a controversia acerca da arquitetura final do middleware

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38º
Encontro
Anual
da
Anpocs
GT 37- Universidade, Ciência, Inovação e Sociedade
A normatização da inovação Ginga como dispositivo
sociotécnico: a controversia acerca da arquitetura final do
middleware da TV digital brasileira
Sayonara Leal (Universidade de Brasília)
Introdução
Este trabalho trata da normalização de padrões tecnológicos como dispositivo
sociotécnico revelador da complexidade que envolve a coordenação entre atores
heterogêneos que constituem um ecossistema de inovação. O processo de definição de
normas técnicas engendra a constituição de associações entre lógicas, interesses e ações
para determinar a composição e o funcionamento de um sistema tecnológico1. Este
trabalho se insere no âmbito temático acerca da normatização de arquiteturas
tecnológicas que compõem sistemas tecnológicos tendo como foco a televisão digital
interativa2.
O tema da televisão digital ganhou importância nos países engajados nos projetos
de «sociedade da informação» nos finais dos anos 1980, mas as pesquisas em
telecomunicações e radiodifusão para o desenvolvimento da TV interativa remontam
aos anos de 1970. (SANTOS; ALMEIDA, 2010). A partir dos anos 1990, a Europa, o
Japão, os Estados Unidos apresentaram ao mercado mundial seus protótipos de padrões
tecnologicos para televisão digital integrando em cada um deles características
específicas naquilo que concernia aos seus projetos de plataformas de comunicação
digital: mobilidade, portabilidade, auta definição e interactividade3. As três normas
internacionais mais adotadas para a televisão digital no mundo são: ATSC - americana
1
Hugues (1989) postula que um «technological systems» comprende um conjunto de entidades
heterogêneas associadas cuja a separação dos elementos social, técnicoou econômico não é óbvia.
2
A televisão digital como instrumento de interatividade, em vários países, como na França e no caso que
nos interessa aqui, no Brasil, está ainda em estado de experimentação, ainda “en train de se faire”, no
sentido de Akcrich et Méadel (2006). Os atores fundamentais da concretização da interatividade no
sistema brasileiro de TVD, os operadores de radiodifusão e desenvolvedores de aplicativos e softwares,
estão a espera de uma demanda mais importante por tecnologias interativas da parte dos usuáriostelespectadores. Mas, a falta de um mercado plenamente desenvolvido de aplicativos interativos para a
TVD gratuita não compromete a singularização da interatividade enquanto elemento inovador no sistema
tecnológico da TVD. Embora não se trate do foc de nossa pesquisa, gostaríamos de precisar que estamos
bastante atentos à problemática da categoria de interatividade, porque, como postulam Proulx e Sénécal
(1995), trata-se de um conceito que se converte em característica atribuída hoje pelos fabricantes de
numerosos objetos ou dispositivos informaticos que obriga o ser humano a adquirir e controlar um
mínimo de savoir-faire técnico (protocolos, procedimentos para manipular corretamente o objeto técnico)
e para poder dialogar com o sistema informático. (PROULX, 2000). Uma expertise requerida nem sempre
encontrada entre os usuários/telespectadores.
3
Como postula HÖLBLING, RABL, KOSCH (2008), a interatividade na televisão não é uma novidade.
No início dos anos 1960, nos EUA, havia emissões nas quais telespectadores eram convidados para
participar de quiz shows. Na verdade, « O termo televisão interativa (iTV ou ITV) é mpregado para
sistemas de televisão nos quais a audiência pode interagir com o conteúdo da televisão. A interatividade
na televisão não é sempre destinada a significar que o expectador é chamado para mudar o conteúdo de
um programa.”. Os autores classificam sete níveis de interatividade considerando o contexto da TVD:
basic TV ; Call-in-TV ; Parallel TV ; Additive TV ; Service on demand ; communicative TV ; Fully
Interactive TV.
(1993), DVB – européia- (1993) e ISDB- japonês- (1999). Esses padrões não são
compatíveis entre si e, por isso, a difusão de um sistema não pode ser efetuada pela
televisão utilizando um outro. Esta situação forçou vários países, inclusive aqueles da
América Latina, a escolher o padrão mais próximo de seus projetos de TVD, o que
levou também a uma concorrência entre os padrões para chamar a atenção de um
número mais importante de países a partir de estratégias geopolíticas como conquistar
mercados dentro e fora do continente de origem.
Na América Latina, o México, Honduras e El Salvador adotaram o sistema
americano. A Colômbia, Uruguai e o Panamá optaram pelo padrão europeu. O Brasil, o
Peru, a Argentina, o Chile, a Venezuela, o Equador, a Costa Rica e o Paraguai
escolheram o padrão japonês. (ANGULO, CALZABA, ESTRUCH, 2011). No caso do
Brasil, este país adotou o padrão tecnológico ISDB japonês em compasso com o projeto
de TVD brasileiro de criar sua própria versão, o ISDB-T, ao qual foi integrado o
middleware nacional Ginga. O Sistem Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD) foi
idealizado como uma estratégia governamental para o desenvolvimento da indústria
manufatureira nacional e de políticas públicas de inclusão social a partir da televisão
digital interativa – TVDi. (JUNIOR, BARBIN, CARVALHO, 2011). A decisão por
uma norma que rege um padrão tecnológico nacional, no que se refere à radiodifusão,
tem consequencias importantes porque ela impacta os processos industriais de
fabricação de dispositivos técnicos, de aparelhos de televisão e a dinâmica de atores do
ecossistema de serviços da televisão digital tanto de um ponto de vista técnico, político,
cultural como econômico.
No que concerne à televisão digital interativa, a norma principal é aquela que
define a arquitetura do middleware, camada de software que permite o dialogo entre
aplicações e o dispositivo tecnológico a partir do qual estes funcionam (TV, telefone
móvel, rádio). Graças ao middleware, aplicativos heterogêneos podem interagir entre
eles permitindo diferentes niveis de interatividade na TVD.
O middleware é um dos elementos mais importantes de um sistema de televisão
digital, porque, na prática, é ele que rege as relações entre as duas indústrias de
importância fundamental: a produção de conteúdo e a fabricação de receptores. Do
ponto de vista do software, pode-se dizer sem exágero que quando se define o
middleware, de fato, se define um sistema de televisão. Dominar os conhecimentos
desta tecnologia é estratégico para um país porque a falta de controle desta
ocasionaria certamente a falta de controle de sua utilização. (SOARES,
BARBOSA, 2012, p. 24)
O valor estratégico da padronização e normalitização de um middleware está,
então, na definição de todo mercado que constrói um sistema de televisão digital
(conectado e interativo) em função da escolha da plataforma que vai guiar todo modo de
funcionamento do ecossitema da TVD. Isso porque a padronização de plataformas
tecnológicas é desejável do ponto de vista da regulamentação de interoperabilidade dos
aparelhos de televisão e de serviços interativos para a TVD. A padronização de suportes
é, assim, considerada como um das questões complexas para a estabilização (mesmo
que provisória) do mercado de televisão conectada/interativa. Na verdade, a ausência de
padronização pode complexificar o trabalho dos produtores de conteúdos, das
industrias, dos operadores de radiodifusão, dos desenvolvedores de aplicativos que não
desejem investir numa configuração diferente de seu serviço ou de seu conteúdo
conforme cada uma das plataformas de televisão concetada presentes no mercado local.
Neste sentido, há uma tendência mundial de adoção em massa numa mesma região
geográfica e até geopolítica de uma mesma plataforma tecnológica para a TVDi, como
aquela que incorpora o middleware. Neste sentido, podemos evocar a formação de
consórcios entre empresas de diferentes países investindo em um única plataforma
tecnológica para a interatividade, como no caso europeu do consórcio HBBTV.
O ecossistema da TVDi é caracterizado por um grau elevado de fragmentação de
soluções e de normas tecnológicas que resultam de elementos complexos e de interações
entre os mercados e as tecnologias. As questões de interoperabilidade entre normas e
compatibilidade de um padrão com outros sistemas tais quais Android ou iOS, utlizados
nos tablets, telefones inteligentes e em televisores, assim como outros sistemas
específicos tais quais Xbox 360 e Playstation 3, utizados por milhões de utilizadores
de dispositivos já compatíveis com televisores, desempenham um papel importante
nesse cenário de segmentação de padrões para a TVD. (PARLEMENT EUROPÉEN,
2013).
No quadro de padrões para a interatividade na TVD – middlewares- na Europa,
encontramos as normas tecnológicas: HBBTV (França, Alemanha e outros), YouView
(Reino Unido) e MHP (Itália). Na América Latina, o Brasil é o único país que
desenvolveu o seu próprio middleware que já foi adotado em 20 países na região latinoamericana e na África.
Os impactos mais visíveis da adoção das tecnologias, como processos de
normatização, interoperatibidade entre sistemas e tecnologias, reconfiguração de
ecossistemas, nos informam sobre a constatação da falta de suites de testes e de
conteúdos específicos para canais de telvisão digital interativos, sobre os problemas de
uso de aplicações interativas pelos telespectadores, ausência de um modelo econômico
claro para os operadores de TV, sobre os custos de uso de softwares integrados a certos
middlewares e igualmente sobre o atributo de livre e aberto esperado pelos operadores
de radiodifusão em relação à plataforma tecnológica para a TVDi.
A questão do pagamento de patentes a empresas multinacionais proprietárias de
softwares – ou seja de licenças – para operar sobre plataformas tecnológicas de TVDi é
igualmente um ponto chave na escolha e no processo de normalização de middlewares4.
A normatização de arquiteturas tecnológicas tende a corresponder a configurações
específicas da dinâmica entre atores humanos (sociograma) que interferem na estrutura
integrada pelos atores não-humanos (tecnograma) de um sistema técnico. (LATOUR,
2001). O resultado da normatização de uma tecnologia decorre da tradução de valores
que um dispositivo tecnologico pode incorporar diante de demandas políticas,
aspirações do mercado e da indústria, expectativas da sociedade civil e objetivos
técnicos previstos por pesquisadores/conceptores de um padrão tecnológico.
Levando em consideração que o middleware é parte estratégica para o
funcionamento da interatividade da TVD, definimos como objeto de estudo o
middleware Ginga que permite a interatividade no Sistema Brasileiro de Televisão
Digital Terrestre (SBTVD-T). Trata-se de um artefato tecnológico cuja normatização
passou por um conflituoso processo de problematização que dividiu forças que
incentivaram, desacreditaram e resistiram à inovação. A normalização da inovação
Ginga engendra uma controvérsia acerca da arquitetura final do middleware integrada
pelas tecnologias NCL-Lua e JavaDTV. O foco da nossa análise é a coordenação de
interesses entre atores heterogêneos implicados no desenvolvimento do SBTVD
(cientistas, emissoras de TV, indùstria de software, indùstria de receptores, governo) os
quais se reúnem no espaço de uma entidade civil, sem fins lucrativas, o Forum do
SBTVD-T,
para
formularem
especificações
técnicas
que
regulamentam
as
implementações da inovação.
4
No caso francês, La question du paiement des brevets à des entreprises multinationales propriétaires de
logiciels – et donc de licences – fonctionnant sur des plateformes technologiques de la TNT interactive
est également un point clé dans le choix et la normalisation du middleware dans les cas brésilien et
français. En France, après l'adoption en 2000 du standard MHP basé sur la technologie Java, les
opérateurs de radiodiffusion publics français (France Télévisions) ont finalement décidé d'abandonner le
projet MHP en fonction de payement de brevets. Á partir de 2009, ce pays a adopté comme middleware
pour sa TVN, le standard HBBTV, une plateforme technologique libre et ouverte.
Estão no centro do problema da normatização do middleware Ginga a questão
política sobre o caráter nacional da tecnologia, a polêmica sobre o aumento da
capacidade tecnológica do Ginga, em termos de interatividade, a partir da inserção da
tecnologia Java e a questão de pagamentos de royalties a empresas multinacionais
proprietarias de licenças para o uso do Java. Este último ponto é o elemento
desencadeador do confronto de diferentes atores no Forum SBTVD, os quais são
portadores de argumentos que revelam mundos sociais traduzidos no dispositivo
normativo que resulta da controvérsia. A definição de normas é uma etapa
incontornável para estabilizar um sistema tecnológico. Trata-se do problema mais
importante no quadro do progresso técnico o qual depende da dinâmica de criação de
inovações e de iniciativas públicas e privadas para definir novos sistemas técnicos.
A norma técnica é “dispositivo cognitivo” cuja elaboração cada vez mais se
realiza em espaços civis reunindo os atores implicados diretamente na sua legitimação.
Neste sentido, a norma técnica resulta de operações criticas e negociações em instâncias
hidridas
(fóruns,
consórcios) com
diferentes
representações
(publico/privado;
humanos/não humanos) em uma atividade coletiva que permite articular uma realidade
(econômica, social, industrial) com uma normatividade amparada num principio de
“bem comum”. Por se tratar de um procedimento chave para o desenvolvimento
industrial de produtos e para economia de serviços, a norma técnica pode se constituir
em objeto de controversias tecnocientificas.
A escolha do padrão tecnológico para interatividade na TV digital implica
consequências técnicas, políticas, culturais e econômicas para todos os atores desse
ecossistema, impactando processos industriais de fabricação de dispositivos técnicos, de
aparelhos de TV e modelos de negócios do mercado de radiodifusão e de
telecomunicações. Ora, como nos informa a vasta literatura da sociologia da inovação,
não é necessariamente a natureza de objeto técnico incarnada pelo padrão tecnológico
que determina a escolha final de sua arquitetura, mas os dispositivos de interesses
mobilizados pela inovação em relação às práticas de todos os atores concernidos com
sua concepção e/ou difusão (AKRICH, CALLON, LATOUR, 1988, 1991, 2006). São as
dimensões coletiva e heterogênea que engendram a inovação e orientam a escolha
tecnológica que a legitima em seu ecossistema. Mas, a atividade de cooperação entre
diferentes interesses que envolvem a trajetória de uma inovação, a qual se mostra não
linear, muito menos regular ou previsível, não pode ser confundida com um evento
harmonioso e consensual. Trata-se de uma empreitada conflituosa em várias etapas cuja
lógica de organização se revela à medida que seguimos os atores dessa ação numa
perspectiva de rede sociotécnica em que elementos humanos e técnicos entram em
interação. Nessa trama, as ações produzem relações e estruturas de poder que são
reforçadas ou fragilizadas/questionadas no espaço das interações que dão lugar às
controvérsias. Ou seja, a relação de forças se estabelece no seio de espaços de
negociações a partir de problematizações que podem assumir a forma de uma
controvérsia cuja importância sociológica é de nos informar sobre uma situação e suas
questões. (LASCOUMES, 2001, 2002 ; CALLON, YANNICK, LASCOUMES, 2001).
A controvérsia sobre o Ginga começa com a história de uma inovação que
resulta de duas propostas de middleware, FlexTV (Ginga-Java) e Maestro (Ginga NCLLua), desenvolvidas por consórcios liderados por universidades brasileiras no quadro do
Projeto SBTVD, lançado pelo Governo Federal, em 2002, para incetivar o
desenvolvimento de inovações para integrarem a televisão digital brasileira. O
middleware brasileiro traz pelo menos três especificidades importantes para
compreensão de seu contexto de concepção, legitimação e normatização como
plataforma tecnológica para interatividade na TV digital brasileira. Em primeiro lugar,
trata-se de uma inovação concebida em condições de desigualdade social e fratura
digital no Brasil. Segundo, o Ginga é a primeira tecnologia produzida no país, na area
de telecomunicações, reconhecida e indicada para adoção em outros paises, pela União
Internacional de Telecomunicações (UIT). E por último, é um middleware que
incorpora o pricípio de liberdade e abertura do sofwtare livre como uma tecnologia de
código fonte livre e aberto cuja manipulação é facilitada tanto para desenvolvedores
profissionais, vinculados a empresas, como também para aqueles independentes e
“experts leigos” (COLLINS; EVANS, 2010).
Podemos dizer, ainda, que o Ginga tornou-se uma política de governo para
inclusão social por meio do uso da interatividade na televisão aberta para prestação de
serviços públicos (E-gov, E-Educação, E-saúde). Além, dessas particularidades, é
também instrumento estratégico de geopolítica para difusão da tecnologia brasileira em
países do Cone Sul, já adotado em sistemas de televisão digital de 20 países dessa
região. Ainda podemos ressaltar que o middleware brasileiro tornou-se um vetor de
soberania nacional ao torna-se obrigatório por decreto governamental nos aparelhos de
televisão produzidos por fabricantes internacionais instalados no Brasil. Por suas
características técnicas que exprimem dimensões sociais e políticas incorporadas ao
middleware desde sua concepção em universidades brasileiras, o Ginga é objeto de
incertezas, tanto do ponto de vista tecnológico, como econômico. As incertezas em
relação a uma nova tecnologia estão no centro dos debates controversos acerca dos
artefatos tecnologicos, sobretudo porque tanto experts, como agentes públicos,
empresários e cidadão comum não podem assegurar o futuro de uma tecnologia. Não
podemos prever se ela vai atender a todos os interesses que estão no cerne da sua
concepção (AKRICH, 1991). No caso do middleware brasileiro, as incertezas são,
sobretudo, de três ordens. Primeiro, elas são de natureza tecno-jurídica, quando não hà
clareza na política de licenciamentos de soluções proprietárias. Segundo, elas são de
caráter tecno-político, quando procedem da confrontação entre qualidades técnicas da
tecnologia e sua relação com projetos de políticas públicas governamentais. E, por
último, são do tipo tecno-econômica, quando são oriundas de um quadro de
expectativas de formação de mercados locais associados aos interesses do ecossitema
industrial e empresarial dos setores de radiodifusão e de telecomunicações do país.
As incertezas em torno dessa tecnologia animam operações discursivas sobre
diferentes dimensões da normatização do Ginga, considerada aqui como “provação”,
uma épreuve5, no sentido da sociologia pragmática francesa (BARTHE et al, 2013,
CALLON et al, 2001, BOLTANSKI, 1990; 1993 BOLTANKI, THEVENOT, 1991). A
normatização se traduz em uma “épreuve” fundamental na trajetoria tecnologica do
middleware, enquanto conjunto de normas técnicas que orienta o desenvolvimentos de
dispositivos tecnológicos interativos para televisão digital brasiliera, porque se refere à
“capacidade de pessoas de se confrontarem com objetos e de os valorizar...”
(BOLTANSKI, 1990), num contexto de controvérsia. Esta se desenvolve a partir das
diferentes estratégias discursivas e performativas das operações críticas dos atores
implicados no problema gerador da controvérsia. As provações, nesse sentido, são
5
A noção de “épreuve” assume um papel central em nosso estudo acerca do Ginga enquanto um conjunto
de normas técnicos que torna possível tecnologias interativas para a televisão digital. Utilizamos neste
texto a abordagem de Boltanski em sua sociologia das convenções, considerando a épreuve como
“resultado da capacidade das pessoas a se confrontar a objetos e os colocar em evidência...”. Assim, “a
épreuve de acordo de seu conceito é uma provação de realidade. Ela engloba por consequência não
somente pessoas mais também objetos que têm lugar na realidade. Ora os objetos reais são objetos que
existem no mundo dos homens, e cuja realização afeta, por consequência, um número indeterminado de
pessoas.” (BOLTANSKI, 1990). Os atores implicados em uma controvérsia podem, assim, iluminar a
partir de diferentes estratégias discursivas e performativas as operações críticas nas quais eles se lançam.
Nesse tipo de análise de épreuves “... a crítica pressupõe a proximidade entre objetos revelando diferentes
mundos.”. As provações são geralmente agenciadas referenciadas em princípios, valores, praticados por
atores em sitauções de incerteza que engendram um disputa de argumentos, de idéias, de normas.
geralmente agenciadas em relação a princípios, valores expressos por atores em situações de
incerteza que engendram uma disputa de argumentos, de idéias, de normas. (BOLTANSKI,
1990).
No caso da normatização do Ginga, identificamos o locus de normatização do
Ginga, o Forum SBTVD, como um espaço civil hibrido onde se manifestam, por
excelência, os argumentos que nutrem a controvérsia que, por sua vez, induz a
coordenação entre atores do ecossistema da TV digital brasileira que representam
diferentes visões de mundo que negociam a definição do Ginga full. Nesse espaço
manifestam-se laços sociais que sediam a coordenação entre atores distintos baseados
no princípio de uma solidariedade técnica que permite o estabelecimento de contratos
entre seres que fazem parte de uma negociação e são enquadrados pela lei. (DODIER,
1995). Esses laços sociais resultam das ações políticas entre atores humanos em
coordenação no espaco híbrido de negociação num contexto de democracia técnica
(CALLON, LASCOUMES, BARTHE, 2001).
Na democracia técnica operam-se negociações de formas e conteúdos de
proposições no espaco público, onde atores sociais que não participam do mesmo
universo cognitivo, mas estão implicados nos resultados das controvérsias de
abrangência coletiva, assumem suas posições em um exercício de reconstrução do laço
social do qual resulta a coprodução de saberes e reformulações de demandas. A ênfase
no dispositivo normativo que regulamenta as especificações e implementações do Ginga
traz à tona uma inovação cuja legitimação e estabilização passa pela problematização e
gestão de suas fragilidades em termos tecnológicos, econômicos e políticos. Temos,
assim, a definição de um dispositivo sociotécnico (a Norma Ginga), como objetofronteira, cuja regulamentação se constrói nas intersecções entre atores que ganham
visibilidade numa trama sociotécnica que implica a coordenação entre lógicas de ação
doméstica, cívica, opinativa, mercantil, industrial. (BOLTANSKI, THEVENOT, 1991;
BOLTANSKI, CHIAPELLO, 2009). As fronteiras entre tais dimensões perfilam uma
tecnologia que faz diferentes atores agirem segundo regimes de engajamentos distintos
ao projeto de interatividade atribuido ao SBTVD, na perspectiva dos limites de uma
democracia técnica. A partir da realização de análise documental, entrevistas semiestruturadas com atores envolvidos com a normatização do middleware, discutimos,
apoiados na abordagem sociotécnica da sociologia da inovação, as provações pelas
quais o Ginga passou para ser integrado como inovação traduzida em um conjunto de
normas ao hidrido sistema tecnologico da televisão digital no Brasil.
Este trabalho está organizado em três partes, além desta Introdução, mais a
conclusão. Na primeiara parte, apresentamos o middleware Ginga e sua integração ao
SBTVD-T, passando pela concepção dessa inovação. Em seguida discutimos a
normatização como provação fundamental pela qual pode passar uma determinada
inovação para se estabilizar.E por último, analisamos a trama sociotécnica que engendra
a controvérsia acerca da Norma Ginga/Java no espaço do Fórum SBTVD para
normatização e legitimação do middleware.
1. O hídrido Sistema de Televisão Digital Interativa no Brasil: do Japão ao
Ginga
No Brasil, a evolução do debate em torno de um sistema de televisão digital se
realizou em três etapas fundamentais: de 1998 a 2000, quando as discussões se
concentraram sobre a escolha da norma tecnológica que deveria ser adotada; de 2001 a
2006, quando diferentes e novos atores foram concernidos ao debate sobre uma
alternativa nacional às propostas estrangeiras no que concerne à interatividade se
concretizou e o ano de 2006, quando é decretada a implantação do Sistema Brasileiro de
Televisão Digital Terrestre - SBTVD-T na plataforma de transmissão e retransmissão de
sinais de radiodifusão de sons e imagens. (BRASIL, 2006).
O primeiro período se refere aos testes iniciais coordenados pelo CPqD (Centro de
Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações) acerca dos modelos de televisão
digitais, até, então, existentes (o americano ATSC, o europeu DVB e o japanês ISDB).
Neste caso, essas características seriam: alta definição, portabilidade, mobilidade e
interatividade. Segundo Gallouj (2002), trata-se de características de serviços esperados
a partir de uma norma tecnológica definida. Do ponto de vista tecnológico, observamos
que os padrões DVB e ISDB ultrapassam o modelo ATSC no que concerne à
portabilidade. Em relação à interatividade, todos os modelos necessitam de
aperfeiçoamentos e oferecem margens para contribuições técnicas oriundas de outros
sistemas tecnológicos. (LEAL, VARGAS, 2011).
O segundo momento é marcado pelo fomento do governo para a mobilização de
atores (empresas de software, cientistas, universidades, organizações da sociedade civil)
em torno de projetos para desenvolver dispositivos técnicos para televisão digital com
caracerísticas nacionais. O terceiro episódio se deu com a definição e regulamentação
do SBTVD-T. O governo concluiu que o desenvolvimento de um modelo
exclusivamente nacional seria muito dispendioso. (HOBAIKA, 2007, p.71). Por outro
lado, o governo, igualmente, insistiu sobre o fato de que seria necessário manter um
modelo de difusão aberta/gratuita no Brasil, isto é, que os telespectadores não tivessem
que pagar pela recepção de sinais e emissões quando estes tiverem equipamentos
necessários para acessar à TVDi. De maneira geral, o modelo de exploração e de
implantação proposta insistiu sobre os benefícios da multiprogramação (isto é, emissões
com diferentes resoluções), interatividade, mobilidade e portabilidade. A partir dessas
características desejadas e após a evolução dos testes realizados pelo CPqD, a norma
japonesa foi considerada como a mais próxima de responder às prioridades técnicas
definidas. Essa norma é, assim, convertida na base de um modelo nipo-brasileiro que
iria ser reforçado graças à incorporação de tecnologias desenvolvidas no Brasil para o
sistema digital, como a concepção do middleware Ginga, integrado ao SBTVD-T,
tornando-o, em parte, brasileiro. Ou seja, com a criação de um sistema brasileiro de
TVD foi definitivamente estabelecido, com a possibilidade de concepção de uma
plataforma tecnológica híbrida, na qual uma parte pudesse contar com expertise
tecnológica nacional.
Assim, para além de elementos técnicos, o debate nacional sobre a definição do
padrão para a TVD no Brasil abarcava também a temática da necessidade de negociar
com os detentores dos modelos de contrapartidas de transferência a inclusão da
tecnologia brasileira (o middleware).
Quando o governo brasileiro financiou pesquisas, entre 2003 e 2006, também
sobre o desenvolvimento de referências de middlewares para a televisão digital nacional
fixou certas exigências importantes que deveriam ser respeitadas pelos seus
conceptores, um deles sendo a interatividade. Neste cadro, o estudo do middleware
Ginga nos permite realizar uma análise acerca das “èpreuves” pelas quais essa
tecnologia tem sido submetida para conquistar a sua “estabilidade total” nos
referenciando em dois eixos. De um lado, existe um contexto de iniciativas estatais
visando promover a inclusão digital a partir do middleware com a criação de aplicativos
de benefícios sociais que permitem populações acesserem serviços públicos (saúde,
trabalho, educação) pela televisão digital. Neste sentido o Ginga é visto como
instrumento de política pública para promoção de direitos sociais, fortalecendo uma
cidadania social a partir de uma “interatividade cívica”, mas com baixa conexão.
De outro, nos chama a atenção que as interações sociais e técnicas que dão lugar
à inovação tecnológica são guiadas para uma concepção particular de interatividade,
sobre a base de hipóteses do movimento do sotfware livre. Os elementos citados
concernem ao mais alto ponto de reflexão sociológica a propósito do tratamento de
controvérsias na medida em que consideramos a existência técnica do middleware
brasileiro como resultado da “provação” pela qual este passou em seu processo de
normatização, implicando a coordenação de atores heterogêneos oriundos do
ecossistema do SBTVD-T.
Embora a primeira abordagem acerca da estabilização total do middleware
brasieliro seja bastante promissora para compreendermos as “missões” sociais e
culturais atribuídas ao Ginga, essa será tratada em uma outra ocasião. Neste texto,
destacaremos a análise tecnológica (a descrição do objeto e de suas propriedades
intrinsecas) e, em seguida, a análise sociológica do objeto técnico (meios nos quais ele
se move e sobre os quais produz seus efeitos). Trata-se da discussão de inovações
baseadas na interação social entre um certo número de atores com competências
variadas no coração do processo de inovação em seus movimentos de idas e vindas
segundo novos dados oriundos dos usuários/cidadãos. (AKRICH, 1998).
1.1- Ginga : do que se trata?
Na cultura brasileira, Ginga é um termo aplicado para designar uma qualidade
ligada à atitude pela qual, por exemplo, uma pessoa pode superar uma situação difícil
em sua vida com desenvoltura. Trata-se também de um termo utilizado para qualificar
um movimento fundamental da Copeira. A escolha do nome Ginga para nomear o
middleware brasileiro é proviniente de características culturais do país: “A idéia que
surgiu era de dar um nome que tivesse a cara do Brasil, ao modo brasileiro. Daí o nome
Ginga.”, explica um pesquisador de uma das universidades brasileiras, a Universidade
Federal da Paraíba (UFPB), que participou do desenvolvimento do middleware.
Ginga, grosso modo, corresponde a uma camada de software intermediária
(middleware) que permite o desenvolvimento de aplicativos interativos para a televisão
digital, independente da plataforma material de fabricantes de terminais de acesso à
televisão (set top box). Trata-se de um artefato tecnológico que permite interatividade
SBTVD-T em diferentes nivéis de conexão à Internet. Em todo sistema tecnológico da
televisão digital, o middleware é um elemento chave porque este guia as regras de
funcionalidades no sistema para que as aplicações possam ser executadas pela
plataforma. O middleware está no coração do software permitindo que uma mesma
aplicação possa funcionar sobre todos os decodificadores (set top boxes) segundo
especificações técnicas e isso independentemente do fabricante de televisão.
(CAROCA,
2008).
O middleware é utilizado para manipular a informação entre programas,
escondendo do programador diferenças de protocolos de comunicação, de plaformas e
dependências do sistema operacional. Compõe-se geralmente de módulos com API´s de
alto nível que fornecem sua integração com as aplicações desenvolvidas em diferentes
linguagens de programação de interface de baixo nível que permitem sua independência
em relação ao aparelho. (CAROCA, 2008).
Ginga é o resultado da junção do middleware FlexTV, baseado no Java, desenvolvido
por um consórcio de pesquisa dirigido pela Universidade Federal da Paraíba- UFPB e do
MAESTRO, composto pelo Nested Contest Language – NCL, criado pela Pontifícia
Universidade do Rio de Janeiro- PUC/Rio. A tecnologia surge no quadro da política
pública de C&T, durante o governo de Lula, para financiar o desenvolvimento de
tecnologias em torno do projeto do SBTVD-T6.
Toda concepção do Ginga foi universitária. Ele nasceu na PUC e depois foi
introduzido em open source ... foi o primeiro middleware com código aberto e livre.
E isso fez com que o Ginga obtivesse uma grande força no seio da comunidade do
software livre. Isto é muito importante para a democratização porque, entre outras
coisas, permitimos a outros atores que se juntassem a esse processo (de concepção).
(Pesquisador 1).
Caraco (2008) explica que o FlexTV foi uma proposição de um middleware
imperativo que apresentava um conjunto de API´s compatíveis com outras normas
assim como também com funcionalidade inovadoras tais quais a capacidade de
comunicar com várias elementos da tecnologia, permitindo a diferentes telespectadores
interagir com a mesma aplicação interativa a partir de aparelhos à distância. Já o
dispositivo MAESTRO, coordenado pela PUC-Rio, foi proposto como projeto de
middleware declarativo do SBTVD-T. O Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital da
UFPB-Lavid, foi encarregado de coordenar o grupo do projeto FlexTV. Os trabalhos
feitos sobre a FlexTV, somados ao projeto MAESTRO, conduziram a soluções para a
6
O Decreto 4901/2003 determinou que recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das
Telecomunicações (Funttel) fossem usados para financiar consórcios de universidades brasileiras que fizessem
pesquisas ligadas à digitalização da TV aberta. Foram listados temas como transmissão e recepção, modulação,
interatividade, middleware, serviços, aplicações e conteúdo e investidos cerca de 28 milhões d'euros.
especificação de um novo padrão de middleware, o Ginga, que foi incorporado ao
SBTVD-T, em 2006. (SILVA, 2008).
A junção dos dois projetos de middlewares estava considerada como resposta
adequada às escolhas impostas pelo governo brasileiro no quadro do
desenvolvimento
do
middleware
brasileiro.
Este
deveria
permitir
a
compatibilidade internacional para a exportação e a importação de conteúdo e
devia igualmente dispor de mecanismos destinados a promover a inclusão digital
da população. No que concerne à primeira obrigação, a compatibilidade, a norma
International Telecommunication Union (ITUJ200) foi adotada como uma norma
de referência para o desenvolvimento de sistemas de middlewares interoperáveis.
Essa norma prevê dois elementos principais: uma máquina de execução que
permite a exibição de conteúdos declarativos, como o XML e uma máquina de
apresentação que possibilita a fabricação de aplicativos procedurais, como
aqueles desenvolvidos em Java. Aliás, foi previsto um laço entre os dois
ambientes técnicos, o que no caso brasileiro significa a possibilidade de ter em
um aplicativo Java um elemento NCL.
O Java foi incorporado ao middleware brasileiro para fazer de uma máquina
de execução, o Ginga-J e o Ginga NCL no seio do motor de apresentação cuja
especificação foi, em princípio, Graphic Environnement Manager (GEM), um nó
comum de middleware baseado no Multimedia Home Plattform (MHP). (LEITE,
2011).
Para corresponder às obrigações de interoperabilidade, adicionamos algumas
Application Programming Interface (API's) ao GEM. Estas API´s são divididas em
verde, amarela e vermelha. As verdes permitem o desenvolvimento de aplicativos
aderentes ao GEM; as vermelhas são aquelas inovadoras, concebidas para satisfazer
caracteríticas específicas do Brasil. (LEITE, 2011, p. 23).
Quando se acreditava que a arquitetura do Ginga estava fechada, veio à tona o
risco de pagamento de royalties ao consórcio Digital Vídeo Broadcasting (DVB),
pelo uso do GEM do MHP. A identificação desse problema, o qual se traduz no
evento detonador da controvérsia sobre aarquitetura final do Ginga, durante o
processo de normatização do Ginga-J), levou ao desenvolvimento pela Sun
Microsystems, sociedade proprietária das licenças do Java TV, do Java Digital
Television (Java DTV). A nova especificação para o Ginga-J foi integrada ao
middleware mesmo se esta não continha a obrigação esperada de compatibilidade
internacional. A versão final do Ginga coloca acento sobre a facilidade de
sincronização espacio-temporal entre os objetos multimidias utilizando uma
linguagem declarativa NCL11 (imbricado ao Contexte Language) agregado às
características da linguagem script Lua12, esta compatível com as definições
normativas da ITU, Ginga integra as duas soluções (Lua12 e NCL11), agora
chamadas Ginga-J e Ginga-NCL7.
De acordo com os engenheiros/pesquisadores e funcionários engajados no
Projeto Ginga, entrevistados neste estudao, sendo conciliável com os parametros
internacionais da ITU, o middleware foi desenvolvido afim de considerar as
últimas inovações em termos de TIC´s e as necessidades de inclusão digital do
país. Esses objetivos não seriam traçados se o middleware adotado pelo SBTVDT fosse um das tecnologias já existentes no mundo.
O governo esteve no coração desta história porque não adotou um padrão tão
simplismente. Ele favoreceu um debate para saber se adotaríamos uma plataforma
ou se havia algo melhor. Isso foi crucial porque neste momento, o governo publicou
chamadas públicas para financiar o desenvolvimento de pesquisas. Assim, essas
chamadas, que são muito comuns na Europa, não existiam no Brasil. O governo deu
a força às universidades dizendo que não iria adotar uma plataforma européia,
americana ou japonesa, mas iria analisar o que seria melhor para o país.
(Pesquisador 1).
As exigências do governo brasileiro para o desenvolvimento de inovações para
integrar o SBTVD-T não passa somente por requisitos técnicos, mas também pela
interatividade como mecanismo para o combate de problemas sociais brasileiros, como
a fratura digital8. Outro dados contextuais baseados sobre a realidade brasielira acerca
do acesso às TIC´s podem ser evocados para justificar o desenvolvimento do Ginga
como instrumento de inclusão social9, como o fato que no Brasil há uma presença
7
Hoje, no cenário tecnológico mundial encontramos : MHT, GEMPTV para IPTV, Blue-Ray,
OCAP, ACAP et ARIB, todos baseados no GEM e Ginga-J, baseado em Java DTV. (LEITE,
2012). O Ginga full (NCL + Java) foi reconhecido pela ITU como o padrão para a interatividade
para TVD-T e para IPTV´s.
8
Em 2013, 48,1% de lares brasileiros contavam com um computador, dos quais 40,8% tinham acesso à
Internet. Assim, somente 30% da população têm acesso a Web, o que nos leva a afirmar que o Brasil
apresenta um quadro importante da fratura digital que reflete nosso problema estrutural de fratura social.
Na Zona rural brasileira, 77% de pessoas nunca acessaram à Internet, isto é , 56 milhões de brasileiros
(CETIC.Br., 2013). A fratura digital foi evocada como um dos principais justificações do governo
brasileiro para fazer da televisão aberta, presnete em mais de 91% de lares no país, um instrumento de
inclusão digital.
9
O uso da capacidade de interatividade do Ginga como instrumento de inclusão digital no Brasil pode se
dar a partir da implementação de dispositivos técnicos, os chamados aplicativos de benefícios sociais, que
tornam possível a prestação de serviços públicos pela via da televisão digital às populações com renda
mínima, como é o caso do Brasil 4D. Trata-se de um aplicativo criado para funcionar no ambiente técnico
do Ginga promovendo o acesso a serviços de saúde, educação, previdência social a famílias beneficiadas
significativa de linhas de telefone móvel10 e a televisão está presente em 91% dos lares
brasileiros.
A norma atual do Ginga full recomenda somente o Ginga NCL para dispositivos
móveis. O Ginga-NCL é o ambiente técnico requerido para os aparelhos portáteis cuja
implementação de referência apareceu em 2008, realizado como protótipo pela equipe
do Laboratório Telemidia da PUC-Rio. (CRUZ, MORENO, SOARES, 2008). Trata-se
do único modelo de middleware permitindo a integração de uma funcionalidade
interativa de IDTV nos aparelhos de telefonia móvel. Isso significa que um telefone
móvel pode ser utilizado como um canal de retorno pelo sistema técnico da televisão, ou
utilizado como contrôle remoto, ou mesmo como dispositivo de interação (para
responder a pesquisas de opinião, por exemplo). Essas funcionalidades utilizam
protocolos comuns tais como Bluetooth, USB, Wifi, etc., sendo o Ginga compatível
com diversos aparelhos. (SILVA, 2008).
As funcionalidades inovadoras oferecidas pela API do Ginga permitem a utilização
de diferentes dispositivos de interação para a comunicação com o receptor que abriga
o middleware Ginga e a implementação de aplicativos que utilisam os recursos
disponíveis sobre esses aparelhos. Estes dispositivos devem ter um componente
(modulo) Ginga instalado – protocolo de comunicação entre a instância Ginga do
receptor de televisão digital e do componente Ginga sobre o aparelho. Entre os
dispositivos possíveis [que podem beneficiar funcionalidades deste software] pode-se
citar os telefones, os PDA, os computadores portáteis e praticamente todo aparelho
móvel com a força de tratamento e de comunicação suficiente; nós podemos
imaginar “controles remotos avançados” compatíveis com a Ginga. (SILVA, 2008,
p. 45).
Mas até o presente momento, não há muitos produtos no mercado para os aparelhos
móveis celulares no Brasil utilizando o Ginga. Os protótipos são em curso de
elaboração nos laboratórios de pesquisa em algumas universidades brasileiras e em
empresas privadas de softwares. A Nokia lançou o Ginga Mobile usando a televisão
digital via móvel para oferecer programas de televisão aberta. Trata-se do primeiro
pelo Bolsa Família. Foram selecionadas 100 famílias para participar do projeto piloto que teve sua
primeira edição em 2013, em João Pessoa na Paraíba. O Brasil 4D é uma iniciativa da Empresa Brasil de
Comunicação (EBC), em parceria com órgãos do governo e empresas privadas. A EBC realiza a segunda
edição do projeto no Distrito Federal.
10
Segundo dados da Anatel (Agência National de Telecomunicações), o país em maio de 2013 contava
com 265,5 milões de celulares, o que representa 134,2 aparelhos móveis por 100 habitantes
(BRASIL/ANATEL, 2013). No entanto, 134 milhões de pessoas, com 10 anos e mais, têm um telefone
móvel no Brasil. Destas, 52 milhões têm acesso à internet pelo celular. Neste universo temos 20 milhões
de smartphones conectados à internet, (Estudo do IBOPE Media, 2014).
produto comercial que oferece a interactividade pelo telefone portátil nos aparelhos
Nokia.
Você tem duas coisas: você pode olhar a televisão pelo celular e ter a plataforma
Ginga emcarcada no telefone móvel para interagir com seu aparelho de televisão a
partir de seu telefone diretamente no telefone móvel, e outra coisa é que você pode
utilizar seu telefone como uma interface, uma sorte de controle remoto para
manipular sua televisão, ou para interagir na televisão. (Pesquisador 3).
As implementações do Ginga ainda não foram esgotadas e sua “estabilização
total”, em termos difusão no mercado e usos sociais pelos desenvolvedores de softwares
também não está garantida. Nas seções seguintes, apresentaremos algumas
especificidades do processo de normatização no contexto de supostas “democracias
técnicas” para discutiremos, em específico, o moroso processo de normatização da
arquitetura tecnológica do middleware brasileiro, o que, em nossa concepção, contribuiu
para as dificuldades que hoje enfrenta essa inovação, no sentido da sua
difusão/aceitação pelo mercado e usuários-cidadãos. A normatização do Ginga engendra
um processo de disputas e consensos epistemológicos convertendo-se numa importante
“provação” ( épreuve) pela qual passou essa tecnologia, submetida a visões e
experiências de mundos sociais e lógicas de ação distintas. O estudo da norma técnica
Ginga full nos permite mapear os aliados, resistentes, céticos à inovação.
2) A normatização do Ginga como “provação” no quadro da democracia técnica:
os bastidores da controvérsia Ginga/Java no seio do Forum SBTVN
O Fórum do Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre é aqui considerado
como espaço civil de normatização do middleware Ginga. O Fórum foi criado pelo
decreto presidencial 5.820, a mesma norma que regulamenta o padrão japonês como
a base técnica de referência do
SBTVD-T. Trata-se de uma organização não
governamental que conta com a presença de agentes do governo, de vários
ministérios, mas que é regido por um conselho deliberativo de treze participantes
com direito a voto. Esses treze participantes são representados por radiodifusores,
fabricantes de equipamentos de televisão, pelas universidades e por representantes
da indústria de software.
Segundo o estatuto do Fórum, seu quadro associativo é composto por três
categorias: associados plenos, associados efetivos e associados observadores. Os
associados efetivos e os observadores não têm direito a voto, sendo que os primeiros são
constituídos por pessoas jurídicas que sejam afetas pelas decisões tomadas no âmbito do
SBTVD brasileiro. Os segundos podem ser pessoas físicas que tenham notório
conhecimento dentro do escopo da televisão digital e sejam convidadas por carta formal
via Conselho Deliberativo para integrar o Fórum. Já os associados plenos são aqueles
que possuem direito a voto, podendo filiar-se nessa categoria somente pessoas jurídicas,
cujas atividades estejam diretamente relacionadas e afetadas pela padronização do
sistema brasileiro de televisão digital terrestre. Esses atores representam interesses dos
diferentes setores implicados no ecossitema da TV digital brasileira, mais o governo que
não tem direito a voto no conselho.
Os trabalhos no Forum se dividem em quatro módulos: mercado, propriedade
intelectual, promoção e técnico. O modulo técnico é o responsável pela coordenação de
contribuições relativas às especificações técnicas do Sistema Brasileiro de TV Digital e
as atividades de pesquisa e desenvolvimento, identificando necessidades de
especificação e definendo disponibilidade de soluções técnicas referentes à geração,
distribuição e recepção do sistema de TV digital, incluindo alta definição, definição
padrão, mobilidade, portabilidade, segurança e autenticação, serviços de dados,
interatividade e canais de retorno. Esse módulo também trata da harmonização das
especificações técnicas
com outras
entidades de normatização
nacionais e
internacionais. Por se tratar do lugar onde se discutem e se redigem as normas
concernentes ao SBTVD, os participantes desse espaço serão aqueles considerados,
neste trabalho, como atores que mais diretamente influenciaram a normatização do
Ginga. Como os integrantes desse grupo foram considerados experts em TV digital,
suas deliberações normativas são, em geral, aceitas pela Associação Brasileira de
Normas Técnicas - ABNT, órgão oficial de normatização técnica no país. A ABNT
recebe do Fórum a redação das especificações técnicas e, em seguida, as submete à
consulta pública11, antes de publicá-las como regulamento. A consulta pública é um
mecanismo regulamentar da ABNT. Quando uma norma técnica é publicada, ela fica 60
dias em consulta pública. E se existir alguma manifestação de qualquer brasileiro contra
a aprovação daquela norma técnica apresentando os motivos pelos quais ele vota
negativamente, a ABNT responde essa negativa. Se a contribuição recebida for acatada
pela entidade, o texto volta para consulta por mais trinta dias e somente ao término
desse procedimento a norma é aprovada, publicada e entra em vigor. “Só que, quando
existem esses tipos de normas, cuja temática é muito técnica, muito poucas pessoas
fazem parte dessa votação da consulta pública.”, diz o redator da Norma Ginga-J.
3) A problematização do Java integrado ao middleware brasileiro: os atores
da controvérsia
O Ginga é composto de dois ambientes tecnologicos. A parte declarativa NCL/Lua e
a parte imperativa, Java. Trata-se de dois paradigmas tecnologicos orientados por
principios de funcionamento distintos. Soares, Angeluci et Azevedo (2011) explicam
que “As linguagens de autoria declarativas permitem que o autor da aplicação
especifique o que é a aplicação final, enquanto que as linguagens de autoria imperativas
pedem que o autor diga como esta aplicação é informando passo a passo o que a
aplicação deve fazer.”. (p. 89).
E justamente na combinação desses dois paradigmas para a arquitetura final do
Ginga que reside a controversia sociotecnica que nos propomos a analisar neste trabalho
acerca da introdução da tecnologia Java no middleware brasileiro, formando o chamado
Ginga full, NCL-Lua + JavaDTV. Isto é, o nó das discussões estava na questão do
pagamento de royalties para utilização do Java para o desenvolvimento dos aplicativos
baseados no Ginga. Os atores da radiodifusão, indústria e do governo, sobretudo,
esperavam assegurar a eliminação das sanções penais em caso de violação de royalties e
11
A consulta pública se constitui em mecanismo de controle público-social no quadro dos instrumentos
de descentralização do poder público presente em várias instâncias decisórias dentro e fora da
administração pública brasileira. (LEAL, RIBEIRO, 2002).
de propriedade intelectual na manipulação do código fonte do Java integrado ao
middleware.
Em seu desenho inicial, o NCL seria a parte obrigatória do Ginga e o Java seria a
parte opcional na composição do middleware. Segundo um dos pesquisadores que
trabalharam na concepção do Ginga : « A ideia era interagir com outras normas. No
caso, com a norma européia que utilizava igualmente o Java na época, o MHP”. A
arquitetua técnica e das regras que dão forma e conteúdo ao Ginga se tornam objeto de
uma controvérsia que chamaremos aqui de Episódio Ginga/Java, a qual se desenvolveu
em três momentos de temporalidade principais12. Evocar as etapas da controvérsia, nos
permitiu uma reflexividade analítica acerca do fenômeno da normatização do Ginga,
não somente como um evento do passado, mas como método para chegar a
compreender a contemporaneidade do Ginga a partir do destaque dado ao processo de
objetivação conflitual no passado que deu lugar a seu modo de existência como norma
técnica e aos desafios que se anunciam acerca de seu futuro, como a questão de sua
mercantilização.
Controvérsia- Parte I
O primeiro momento da controvérsia, o que chamaremos aqui como “situação
genealógica”, no sentido de Barthe et al (2013), se deu entre 2007 e 2008, quando o
Fórum SBTVD e o governo brasileiro evocam um problema de barreira comercial com
a inserção do Ginga –J ao middleware por causa do pagamento não desejado pela
outorga de licenças para utilização da tecnologia Java TV.
As normas do Sistema Brasileiro de Televisão Digital são divididas em volumes e
cada um deles tem uma temática especifica: transmissão de vídeo, codificação de vídeo
etc. Uma delas, a norma seis, no volume seis, foi dedicada à parte da interatividade, que
seria o Ginga. A norma seis tem seis partes principais, seis documentos, que foram
trabalhados em épocas diferentes, por pessoas que nem sempre estiveram presentes em
todas as discussões. Então, existe um volume da norma que é só do NCL e outro que é
12
A controvérsia se desenvolve em três momentos de temporalidades que selecionamos em função da
apelação explícita dos participantes do processo de normatização do Ginga no seio do Forum, os quais
foram entrevistados durante este enquete. Os momentos evocados nos mostraram as especificidades do
dispositivo engendrado pelo Fórum no procedimento de formulação das especificações técnicas para
regulamentar as implementações do Ginga, nos permitindo nos dar conta dos compromissos herdados de
processos de negociação que têm lugar no passado do percurso de estabilização do middleware.
dedicado ao Java. Dentro da norma seis, a parte que trata do Java é o volume quatro, ou
seja, o Ginga-J (ABNT 15606-4). Como explica o redator da Norma:
Na época, quando se começou, dividiu-se a norma seis em quatro partes iniciais.
Mais tarde, tiveram outras. No início eram quatro: a parte um era sobre a
transmissão da interatividade; a dois sobre a linguagem do NCL; a três, os formatos
de mídia que seriam suportados (formatos de vídeo e de imagem), e a quatro era a
parte do Java. Os volumes dois e quatro eram os mais complexos. No início, o
quatro, obviamente, por causa do esforço e do protótipo já desenvolvido pelo Lavid.
Mas, no meio do caminho para escrever essa norma, com quase tudo pronto, vários
conselheiros, fazendo pesquisas sobre o padrão europeu, descobriram que essa parte
do padrão, que era herdada pela pesquisa do pessoal do Lavid, do MHP, tinha
royalties. Ele era todo baseado num conjunto de royalties, completamente cheio de
patentes, regido por uma associação ligada ao DVB europeu.
Na verdade, depois que o consórcio DVB-MHP escreveu a norma de seu
middleware (MHP), foram patenteados diversas partes dessa norma na Europa. Assim,
os fabricantes e radiodifusores europeus que queriam usar o MHP tinham que pagar
pelas licenças. E essa foi a principal causa para que o MHP não fosse um “sucesso” em
praticamente nenhum país da Europa.
No Forum SBTVD quando veio à tona que o MHP tinha royalties, os
radiodifusores brasileiros reagiram contra a parte Ginga-J porque não concordaram em
pagar pelas licenças. (Vários veículos de informação). O Ginga-J continha uma série
de APIs e dentre elas havia algumas que pertenciam ao MHP. Um membro da
Comunidade Java no Brasil explica que o MHP tem uma série de patentes que são
chamadas no mundo de licenciamento de “patente submarino”: “...é quando deixam
você utilizar a tecnologia e, quando percebem que você está grande o suficiente, vão
atrás de você para te cobrar. Quando o governo viu isso, decidiu tirar essa parte do
Ginga-J.”.
Os debates acolorados no Forum levaram o governo a convidar a “dona da
tecnologia do Java”, que era, na época, a Sun Microsystems, para conversar com os
participantes do Forum para negociar alguma possibilidade da empresa contribuir na
escritura de uma nova norma do Ginga-J, diferente do MHP. Para os radiodifusores, a
licença na transmissão de uma interação MHP seria paga em função do número de
pessoas que receberiam essa transmissão. Ou seja, quanto maior a audiência, mais as
emissoras de TV pagariam pela licença. “Elas nunca concordariam com isso. Para elas,
isso era um impeditivo absolutamente mandatório. E era exatamente assim que
funcionava a tabela de licenças do Gem.”, comenta o redador da Norma do módulo
técnico.
Neste momento, os fabricantes de aparelhos de TV se manifestaram contra o
embarcamento do Ginga em seus equipamentos porque viam no middleware um
aumento de gastos na sua produção de aparelhos de TV. Esses fabricantes evocavam
também, em consonância com os operadores da radiodifusão, sobre a imaturidade e
isolamento da tecnologia criada no Brasil. Os fabricantes resistiam ao Ginga como um
todo e as emissoras de TV não viam na parte NCL-Lua o potencial de interatividade
satisfatório para a TV digital.
Havia uma preocupação que o NCL Lua, por não ser uma linguagem muito
conhecida, apesar de ser muito utilizada lá fora (a parte Lua), não tinha o mesmo
peso, o mesmo nível de conhecimento que as pessoas tinham do Java, o mesmo
numero de desenvolvedores. Havia uma comunidade Java muito forte e muito
atuante, principalmente no Brasil. E havia uma preocupação de algumas emissoras,
em especial da Globo, que a gente não fizesse aplicações que não pudessem ser
utilizadas ou aproveitadas em transmissões internacionais. (empresario da industria
de software 3).
Controvérsia – Parte II
O segundo episódio da controvérsia, entre 2008 e 2010, é marcado pelos efeitos do
acordo assinado entre o governo brasileiro e o Fórum SBTVD-T com a Sun, que detinha
os direitos do Java à época, para negociar com a empresa uma versão Java livre de
royalties. Deste acordo, surge a versão Java DTV (especificação aberta, reconhecida
pela Sun), a especificação técnica base do Ginga-J, que será adotada como parte do
Ginga como linguagem de processamento do middleware brasileiro.
A Sun enviou representantes que se reuniram com o Fórum e depois um grupo
brasileiro foi até a Califórnia, na sede da Sun, para conversar com eles. Eu fiz parte
desse grupo. O resultado disso foi que o governo brasileiro estabeleceu um
memorando de entendimentos com a Sun e o Fórum recebeu e assinou esse
memorando e depois um contrato com a Sun. O pessoal da Sun dizia que interessava
a eles que o Java fizesse parte do padrão brasileiro sem as patentes que existem no
modelo europeu. Nós, desde o início que o modelo europeu foi escrito, fomos contra
o que foi feito, porque em cima da nossa tecnologia do Java, para a parte da
televisão, chamada Java-TV, os europeus construíram uma serie de extensões que
foram patenteadas e tinha royalties. (redator da Norma Ginga-J)
O debate fundamental no Fórum durante quase dois anos baseava-se também
sobre questões se o Brasil deveria adotar a tecnologia Java DTV, ou se deveria optar
pela tecnologia GEM (Globally Executable MHP). O GEM, presente em algumas
versões de middlewares, implica a faturação de royalties superiores àquele presnete no
Java DTV. Esta nova especificação Java não estava válida se não houvesse o pagamento
de royalties a Sun que estabeleceu o valor de 0,25 Euros por equipamento produzido
com o Ginga Java DTV. Neste quadro, os fabricantes de televisores vão argumentar que
estes podiam acessar a mesma tecnologia a menor custo, a 0,15 Euros, por unidade de
equipamento. Neste momento da controvérsia Ginga/Java, os operadores de
radiodifusão, fabricantes de televisores, os pesquisadores, o governo, a comunidade do
software livre e a comunidade Java no Brasil interrogam a Sun sobre custos elevados
pela implementação do Ginga-J no que concerne a emissores e receptores de sinais.
Segundo entrevistas com integrantes da Comunidade Sou Java no Brasil e
representantes da indústria de Software no Fórum, a Sun sempre se posicionou contra as
patentes criadas com as implementações do MHP. A empresa era favorável que o Java
fosse livre de patenteamentos. No entanto, isso não quer dizer que a Sun abria mão de
todos os ganhos com o uso do Java em middlewares para a televisão digital interativa. O
interesse da Sun era ter o Java como linguagem integrada a um sistema tecnológico
como o Ginga, cujo mercado potencial de produção de aparelhos de televisores
ultrapassava as estimativas de todos os países da América Latina.
Para Sun interessava que o Java fosse amplamente utilizado, pois, para qualquer
equipamento embarcar essa tecnologia seria necessário acessar a uma virtual machine
ou JVM – Java Virtual Machine, que é um módulo de software que é embarcado e que
faz com que tudo que tenha sido escrito utilizando a tecnologia Java possa ser
executado. A Sun esperava vender essas licenças de JVM para os fabricantes de
equipamentos. Um representante da industria de software brasiliera explica como a Sun
se beneficia do Java DTV:
O modelo de negócios deles era o seguinte: “Você quer escrever uma norma
baseada na nossa tecnologia Java, pode escrever, nós não vamos cobrar nenhum
royalty, desde que você siga a tecnologia Java. Não pode mexer na tecnologia”.
Eles sugeriam que não se fizessem extensões para que não se criassem patentes
próprias, e que o melhor a fazer era seguir apenas o padrão normal do Java, o “feijão
com arroz”. “Se você fizer assim, nós não cobraremos royalty para ninguém usar
isso, nenhum radiodifusor, mas o fabricante do equipamento vai usar uma JVM que
nós vamos vender para eles”. (representante da indústria de software 1).
De acordo com alguns integrantes do Fórum que participaram dessa negocição com
a Sun, a empresa americana lembrou que a solução a qual se chegou a respeito do
Ginga-J estava dentro do escopo de práticas comuns nesse mercado. O redator da
Norma Ginga-J lembra que, por exemplo, a mesma coisa acontece com os milhares de
celulares no mundo inteiro que usam Java de centenas de fabricantes diferentes e todos
eles pagam pela JVM. Após as negociações com a Sun, o Fórum iniciou reuniões
técnicas com a empresa americana e começaram a discutir qual era o Java que se queria
para o middleware brasileiro. A demanda brasileira era escrever uma norma baseada na
linguagem Java que incorporasse o GEM, presente no MHP europeu. Após meses de
discussões, chegou-se a um acordo que gerou um contrato assinado entre o Fórum e a
Sun, no qual essa empresa se comprometia a escrever uma extensão para essa parte da
norma do Java, equivalente à européia, sem cobrança de royalties. Surge, assim, uma
comissão no Fórum chamada de Ginga-J cuja função era gerenciar o trabalho da Sun,
dialogando com os seus técnicos e advogados. O redator da Norma lembra a dinâmica
de negociações dentro do Forum:
Essa negociação toda, esse debate todo dos royalties, do padrão europeu, levou
muito tempo. Eram treze conselheiros no Fórum, de diferentes empresas e
organismos, mais quatro representantes do governo. É muita gente pra sentar numa
mesma mesa para chegarem a um acordo. E mais: nenhum deles tinha o menor
background técnico em software, com exceção do representante de software. Para a
maioria “falava-se grego”. Foi muito complicado e demorou muito tempo.
A norma Ginga-J não podia ser exatamente igual ao que tinha sido feito pelos
europeus com o MHP, sob pena da Sun incorrer em liability em relação à patente
original. Assim, surgiu o Java DTV - Java Digital TV - diferente da parte antiga, Java
TV.
O Ginga Java tem especificações open e free. Ou seja, aberto e livre. A
implementação dele é free. Se você pode comprar uma implementação de terceiros,
você terá custos. Você também pode montar um device seu ou usar uma máquina
virtual que você baixa do site da Oracle. Aí, você está em um ambiente pronto para
montar uma aplicação Ginga. Não existe e nem nunca existiu custo em
desenvolvimento de aplicação usando linguagem Java. Mas, se você lançar um
produto comercial, por exemplo, se a Sony lançar uma TV no mercado, com o
Ginga embutido, ela poderá decidir se vai montar isso internamente ou se vai
comprar de alguém que já tenha desenvolvido o que ela quer incorporar no aparelho.
Dependendo da situação, isso pode ou não ter custo. Mas o Ginga é aberto e livre. O
que não quer dizer que não seja possível alguém cobrar por algo que tenha
desenvolvido com essa tecnologia. Se você for ao site do Ginga e baixar a
especificação, você não vai pagar nada por isso. (Membro Comunidade Java 2).
O que acontece é que você tem três bilhões de computadores rodando Java. Isso
explica bastante coisa. O interessante é que, nas mãos da Oracle, esse cenário está
diminuindo. Não por causa da tecnologia, mas pelo modelo mais agressivo... eu fui
para os EUA para negociar a cobrança dos royalties do Java. Na verdade, se você
não certifica esse produto, você não paga royalty nenhum. Caso contrário, você tem
que pagar royalty no Java. Mas viram a mêsma coisa no NCL. O pacote tecnológico,
hoje, custa de $10 a $20 para você licenciar isso com uma TV, no Brasil. Não é só o
Java e NCL. É tudo. (Pesquisador 7).
A rediscussão no Forum SBTVD sobre os royalties do Java foi levantada sobretudo
pelos fabricantes de aparelhos de televisão que se uniram àqueles que defendiam o
Ginga apenas com o NCL/Lua para operar a interatividade na televisão brasileira,
basicamente os pesquisadores das universidades brasileiras e parte da indústria de
software. Os argumentos da indústria de aparelho de televisão recaia sobre os custos
menores de produção em embarcar apenas o NCL em seus equipamentos. Em 2010, LG
et Sony, no Brasil, jà fabricavam aparelhos de TV com o NCL embarcados. Já a
indústria de software defendia que a parte NCL-Lua do Ginga já estava normatizada
desde de 2007 pela ABNT, o que permitia implementar imediatamente a interatividade
na TV digital. “... as empresas de software queriam que a interatividade desse certo. Se
a interatividade não existisse, tudo o que eles tinham investido seria zerado. Lucro zero.
A norma do NCL já estava pronta e publicada. E muitas empresas de software já tinham
implementações prontas do Ginga na parte NCL.”. (empresario da industria de software
1).
Com Java ou sem Java, a gente queria que acontecesse alguma coisa, porque foram
feitos muitos investimentos. Muitas empresas que investiram, que se posicionaram e
se organizaram e adquiriram conhecimento pra trabalhar com essa tecnologia de
interatividade na TV digital foram perdendo interesse. Muitas delas acabaram
fechando ou indo pra outras áreas. Naquele momento da discussão sobre o Java,
realmente não importava muito. Importava que algo acontecesse. (Empresario da
industria de software 1).
A problematização da arquitetura do middleware se fundamenta também no caráter
nacional e qualitativo (propriedades técnicas e robustez) da tecnologia Ginga NCL/Lua.
De um lado havia aqueles favoráveis ao Ginga NCL, pesquisadores das universidades,
parte da indústria de software e os fabricantes de televisores, estes por motivos
estritamente econômicos, que defendiam que o NCL/Lua cumpria com as expectativas
funcionais atribuídas ao Ginga e trazudidas em uma tecnologia de ponta.
Primeiro a gente tem que separar o que é Ginga. Java não é Ginga. Ginga é NCL
mais qualquer coisa. O Java é o “qualquer coisa” que pode ser aberto ou não. E,
exatamente por não ser aberto, o único país que adotou a parte de Java foi o Brasil.
Os outros países não adotaram o Java. Ele não é obrigatório. Pra ser Ginga tem que
ter o NCL. Não tem que ter mais nada.” (Pesquisador 4, um dos criadores do Ginga
NCL/Lua).
O Java é uma tecnologia, hoje, para a ponta, para o usuário, bastante defasada. Tanto
que até na internet ela esta caindo em desuso, ficando apenas para algumas coisas de
segurança. Paralelo a isso, foi feita uma proposta totalmente brasileira, que se
chamava Maestro. Que era totalmente baseada numa linguagem brasileira (NCL)
muito mais leve e muito mais simples.” (Pesquisador 2).
Todos os middlewares baseados somente em Java ou, no caso, em Java script, como
algo um pouco menor, mas ainda assim, descendente de Java, respondem a um tipo
de problema, no caso da TV digital. Mas a solução que o nosso pessoal deu, da
linguagem que está por trás do Ginga, o NCL, no caso, é muito mais potente,
porque, na realidade, ela é uma linguagem para o audiovisual mesmo.”
(desenvolvedor 1, movimento do Software Livre).
Eu acho que tudo o que você consegue fazer com o Java, você também consegue
fazer com o NCL-Lua. Uma das vantagens do Java, inicialmente, diz respeito ao
tamanho gigantesco da comunidade de programadores Java. Além disso, todos os
países usavam o Java. E o NCL é muito mais robusto. Quando o NCL se junta com
o Lua, a potencialidade dele aumenta bastante. Eu, pessoalmente, acho que o NCLLua é melhor para televisão. (Pesquisador-desenvolvedor 2).
Sobre a inserção do Java no sistema do middleware, vários pesquisadores
entrevistados enfatizam que se trata de uma linguagem mais apropriada para ambiente
de Internet, sobretudo para proteção de dados bancários, mas para audio e vídeo seria
uma tecnologia muito “pesada”.
O Java foi concebido originalmente para computadores e é aplicado em muitos
sistemas comerciais e ele foi criado com esse objetivo. Uma das coisas que fez o
Java “bombar” foi que através dele muitas coisas passaram a funcionar na internet.
Por esse motivo, é necessário entender um pouco de computação para programar em
Java. Enquanto que o NCL foi criado para manipulação de aplicações multimedia.
Aplicações cujo foco é áudio e vídeo. Por isso ele se adéqua melhor à TV.
(Pesquisador-desenvolvedor 2).
Além desse argumento contra o Ginga-J, alguns pesquisadores-desenvolvedores de
aplicativos interativos para televisão e celulares evocam que o Java também encarece a
produção de receptores se pensarmos na inclusão social e que para fazer interatividade
local, com baixa conectividade, o Java não seria necessário (o caso do Brasil 4D). Nos
termos de um pesquisador entrevistado: “O Java, por que ele é polêmico... ele é um
ambiente que você coloca mais requisitos para o receptor de TV digital, isso significa
encarecê-lo e, ao mesmo tempo, ele oferece funcionalidades que já são oferecidas pelo
NCL, com a linguagem Lua.” (pesquisador 3).
... a minha resposta é que o Java ajuda sim, e, em muitos casos, é necessário. Mas
depende do que tu vais fazer. Para fazer uma aplicação interativa local, não é preciso
o Java. Basta o NCL. Alguns tipos de aplicações necessitam do Java. Mas você pode
substituir o Java depois, se quiser, Isso não é problema. O que é preciso questionar é
que nível de interatividade está sendo desejada. Para ter a interatividade local não se
precisa de Java. Serve o NCL. (Desenvolvedor 1).
O ponto forte do Java mais destacado neste momento da controvérsia seria a sua
grande comunidade de desenvolvedores no mundo, tendo somente no Brasil 100 mil
programadores especializados nessa tecnologia.
A única desculpa do Java era que ele tinha bilhões de programadores. Era essa a
única desculpa do Java. Era a única coisa boa que o Java acrescentava e que não
tinha pelo NCL. E em absolutamente todas as questões técnicas, é muito melhor
você fazer as coisas em NCL Lua do que em Java. Hoje, o Java “morreu” como
linguagem do cliente. (pesquisador 4).
Alguns outros cientistas e parte da industria de software defendiam a
complementariedade entre NCL/Lua e Java para tornar o sistema tecnologico do Ginga
mais robusto. Segundo um pesquisador,“... a gente não tem como comparar o NCL com
o Java. Sempre ficou bem claro, na comunidade científica, que não dá para fazer esse
tipo de comparação. Porque um acaba complementando o outro. » (Desenvolvedorpesquisador 1)
... no campo de produção de aplicativos interativos, os desenvolvedores e pessoal
mais técnico costuma dizer que 90% a 95% das aplicações interativas são
desenvolvidas em NCL-Lua. Então, você não tem necessidade especificamente de
ter a máquina Java no sistema. Logicamente o Java, com uma linguagem procedural
propicia uma série de recursos e de desenvolvimento do conteúdo interativo que a
linguagem NCL pode até fazer, mas de uma forma diferente. Então, como a
linguagem NCL é declarativa, alguns recursos interativos são mais fáceis e mais
rápidos de serem viabilizados através da linguagem procedural Java. Então, na
verdade, ambas as linguagens são importantes, ambas as máquinas são importantes
dentro do Middleware Ginga para executar aplicações interativas.” (pesquisadordesenvolvedor 2).
Eles se complementam. A arquitetura, a engenharia de software do Ginga é muito
mais robusta e permite muito mais serviços interativos. Mas o Ginga NCL e o Ginga
Java são complementares. Quando a aplicação exige maior capacidade de
processamento, o Java é mais eficaz. Para aplicações mais simples, como as dos
celulares, o NCL é melhor nessa parte. Isso é que torna o Ginga uma ferramenta
muito potente para ser utilizada em interatividade. (Desenvolvedor, Membro da
Comunidade SouJava 2).
Um pesquisador entrevistado, envolvido no desenvolvimento do middleware
brésilien, enfatizou o fato de a tecnologia NCL não ter a maturidade e difusão da
tecnologia Java, além de defender a “diversidade” de linguagem de programação na
composição do middleware brasilero, ou seja, as tecnologias Java, NCL e Lua. “Isso é
muito importante para o espaço interativo. A Internet é interativa porque você tem uma
diversidade de ferramentas.”, comenta. (pesquisador 7).
Os empresários da radiodifusão que não dominavam o debate tecnológico não
vislumbravam no potencial de interatividade do NCL vantagens mercadológicas. O
NCL era questionado pelos radiodifusores mesmo havendo provas, realizadas nos
laboratórios das universidades brasileiras de que aplicações interativas baseadas na
tecnologia funcionavam para a TV aberta e para celulares. O relator da Norma Ginga-J
esclarece que,
De um lado da discussão havia o pessoal favorável ao Ginga, pessoal das
universidades, da academia, principalmente da área tecnológica, que falava uma
linguagem técnica muito sofisticada, complexa, hermética. Do outro lado, os
radiodifusores, empresários, engenheiros, que não entendem nada da parte
tecnológica. Você consegue imaginar um diálogo entre essas duas partes? Era muito
difícil. Eles ficavam se questionando se o NCL não seria mais uma invenção de
universitário brasileiro e que tinha muita chance de não dar certo. Quando se olham
os números de desenvolvedores, usuários etc etc etc, o Java ganha longe, mas a
questão não era somente de números. Eles não tinham nenhuma segurança ou
garantia de que o Ginga daria certo. O investimento deles era muito grande e
desproporcional à segurança que eles sentiam. Existia, sim, um preconceito muito
grande.
Outro problema que aconteceu foi que, os radiodifusores enviavam pessoas para
congressos, feiras pelo mundo inteiro, e se encantaram, em 2008, 2009, pelo BluRay. Eles viam nessa tecnologia, a interface maravilhosa, em altíssima definição,
performance e a interatividade que eles queriam. Além de toda a aceitação do
mercado mundial e do nome de grandes investidores como a Disney, por exemplo,
nesse segmento. E tudo isso funcionava com Java. Era o Blu-ray Disc Java - BDJ.
Os radiodifusores passaram a comparar isso com uma interface paupérrima, que
funcionava em PC e em alguns setup boxes. Essa comparação era injusta, mas servia
para fortalecer a convicção deles de que o Java era a melhor escolha. Eles, então,
pressionaram os fabricantes, que mudaram seus votos a favor do Java, e nos
pressionaram para fazer o mesmo. Foi por isso que naquela votação famosa, deu 12
contra um. Foi isso. (relator da Norma Ginga-J)
Neste momento, os radiodifusores começam a se interessar pela proposta da
interatividade via Ginga, e passam a se preocupar com o número de desenvolvedores de
aplicações interativas na linguagem NCL, muito inferior à quantidade de
desenvolvedores em Java no país e no mundo. Um dos pesquisadores que
desenvolveram o Ginga NCL reage a essa consideração dos radiodifusores afirmando
que: “Esse argumento é falso porque, realmente, você tem muito mais programadores
em Java, no mundo. Mas não são programadores para TV. Os programadores Java
trabalham nas coisas onde o Java é bom. Java é uma linguagem muito boa. Ela só não é
boa para TV.” (pesquisador 4).
... o Ginga nada mais é do que uma solução muito boa, desenvolvida no Brasil, para
atender uma demanda de interatividade na televisão aberta. Essa é a visão geral que
eu posso te dar. Eu fui presidente do Fórum Internacional de TV Digital, do Fórum
Brasileiro onde sou presidente novamente e nós estamos aqui, até hoje, muito
tranquilos em saber que fizemos uma excelente escolha porque o Ginga é uma
linguagem muito mais poderosa, que busca dois mundos, tanto o NCL quanto o
outro mundo, Java. (presidente do Forum SBTVN et presidente da emissora SBT).
Um outro argumento dos radiodifusores para defender a permanência do Java no
sistema do Ginga é a consideração de que o Java seria uma tecnologia mais “madura”.
A preocupação central das emissoras de TV era com a possibilidade da interatividade
começar a funcionar na TV digital brasileira ainda em 2010. Assim,
... eles teriam que contratar muita gente, empresas de software para desenvolver
essas aplicações interativas, e eles não queriam ficar “na mão” de uma empresa ou
apenas algumas pessoas que dominavam uma linguagem mais nova. Eles tomaram
uma decisão de business. Não era uma decisão levando em conta a tecnologia.”
(empresário da indústria de software).
Além de defenderem a essencialidade do Java no sistema do Ginga e a
insuficiência do NCL para o sucesso da inovação no mercado, os radiodifusores
descordavam que no setor havia resistência ao middleware brasileiro.
As emissoras de televisão jamais resistiram ao Ginga. Elas não queriam se envolver
no momento do início do projeto em que se colocava como parte do sistema um
middleware brasileiro (por imposição de ser brasileiro), mas queriam discutir
naquele momento a qualidade ou a ferramenta. Então, naquele momento, anterior à
decisão do sistema proposto de TV digital, as emissoras de radiodifusão reagiram
querendo conhecer o projeto. No momento em que elas se juntaram com a academia,
antes mesmo da formação do Fórum Brasileiro de TV Digital, em que foram
intensificados os diálogos entre a academia e o radiodifusor e se teve a segurança de
que a ferramenta tinha consistência, a resistência por parte do radiodifusor acabou.
(presidente do Forum SBTVN e presidente do SBT)
Segundo depoimentos de entrevistados que participaram desse segundo momento da
controvérsia, os radiodifusores se articularam com os fabricantes de TV e os dois
grupos entraram num acordo pelo voto favorável no Fórum pelo Ginga NCL/Lua +
JavaDTV. Nos termos de um pesquisador da PUC/Rio: “Essa é uma questão meramente
comercial. Tinha um radiodifusor que queria o Java e, como ele era muito importante,
teve a pressão da hora. O Java sempre foi muito polêmico, porque ele não acrescenta
nada, torna as coisas mais caras e faz o país mandar royalties pra fora.” (Pesquisador 4).
Agora, da mesma forma que os radiodifusores sentaram com os fabricantes e
fizeram uma reunião separada, particular, com eles, e esses retornaram e disseram
que votariam a favor do Java. Houve um acordo com os radiodifusores, embora eu
não saiba que tipo de acordo tenha sido esse. Da mesma forma, os radiodifusores
sentaram conosco, da indústria de software, e disseram que eles queriam o Java. Nós
tentamos demovê-los dessa ideia alegando que, com o NCL, seria mais simples e
teria menos custos. Era mais barato e estava pronto. Os radiodifusores também se
tornaram clientes da indústria de software porque eles iam escrever aplicações
Ginga de software e, para isso, eles contratariam as empresas de software. Aí eles
diziam para a gente que se nós não votássemos a favor do Java, nós não seríamos
seus fornecedores. Eles não nos dariam trabalho e nós não ganharíamos dinheiro.
Você, indústria de software, vai discutir com uma empresa que é muito maior do que
você e ainda vai ser seu cliente? É claro que não. Nós, então, resolvemos votar a
favor do Java, implementar essa coisa e absorver todo o atraso. Foi isso o que
aconteceu. Nós “entubamos”, desculpe o termo.
Em 2010, a votação pela permanência ou não do Ginga-J no Ginga full no conselho
debilerativo do Fórum resultou em doze votos a favor e um contra pela permanência do
Java. O voto contra foi de um dos representantes da universidade (UFPB), um
pesquisador que no passado propôs o Ginga-J, sob a nomeclatura de FlexTV. Um
pesquisador da UFPB, envolvido com a concepção do FlexTV admite que na época que
a linguagem foi criada não foi levada em consideração a dimensão econômica pelo uso
do Java: “Eu não sei se foi feita essa análise econômica, já que a nossa parte era mais
técnica e o nosso principal propósito era atender às necessidades do Brasil, da nossa
realidade.”. (pesquisador-desenvolvedor 2).
O governo se manifestou favoravelmente à permanência do Ginga-J no Ginga full,
embora não tivessem direito a voto, apenas a voz. Com a definição da arquitetura final
do middleware um executivo do Ministério das Comunicações comenta: “... estamos
convergindo para um desing dominante de tecnologia.”. Para comentar a participação
do governo da normatização do Ginga-J um pesquisador desabafa: “A radiodifusão no
Brasil elege o presidente.”.
As emissoras de televisão, sobretudo a representação da Rede Globo no Fórum,
justificaram o voto em favor da parte Java no middleware brasileiro em função da
manutenção da arquitetura original no Ginga, Maestro + FlexTV, criada pelas
universidades brasileiras, na primeira versão do middleware.
O conceito do Ginga já era, desde o início, de ter uma parte declarativa e outra
imperativa. A proposta original da parte interativa era baseada em GEM,
desenvolvida pelo Lavid, na Universidade da Paraíba, e a gente acabou esbarrando
na questão dos royalties. Na ocasião, a resposta do Fórum a isso foi de não mudar a
concepção, a arquitetura, mas de substituir as ferramentas que poderiam representar
um ônus comercial para o telespectador, por causa dos royalties. Então, nesse
processo é que o Fórum iniciou o desenvolvimento conjunto com especialistas nessa
tecnologia da qual o Fórum possui a coautoria e a copropriedade. (Coordenadora do
módulo técnico do Fórum e executiva da Rede Globo).
Para a maioria dos entrevistados, a questão técnica, não foi decisiva para definição
da arquitetura final do Ginga, a importância das dimensões econômica e política nesse
processo decisório foi marcante. Após a votação no Forum, a especificação Ginga-J,
baseada no Java DTV foi definida, indo para consulta pública pela ABNT. Em abril de
2010, a norma da especificação Ginga-J (ABNT NBR 15606-1:2007/Emenda e ABNT
NBR 15606-4) foi aprovada e publicada pela agência de normatização brasileira e em
Diário Oficial, sendo reconhecida posteriormente pela UIT. Mas, neste momento não
havia nenhum instrumento legal que obrigasse o uso da parte Java para implementações
do Ginga completo nos aparelhos de TV. Esse mecanismo de imposição da Norma
Ginga (NCL+Java) para quem produzisse aparelhos de televisão no Brasil é criado com
o PPB (processus de production de base), em 2012. Il s´agit d´un décret présidentiel
qu´établit les règles qu´obligent les fabricants de TV´s LCD/Plasma à l´embarquer dans
leurs produits le Ginga full (Ginga-J et Ginga NCL) (BRASIL, 2012).
No fechamento dessa segunda etapa Ginga/Java se dá com a normatização da
especificação da Norma Ginga-J, Java DTV, mas não implica sua implementação
obrigatória pela indústria de receptores e transmissores. O que estamos chamando aqui
de terceiro episódio da controvérsia se dá em função do debate sobre fazer valer a
Norma oficial e não fragmentaçaão do Ginga full em suas implementações pela
indústria de aparelhos de televisão.
Os custos para os fabricantes pelo uso do JVM para embarcar o Ginga Java DTV
em seus equipamentos permancem até o final deste ênquete como uma caixa preta. O
que se sabe é que as negociações que foram feitas com a Sun foram mantidas pela
Oracle.
Controvérsia – Parte III
A terceira parte da controvérsia se deu entre 2011 e 2012 e foi marcada pelos
debates sobre os valores de licenças exigidas pela Oracle que comprou a Sun, que detém
atualmente a propriedade intelectual sobre a máquina virtual Java-Oracle JVM, isto é, o
proprietário do direito de uso do Java DTV e do JVM. O fato que levou ao
questionamento do Ginga-J foi quando uma empresa brasielira desenvolveu uma
implementação do Ginga, o comercializando junto aos fabricantes de televisão. Este
produto pôde ser distribuído no mercado porque não era possível pagar pelos seus
certificados no Brasil. Um conselheiro do Fórum, pesquisador da UFPB, nos lembrando
sobre o caso Oracle/Google13, explicou : «Para que o produto seja lançado no mercado
seria necessário que a implementação fosse certificada por uma empresa chinesa que
revendeu a implentação realizada pela sociedade brasileira pelo fabricante de
televisão.”.
Este « affaire » levou a mudanças de posição sobre a inserção do Java DTV ao
sistema do Ginga entre os participantes do Fórum, especialmente entre os industriais de
aparelhos de recepção e um pesquisador, notadamente aqueles que votaram a favor do
Java em 2009.
Quando o Java era da Sun, eu era a favor da tecnologia. O único incoveniente do
Java é que ele é pesado do ponto de vista do cálculo informático. Mas, hoje este
problema está praticamente resolvido. Depois da saída da Sun do negócio, eu
comecei a me fazer váris questões porque, como eu havia dito, a Oracle é uma
sociedade muito mais agressiva que a Sun.” (Pesquisador 7).
O caderno de especificações técnicas do Java já tinha sido publicado em 2010 pela
ABNT, quando em 2011-2012 o tema do Ginga full foi novamente discutido no seio do
Fórum e no espaço público mediatizado tornando-se objeto de uma nova consulta no
quadro do Fórum. Desta vez, tratava-se do questionamento acerca da existência legal da
tecnologia Java integrada ao middleware para os aparelhos de televisão produzidas no
Brasil. O nó dos debates no seio do Fórum não decorria da mudança do conteúdo da
especificação na Norma, mas ela era proveniente da obrigação do Ginga-J, com o Java
DTV, de ser adotado pela indústria de fabricantes de televisão presentes no país.
As discussões polêmicas sobre a Norma Ginga-J foram animadas por dois eventos: a
publicação do PPB, ume politica industrial para encorajar a fabricação no Brasil de
aparelhos de TV com Ginga full e a publicação na Internet de um manifesto redigido
pela Comunidade Java para defender a adoção do Ginga-J nos televisores brasileiros.
13
A l´époque était évoqué le fameux cas de Google contre l´Oracle dans une affaire sur le paiement de
royalties de la première vers la deuxième. « Oracle a porté plainte contre Google en août 2010 en
affirmant que le système Android violait sept brevets relatifs à Java, que la société avait acquis lors du
rachat de Sun Microsystems. L´Oracle a réclamé 2,6 milliards de dollars de dommages pour la violation
alléguée.».
(http://cio.com.br/noticias/2012/05/29/google-vence-disputa-sobre-patentes-do-androidcontra-a-oracle/).
O PPB trata das regras para os fabricantes de televisores LCD/Plasma e
especificações do Ginga completo (Ginga-J+Ginga –NCL) como um documento oficial
dirigido à industria de televisores no Brasil. Segundo a norma presidencial no. 187,
publicado em março de 2012, a partir do 1º. De julho a 31 de dezembro, os fabricantes
deveriam embarcar o middleware e esta porcentagem se eleva a 90% desde o início de
2014. (BRASIL, 2012).
A norma Ginga-J foi aprovada pela ABNT, em 2010, e foi igualmente subscrita pela
UIT no quadro da arquitetura do middleware cuja estrutura é harmonizada com as
características comuns à norma americana (ATSC), a européia (DVB) e ao padrão
japonês (ISDB).
Os desacordos manifestos contra e a favor do Ginga-J opcional nos televisores na
cena pública colocava em evidência o fato que neste contexto do Ginga todas as
sociedades que gostariam de vender implementações comerciais do middleware,
segundo a ABNT, poderiam ser obrigadas a passar para um processo de certificação
custoso.
Por uma parte da imprensa “esta é a principal crítica de utilização do Java”. Como
indicado no site especializado em mídias digitais, IDGNOW:
Le problème n'est pas le Java en soi même, mais le fait qu'il n'y a pas de concurrence
aujourd'hui pour la mise en œuvre du Ginga-J, [sauf le cas de la société Totvs S.A
qui a développé une version du Ginga J]. Et le fait que, compte tenu des droits de
l'Oracle (qui a acheté SUN, qui détenait les droits de propriété intellectuelle sur la
machine virtuelle Java - Orcale JVM), ceux-ci cédés au Forum SBTN-T, le module
Ginga-J ne peut pas être implémenté dans le mode de code ouvert et y être
distribué, comme c'est le cas avec les Ginga-NCL, bien qu’ils ne sont pas tous dans
l'industrie ils apprécient l'idée de l'utilisation d'open source. Du point de vue du
développeur de contenu, les défenseurs du module NCL disent que, sans doute, ce
logiciel est beaucoup plus facile à utiliser par les non-spécialistes, et cela facilite le
développement d'applications de façon plus démocratique. À ce stade, la
Communauté Java soutient qu'ils démocratisent le développement d'applications en
raison de la large communauté de développeurs en Java, si on en compare avec la
communauté Lua. Mais cet argument est réfuté par les défenseurs du Ginga-NCL.
Pour ceux-là, la grande communauté de développeurs Java est douée pour faire
l’informatique générique. Mais, ils n’en sont pas beaucoup que maitrisent le langage
des bibliothèques spécifiques pour la télévision.
Assim, mesmo se o desenvolvdor não faz uso do código da Oracle para fabricar seus
aplicativos a partir do Ginga, ele tem o direito de propriedade intelectual se ele passa
pelo TCK. Iso é, se se paga pela certificação14. Na época, a indústria de receptores de
TV defendeu que o módulo Ginga-J do middleware tornou-se opcional quando houve
implementações, igual para os aparelhos DTVi.
Os fabricantes de televisores trabalham, em nível internacional, com seus SmartTVs,
com suas próprias tecnologias- cada um fabricando a sua. Samsung tem seu próprio
store de aplicativos, a LG tem sua loja, Sony, igualmente. O Ginga acabou por não
contribuir com lucro para essas empresas, mas significava custos a mais para
desenvolver um coisa com o qual eles ganhariam nada.” (Pesquisadordesenvolvedor 3).
Mas, o PPB ocupa uma política industrial do país para encorajar uma economia
baseada no Ginga full e resulta da crítica do governo ao fraco engajamento do setor
industrial na implementação da interatividade na TVD brasileira. O PPB foi
interpretado por vários atores do ecossitema da TVD do Brasil como uma estratégia do
poder público para fazer face à resistência do setor industrial para se adaptar às regras
de exploração do mercado brasileiro de equipamentos para TVDi. Mas, o documento foi
considerado como instrumentos insuficiente para a evolução da televisão digital no país
porque também era apontada a falta de negajamento do setor de radiodifusão ao projeto
de interatividade que o Ginga incorpora.
Não se pode negar que a questão do Ginga tornou-se uma questão de soberania
nacional. O governo desde o início das discussões deu pouca importância ao
desenvolvimento de conteúdo interativo do Ginga. E, estes últimos anos, 2010,
2011, ele criou o PPB para implementação do Ginga nos televisores que são
produzidos no país a partir de 2013. Então, o governo criou um calendário e todos
equipamentos que foram produzidos no Brasil deveriam ter essa tecnologia
integrada. (Pesquisador-desenvolvedor 2).
Após a publicação do PPB, em 2012, o retorno da problemática do pagamento de
royalties sobre as implementações do Ginga-J no Forum SBTVD, levou a Comunidade
Java a lançar o manifesto Ginga-J : abaixo-assinado a favor de Java e Ginga-J no
Padrão Brasileiro de TV Digital.
O manifesto criticava as « mudanças de regras do jogo » após a decisão tomada no
processo de normatização do Ginga-J que determinava este como tecnologia acoplada
ao sistema tecnológico Ginga. O documento representava o grupo de utilizadores e
desenvolvedores Java no Brasil. Tratava-se de experts em desenvolvimento de soluções
14
http://idgnow.uol.com.br/blog/circuito/2012/08/20/licenca-java-pomo-da-discordia-do-padrao-deinteratividade-da-tv-digital/
utilizando a tecnologia Java e também em políticas de outorga de licenças padronizadas
(desde o tempo da Sun e agora com a Oracle), os quais são detentores da sede no
Comitê Executivo do Java Community Process. Os desenvolvedores Java organizaram
uma petição para a defesa do Ginga-J15 sustentando o argumento que eles rejeitavam “a
tentativa de transformar as regras do jogo após dois anos de investimentos nos produtos
Ginga” (SOUJAVA, 2012, CAMPOS, 2012).
… tornar o Java opcional no padrão brasileiro significaria a perda de um mercado
em pleno crescimento e o gasto de mão de obra qualificada já formada e em
formação nos vários cursos universitários, das empresas e dos grupos de utilizadores
no Brasil. E mais, mudando as regras do jogo após a norma já aprovada pelo país na
consulta aberta e pública seria uma perda enorme para todos aqueles que têm
investido nisso e uma perda enorme potencial para empresas, as universidades e a
comunidade para o desenvolvimento de softwares. (SOUJAVA, 2012).
As reações ao Manifesto provinham principalmente de pesquisadores universitários
implicados na concepção e desenvolvimento do Ginga os quais justificaram sua posição
a favor da retirada do Java do Ginga pleno autentificando uma posição tomada no
momento da votação no seio do Fórum que desembocou no formato Ginga
NCL+Ginga-J.
O problema do Ginga não é técnico. O Ginga NCL e Ginga –J não são concorrentes.
O NCL e Lua realizam a mesma coisa com o Java, mas ter alternativas seria bemvindo ... a condição que isso não crie problemas. NCL e Lua são livres de royalties.
Java não está livre de royalties. Uma implementação Ginga-J deve passar pelo TDK
da Oracle e pagar para isso, por licença distribuída. Isso significa que o dinheiro sai
do país. E mais, a certificação, isto é, o direito de distribuição é controlado por uma
empresa. Isso atende ao princípio de auto-certificação que guia o SBTVD. Mesmo
para uma empresa sendo imparcial e fiável é lamentável que um país permita que
seu padrão seja controlado por ela. (Pesquisador 4).
Eu sou responsável direto pelo uso do Java no Ginga. Eu recomendei o uso pelos
mesmos motivos listados por vocês (membros da Comunidade Java) em suas
mensagens. Na época (quando o Ginga-J foi criado na UFPB) eu não compreendia o
modelo que disciplina o uso da tecnologia Java. O que me alivia neste affaire é que
o Google não havia compreendido também e eles foram envolvidos na disputa
judiciária que poderia desembocar no pagamento de 6 milhões de dólares a Oracle.
Agora que eu tenho uma visão mais clara desse modelo, o que me incomoda muito é
que o procedimento para a licença do uso das API´s é controlado por uma só
empresa... A questão central é garantir um tratamento não discriminatório para
todas as tecnologias de uso inserido na norma (Ginga)16.
15
SOUJAVA.ORG.BR. A Favor de Java e Ginga-J no Padrão Brasileiro de TVDigital –
Abaixo Assinado. In: http://soujava.org.br/servicos/abaixo-assinado-ginga-j/
16
Carta do Prof. Guido Lemos (l´UFPB), um dos criadores do Ginga-J, em resposta à Pétição SouJava.
A Comunidade SouJava é um ator que desempenha um papel importante em todas
as discussões concernindo a norma Ginga-J, fazendo contribuições à elaboração da
norma Java DTV, em 2010, mas neste episódio controverso a Comunidade teve uma
participação política mais destacada. O Manifetso SouJava mobilizou uma rede de
desenvolvdores no Brasil que reagiu em seus blogs, suas redes sociais, com expressões
de apóio à permanência da tecnologia na arquitetura final do Ginga. O Manifesto foi
publicado e comentado por jornalistas, desenvolvedores e pesquisadores em vários
espaços da Web.
O movimento foi eficaz e a Oracle se manifestou enviando seus representantes ao
Fórum SBTVD para responder a inquisições e assegurar que haveria uma assistência
ao acesso completo e sem restrições aos produtores e aos fabricantes que defendiam
o Ginga-J. Uma vez mais o Ginga-J, no final, foi mantido como um elemento
obrigatório do middleware. (Redator da norma Ginga-J).
Para os membros do SouJava, o Java melhora a capacidade de interatividade do
middleware brasileiro e ainda a tecnologia conta com mão de obra formada para
desenvolver artefatos para a TVDi com Java. “O Ginga se beneficia da comunidade
Java que está aqui. Somente no Brasil contamos com mais 130 000 pessoas inscritas em
comunidades de desenvolvedores Java. Hoje é a linguagem de desenvolvimento número
1 no mundo.” (Membro SouJava 2). Para os representantes SouJava entrevistados, o
debate sobre a permanência do Java no sistema Ginga é mais de natureza política que
técnica: “Esta questão é extremamente delicada porque ela é 150% político.”.
O fechamento deste terceiro episódio de argumentações acerca da parte Java no
Ginga desembocou na manutenção da obrigatoriedade de integração do Java DTV no
middleware brasileiro. Esta decisão foi tomada com um certo consenso construído no
seio do Fórum em particular com o consentimento de parte dos operadores do setor
privado de radiodifusão.
Á guisa de conclusão: a norma final do Ginga full é uma realização da democracia
técnica?
No estudo do middleware da televisão digital brasileira destacamos os movimentos
de diferentes atores e suas estratégias discursivas em torno da estabilização e da
normatização desta plataforma tecnológica. Para isso, partimos do problema da
concepção final da arquitetura do Ginga para passar à discussão dos processos
conflituais engendrados pelos jogos de poder que desembocaram na sua legitimidade
enquanto middleware do SBTVD-T. A normatização desse padrão tecnológico além de
permitir sua estabilização como a plataforma de interatividade para televisão digital
brasileira, a norma pode ser considerada como ponto de passegem obrigatório para o
desenvolvimento de aplicativos e outros artefatos tecnológicos para a concretização da
interatividade pela televisão.
A normatização do Ginga resultou em um dispositivo sociotécnico cuja
construção engendra um objeto técnico/fronteira que passou por regras de procedimento
de uma democracia tecnica. O Ginga (Java + NCM/Lua) é, antes de mais nada, um
objeto « ... vinculado às diferentes peças ou componentes necessários a sua elaboração,
aos outros objetos com os quais ele constitui um sistema técnico.” (FLICHY, 1998, p.
109). Os elementos híbridos que constituem o Ginga como um conjunto de normas
técnicas fazem dele um objeto-fronteira já que a “elaboração da norma se inscreve no
processamento do trabalho técnico e não se pode estudar independentemente do
conteúdo da técnica.”. (FLICHY, 1998. p.110).
A elaboração técnica das especificações e das normas é ao mesmo tempo um
trabalho de explicação e de negociação que desemboca em um objeto-fronteira. Trata-se
de objetos que são posicionados na intersecção de vários mundos sociais, mas
respondem ao mesmo tempo às necessidades de cada mundo. (STAR, GRIESEMER,
1989). Esta categoria de objeto técnico se aplica bem, em nosso entendimento, à
definição da norma Ginga porque, como nos lembra Flichy, uma parte da atividade
técnica consiste em especificar o que se quer produzir e isso não é affaire somente para
os engenheiros e para os especialistas da normatização, mas isso interessa a vários
atores do ecossistema de inovação.
Estudamos a conclusão da normatização do Ginga, e em particular, os eventos que
conduziram à norma Ginga-J por via de um dispositivo organizacional (o Fórum
SBTVD) através de dois procedimentos analíticos. No primeiro momento, nos
interessamos às discussões oriundas da coordenação de atores heterogêneos que
participaram do processo de normatização e sua ações, observando suas justificações
quando definiam as qualidades do Ginga (NCL+Java) com o objetivo de determinar a
arquitetura dessa inovação. Depois, estudamos como a possibilidade de reversibilidade
do projeto tecnológico Ginga full explica em parte a fragil estabilidade do middleware
quando sua arquitetura foi questionada, mesmo depois da normatização do Ginga-J,
junto ao ABNT.
Os dados da nossa análise que levam a pensar que, na verdade, a estabilização da
arquitetura do Ginga depende do número de elementos heterogêneos que a constitui,
mas igualmente da heterogeneidade das matérias que conduzem a sua normatização.
Os episódios da controvérsia Ginga/Java mostraram o forte nível de
reversibilidade17 da arquitetura do Ginga, isto é a possibilidade de se rever a decisão
tomada no seio do Fórum, o que provocou entre certos atores do ecossistema da TVD
brasileira – sobretudo aqueles que já tinham desenvolvido dispositivos interativos a
partir da tecnologia Java (desenvolvedores Java e a indústria de software) – incertezas e
inseguranças acerca da obrigação de adoção da norma Ginga-J. O debate sobre uma
possível reorientação tecnológica e normativa da arquitetura do Ginga levou a uma
“transformação profunda dos modos de ação privilegiados em situação de incerteza”
(BARTHE, 2011). A aceitação do Ginga-J repousava sobre um jogo de compromissos
fixados entre os atores que estavam representados no Fórum. Neste espaço e nos
espaços públicos mediatizados, o risco de fragmentação do middleware evocava a sua
descredibilização do Fórum diante das instituições internacionais, em particular na UIT.
A irreversabilidade, ao menos provisória, do middleware normatizado figurava nesses
lugares de argumentação como a garantia de uma estabilidade da função interativa por
meio do middleware. Nesse momento da controvérsia, se podemos notar que a
reversibilidade do Ginga full permite o questionamento de um projeto de inovação
permitindo o modificar segundo atores do ecossistema da TVD no Brasil. Isso significa
também um retardo para a formação de um mercado de dispositivos de interatividade.
Mesmo em se tratando de um quadro provisório de estabilização de um objeto, a
irreversibilidade, em um estado determinado da discussão de uma inovação, pode
permitir que esta se transforme em produto a partir de uma lista de qualidades
estabilizadas, ultrapassando seu estado de bem, fase na qual sua lista de qualidades está
ainda aberta18.
17
Barthe (2011) explica que, em certos casos, a reversibilidade é a estratégia para fazer passar um projeto
tecnológico diante de uma situação de negociação entre diferentes atores. O autor postula que « A
reversibilidade é, aliás, comumente qualificada de compromisso social, um compromisso com o qual é
preciso bem compor, mesmo se for a contra gosto, afim de que os projetos possam ser aceitos.” (p. 129).
18
Como precisam bem Callon, Meadel e Vololonona: «Essas qualidades têm uma dupla natureza. Elas
são intrinsecas: o bem está engajado na provação de qualificação e o resultado depende evidentemente do
bem em questão. Mas elas são igualmente extrinsecas : não somente as qualidades são colocadas em
forma pelo dispositivo utilizado para testar, medir o bem (e eles dependem da escolha e das carecterísticas
desse dispositivo) mas, cada vez mais sua formulação e sua explicação dão lugar às avaliações e aos
julgamentos que variam de um agente a outro. » (CALLON, MEADEL, VOLOLONONA, 2000, p.219)
Essa condição de ser um produto necessário para a formação de um mercado, é
traduzido no caso do Ginga como um desafio para o desenvolvimento de seu modelo
econômico devido ao fato de que o middleware está ainda em estado de
experimentação. Sabemos que a passagem de um bem a um produto não se faz sem
recorrer a operações críticas entre atores que exprimem seus interesses. Esses atores são,
assim, suscetíveis de passar de um regime de ação a outro segundo as relações de poder
que se criam durante o processo de negociação.
No que concerne à qualificação do Ginga, vimos que em seu processo de
normatização suas qualidades de middleware foram confrontadas a diferentes
argumentos, de técnicos, a econômicos e políticos. Notadamente, no segundo episódio
da controvérsia, o poder dos operadores de radiodifusão se manifestou quando estes
agenciaram a decisão pela aprovação do Ginga-J. No entanto, não se alcançou a
regulamentação da incerteza sobre a arquitetura do Ginga. Essa situação levou à terceira
fase da controvérsia na qual ficou ainda mais evidente que a norma Ginga-J foi validada
sem todas as informações necessárias sobre seu modelo econômico, acerca dos
pagamentos de royalties. De acordo com um pesquisador entrevistado: “Existem muitas
dúvidas sobre a utilização da máquina virtual Java no Ginga. Esse tipo de coisa provoca
muita desconfiança.” (Pesquisador 6). Esta consideração nos faz constatar « … que
existem tantas incertezas sobre a sociedade como sobre a técnica, ou dito de outra
forma, a inovação é um processo de estabilização conjunta do social e da técnica e
chega a esses arranjos híbridos nos quais elementos técnicos e elementos sociais são
indissociavelmente entrelaçados.” (AKRICH, 1994, p. 16).
As modalidades de questionamentos acerca do Ginga-J em seu sistema
tecnológico são devidas à identificação de “fatos novos”
(os royalties, oo affaire
Google/Oracle) no decurso da controvérsia. Esta, como vimos, foi reveladora de uma
parte da renovação de certas problematizações do middleware em relação aos custos de
produção dos aparelhos de televisão e da produção de dispositivos interativos utilizando
o Java, e, por outro lado, o retorno da problematização que nos permite conhecer a ação
no terreno “de incidentes” ou de incertezas. Esta identificação da ação, como sustenta
Thevenot (1990), decorre da apreciação de seu sucesso, da maneira pela qual ela
convém.
No quadro do “agir em comum”, do agir coletivo, no seio do Fórum SBTVD, a
“ação que convém” decorre, em um primeiro momento, do debate sobre incidentes
previstos (o pagamento de royalties) com a adoção do Ginga-J e desemboca no
“argumento conveniente” para vários atores da controvérsia, postulada pelos
radiodifusores, de sustentar o projeto original do Ginga com as partes Java e NCL/Lua.
Os eventos dos quais tratamos até agora são reveladores dos regimes de justificação
dos atores implicados, os quais exprimem diferentes visões de mundo quando definem
as tecnologias que estão em jogo, permitindo conhecer os porta-vozes de cada
tecnologia e seus engajamentos ao projeto de interatividade atribuido ao SBTVD. Como
lembra Barthe (2011), o interesse é produto da ação e dos discursos manifestos durante
uma controvérsia. Observamos como no processo de normatização do Ginga os
representantes de mundos sociais diferentes manifestaram coletivamente seus interesses
no caso empírico da negociação entre indústria de televisores e radiodifusores para a
aprovação do Ginga-J. Neste affaire, os operadores de televisão, conduzidos pela Rede
Globo, recorreram ao projeto tecnológico original do Ginga (Maestro+ FlexTV) para
esconder a crítica que operaram, baseados nas incertezas sobre as qualidades do Ginga
NCL. Os industriais que estavam insatisfeitos com o modelo econômico pela inserção
do Java em seus equipamentos e definiam seu interesse de preservar sua própria
plaforma de aplicativos para TV conectada e o SmartTV, decidiram preservar o Java. A
Globo, no início pouco interessada pela interatividade e igualmente ao Ginga, se lança
no Fórum como porta-vos do Java, seguida de outros atores da normatização. Neste
episódio, encontramos pluralidade de lógicas de ação, às vezes, contraditórias. Essas
contradições na ação dos atores aparecem também nos dispositivos que decorrem de
suas ações e agenciamentos. É importante destacar quais são os valores e visões de
mundo que são incorporados e representados em cada tecnologia em jogo. Em seguida,
é importante dizer que a alternativa de um Ginga constituído apenas pelo Java jamais
figurou nos debates sobre a arquitetuta final do middleware brasileiro.
Para a Comunidade Java et para Sun/Oracle, o Java é uma tecnologia robusta,
global e portátil. A tecnologia incorpora a interoperabilidade como valor acrescentado à
arquitetura de um middleware para melhorar sua capacidade de interatividade. (SUN,
2001).
A Comunidade Java insiste sobre a designação do Java como software livre e
aberto porque é possível desenvolver aplicativos e fazer implementações da tecnologia
utilizando a plataforma Java sem pagamentos de royalties a Oracle. Mas, essa associção
entre Java e software livre não tão clara para seus usuários, sobretudo para as empresas.
Por exemplo, há sempre o risco que a Oracle modifique os termos da licença Java, que
essa imponha melhoras informáticas incompatíveis retroativamente e mine fornecedores
concorrentes. Considerados esses riscos, os criticos das regras de licenciamento da
Oracle lembram que é preferível ter uma implementação Java que não esteja nas mãos
de uma única empresa. (LOZANO, COSTA, 2006).
Fora os argumentos do modelo econômico de royalties da Oracle que colocam em
dúvida as qualidades de software livre e de tecnologia aberta do Java, notamos que essas críticas
técnicas são feitas à tecnologia na Comunidade do Software Livre brasileiro. A linguagem é
quase sempre acusada pelos desenvolvedores de ser pesada e lenta. Mas, as propriedades
técnicas reconhecidas no mundo inteiro prevaleceram nos debates sobre a arquitetura do Ginga.
A qualificação do Java pelos operadores da Sun/Oracle, Comunidade Java, desempenha
um papel muito importante nas definições desta tecnologia entre atores da normatização do
Ginga vão reproduzir os argumentos técnicos positivos que qualificam o Java em suas
justificaçõs inspiradas nas lógicas mercantis e industriais para aderir a essa linguagem. Java é,
então, sinônimo de mundialização, expetise, experiência, maturidade, segurança de dados, força
tecnológica e interoperabilidade. Nos termos de Latour (2001), o tecnograma (elementos
técnicos) do Ginha-J foi remodelado em função das exigências de seu sociograma (elementos
sociais), isto é, a passagem do Java TV para o Java DTV, baseada na modificação de elementos
do GEM e a concepção de equivalentes funcioanis que integram a nova versão do Java DTV.
A nova versão do Java TV manteve a característica mais atraente do Java, sua
ampla presença em sistemas técnicos no mundo. Ginga-J foi adaptada para ser mais
facilmente adotada. Trata-se de uma formula conhecida para melhor garantir a difusão
de uma inovação. (AKRICH, 1988).
NCL é uma linguagem de middleware específica para o ambiente da
radiodifusão, audio e vídeo, concebido em universidades brasileiras. Esta tecnologia
incarna a qualidade de ser uma “inovação nacional”, livre e aberta. É justamente essas
duas últimas características que estabelecem uma relação entre NCL e a liberdade de
produção de conteúdo permitindo, por exemplo, que operadores de radiodifusão
comunitários desenvolvam seus aplicativos interativos sem problemas de informática. A
interatividade via NCL é mais associada aos projetos de inserção digital e a suas
necessidades de conectividade para implementar dispositivos destinados à prestação de
serviços públicos. Os aplicativos desenvolvidos segundo a lógica da inclusão social com
NCL/Lua até o momento são concebidos para permitir uma “interatividade cívica”
(interatividade local, sem canal de retorno).
O fato do pagamento de royalties não figurar no modelo econômico do NCL, esta
plataforma não é ameaçada de ser controlada por uma única empresa. O NCL é a
primeira parte do sistema Ginga normalizada pela ABNT e pela UIT, em 2007.
Normalmente definida como uma linguagem leve e fácil de manipular, o NCL com Lua
formam uma parceria bem avaliada no meio técnico, considerando a capacidade desse
binômio de realizar a interatividade na TVD e nos celulares. (CRUZ, MORENO,
SOARES, 2008, p. 74).
Mas, a qualidade de imaturidade técnica, a insuficiência de suites de testes da
plataforma faz a fragilidade dessa tecnologia. Um pesquisador faz críticas a algumas
abordagens científicas acerca das propriedades do NCL no Brasil que para ele são
cercadas de idelogia, com uma falta de racionalidade tecnica sobre esse tema.
Nós não temos muita produção científica sólida no Brasil e o discurso é
perpassado por questões ideológicas oriundas do meio da comunicação, por
exemplo. Então, esse discurso (sobre a suficiência do NCL na arquitetura do
Ginga), no Brasil, é infantil e se baseia em explosões efêmeras absolutamente
desprovidas de razões técnicas. (Pesquisador 7).
A problematização sobre a composição do middleware brasileiro por duas
tecnologias passa de início pelos espaços de concepção porque esses são oriundos de
mundos diferentes em termos de lógicas sociais, Ginga NCL concebido no meio
universitário e Java criado no ambiente empresarial. Os lugares de origem dessas
plataformas não nos informa muito sobre suas qualidades técnicas, mas podem nos dar
pistas sobre como seus dispositivos de interessamente influenciam na escolha de seus
porta-vozes. Por se tratar de uma nova linguagem tecnológica, o NCL encontra entre os
pesquisadores, sobretudo aqueles que são na origem de sua concepção, seus mais fiéis
porta-vozes. A adesão ao Ginga NCL/Lua é tributário do trabalho de explicação técnica
de seus “pais criadores”. Trata-se de engenheiros que não somente são chamados a
realizar o protótipo do middleware assegurando a coordenação de diferentes conjuntos
te´cnicos, como devem igualmente convencer outros atores do interesse de seu
dispositivo. (FLICHY, 1998, p. 110).
Os porta-vozes de cada uma dessas tecnologias agiram também por sua
complementariedade no formato final do middleware. Eles desempenham um papel
incontornável na definição de uma inovação, trazendo à tona os problemas a serem
resolvidos, a implementação de orientações estratégicas para difundir a inovação.
Os operadores de radiodifusão como principais porta-vozes do Java, influenciarm a
defesa da Norma Ginga-J, na verdade, se confirmaram com players decisivos nos
processos decisórios que envolvem a televisão digital. Isso corresponde a uma tendência
mundial do setor de broadcast de estar à frente dos processos de normatização de
padrões tecnológicos. De fato, o sucesso das plataformas de interatividade em sistemas
deTtVD depende de todo seu ecossitema, mas sobretudo de investimentos dos
radidifusores porque esses são os únicos que dispõem de meios para colocar o grande
público em contato com aplicativos de interatividades.
No que concerne ao dispositivo organizacional implementado para a normatização
do Ginga, o Fórum SBTVD, este permitiu a coordenação de cada um dos projetos de
norma que realizavam um agenciamento específico entre as diferentes entidades que
dele participaram. Como constata Mallard (2000), o espaço d normatização elabora um
quadro de coordenação da norma, porque esta visa a organizar e estabilizar uma série de
interações sociotécnicas entre diferentes entidades. O texto da norma depende de
quadros de coordenação previstos pelos atores da normatização que não são
necessariamnete especialistas em escrita de normas e corresponde a imperativos de
compatibilidade ou de interoperabilidade: “... o desafio é, então, de localizar todas as
articulações que engaja o interfuncionamento técnico e, de uma certa maneira, técnicoeconômico, dos sistemas em causa.” (MALLARD, 2000, p. 49). Assim, constatamos
que a normatização do Ginga como dispositivo sociotécnico decorre de dois
procedimentos fundamentais: o papel desempenhado pelo Fórum como dispositivo de
coordenação de diferentes entidades e seus projetos e agenciamentos e o papel da norma
Ginga, como objeto técnico-fronteira, baseado em parametros técnicos e econômicos em
um contexto prescritivo que torna possível a contrução de “objeto textual”.
A propósito da dimensão democrática atribuída ao Forum SBTVD, podemos dizer
que esse espaço civil se insere em um modelo alternativo, em ampla expansão, de
regulação mais participativas de artefatos e procedimentos técnicos19. Esse dispositivo
organizacional, que reúne múltiplos interesses envolvidos na construção de uma norma
técnica, se apresenta como um dispositivo participativo limitada às representações dos
atores do ecossistema de TVD no país. O estatuto do Fórum permite a participação de
diferentes públicos interessados no desenvolvimento do SBTVD-T no Brasil, mas nem
todos têm direito a voto. A característica técnica da normatização do middleware
brasileiro foi evocado pelos organismos de luta para a democratização da radiodifusão
do país como uma barreira para sua participação na escritura da norma. Os aprendizados
coletivos que engendram novos saberes e novas configurações de agenciamentos e
19
Conforme literatura sobre o tema: Crignou (2002), Thevenot (1997), Chateauraynaud (2004), Dudaut e
Vion (2006), Graz (2005), Hawkins e Bouillon (2000), Benezech (1996).
poderes e a confrontação de registros distintos de problemas e questões (sociais,
técnicos, econômicos, políticos) fazem desse espaço um lugar de exercício de uma certa
democracia técnica.
O dispositivo organizacional que ganha forma de rede sociotécnica permite
inscrever a normatização na mais alta reflexão sobre a democracia técnica, ao ponto que
podemos considerar a normatização como um trato específico do binômio regulação e
democracia no quadro de regimes de engajamentos20. Mas, a finalização de uma norma
como um instrumento cognitivo produzido coletivamnete não significa a priorização da
racionalização democrática, nos termos de Feenberg (2014), ou de lógicas cívicas.
Aliás, como lembram Vion e Dudouet, “O fato de que as normas técnicas se prestam
menos a um contrôle central ou que elas se diversifiquem não implica necessariamente
o desapareciemnto de concentrações econômicas.”. (VION, DUDOUET 2006, p. 16).
Da mesma forma, os quadros de coordenação mobilizados pela norma não garantem a
estabilidade de uma tecnologia devido ao caráter pouco evidente do processo de
normatização técnica.
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