Vivian Marina Redi Pontin. FLORES DE UMA

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FLORES DE UMA VIDA. ENCONTROS ENTRE ESCRITA E CORPO.
Vivian Marina Redi Pontin
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Resumo
Que modos de existência podem ser produzidos no encontro entre escrita e corpo? Essa
questão guia as linhas desse trabalho, que parte das Flores de Bellatin (2009), de Como falar
do corpo? de Latour (2008), bem como de conceitos. da filosofia de Deleuze e Guattari. Com
essas obras, inventa-se uma escrita-pesquisa que se interessa por epidermes e células
urticantes, as quais desabrocham um esforço de produzir relações em que escrita e corpo
estão nelas implicados, outras habitações para uma vida.
Palavras-chave: Corpo; Escrita; Filosofia.
Resumen
¿Qué modos de existencia se pueden producir en el encuentro entre la escritura y el cuerpo?
Este problema guia las líneas de este trabajo, que parte de las Flores de Bellatin (2009),
¿Como hablar del cuerpo? de Latour (2008) y los conceptos de la filosofía de Deleuze y
Guattari. Con estas obras, inventa una escrita-pesquisa que está interesada en epidermis y
células urticantes, que florecen un esfuerzo para producir relaciones entre la escritura y el
cuerpo implicados en ellas, otras habitaciones para una vida.
Palabras clave: Cuerpo; Escritura; Filosofia.
FLORES DE UMA VIDA. ENCONTROS ENTRE ESCRITA E CORPO.
“Alguém me disse que um livro de poesia é diferente. É
uma máquina muito mais rápida. A cada vez que passa,
passa de outra maneira. Deve ter pés estranhos”.
Gonçalo M. Tavares. O homem ou é tonto ou é mulher.
1. Epiderme
A epiderme é a camada mais externa do corpo, aquela em cuja superfície
inserem-se os pêlos, as penas, os cornos, as unhas, as garras, os cascos etc. É o corpo
por fora, visto por fora, o que vem antes do dentro. Se fosse para dizer da epiderme de
um arbusto de primavera, ela seria composta pelas folhas, os galhos, o tronco, as
flores – uma epiderme que se espalha por vários elementos que compõem a primavera
e nela coabitam. Essa dita epiderme cresce e enrola-se naquilo que encontra para
continuar crescendo – suportes. Florindo em sua jornada e ramificando-se, mantendo
sua epiderme viva pelos suportes que encontra.
II SIFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015
A epiderme também faz trocas com o ambiente e a raiz, mesmo que
adentrando o solo, é também epiderme da primavera. As trocas se realizam na
respiração da planta, bem como na busca com sua raiz pela água que se aprofunda no
solo, no qual também se busca seus nutrientes. Exposta ao sol, capta a luz em suas
folhas e respira o oxigênio do ar para catalisar a fotossíntese e ter energia para viver.
Mas, num dia qualquer, com sua epiderme exposta, algumas lagartas pretas
poderiam surgir nos galhos da primavera e começariam incessantemente a comer suas
folhas, pois a epiderme também é superfície de exposição. Não seriam muitas lagartas
que em pouquíssimo tempo se transformariam numa pequena multidão e acabariam
com todas as folhas da primavera, deixando-lhe apenas seus galhos, sua casca e sua
raiz como epiderme.
A primavera, bem se sabe, não se intimida com lagartas, não guarda
ressentimentos, não se entrega à conveniência de morrer sem suas folhas, sem seu
canal vital. Tampouco se intimidaria com um vendaval, um temporal, um gato, um
jardineiro que lhe retirou partes de sua epiderme. Passariam alguns dias e lá estaria
primavera renascendo, retirando forças, utilizando energias acumuladas e florescendo
novamente, enchendo-se de novas folhas, continuando na busca de seus caminhos
incertos por suportes que lhe permitiriam enrolar-se e crescer mais e mais, seu
movimento, também incessante, pela vida.
Os galhos da primavera, sua casca, inadequados que são, esquecem-se de
permanecerem epiderme sozinhos e dão suporte para a nova vida, das novas folhas ali
brotarem, proliferando possibilidades de epiderme.
Essa forma de expressão da epiderme não se conjuga com a epiderme
ordinária que se inscreve nos livros de anatomia, ao mesmo tempo que lhe rouba o
funcionamento e faz com que a epiderme da primavera se esforce nesse novo papel.
Nessa escrita, a primavera maquina uma epiderme para si. Traços entre escrita e
corpo.
Mario Bellatin (2009) em Flores também prolifera epidermes por sua
escrita, maquinando formas de dar expressão a modos de existência que se proliferam
em uma vida. Epidermes feitas de flores de plástico, amputações, deformações,
solidão… são tantas que não cabem nessa escrita-pesquisa.
As flores de Bellatin dão título a cada capítulo. E se o título tanto do livro
como de cada uma de suas partes poderia sugerir uma lembrança ao que significa
uma flor – parte originária da frutificação de uma planta; parte da planta geralmente
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odorífera e colorida; a nata que se forma à superfície; a melhor parte, fina flor; a
juventude, flor da idade; a pessoa ou coisa bela; uma espécie de mitologia, ou algo
ritualístico – seria, então, dissonante o que se encontra nas páginas de Flores.
Cada flor propõe um encontro com um modo de expressão de uma epiderme
e uma violência que lhe perpassa. Pode-se dizer que esse conjunto de flores compõem
uma lista taxonômica de epidermes cujos revestimentos são trazidos junto com aquilo
que lhes corta, lhes sulca, “que atravessa o coração das violetas” (BELLATIN, 2009,
p. 66).
Flores vai despetalando as epidermes, uma a uma, ao mesmo tempo em que
refaz outras epidermes, indefinidas. Nas palavras de Bruno Latour em Como falar do
corpo (2008, p. 39), “não faz sentido definir o corpo directamente, só faz sentido
sensibilizá-lo”. E já que não é uma questão de definição, o que escrita-pesquisa deve
fazer?
Definir e atestar o que é o corpo e o que é a sua epiderme, cria polos e faz
permanecer corpo e epiderme desarticulados ou inarticulados, mas aquilo que se
articula é o “que aprende a ser afectado pelos outros – não por si próprio” (LATOUR,
2008, p. 43, grifo do autor). Portanto, em vez de definir e atestar, num movimento
linear, escrita-pesquisa deve fazer os corpos e epidermes articularem-se, serem
afetados e afetar uns aos outros, criar terrenos de atuações para ambos, novas
habitações para ambos.
Sondar. Sondar é uma boa palavra. Sondar corpos e epidermes. Se Latour
(2008) estivesse sondando o corpo, ele o faria sensibilizar, mas com o quê? Em seu
texto, ele o faz primeiro com a aposta em seu antônimo. Qual é o antônimo de corpo?
– ele pergunta. E a partir dessa questão inicial, faz, então, o corpo sensibilizar com os
cheiros, no caso da produção de narizes para os testes de fragrâncias das indústrias
farmacêuticas e de cosméticos; com aquilo que ele diz ser uma “conversa de corpo”:
ser afetado – com articulações, mediações, proposições, controvérsias, com o que é
interessante, está em risco, recalcitrante, científico, com as paixões, política,
reducionismos, neurofilosofias, TACs e, por fim, uma vida.
Escrita-pesquisa terá de fazer corpo e epiderme sondar com algo. Estar à
espreita é o movimento em que ela se coloca.
2. Células urticantes?
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O arbusto de primavera não possui propriamente células do tipo urticantes,
tal como a água viva. Urticantes pode até não ter, mas seus espinhos bem são
picantes, células picantes poderia ser seu nome nessa escrita-pesquisa.
As células picantes da primavera são uma espécie de proteção ao contato de
outras epidermes em seus galhos. Ao querer tocar com as mãos numa primavera se
faz preciso certo cuidado, já que tais células podem feri-las. Essa função parece servir
ao contato das mãos, das patas de animais maiores, mas não é suficiente para dizer
dos espinhos, uma vez que as lagartas pretas não se intimidam com as protuberâncias
e se arrastam galho a galho em busca das suculentas folhas.
Outras funções devem se apossar das células picantes. Como esse arbusto é
do tipo que cresce por entre os suportes que encontra, os espinhos auxiliam nessa
difícil tarefa de se enganchar nas coisas para poder aumentar.
Em Bellatin (2009) as células urticantes, picantes?, multiplicam-se em todo
o conjunto de Flores. Não é sem uma dose de ironia que o autor narra compassos da
beleza de um gesto, do perfume de uma flor, ao lado de algo violento, da intromissão
de um espinho que rasga a epiderme. Máquina de escrita que borra uma existência
meramente contemplativa e lhe engendra outras formas de expressão.
Muitas “vezes pensa no que significará na vida dos pacientes o fato de que a
cor verde das portas, bem como o cheiro dos gerânios apodrecidos, seja a última
lembrança que guardem daquele lugar” (BELLATIN, 2009, p. 49). Noutras, um
delírio palavra que se parece com o que Latour (2008) escreve sobre adquirir um
corpo, adquirir partes do corpo que não pertenciam a ele e que a experiência coloca
como uma parte corpórea que não é um mero acessório, mas se torna imprescindível,
vital. Partes de um corpo que “são adquiridas progressivamente ao mesmo tempo que
as 'contrapartidas do mundo' vão sendo registadas de nova forma” (LATOUR, 2008,
p. 40). Delírio palavra que possui a proveniência de sair do sulco no lavrar da terra,
sair da via da razão, vaguear e não, propriamente, uma ligação patológica, uma
epiderme doente.
Doença que implica num modelo parasita, o qual Latour (2008, p. 41) quer
“evitar a todo custo”, e que lida com correspondências entre o corpo, o mundo e a
linguagem, essa última sendo apenas um intermediário que conduz uma ligação e
desaparece. Esse modelo atua lenta e eficazmente na aposta de que a escrita apenas
conduz uma ligação que já estava dada, antes e sempre, entre ela, o corpo, as coisas
no mundo.
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A escrita de Bellatin produz um curto-circuito na rostidade (DELEUZE;
GUATTARI, 2012), um encontro em que de uma parte se está próximo do gozo como
imperativo, e de outra ao lado de um corpo que não se satisfaz com uma imagem
hedonista do gozo, mas antes é uma modulação que reconfigura epidermes e células
urticantes. Máquina de produção de um corpo anômalo que inverte e contorce rostos
antes deploráveis e convidam os corpos a despirem-se naquilo que lhes atiça,
urticantes imagens do que não poderia ser, do que não está previsto no gozo, do que
não está, por assim dizer, rostificado.
Essa passividade parece incomodar o escritor, que nesta ocasião
veste bermudas e usa a perna decorada com pedras artificiais.
Apesar de todos os esforços, ninguém nunca parece disposto a
perceber as possibilidades sádicas ou masoquistas que esse membro
falso é capaz de propiciar (BELLATIN, 2009, p. 9).
Conduzir para um rosto toca uma má generalização, nos termos de Latour
(2008). As más generalizações são aquelas que se produzem por um pequeno êxito,
local, e que, a partir dele, se rompem as conexões com as diferenças a favor de uma
pureza, que desqualifica qualquer ligação, por ela já ser desimportante de saída, uma
“forma de diminuir o número de versões alternativas” (LATOUR, 2008, p. 54, grifo
do autor) de algo, do gozo talvez. Latour dá o exemplo dos genes, como aqueles que
podem ser colocados dentro de diversos experimentos e disciplinas científicas e para
“onde quer que vão, farão sempre a mesma coisa, ou seja, literalmente, reproduzir-seão a si mesmos tautologicamente” (LATOUR, 2008, p. 53). Da mesma forma o
membro falso, numa má generalização, para onde quer que ele seja levado, carregará
consigo a deficiência, e a reproduzirá a qualquer custo, de toda forma.
Mas não é uma produção simples, há muitos componentes em jogo, já que
os “rostos não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequência ou de
probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e
conexões rebeldes às significações conformes” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p.
36). De acordo com o que a máquina de rostidade estabelece como seleção ou
escolha, ela também julga e a “cada instante, a máquina rejeita rostos não-conformes
ou com ares suspeitos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 49), rejeita epidermes,
rejeita células picantes e urticantes, rejeita possibilidades sádicas e masoquistas.
Em Flores, uma espécie de engasgo toma a máquina e a epiderme anômala,
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aquela que “abriga apenas afectos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 28), ocupa,
preenche as linhas e as inventa. Na mesma medida em que a epiderme anômala
propõe questões sobre modos de existência, produz epidermes que não se inserem
numa espécie, a qual “apresentaria as características específicas e genéricas no mais
puro estado, modelo ou exemplar único, […] ou suporte de uma correspondência
absolutamente harmoniosa” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 28).
Noutra parte, a violência de um julgamento dirigido a aquilo que é desigual
(em relação a quê?), poderia encharcar a escrita de um desvio em função do rosto,
uma vez que os “manuais de rosto e de paisagem formam uma pedagogia, severa
disciplina, e que inspira as artes como estas a inspiram” (DELEUZE; GUATTARI,
2012, p. 42-43). Como, então, fazer a escrita fugir? Como desinserir-se de um rosto?
É preciso que o movimento de produção de epidermes seja incessante, pois o
“que conta não é a individualidade do rosto, mas a eficácia da cifração que ele
permite operar, e em quais casos”, uma questão de micropolítica, em que não é
provavelmente “o rosto, a potência do rosto, [que] engendra o poder e o explica. Em
contrapartida, determinados agenciamentos de poder têm necessidade de produção
de rosto” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 47, itálico dos autores). O movimento
incessante, movimento mínimo, por assim dizer, deve avaliar as forças e relação de
forças que se colocam nos agenciamentos, para que a máquina de escrita, máquina da
arte, possa ao menos se isentar do julgamento para fazer existir, dar a ver, colocar na
superfície de uma epiderme, ao invés de estabelecer parâmetros de “ares suspeitos” e
“não conformes”, porque “a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para
traçar as linhas de vida” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 63).
Se são as leis aquelas que podem ditar o que pode ou não, o que é epiderme
ou não, o que é célula urticante ou não, então, a arte se faz numa máquina de
jurisprudência (DELEUZE, 1992), na qual as singularidades são prolongadas e os
devires conjuram o intolerável que o julgamento faz borbulhar. “Quanto mais
mediações melhor para adquirir um corpo, ou seja, para se tornar sensível aos efeitos
de mais entidades diferentes […]. Quanto mais controvérsias articulamos, mais vasto
se torna o mundo” (LATOUR, 2008, p. 45). A noção de articulação é extremamente
importante para construção de como falar do corpo, pois é a maneira como se é
afetado pelas diferenças, e escrita-pesquisa acrescentaria que é também a maneira
como afeta aquilo que se está articulando.
Cria-se um terreno, um pequeno território no qual se dá o combate, o que
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difere de “afirmações (que ou são verdadeiras ou falsas)” (LATOUR, 2008, p. 40) e
difere do juízo. “A filosofia está entulhada de discussões sobre o juízo de atribuição
(o céu é azul) e o juízo de existência (Deus é), suas reduções possíveis ou sua
irredutibilidade. Mas trata-se sempre do verbo ser” (DELEUZE, 1992, p. 59), o que é
epiderme, o que são células, o que é o corpo…
Diante das perguntas que não podem ser respondidas pelos erros cometidos
no interstício entre ciência e mercado, Bellatin interroga os mecanismos de
informação que são capazes de esconder tais erros – como o uso de medicamento
contra enjoo na gravidez, que provocou deformações e más-formações nos recémnascidos – ao invés de ensaiar respostas, o escritor experimenta o que ele chama de
“linguagem das flores” (BELLATIN, 2009, p. 79), a qual interfere nas relações “entre
pais e filhos, entre o anormal e o normal na natureza, a busca por sexualidades e
religiões” (BELLATIN, 2009, p. 79), flores que tornam possível outras habitações
para corpo e escrita.
Escrita-pesquisa risca uma linha que liga a epiderme e as células urticantes
que habitam os corpos. Corpo primavera, corpo flores, corpo anômalo e corpo escrita
para a proliferação de máquinas. As máquinas de rosto “são impasses, a medida de
nossas submissões, de nossas sujeições; mas nascemos dentro deles, e é aí que
devemos nos debater. Não no sentido de um momento necessário, mas no sentido de
um instrumento para o qual é preciso inventar um novo uso”
(DELEUZE;
GUATTARI, 2012, p. 65). Afetar e ser afetado é a máquina de arte que cria
possibilidades de encontros, outros usos, uma vida.
Referências
BELLATIN, Mario. Flores. Tradução Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac
Naify, 2009.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34,
1992.
______; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 3.
Tradução Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely
Rolnik. 2ª ed. São Paulo: Ed. 34, 2012.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 4. Tradução Suely Rolnik. 2ª
ed. São Paulo: Ed. 34, 2012b.
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II SIFPE – Faced-UFJF – Outubro de 2015
LATOUR, Bruno. Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a
ciência. In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (orgs.). Objetos Impuros:
experiências em estudos sobre a ciência. Porto: Edições Afrontamento e autores,
2008.
TAVARES, Gonçalo M. O homem ou é tonto ou é mulher. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2005.
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