Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa DEPARTAMENTO DE GEOLOGIA FACULDADE DE CIÊNCIAS UNIVERSIDADE DE LISBOA Ano lectivo 2007/08 PALEONTOLOGIA Curso Teórico Tema 9 Plano da aula I. Teorias Evolutivas 1. Primeiros trabalhos sobre Evolução. 2. Conceito lamarquismo de Evolução. 3. "Darwinismo". 4. Teoria Sintética da Evolução (Gradualismo filogenético). 5. Modelo dos Equilíbrios perturbados II. Conceitos evolutivos baseados no registo fóssil: Macroevolução: Fase taquitélica, horotélica e braditélica. Estase morfológica, Ecofenotipismo reversível, Gradualismo, Paradoxo de Haldane, Evolução e Tectónica de Placas. III. Processos de reconstituição da História Evolutiva das Espécies. IV Evolução versus Criacionismo I. TEORIAS SOBRE EVOLUÇÃO 1. Primeiros trabalhos sobre Evolução. Durante o séc. XVIII, CARLOS LINEU personificou o enorme esforço de classificação de todos os seres vivos. A necessidade de relacionar diferentes organismos entre si levou à especulação sobre a sua origem. Lineu, inicialmente um acérrimo defensor do Criacionismo, começou a dar mostras de vacilar nas suas convicções nas suas últimas publicações. COMTE DE BUFFON (1707-1788), um seu contemporâneo francês esboçou algumas ideias dispersas sobre evolução (mutabilidade das espécies) ao longo da sua imensa obra (44 volumes) sobre história natural. 2. "Lamarquismo". ERASMUS DARWIN (1731-1802), avô de Charles Darwin, e JEAN BAPTISTE LAMARCK (1744-1829) apresentaram evidências da existência de evolução. Ambos Mário Cachão 103 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa formularam as suas teorias tendo por base a hereditariedade dos caracteres adquiridos. Segundo esta teoria, as características morfológicas desenvolvidas durante a vida de um indivíduo, através do uso/desuso, poderiam ser transmitidas à sua descendência. Lamarck, por exemplo, acreditava que ao longo de sucessivas gerações o pescoço da girafa se alongou como resultado desta o esticar continuamente, na tentativa de atingir a folhagem dos ramos mais altos das árvores. Segundo esta teoria existiria uma "vontade própria" de mudança, explicita, por parte do organismo, a qual podia ser transmitida à progenitura por qualquer mecanismo não conhecido nem explicitado na altura. Mais ou menos por esta altura os trabalhos dos geólogos ingleses JAMES HUTTON (1726-1797) e CHARLES LYELL (1797-1875) vieram demonstrar que através de mudanças graduais da paisagem, grandes transformações poderiam ocorrer na superfície do nosso planeta. O conceito de mudança gradual trouxe consigo, igualmente, uma nova escala temporal, uma consideravelmente maior idade para a Terra e um enorme intervalo de tempo - milhões de anos - durante o qual a evolução podia ter-se processado. Até então as ideias lamarquistas estavam consideravelmente espartilhadas em termos de tempo e isso está patente nos processos e mecanismos então invocados. O Lamarquismo, ainda com grande aceitação até ao início do nosso século, entrou em declínio desde então. Recentemente, foi descoberto um mecanismo (metilação das bases de ADN) através do qual a experiência de um indivíduo pode efectivamente modificar a informação genética que irá passar à descendência. 3. "Darwinismo" Com a publicação da "Origem das Espécies", em 1859, por CHARLES DARWIN, a questão da origem das espécies e dos mecanismos evolutivos teve um grande impacto não só nos meios científicos mas também na opinião pública da época. Gradualmente, as ideias e argumentos preconizados por DARWIN e ALFRED WALLACE foram-se impondo sobre a corrente lamarquista, em especial, ao retirar aos organismos o papel principal no mecanismo de evolução e diferenciação de novas espécies. Os contributos de C. DARWIN para a Teoria da Evolução foram vários, nomeadamente: - apresentou uma quantidade surpreendente de dados e evidências de que a evolução se processava e era o único meio através do qual poderiam ocorrer Mário Cachão 104 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa novas espécies (a sua publicação "A origem das espécies" reúne 20 anos de pesquisa cuidadosamente documentada); - apresentou uma teoria alternativa para o mecanismo de evolução - a teoria da Selecção Natural - baseando-se no facto de: 1 todas as espécies produzem mais descendentes que os necessários à sua perpetuação (sobrepopulação); 2 existem pequenas variações morfológicas nos indivíduos de uma dada espécie (variabilidade intraespecífica). Segundo este mecanismo de Selecção Natural, DARWIN defendia que uma dada combinação fortuita de certas variações fenotípicas intraespecíficas podiam tornar um certo indivíduo mais apto a subsistir em determinado ambiente do que outro, permitindo-lhe, assim, perpetuar a sua herança genética. Este mecanismo foi denominado por Darwin "luta pela existência" ("struggle for existence") um dos mais fortes mecanismos instintivos de perpetuação das espécies, através do qual só os mais aptos sobrevivem e se reproduzem. Segundo esta perspectiva de Evolução o papel principal é desempenhado pelo ambiente. Deste modo: i) Ambientes semelhantes geram pressões selectivas similares resultando na sobrevivência de populações distintas, mas com um mesmo conjunto de características morfológicas. Estão neste caso os exemplos de convergência morfológica já referidos em aula anterior; ii) As variações no ambiente só são susceptíveis de actuar como uma pressão selectiva das características de dado indivíduo quando atingem magnitude tal que condicionam o seu crescimento e capacidade de reprodução. Assim, se um ambiente muda drasticamente num curto intervalo de tempo certas espécies não conseguem ajustar-se às novas condições e então extinguemse. De referir que existem duas escolas de pensamento darwinista: a escola ocidental e a escola russa. Como as sociedades ocidentais são caracterizadas por maiores índices de população, a luta pela existência tem assumido a conotação de luta entre indivíduos, da mesma espécie (p. exemplo, combates nupciais entre machos para reprodução) ou de espécies distintas (p. exemplo para obtenção de alimento). Por seu lado, as sociedades de leste, com grandes extensões de território e menores taxas de população, têm conotado a luta pela existência como a luta entre os organismos e as condições adversas do meio ambiente (frio, secura, etc.). Mário Cachão 105 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Contudo, nem Darwin nem nenhum dos seus contemporâneos sabia como podiam ser transmitidos, à descendência, os caracteres dos mais bem adaptados. Foi preciso esperar pelos trabalhos de MENDEL e dos geneticistas do início deste século para compreender como é que a variabilidade específica ocorre e pode ser herdada. Sabemos hoje que embora a selecção actue sobre o fenótipo, este é determinado por conjuntos de genes interactuantes de cuja relação complexa resultam, então, um ou mais caracteres morfológicos, fisiológicos, etc.. Deste modo, apenas aquelas diferenças morfológicas (variabilidade fenotípica) que resultam de pequenas alterações do genótipo (isto é, do património genético de certa espécie) é que podem ser transmitidas à prole. GEORGE MIVART (1817-1900), um excelente zoólogo britânico, teceu fortes objecções à teoria darwinista da selecção natural, defendendo que esta explica a preservação e o aumento de certas características morfológicas favoráveis, mas não a sua origem. Chamou à sua objecção Incompetência da "Selecção Natural" em justificar a conservação e o desenvolvimento de fases incipientes e rudimentares de estruturas úteis, apresentando como exemplo o caso das asas das aves, cuja origem insipiente não terá conferido nenhuma vantagem especial, inicial, por muito úteis que estas estruturas se tenham posteriormente tornado para a função do voo. DARWIN contra-atacou dizendo que estas fases iniciais não seriam asas inadequadas mas algo de diferente e bem adaptado a outra função (captura de insectos, termo-regulação corporal, chamarizes sexuais, estabilizadores, etc.). Este princípio de mudança funcional na continuidade estrutural foi designado por DARWIN de pré-adaptação. Segundo STEPHEN J. GOULD o termo "pré-adaptação" é infeliz porque sugere uma pré-disposição ou "vontade" em evoluir num dado sentido (o que não corresponde à verdade). O seu verdadeiro sentido é de que algumas estruturas se adaptam fortuitamente a outras funções, distintas das para que foram inicialmente As asas das aves devem ter tido como função original, a termo-regulação, já que as penas são escamas modificadas que cumprem perfeitamente a função de dispositivos isolantes. Efectivamente, as aves derivam de uma linhagem de dinossáurios carnívoros, de pequeno porte, os quais apresentam maiores problemas de regulação térmica devido à sua relativamente grande razão entre superfície externa e volume corporal. Hoje em dia está demonstrado no registo fóssil que as penas antecedem a origem das aves. Outros autores desenvolveram experiências no sentido de demonstrar que as asas dos insectos também devem ter tido uma função inicial associada à função termo-reguladora. Utilizando modelos à escala de asas, estes autores puderam comprovar que os tamanhos mais pequenos de asas favorecem mais a regulação térmica do que o voo, acontecendo o contrario para as asas de maior tamanho relativo. Assim, terá existido um tamanho intermédio de crescimento relativo das asas dos insectos a partir do qual elas passaram a ser desenvolvidas por selecção natural no sentido do voo deixando, progressivamente, de desempenhar a função termo-reguladora, para a qual iam sendo cada vez menos eficazes, à medida que se iam aumentando de tamanho. Mário Cachão 106 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa elaboradas, passando então a ser remodeladas, por selecção natural, para novas funções. GOULD sugere para este mecanismo o termo Exaptação. 4. Teoria Sintética da Evolução A percepção dos mecanismos genéticos acarretou uma profunda mudança na Escola Evolutiva Clássica dando origem a uma nova corrente teórica, desenvolvida por autores como GEORGE SIMPSON, ERNST MAYR e THEODOSIUS DOBZHANSKI, os quais, nos anos 40, definem as bases da chamada Teoria Sintética da Evolução. Esta reúne os princípios da Evolução darwinista ("a evolução é um produto da selecção natural"), da Hereditariedade e Genética ("Neodarwinismo") e do moderno conceito biológico de Espécie ("unidade taxonómica apresentando características fenéticas próprias e uma raiz filogenética com um ancestral comum"). Assim, a Teoria Sintética da Evolução considera que o processo evolutivo resulta de vários mecanismos interactivos: i) mecanismos que dão origem à variabilidade genética: mutação de genes, variações no número e estrutura cromossómica e recombinação genética. Sem variabilidade genética a evolução não poderia ter lugar. DARWIN compreendeuo sem conhecer as bases em que assentava; ii) mecanismos que guiam as populações de organismos através "canais adaptativos": (1) a selecção natural e (2) o isolamento reprodutor. Ambos os mecanismos foram reconhecidos por DARWIN; iii) Migrações, hibridização e acaso são mecanismos subsidiários dos anteriores. Quer a migração de indivíduos de uma população para outra, quer a hibridização entre subpopulações, aumentam o potencial de variabilidade genética disponível. Os efeitos do acaso só são reconhecíveis em populações pequenas ou em catástrofes (extinções massivas), em cujos casos pode alterar a direcção da selecção natural. Nesta perspectiva surgem novas noções como: - Lei de HARDY-WEINBERG: Em condições de estabilidade ambiental, existe um equilíbrio na composição genética global de uma população (Selecção estabilizadora). Mário Cachão 107 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Selecção estabilizadora ("Stabilizing selection"). Este caso ocorre quando uma população está em equilíbrio com o seu biótopo. Se o ambiente é relativamente estável durante um longo intervalo de tempo a selecção actua no sentido de eliminar aqueles indivíduos que diferem significativamente dos genótipos bem adaptados. Por outras palavras, a selecção actua no sentido de minimizar a influência perturbadora da mutação e segregação genética, num ambiente estável. A evolução só ocorre quando este equilíbrio é perturbado por um mecanismo de selecção (natural ou induzido) resultando numa reprodução não aleatória de genótipos (Selecção direccional). Deste modo a evolução processa-se por modificações (mutações) genéticas sucessivas, através daquilo que passou a ficar conhecido como Gradualismo filogenético. Selecção direccional ("Directional selection"). Representa o fulcro da teoria darwinista da selecção natural. É a selecção que resulta da variação regular e gradual de uma população (gradualismo filogenético) como resposta directa a uma variação progressiva do ambiente, numa dada direcção. Uma das principais fragilidades do modelo de Gradualismo filogenético tem sido a questão dos "missing links". Vários paleontólogos atribuem quer aos condicionalismos do próprio processo de fossilização quer ao carácter interrupto do registo geológico a falta de certos elos ou formas de transição entre os principais filos (Exemplos: Archaeopterix - Dinossáurio / Ave; Neopilina - Anelídeo / Molusco; Peixes dipnóicos - Peixe / Anfíbios). Certos autores têm mesmo levantado a questão de formas tidas como de transição, com características morfológicas de dois ou mais grupos, deverem ser entendidas como elos arcaicos ou organismos evoluídos que readquiriram características ancestrais, a fim de melhor se adaptarem a condições ambientais particulares. Novos propostas de mecanismos evolutivos têm sido desenvolvidos nos últimos anos: A Etologia (estudo do Comportamento) tem mostrado a importância de que se revestem os rituais de acasalamento (comportamentos sexuais) no processo evolutivo simpátrico. Assim, associado à origem das espécies aparecem os conceitos de alopátrico (com biótopos distintos) e simpátrico (com equivalência de biótopos). No primeiro caso o afastamento geográfico ou a existência de barreiras geográficas estão na base do isolamento e da actuação de mecanismos que favorecem a especiação. No segundo caso, existem outros mecanismos como: - esterilidade genética (heterolisis negativa) através do desenvolvimento de híbridos não férteis que contribuem para o reforço da identidade genética de uma espécie; Mário Cachão 108 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa - o não reconhecimento comportamental (do código ou ritual sexual) de sexos opostos ou de diferenciação no calendário de reprodução ("timing"), base para o aparecimento e individualização de espécies novas; A Ecologia revelou a importância dos mecanismos de co-evolução. Certas plantas Angiospérmicas desenvolveram um mecanismo simbiótico específico em que a planta selecciona um dado insecto que, por sua vez, selecciona certa planta. Existe, em simultâneo, uma dupla selecção evolutiva. As co-evoluções são muito eficazes e traduzem-se em graus de especialização notáveis. Refira-se como exemplo, as estruturas florísticas de certas orquídeas que mimetizam perfeitamente a morfologia de certos insectos. Constatou-se que as mutações genéticas são mais frequentes do que se pensava, mas na maior parte dos casos elas não comportam, aparentemente, consequências evolutivas. Este facto levou o japonês Motoo KIMURA, nos anos 60, a evocar uma Evolução Neutralista. II. CONCEITOS EVOLUTIVOS BASEADOS NO REGISTO FÓSSIL O registo fóssil apresenta algumas características que nos dão indicações do modo como se processa a Macroevolução (evolução à escala geológica). A evolução de um dado grupo taxonómico, desde o seu aparecimento até à sua eventual extinção apresenta tipicamente ritmos evolutivos diferentes que, curiosamente, seguem um curva muito parecida à curva logística (utilizada na modelação de populações naturais): fase braditélica taxa evolutiva fase h orotélica fase taquitélica tem po Mário Cachão 109 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Fase taquitélica No início do seu aparecimento a sua taxa evolutiva é geralmente rápida, dando origem a grande número de novos táxones. Esta fase de rápida evolução ou fase de evolução explosiva, é caracterizada por mecanismos de selecção dita Selecção disruptiva. Selecção disruptiva ("Disruptive selection"). Neste caso genótipos extremos são favorecidos em relação a formas intermédias como resposta a um ambiente em mudança. Como resultado existe uma ruptura das populações, inicialmente homogéneas, em vários grupos distintos, cada um dos quais fica sujeito a diferentes pressões selectivas em diferentes sectores ambientais. Esta fase constitui um dos aspectos mais notáveis presentes no registo fóssil: a existência, em determinados períodos, e para certos grupos, do aparecimento de uma grande diversidade morfológica num curto intervalo de tempo, a chamada Radiação Adaptativa. Efectivamente, muitos grupos apresentam elevadas taxas de especiação e diversificação como resposta à adaptação a novos biótopos quer por modificações paleogeográficas ou colonização de novos ambientes quer pela extinção de outros grupos. Exemplos de Radiação adaptativa: i) invertebrados surgidos no início do Câmbrico (por exemplo, os Braquiópodes tiveram um grande desenvolvimento inicial em resposta a diversas estratégias de filtragem de partículas alimentares); ii) o desenvolvimento de câmaras pneumáticas nos Cefalópodes primitivos uma assegurou-lhes maior mobilidade, libertando-os dos fundos marinhos e possibilitando o aparecimento de novos taxa, a partir do Ordovícico, à medida que colonizavam nichos ecológicos que até então lhes eram inacessíveis; iii) os Artrópodes Euripterídeos apresentaram grande diversidade, num curto intervalo de tempo, através do desenvolvimento de apêndices especializados para marchar, nadar, predar etc.; iv) os peixes e plantas terrestres na transição do Silúrico para o Devónico; v) os répteis tetrápodes durante o permo-triássico; vi) os grandes sáurios mesozóicos por adaptação aos meios terrestre (Dinossáurios), aquático (Plessiossáurios) e aéreo (Pterossáurios); vii) as Angiospérmicas durante o Cretácico médio; viii) Os Mamíferos no início do Cenozóico (Paleocénico e Eocénico) como resposta aos biótopos deixados vagos por estes sáurios, ocupando igualmente os domínios terrestre, aquático e aéreo. Fase Horotélica Após terminada a fase de expansão e colonização de ambientes novos, com a diferenciação das linhas evolutivas, o ritmo normaliza-se e estabiliza, isto é, o número de novos táxones equilibra os que desaparecem. Mário Cachão 110 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Fase Braditélica Posteriormente surge a fase de declínio; o número de táxones que desaparecem excede o número de táxones que se originam. iii) A Progénese (desenvolvimento precoce da maturidade sexual) com conservação de caracteres morfológicos juvenis (Neotenia) e um tempo de vida mais curto, poderá consistir num processo de adaptação a um meio instável, ou de expansão rápida numa fase de colonização de nichos ecológicos livres. Este tipo de heterocronismos deste tipo, no desenvolvimento de certos grupos animais, tem sido invocada na interpretação dos mecanismos evolutivos de Braquiópodes, Amonites e na própria evolução humana. Jean LAURIN demonstrou ser possível interpretar a evolução sofrida pelos Braquiópodes durante um período de 20 Ma, por períodos de aceleração ou retardamento do seu desenvolvimento embrionário. A abundante documentação em Amonites ao longo de vários milhões de anos têm permitido pôr em evidência modificações importantes de dimensão e de forma, bem como o ressurgimento de caractéres ancestrais. Jean-Louis DOMMERGUE explica estes fenómenos por heterocronismos do seu desenvolvimento. É imediata a impressionante semelhança entre os traços anatómicos de um jovem chimpazé (fronte alta, cabeça arredondada e face plana) e um homem adulto por comparação com um chimpazé adulto. Foi um abrandamento marcado na nossa taxa de desenvolvimento que desencadeou a nossa neotenia. Os primatas têm um desenvolvimento lento em relação aos restantes mamíferos e os seres humanos acentuaram ainda mais esta tendência. Como nos Mamíferos a taxa de crescimento do cérebro é mais elevada no seu desenvolvimento intra-uterino que após o nascimento, basta um aumento relativo do período de crescimento pré-natal, num determinado grupo de primatas, para justificar o volume cefálico atingido pela nossa espécie. A precocidade do nascimento nos seres humanos, face ao seu desenvolvimento corporal, é justificada pelas dimensões atingidas pelo crânio fetal em comparação com o espaço pélvico por onde deverá passar durante o nascimento. 5. Modelo dos Equilíbrios perturbados Como conciliar um processo evolutivo gradual, por pequenos incrementos e o aparecimento, nos registos paleontológicos, de orgãos complexos, aparentemente de modo rápido, mesmo tendo em consideração o carácter interrupto deste registo ? Thomas Henry Huxley, na véspera da saída do livro revolucionário de Charles Darwin, escreveu-lhe uma carta oferecendo-lhe o seu apoio inequívoco mas alertando-o para o facto de que o modelo da Selecção Natural não requeria, como postulado, um processo evolutivo gradual e contínuo. O modelo por Equilíbrios perturbados ("Punctated equilibria") desenvolvido por Stephen J. GOULD e Niles ELDREDGE, tem vindo a ser cada vez mais advogado entre os paleontólogos, desde que foi pela primeira vez apresentado, em Mário Cachão 111 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa 1972. Este modelo estabelece que, no decurso da evolução filogenética de dado grupo, existem momentos em que a especiação (conjunto de mecanismos que conduzem ao aparecimento de espécies novas) ocorre com ritmo acelerado, seguida de episódios de estabilidade fenotípica das espécies então definidas. Velocidade de especiação elevada é um conceito de há muito admitido pelos paleontólogos por exemplo, nos momentos Radiação adaptativa, no decurso dos tempos geológicos (por exemplo, no Câmbrico e Paleogénico). Deste modo o modelo dos Equilíbrios perturbados explica porque razão o registo paleontológico é tão interrupto (os "missing links" resultam do facto da especiação estar concentrada em intervalos geológicos muito curtos praticamente impossíveis de amostrar, e não do facto do registo paleontológico ser pobre ou pouco significativo). Vários autores têm sugerido que o modelo dos Equilíbrios perturbados (isto é, uma evolução por descontinuidades ou "saltos" irregulares) será mais típico de organismos que habitem ambientes bentónico do domínio nerítico (de plataforma continental) mais instáveis, enquanto que o modelo de gradualismo filogenético terá mais tendência em ocorrer em organismos que habitam o domínio pelágico, em situações de maior estabilidade. A uma escala menor, ao nível das espécies, o registo fóssil mostra também algumas particularidades. Assim: 1. Segundo STEPHEN J. GOLD o aparecimento de certas espécies deriva de um conjunto de múltiplos e imprevistos pequenos factores, os quais isoladamente não se revelam importantes mas, no seu todo, são capazes de mudar a trajectória evolutiva de determinado grupo (mecanismo de Contingência do processo evolutivo). Por seu lado, após a especiação (a partir de uma população ancestral, original), uma espécie geralmente experimenta uma pausa evolutiva (estase morfológica) a qual pode simplesmente resultar do facto dessa espécie ter atingido um determinado patamar de implantação e desenvolvimento no contexto do ecossistema, onde se insere, permitindo-lhe, assim, permanecer em equilíbrio, durante um período de tempo, mais ou menos longo (mecanismo de Incumbência do processo evolutivo). 2. Apresentar variações iterativas reversíveis de acordo com a recorrência de certas condições paleoambientais (salinidade da água, natureza do substrato) por activação de programas de desenvolvimento diferentes coexistindo no património genético do grupo (Ecofenotipismo reversível). Mário Cachão 112 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Um dos exemplos provém dos Ostreídeos, grupo surgido pela primeira vez no Triássico. Nas Ostrea as valvas são aproximadamente iguais. A partir deste grupo surgiram, em diferentes momentos (uma vez no Triássico, duas no Jurássico e outras duas no Cretácico) formas que foram atribuídas ao género Gryphaea (com a valva direita côncava e a esquerda marcadamente convexa, como forma de adaptação a substratos vasosos) constituindo assim um táxone polifilético ao qual corresponde uma sucessão de populações abortivas. - Os progressos da embriologia e da genética, por se lado, vieram demonstrar que o genótipo é, ao mesmo tempo, mais plástico e mais organizado do que se pensava. Na realidade, possui toda uma hierarquia de genes estruturais e reguladores, os quais comandam a activação de programas codificados específicos, durante o processo multifaseado de construção das diferentes estruturas que compõem um organismo. Por exemplo, certo tipo de moluscos do lago Turkana, na África oriental, alternam a morfologia das suas conchas de acordo com certas condições climáticas, o que implica a coexistência de dois programas no seu património genético e a sua activação em função da temperatura (ver conceito de Ecofenotipismo reversível). A estase morfológica explica a existência dos chamados fósseis vivos, os quais documentam a existência de períodos de estabilidade (extremamente longos para certas espécies particularmente bem sucedidas) após a especiação, contrariando a tendência para uma evolução filéticas contínua e gradual. Contudo, nestas espécies a perpetuação de certas estruturas morfológicas não significa que o animal tenha permanecido totalmente imutável, por exemplo, ao nível bio-molecular, genético ou comportamental. Sem dúvida que o facto de certas espécies poderem ser reconhecidas, durante dezenas ou centenas de milhões de anos, aparentemente imperturbáveis às grandes crises e mudanças ecológicas do nosso planeta, é uma das características mais notáveis da própria evolução. Certos Cianobiontes ("Algas azuis"), por exemplo, parecem ser exactamente iguais aqueles que viveram há milhares de milhões de anos atrás. O pequeno Crustáceo Branquiópode, actual, Triops cancriformis apresenta uma morfologia invariável desde há 250 Ma. Existem certas espécies de Equisetum (Cavalinha) aparentemente iguais a plantas que se desenvolveram nos extensos pântanos do Carbónico, à cerca de 330 milhões de anos. A magnífica gimnospérmica de porte arbóreo e folha larga (Ginkgo biloba), permanece inalterada desde os tempos cretácicos. Outros exemplos de "fósseis vivos" incluem, nos vegetais as Cicadáceas; nos Braquiópodes a Lingula; nos Moluscos a Neopilina; nos Artrópodes o Limulus; nos Peixes o Celacanto Latimeria, os Peixes Dipnóicos e as Lampreias; nos Répteis o género Sphenodon. No caso destes grupos parece que os ambientes particulares aos quais elas se adaptaram, permaneceram suficientemente inalterados para que os organismos se mantivessem em equilíbrio estável (evolução estabilizadora) com eles. Mário Cachão 113 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa 3. Evoluir sempre no mesmo sentido e, aparentemente, de modo gradual (Gradualismo filético irreversível). Um exemplo parece ser o do rato toupeira da Euroasiático cujos dentes e dimensões aumentaram gradualmente desde há 2.5 milhões de anos, de modo mais ou menos acelerado, em função das condições ambientais. Outro exemplo clássico que tem sido utilizado como paradigma do Gradualismo filético é o trabalho de G.G. SIMPSON sobre a evolução do cavalo, no continente americano. Desde o Eohippus do Eocénico, com pata almofadada, quatro dentes funcionais apropriados à mastigação de folhas, passando pelo Merychippus do Terciário médio (Oligocénico) com uma pata de três dedos, até ao actual, com patas de um só dedo protegido por cascos como adaptação à corrida rápida em amplas pradarias e dentes adaptados à maceração de vegetação herbácea. 4. Paradoxo de Haldane: O evolucionista J.B.S. HALDANE estudou minuciosamente os resultados do estudo de cavalos fósseis de SIMPSON e chegou à conclusão de que, por exemplo, a altura dos dentes destes animais terá crescido à razão de 3.6 % por milhão de anos. Esta taxa de evolução dos dentes dos cavalos fósseis era tão baixa que levou HALDANE a concluir que a que a influência da selecção natural do meio ambiente (que teria determinado a evolução no sentido do cavalo moderno) era tão pequena que nunca teria sido capaz de se sobrepor às variações genéticas aleatórias por recombinação genética, introduzidas no decurso do próprio processo reprodutivo (as quais tendem a perturbar a progressão da evolução num dado sentido). Deste modo, a evolução dos dentes dos cavalos fósseis nunca poderia ter sido determinada pelo meio ambiente. Este paradoxo resulta do facto do registo paleontológico ser descontínuo. Dado este facto, a prática comum tem sido determinar taxas de evolução média entre dois pontos numa sequência geológica. Deste modo, quanto maior for a distância temporal entre os dois pontos com registo paleontológico tanto menor será o valor médio aparente que é calculado para essa taxa de evolução. A média é uma ilusão que resulta da aplicação errada da quantificação à natureza interrupta do registo paleontológico (grande parte do tempo geológico está concentrado em hiatos e/ou intervalos de baixa taxa de sedimentação). Mário Cachão 114 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa variação fenotípica real variação média aparente Idade 5. A deriva dos Continentes teve um papel decisivo nos mecanismos de especiação por isolamento. Após a ruptura e separação das massas continentais que formavam a Pangea, os primitivos mamíferos Monotrématos e Marsupiais desenvolveram-se na Austrália e América do Sul, não sendo afectados pela evolução posterior dos Mamíferos placentados, nos outros continentes. As migrações através do Estreito do Panamá, a partir do Pliocénico, provocaram autenticas batalhas entre diferentes grupos de mamíferos, pelos mesmos biótopos, das quais os Placentados viriam a sair vencedores. [ NOTA: O continente sul-americano foi um continente-ilha à semelhança da Austrália, durante o Cenozóico (cerca de 70 Ma antes do início dos ciclos de glaciações Plio-Plistocénicos). O número e a variedade de formas de Marsupiais foi enorme e algumas sobreviveram, mesmo, ao "assalto" das espécies de Placentados, vindos da América do Norte, após o estabelecimento do Istmo do Panamá (a Sarigueia deslocou-se até ao Canadá; o Armadilho ainda se encontra em expansão para Norte). Apesar do êxito na eliminação das formas sulamericanas tal facto não se deveu à supremacia dos Placentados sobre o modo de organização anatómica e fisiológica dos Marsupiais mas tão somente ao facto de, segundo BAKKER, os Placentados da América do Norte terem sofrido uma pressão ecológica mais forte e selectiva, através de dois curtos períodos de extinções. Originaram-se novos grupos de predadores mais eficazes (ingestão mais rápida e dilaceração das presas em fatias; maior aceleração nos predadores de emboscada; elevada resistência nos caçadores de longa distância). Tigres dente-de-sabre Herbívoros com 3 dedos Herbívoros com 1 dedo MARSUPIAIS PLACENTADOS Thylacosmilus Diadiophorus Thoatherium Smilodon Merychippus Equus Os Carnívoros e Herbívoros da América do Sul, apesar dos notáveis exemplos de convergência morfológica com grupos equivalentes de Placentados não tinham sido postos à prova em nenhum destes casos pelo que grande número de espécies originais persistiram. A competição manteve-se menos intensa. BAKKER relata que os seus níveis de especialização morfológica para a corrida se encontravam abaixo dos carnívoros do norte. O próprio tamanho do cérebro era superior nos predadores e presas placentados do Terciário que nos equivalentes marsupiais, os quais, estabilizaram próximo dos 50% da massa cefálica dos mamíferos modernos, do mesmo tamanho relativo ] Mário Cachão 115 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Os Lémures, grupo de Primatas primitivos, garantiram a sua sobrevivência, até à actualidade, devido ao isolamento de Madagascar (onde proliferam com notável diversidade) do Continente africano. III. Processos de reconstituição da História Evolutiva das Espécies Uma das consequências dos trabalhos de DARWIN foi a de induzir o evolucionistas a construir árvores filogenéticas dos diferentes grupos de animais e plantas. Os fósseis se não evidenciam sempre o modo como se estabelece o relacionamento filogenético entre certos grupos pelo menos subsistem como a única fonte segura de informação sobre a cronologia dos acontecimentos ao longo de uma árvore filogenética. E, por agora, a sua comparação com grupos actuais só pode ser realizada à custa dos elementos morfológicos das suas estruturas esqueléticas. Deste modo, a comparação morfológica foi um dos principais métodos utilizados na elaboração de tais diagramas. Contudo, a semelhança não é um conceito simples pois que se nalguns casos tem uma relação geneológica verdadeira, noutros casos não. As semelhanças são homólogas se traduzem uma "afinidade de descendência" (segundo palavras de Darwin). Os membros superiores dos seres humanos, golfinhos, morcegos ou cavalos, embora pareçam diferentes e funcionem de modos diferentes, são constituídos a partir dos mesmos ossos. Portanto, as partes existiam antes do conjunto particular de estruturas que agora as albergam, isto é, foram herdados de um antepassado comum. No entanto, dois organismos podem partilhar uma mesma característica morfológica, mas esta ser resultante de uma mudança evolutiva separada em linhagens independentes. Estas constituem semelhanças por analogia e o exemplo clássico é o das asas dos pássaros, morcegos e borboletas em que nenhum antepassado comum a estes grupos possuía estruturas aladas. No esforço de reconstituição das árvores filogenéticas, o primeiro passo será o de separar as semelhanças homólogas (importantes pois traduzem uma relação de parentesco) das análogas (enganadoras pois correspondem a aquisições recentes por convergência morfológica). Durante muito tempo acreditou-se que um método mais seguro para atingir este objectivo residia na chamada "lei biogenética" de HAECKEL, a qual preconizava que a ontogenia recapitula a filogenia. Ou seja, a simples observação do desenvolvimento dos embriões de um dado organismo mostrar-nos-ia o Mário Cachão 116 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa desenrolar de sucessivos estádios adultos dos seus antepassados (por exemplo, numa das fases embrionares dos fetos das baleias existem evidências de alvéolos dentários embora nestes organismos não ocorram dentes). Contudo, os Recapitulacionistas (como eram conhecidos os defensores deste método) cedo se deram conta que faltavam muitos estádios intermédios e que alguns estádios embriológicos não representavam reminiscências ancestrais mas sim adaptações específicas posteriores. Por outro lado, os vários estádios de desenvolvimento poderiam estar misturados, condensados ou mesmo invertidos devido a taxas desiguais de desenvolvimento entre diferentes órgãos. A redescoberta da genética mendeliana, por volta do princípio do nosso século, mostrou que o pressuposto da recapitulação (a sucessão de estádios adultos implicava que a evolução se processava pela adição de novas estruturas ao final das ontogenias ancestrais) era falso, já que a evolução se processa por recombinação de genótipos e não pela simples adição de novos cromossomas. Hoje em dia possuímos uma nova fonte de informação: a comparação entre proteínas homólogas, sintetizadas por diferentes grupos animais. Todos os Protistas e Metazoários têm muitas proteínas homólogas, cada uma das quais é constituída por uma longa cadeia de aminoácidos. Cada aminoácido é codificado por uma sequência de três nucleótidos do ADN pelo que o código genético define uma sequência de centenas de milhares de nucleótidos, numa ordem específica. A evolução processa-se por substituição e recombinação de nucleótidos. Após a separação de dois grupos a partir de um antepassado comum, ambas as sequências de nucleótidos começam a acumular mutações, cujo número será de algum modo proporcional (linearmente ou não) à quantidade de tempo decorrido desde a separação. O grau de semelhança numa sequência de nucleótidos de proteínas homólogas poderá medir o tempo decorrido desde a separação genealógica do mesmo modo que o número de proteínas comuns entre dois grupos medirá o grau de parentesco entre eles. A técnica da hibridização do ADN permite uma comparação directa do código genético de dois organismos. O método é muito simples. A molécula de ADN é constituída por duas cadeias unidas por ligações específicas entre os pares de bases Adenina-Timina e Guanina-Citosina. Se aquecermos esta molécula as duas cadeias separam-se voltando à sua configuração inicial por arrefecimento posterior. Se aquecermos e arrefecermos cromossomas provenientes dos núcleos de duas espécies diferentes, vão-se formar moléculas híbridas de ADN: contêm uma cadeia de cada espécie e apresentam um certo número de defeitos de Mário Cachão 117 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa emparelhamento, tanto maior quanto mais diferentes entre si forem os dois códigos genéticos em comparação. Seleccionadas e aquecidas de novo estas moléculas híbridas vão dissociar-se a temperaturas mais baixas que as de um ADN normal. O valor do abaixamento da temperatura de dissociação constitui um índice quantitativo do grau de similaridade genética. Ela mede de um modo simples a diferença global nas sequências genéticas de quaisquer duas espécies. No entanto, o método mais seguro de aferição temporal de quaisquer árvores genealógicas continua ainda a assentar nos dados da "biblioteca" paleontológica. IV. Evolução versus Criacionismo Charles DARWIN cedo se deu conta da incompatibilidade entre a sua Teoria da Evolução e os textos bíblicos (não foi por acaso que esperou mais de 15 anos para publicar finalmente a sua obra, após ser "pressionado" pelas conclusões que Alfred R. WALLACE lhe confidenciou). O movimento "fundamentalista" muito poderoso na comunidade protestante dos "baptistas" americanos, perante o que consideram tal teoria "um atentado à dignidade humana". O famoso "processo do símio" que se desenrolou em 1925, no estado de Tennessee, deu eco às suas aspirações e campanhas: interditar o ensino do Darwinismo nas escolas, em nome da liberdade de consciência. Em 1957, dá-se uma mudança de comportamento: em vez de pressões e intimidações passam a reivindicar para o texto bíblico o estatuto científico que lhe permitirá concorrer "epistemologicamente" com a teoria darwiana. A táctica dos fundamentalistas consiste em explorar as lacunas e inconsistências do evolucionismo: os dados da paleontologia não permitem confirmar o esquema de evolução progressiva e contínua proposto por Darwin; as contradições que opõem biólogos quanto ao papel das mutações no processo de selecção natural (desde a Teoria neutralista de KIMURA à Teoria sintética de MAYR). O próprio Ronald REAGAN aderiu oficialmente ás posições do "criacionismo científico", em 1981, levando à votação de leis, em seu favor, nos estados de Califórnia e Arkansas. Por outro lado, guiados por uma sobrevalorização do papel do homem na Natureza, muitos são aqueles que desejam ver na história evolutiva da vida um progresso linear e contínuo no sentido de uma complexificação crescente na qual os seres humanos constituiriam o cume. Esta interpretação confere à Evolução um cunho de previsibilidade. Mário Cachão 118 Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Pelo contrário, os mecanismos evolutivos até ao momento identificados e os dados paleontológicos apontam ambos para o papel desempenhado pelo acaso. Acaso ao nível dos mecanismos evolutivos já que a especiação desenvolve-se a partir de um de muitos tipos possíveis, em função das condições ambientais vigentes; outro cenário de parâmetros ecológicos e o resultado final poderia ter sido muito diverso. Acaso, também, ao nível de alterações nos ecossistemas terrestres em consequência de várias crises globais. Quer estas tenham sido aleatórias ou cíclicas, periódicas ou aperiódicas, os resultados são sempre imprevisíveis. De acordo com Stephan Jay GOULD o desenvolvimento dos mamíferos e, consequentemente, dos Primatas e do homem, dependeu do resultado das brutais transformações que se processaram ao nível da biosfera, no final do Cretácico. Nesta linha de pensamento alguns autores chegam mesmo a especular que, se tal crise não tivesse ocorrido, a entidade consciente que dominaria agora o nosso planeta, a ter-se desenvolvido, poderia descender de um dos grupos de Dinossáurios de maior cefalização, o pequeno Coelurossáurio Stenonychosaurus (com uma cefalização 5 vezes superior ao quociente padrão dos répteis). A teoria da Evolução, hoje em dia, aceita o seu estatuto de ciência histórica, abandonando definitivamente modelos da física clássica para dar primazia ao evento, ao caos determinístico, à auto-organização e à capacidade criadora de sistemas dissipativos em desequilíbrio. Verifica-se cada vez mais, na Ciência contemporânea, uma substituição da noção de determinismo progressivo, gradual e previsível por noções de indeterminação, contingência histórica, caos e "punctuação" (evolução intermitente desencadeada por perturbações pontuais). Bibliografia complementar: GOULD, Stephen J. (1991) - "A Feira dos Dinossáurios. Reflexões sobre História Natural". Publicações Europa-América, Forum da Ciência nº 24, Mem Martins, 461 p. GOULD, S.J. & ELDREDGE, Niles (1993) - "Punctuated equilibrium comes of age". Nature vol. 366, pp. 223 - 227. LEVINTON, Jeffrey S. (1992) - "The Big Bang of Animal Evolution". Scientific American November, pp. 52 - 59. Mário Cachão 119