JÂMBLICO DE CÁLCIS: ENTRE OS DEUSES E OS HOMENS Ivan Vieira Neto (Universidade Federal de Goiás) 1. Vida de Jâmblico de Cálcis O escritor alemão Hermann Hesse, em um de seus mais famosos romances, afirmou que cada homem “constitui um ensaio único e precioso da Natureza, (...) onde os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais” (Hesse, 1925, p. 15 e 16). No que concerne à ciência histórica, tal assertiva pode ser traduzida na afirmação de que todo homem é o resultado do conjunto de suas experiências pessoais somado às circunstâncias contextuais na qual ele se encontra inserido. É justamente nesse sentido que o neoplatônico Jâmblico de Cálcis precisa ser entendido. Esse filósofo nasceu em um mundo embasado pelo paganismo, onde os deuses antigos ainda eram os responsáveis pela manutenção e ordenamento do khósmos, e morreu durante as premissas de uma nova ordem religiosa, no ano do Concílio de Nicéia (325 d. C.)1, quando iniciava-se a oficialização do cristianismo. Suas obras foram produzidas nesse intercurso histórico, enquanto o crepúsculo das antigas religiões mediterrânicas rendia-se à aurora do cristianismo institucionalizado em Roma. Jâmblico era filho de uma abastada família da Síria meridional, e desde muito cedo foi instruído na filosofia clássica. A tradição atribui-lhe como primeiro professor um desconhecido Anatólio, que o teria enviado à Roma, aos cuidados de Porfírio, para que ele aprendesse a filosofia neoplatônica de Amônio Sacas e Plotino. Ao regressar ao seu país, Jâmblico fundou a escola neoplatônica da Síria, tendo como seus maiores expoentes posteriores o filósofo Proclo (da escola neoplatônica de Atenas) e o Imperador Juliano, o Apóstata. Com sua filosofia, Jâmblico procurou abraçar um mundo pleno de símbolos e significados que desvelava-se além da Natureza, em uma esfera espiritual. Em seus escritos, o filósofo de Cálcis esforçou-se por evocar os deuses ancestrais do mundo Mediterrâneo, na tentativa de manter vivo o paganismo agonizante do seu tempo. 1 As datas de nascimento e morte de Jâmblico de Cálcis não são precisas, mas a tradição histórica localiza seu nascimento em 245 d. C. e sua morte em 325 d. C., em acordo com o testemunho de Proclo. As idéias de Jâmblico foram fundamentais, mesmo que insuficientes, para os rumos que conduziram o paganismo durante os séculos posteriores (tendo encontrado sua exaltação máxima no governo de Juliano). Mais tarde porém, todos os seus livros seriam considerados como manuais de invocações demoníacas e práticas mágicas, escritos por um religioso fanático. Somente há poucas décadas as obras de Jâmblico foram consideradas por seu valor filosófico e histórico. 2. Paganismo, sincretismo e cultos de mistérios Enquanto o judaísmo e o cristianismo baseavam-se em suas Escrituras Sagradas para a manutenção da ordem social e religiosa de seus adeptos, o paganismo caracterizou-se por sua heterogeneidade e a ausência de um conjunto de livros que sintetizasse os seus mitos e práticas rituais. Dentro do mundo mitológico pagão havia várias versões para um mesmo mito que, ao invés de excluírem-se mutuamente, muitas vezes se complementavam. Em conseqüência dessa fragmentação na narrativa mítica e da co-existência entre muitas doutrinas espirituais distintas, surgiram no mundo helenístico dois fenômenos culturais importantes para o entendimento da obra de Jâmblico: o sincretismo religioso e os cultos de mistérios do Mundo Antigo. O sincretismo era a prática através da qual divindades estrangeiras eram associadas a deuses locais, dividindo com eles as mesmas atribuições, funções e, por vezes, o mesmo culto. Os gregos foram os primeiros, que se têm notícia, a adotar essa prática, o que contribuiu para o intercâmbio cultural que resultou na difusão da cultura helênica por todo o Mundo Antigo e ao mesmo tempo possibilitou, na Grécia, a entrada de conhecimentos estrangeiros que muito influenciaram suas artes, religião e filosofia. Os cultos de mistérios prosperaram no Mundo Antigo por muitos séculos, dentre os quais os Mistérios de Elêusis, celebrados na pólis de Atenas em honra às deusas Deméter e Perséfone, foram os mais célebres. Os mistérios não constituíam uma religiosidade particular, isolada dos outros cultos praticados nas cidades, e nunca opunham-se às outras instituições rituais estabelecidas, e “distinguiam-se dos cultos olímpicos sobretudo na finalidade e na atenção em relação ao destino humano” (Scarpi, 2004, p. 104), de modo que a iniciação em um culto de mistério era, muitas vezes, uma necessidade para o homem antigo. O iniciado obtinha privilégios que lhe concediam um novo status social. Para o italiano Paolo Scarpi, seguindo as convenções da historiografia tradicional, os cultos de mistérios garantiam aos iniciados uma mudança em seu modus uiuendi e a esperança de um futuro post mortem diferente daquele que estava reservado aos não-iniciados. Enquanto na opinião de Walter Burkert “os mistérios antigos constituíam uma forma de religião pessoal, mas não necessariamente espiritual” (Burkert, 1991, p. 97). 3. Teurgia na obra de Jâmblico Jâmblico de Cálcis teve contato direto com diferentes correntes e doutrinas filosóficas da Antigüidade. Em seu livro “Sobre os Mistérios Egípcios” percebemos claramente as influências de antigos cultos de mistérios e da filosofia hermética, que contribuíram, juntamente com o sincretismo, para a construção do seu entendimento do mundo supra-sensível e a elaboração das suas opiniões a favor da prática teúrgica2. A obra de Jâmblico é dedicada a Hermes, como comumente magistas 3 e sacerdotes faziam desde tempos remotos. Esse deus tornou-se por excelência o deus das ciências ocultas, “da verdadeira ciência dos deuses” (Jâmblico, Sobre os Mistérios Egípcios, I), e relaciona-se ainda com o hermetismo. A tradição atribuía a Hermes Trismegistus, provável sacerdote egípcio do Antigo Império, a autoria das doutrinas herméticas que, transmitidas oralmente de mestre para discípulo, foram finalmente compiladas e escritas, durante o período ptolomaico, por sacerdotes que temiam que os conhecimentos do hermetismo se perdessem para sempre. Na obra de Jâmblico essas diferentes filosofias relacionaram-se intimamente, amalgamando-se no que o próprio filósofo conceituou como teologia egípcia. Sobre as relações entre a magia e os mistérios, Burkert afirma que “a tradição da magia e a tradição dos mistérios coexistiram por longo tempo, com múltiplos contatos e interrelações, principalmente ao nível do ofício carismático. O advento de Deméter em Elêusis encontra um paralelo curioso nos textos mágicos egípcios, e um dos últimos hierofantes eleusinos era um teurgo atuante e bem-sucedido” (Burkert, 1991, p. 79). 2 Do termo “teurgia”, que caracteriza um conjunto de práticas rituais, identificados com a magia natural, que têm como objetivo elevar a alma humana, em êxtase, ao nível perfeito da existência divina. 3 O termo “magista” deve ser aqui entendido como “indivíduo praticante de magia”. Mas ao contrário dos cultos secretos dos mistérios, onde a presença dos deuses era invocada para consagrar o rito, a teurgia não buscava invocar os deuses ao mundo humano e sensível da matéria. O teurgo procurava evocar as divindades para auxiliar na purificação da alma para que essa pudesse elevar-se ao mundo inteligível e “co-operar”, com o Uno e os gêneros superiores, na manutenção demiúrgica do cosmos. “Os atos que ordinariamente se executam na teurgia têm uma causa infalível e superior à razão. (...) Por que se dirigem puros aos puros e isento de paixões aos que são isentos de paixões” (Jâmblico, Sobre os Mistérios Egípcios, I). O “Corpus Hermeticum” e o “Caibalion”, principais obras do hermetismo, caracterizam a existência como uma série de emanações de um Todo Indiviso, o Uno, que à medida em que se distanciam de seu modelo afastam-se do Supremum Bonum: a idéia de um mundo material e sensível que emana de um outro mundo, ideal e inteligível, que era comum à filosofia de Platão. Na teurgia, os conceitos metafísicos platônicos encontram-se com uma prática mágica. Jâmblico acredita que o homem, o teurgo, através de rituais específicos envolvendo símbolos divinos (pedras, gemas, ervas) pode alcançar o henôsis4, um estado extático em que a alma, com a ajuda dos deuses, livra-se de sua existência mutável e material e compartilha da imutabilidade dos gêneros superiores. “Com os seres superiores coexiste a ordem mesma, a beleza mesma, (...) a causa mesma coexiste com eles, enquanto à alma corresponde participar sempre da ordem intelectual e da beleza divina” (Jâmblico, Sobre os Mistérios Egípcios, I). Enquanto os participantes dos mistérios integravam-se em uma experiência religiosa coletiva, a teurgia proporcionava ao teurgo uma integração pessoal com as forças metafísicas que governam o mundo. 4. O teurgo, o homem sábio O livro “Sobre os Mistérios Egípcios” é escrito por Jâmblico em resposta à “Carta a Anebo”, escrita por Porfírio e endereçada ao jovem discípulo Anebo, mas que Jâmblico entende como sendo um questionário filosófico destinado a ele mesmo. Por isso o filósofo de Cálcis responde àquele que foi seu mestre da maneira como julga mais coerente e adequado. Valendo-se de um pseudônimo, Abamôn5, um sacerdote egípcio, 4 5 O termo “henôsis” refere-se ao estado extático que a alma humana alcança através da prática teúrgica. Jâmblico vale-se do pseudônimo para conferir mais autoridade à sua obra, já que seu objetivo é Jâmblico reveste-se da autoridade de um homem sábio e querido pelas divindades para tratar dos apontamentos filosóficos de Porfírio, que se referem ao entendimento das doutrinas cósmicas e, principalmente, à maneira como a teurgia é concebida. Jâmblico posiciona-se como um homem capaz de responder às perguntas que lhe são destinadas da maneira mais teológica ou filosófica possível, usando para esse fim os seus conhecimentos diversos sobre a teologia egípcia, a ciência hermética e o neoplatonismo, mesmo quando não se refere claramente a essas filosofias. Impelido pelos argumentos de Porfírio, Jâmblico descreve o perfil de um homem capacitado para executar a teurgia, a mistagogia 6 sagrada. Dessa feita, entendemos que ele se reconhece como o homem sábio e bom mistagogo, capaz de compreender o mundo supra-sensível e também de instruir outros homens nos assuntos que se relacionam à existência superior, contrapondo-se perfeitamente ao anti-exemplo do seu mestre Porfírio, que mostra-se ignorante nos assuntos que são referentes à teurgia e “impiedoso” em seu entendimento sobre as divindades. A teurgia estabelece uma existência perfeita dentro do cosmos, por isso não aceita que qualquer indivíduo sem o devido preparo consiga executá-la de maneira correta a fim de gozar do henôsis, que é a elevação da alma ao mais alto nível da existência humana, proporcionando-lhe uma contemplação direta de uma divindade. Portanto o teurgo deve ser, antes de tudo, um homem preparado para a teurgia. “Assim como cada um dos seres do universo ocupa seu lugar determinado, (...) também assim participa da beleza segundo sua sorte correspondente” (Jâmblico, Sobre os Mistérios Egípcios, I). Em um mundo ameaçado pelo crescimento do Cristianismo, quando as antigas religiões já não conseguiam satisfazer os anseios espirituais da sociedade, a filosofia de Jâmblico buscou uma solução para os problemas que encerravam-se entre a existência inteligível, espaço dos deuses e gêneros superiores, e o existir sensível, o desencantado mundo dos homens. Esforçando-se por resolver as questões que se referiam ao destino pessoal das almas e os meios pelos quais estas poderiam ascender à realidade imutável do Todo, Jâmblico foi um dos últimos filósofos a preocupar-se com os rumos do paganismo. Talvez seja por isso que, em seu testemunho que atribui a autoria da obra “Sobre os confrontar as opiniões de Porfírio, que fora seu antecessor hierárquico. 6 “Mistagogia” refere-se à prática ritual, entendida na obra de Jâmblico como sinônimo de “teurgia”. Mistérios Egípcios” a Jâmblico de Cálcis, Proclo tenha referido-se a ele como “o divino Jâmblico”7. Bibliografia: JÂMBLICO. Sobre los misterios egipcios. Traducción de Enrique Ángel Ramos Jurado. Madrid: Gredos, 1997. BURKERT, Walter. Antigos Cultos de Mistério. São Paulo: Ed. USP, 1991. SCARPI, Paolo. Politeísmos: as Religiões do Mundo Antigo. São Paulo: Hedra, 2004. MOORE, Edward. “Likeness to God as Far as Possible”: Deification Doctrine in Iamblichus and Three Eastern Christian Fathers. In: Theandros – An Online Journal of Orthodox Christian Theology and Philosophy. Vol. 3, number 1. 2005. HESSE, Hermann. Demian. Rio de Janeiro: Record, 1999. 7 Trecho citado por Enrique Angel Ramos Jurado na introdução da obra de Jâmblico traduzida para a língua espanhola.