
nada, além disso, lhe era pedido. Assim, ao manipular os
textos fornecidos e os que estavam cravados na sua consciência de mundo, ele os vivifica, criando um novo texto, múltiplo, plural e dialógico.
4. Considerações FFinais
inais
[...] cada leitor reescreve o texto sem sair de sua
literalidade, que não há original, porque não existe origem, e
que não há definitivo, porque não há fim (...). Por isso, o leitor
é o produto da diferença na repetição: porque repetindo o
original faz presente o que tem de diferente, originalmente,
no original. (LARROSA, apud ABREU, 2000, p. 135).
As observações acima levam a pensar acerca da situação
de um vestibulando em relação ao critério da originalidade.
Observou-se que no momento de uma prova, o candidato não está em busca de palavras originais. Ele quer e necessita de palavras que lhe tragam êxito. Tais palavras pertencem justamente ao Outro: àquele ou àqueles que o estão
provando no momento. Não nos referimos somente à banca
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6 1
SILVA, A. C. S.
Referências
examinadora, mas também a toda uma sociedade na qual
o candidato adolescente está inserido e onde alcançará
uma posição de destaque (a primeira talvez), caso seja
aprovado.
Assim, seu texto será igual a outros textos, mas também será diferente, porque a voz que agora enuncia e a
situação para a qual enuncia, mudam o sentido do enunciado. O candidato desejou ser o Outro, falar as palavras
do Outro e, assim, ser aceito por ele.
Enfim, agindo dessa maneira, o candidato alcançou a
diferença no interior daquela repetição. A sua redação não
estava criticando políticos ou defendendo o meio ambiente.
Ela dizia: sou capaz de escrever com minhas palavras as
palavras que me foram exigidas; escrevi o que você escreveria, logo, mereço ser aprovado.
Perguntamo-nos, “de quem são as palavras...?”. Nesse
caso, são daquele que delas fez bom uso.
rofessor que não Ensina
ALMEIDA, G. O PProfessor
Ensina. São Paulo: Sumus, 1986.
BAKHTIN, M. Questões de Literatura e Estética – a Teoria do Romance. 4a. ed. São Paulo: Hucitec, 1998
eitura
BARZOTTO, V.H. Prefácio. In: Estado de LLeitura
eitura. [s.l.]: ALB/Mercado de Letras, 1999.
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso
Discurso. São Paulo: Edição Loyola, 1998.
LARROSA, J. (trad. Valdir Heitor Barzotto) Os Paradoxos da Repetição e a Diferença. Notas sobre o comentário de
eitura, História e História da LLeitura
eitura
texto a partir de Foucault, Bakhtin e Borges. In: ABREU, M.. LLeitura,
eitura. [s.l.]: ALB/
Mercado de Letras, 2000.
Abstract
RASSIAL, J. J. A Passagem Adolescente – Da Família ao Social.. Porto Alegre: Artes e Ofícios Editora, 1997.
This paper analyses the process of production of the text for the school writing. It tries to identify the voices of the
speech in this type of text and questions the concept of originality in the school textual production. This work is based
on Speech Analysis theory.
Key words
Originality, Scholar Text, Speech Analyses
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