CATOLICISMO E LIBERALISMO NO BRASIL (1826-1837)* Gustavo de Souza Oliveira** Resumo: o projeto liberal católico no Brasil oitocentista iniciou em 1826 com a proposta que impedia os clérigos de obedecerem aos superiores estrangeiros. Planos que debatiam um catolicismo nacional surgiram na Assembleia Geral. Analisamos o embate entre os liberais e os ultramontanos. Desejamos demonstrar que a Igreja conseguiu fortalecer o congreganismo e estimular a relação com a Santa Sé. . Palavras-chave: Congreganismo. Anticongreganismo. Liberalismo. Catolicismo. Regência. O século XIX foi marcado pelo movimento liberal na Europa e na América. A Revolução Francesa abalou as estruturas do Antigo Regime e o liberalismo aflorou como opção para substituir o autoritarismo. A Igreja Católica sentiu os efeitos dessa nova organização política que reduzia a influência religiosa. René Remond afirmou que o liberalismo é uma ideia global e, por isso, não podemos reduzi-lo à sua esfera econômica. Sua orientação é amparada no princípio da liberdade individual, neste pensamento, a história é feita por sujeitos e não por classes. Ao confiar no mérito pessoal, rejeita-se as organizações autoritárias e a crença em tradições, devido a isso, não se aceita o absolutismo do Antigo Regime e defende-se a constituição e a divisão dos poderes como elementos fundamentais para limitar o Estado. No âmbito religioso, a Igreja teria sua influência restringida, pois esta reprimia a liberdade ao impor seus dogmas (RÉMOND, 1974, p. 25-29). A emancipação política do Brasil (1822) fortaleceu os princípios liberais inspirados na Revolução portuguesa de 1820 e sua influência pode ser percebida na Cons––––––––––––––––– * Recebido em: 17.11.2014. Aprovado em: 28.12.2014. ** Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected] 131 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. tituição de 1824. Para a historiadora Lúcia Maria Bastos P. Neves, o governo constitucional foi o símbolo da revolução vintista portuguesa, a qual entusiasmou a monarquia constitucional brasileira. No entanto, no Brasil, o liberalismo se manifestou de maneira branda, se comparada à Europa, já que o Império manteve características do Estado absolutista (NEVES, 2001, p. 89-91, 101). Todavia, essa interpretação apresenta imprecisão, uma vez que Portugal também conservou características autoritárias ao longo do século XIX. A Carta Constitucional de 1826, promulgada no Rio de Janeiro por D. Pedro I e remetida para Lisboa, consistia em uma adaptação da Constituição brasileira e validava a existência de quatro poderes: Executivo, judiciário, legislativo e moderador. A cargo do rei concentravam-se os poderes executivo e o moderador, este último lhe imputava diversas diligências, dentre elas nomear membros da Câmara dos Pares, sancionar leis, prorrogar ou adiar as sessões das câmaras, nomear ou demitir ministros, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear funcionários públicos e eclesiásticos, expedir decretos, conceder títulos e autorizar ou negar documentos eclesiásticos (OLIVEIRA MARQUES, 2002, p. 240). Apesar da elaboração da constituição de 1822, com acentuado caráter liberal, e da constituição de 1838, de posicionamento moderado, o Reino de Portugal manteve características absolutistas. Basta notarmos a maior vigência da Constituição de 1826, de caráter centralizador, que prevaleceu na maior parte do século XIX, de julho de 1826 a maio de 1828; de julho de 1834 a setembro de 1836 e de 10 de fevereiro de 1842 a 5 de outubro de 1910 (OLIVEIRA MARQUES, 2002, p. 235-243). De acordo com Françoise Jean de Oliveira Souza, a Assembleia Constituinte brasileira se reuniu no dia 17 de abril de 1823 para elaborar as bases da carta magna. Foram eleitos 100 deputados para representar as diversas províncias. D. José Caetano da Silva foi escolhido para presidir aquela corporação. A primeira experiência legislativa apresentou uma forte participação eclesiástica, não só pela direção do governante episcopal do Rio de Janeiro, mas porque 22 padres estavam entre os 100 parlamentares que compunham a constituinte. O principal debate, nas reuniões, relacionava-se a quem competia à supremacia do poder, ao monarca ou ao legislativo. O entendimento da maioria dos parlamentares tendia a limitar os poderes imperiais, vetando o imperador de interferir em resoluções parlamentares. Essa tendência desagradou a D. Pedro I e culminou com a destituição daquela assembleia (SOUZA, 2010, p. 166, 173 e 177). A organização da constituição passou a ter a influência direta do imperador, o que possibilitou a inserção de características que fortaleciam o executivo. Ao monarca foi concedido o poder moderador que o permitia governar interferindo nos demais poderes que compunham o Império. No trecho a seguir podemos entender melhor essa situação: 132 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador I. Nomeando os Senadores, na forma do Art. 43. II. Convocando a Assembleia Geral extraordinariamente nos intervalos das Sessões, quando assim o pede o bem do Império. III. Sancionando os Decretos, e Resoluções da Assembleia Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62. IV. Aprovando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciais: Arts. 86, e 87. V. Prorrogando, ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua. VI. Nomeando, e demitindo livremente os Ministros de Estado. VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154. VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réus condenados por Sentença. IX. Concedendo Anistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado 1. A existência do poder moderador desequilibrava a filosofia liberal da divisão dos poderes, pois fortalecia o executivo em relação aos demais. A constituição deveria limitar o monarca e impedir o absolutismo (RÉMOND, 1974, p. 29 e 40), todavia o que percebemos foi o fortalecimento do soberano. Promulgada a Constituição em 1824, o Império brasileiro necessitava consolidar-se como um Estado independente. Em 1826, foi formada a primeira legislatura com a tarefa de fortalecer a nação. Não bastava estar livre da antiga metrópole, era preciso libertar a nação de qualquer concorrente que ameaçasse sua autonomia. Nesse sentido, a organização eclesiástica era entendida como rival e deveria sofrer mudanças (SOUZA, 2010, p. 321-322). O historiador Guilherme Pereira das Neves afirmou que, após a emancipação e a criação da constituição imperial brasileira, rompe-se com os termos jurídicos que formavam a estrutura eclesiástica no Brasil. Apesar da Constituição garantir o catolicismo como religião oficial, não existia nenhum documento que assegurava ao monarca brasileiro os benefícios de padroeiro concedidos aos reis portugueses. 2. Era necessário solucionar essa questão, para assim, nomear cargos eclesiásticos, normatizar as ordens regulares e cobrar os dízimos. Sem o acordo, caberia ao Imperador tomar essas decisões, o que geraria um problema diplomático com a Cúria Romana. O reconhecimento papal aconteceu após Portugal admitir a independência de sua ex-colônia, assim, duas bulas foram expedidas. A primeira em julho de 1826, Sollicita Catholicis, que transformava em diocese as prelazias de Goiás e Mato Grosso e indicava os bispos 133 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. e prelados. A segunda em maio de 1827, Praeclara Portugalie, agraciava o monarca com poderes de padroeiro semelhantes aos que usufruíam os reis portugueses (NEVES, 2011, p. 396-397). A bula Sollicita Catholicis causou desconforto na comissão eclesiástica da Assembleia Geral, pois seus membros entenderam que ela feria a Constituição, pois esta já havia concedido ao imperador o poder de indicar os bispos e determinar os provimentos dos eclesiásticos. Desta maneira, apenas a criação das novas dioceses foi aprovada pelo parlamento. No ano de 1828, a Mesa da Consciência e Ordens – antigo tribunal português que zelava pela implantação e organização do culto na América e que vigorava no Império do Brasil – foi extinta e suas funções foram transferidas para o Ministério da Justiça. Tais atitudes demostravam que Estado desejava exercer o controle sobre o padroado (NEVES, 2011, p. 382, 398-401). O embate entre o poder temporal e a Igreja foi constante durante o primeiro reinado e o período regencial, sendo que os liberais foram os principais responsáveis pelos conflitos. Um dos políticos que mais se sobressaiu durante essa época foi o padre Diogo Antônio Feijó que chegou a exercer os cargos de deputado, ministro, regente e senador. CATOLICISMO E LIBERALISMO NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO Para a historiadora Françoise Jean de Oliveira Souza, a cultura política brasileira pós-independência tentou relacionar o catolicismo ao liberalismo, isto é, somar um pensamento político ao quadro religioso da nossa sociedade. Padres que mesclavam princípios liberais e católicos foram atuantes no cenário politico-religioso, dentre eles: Diogo Feijó, José Bento, Custódio Dias, Antônio Maria de Moura, entre outros. A autora defende que a composição entre a religião e a política formou um grupo denominado “liberalismo cristão e regalista” (SOUZA, 2010, p. 324). Todavia, precisamos enfatizar que esse fenômeno não foi exclusivo. Padres com formação regalista e liberal também foram comuns na França, Espanha e Portugal. Contudo, a existência de um clero alicerçado em princípios liberais pode ser explicada pela formação difusa que os sacerdotes recebiam no Brasil. Nem todos os estudantes que frequentaram o seminário estavam preocupados com a disciplina ou moral católica. Para o pesquisador João Camilo de Oliveira Torres, as instituições eclesiásticas foram, por muito tempo, os únicos lugares de ensino de qualidade. Muitos seminaristas, que passavam por esses educandários, não almejavam a vida pastoral. Na impossibilidade de conduzirem-se para instituições de nível superior, como a Universidade de Coimbra, os seminários de Olinda e Mariana serviram como local de formação para aqueles que busca134 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. vam maior capacitação. Tal situação favoreceu o surgimento de uma consciência que enxergava nos estabelecimentos católicos um instituto a serviço do Estado e esta condição serve para explicar a atuação de padres no Império que concordavam com as modificações na disciplina eclesiástica estipuladas pelo poder legislativo (TORRES, 1968, p. 34). Pe. Diogo Antônio Feijó parece ter vivido essa realidade, ao longo de sua formação intelectual se manteve próximo aos princípios liberais e, por isso, não interpretou a disciplina católica como um dogma irrevogável. Este religioso nasceu em 1784 e era filho ilegítimo de uma reconhecida família paulista, os Camargos. Durante o tempo em que viveu em São Carlos, São Paulo, atuou como professor de primeiras letras e filosofia moral, mas foi em Itu que sua formação sacerdotal foi forjada. Nessa localidade, Feijó integrou um grupo de religiosos conhecidos como padres do Patrocínio, este grupo seguia o Pe. Jesuíno e pregavam o evangelho pela região. Ficaram conhecidos por suas mortificações, votos de silêncio, curas e milagres (RICCI, 2001, p.214-217, 221, 241-242). Contudo, a partir do ano de 1821 a vida de Feijó intensificou-se na política. Ele foi eleito para compor as Cortes de Lisboa como deputado. Sua vida pública fez com que ele se deparasse com diferentes figuras e inúmeras formas de pensamento. Entre 1826 e 1831, Feijó passou a se relacionar com arcebispos, bispos e políticos que foram eleitos para o parlamento estabelecido no Rio de Janeiro (RICCI, 2001, p. 265-268, 276). Seu trajeto pessoal e político fizeram de Feijó um padre não alicerçado na ortodoxia católica. Após a independência do Brasil, ele foi um dos principais representantes do liberalismo e, em 1826 assumiu o posto de deputado (SOUSA, 1942, p. 68). As propostas políticas de Pe. Feijó não agradavam a Santa Sé. Sua argumentação sugeria uma Igreja Nacional com o predomínio da liberdade individual. Nos anos de 1820, combateu o celibato clerical com a alegação que o elevado número de padres amasiados demonstrava a necessidade de uma nova organização eclesiástica. Seu desejo era executar uma reforma dos costumes do clero, mas não no sentido ultramontano. Segundo Augustin Wernet, Feijó vislumbrava uma Igreja nacional alicerçada no regalismo e no liberalismo (WERNET, 1987, p. 46-47). Para a historiadora Magda Ricci, o Pe. Feijó, mesmo defendendo propostas polêmicas, nunca separou a política da religião (RICCI, 2001, p. 203). Feijó acreditava que a religião garantia a tranquilidade do Estado, entretanto os eclesiásticos não possuíam boas condições para serem fontes da moral pública, porquanto se encontravam em despreparo e imoralidade. Assim, era indispensável reformar a Igreja para garantir a melhor capacitação dos sacerdotes. Contudo, Feijó defendia que essa reestruturação não deveria partir da Igreja, mas do Estado (SOUZA, 2010, p. 378). 135 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. No ano de 1826, Pe. Feijó integrou a Comissão de Negócios Eclesiásticos da Câmara dos Deputados. No mesmo ano, a comissão apresentou o parecer subscrito pelos parlamentares Miguel Reinaut, Antônio da Rocha Franco, José Bento Leite Ferreira de Melo e Diogo Antônio Feijó. O documento estipulou as competências do poder temporal e os limites das bulas papais. Quatro pontos foram apresentados: 1) Cabia ao Imperador prover os benefícios eclesiásticos; 2) Os cabidos criados nas bulas eram desnecessários aos interesses da Igreja; 3) O Papa poderia recomendar o número de sacerdotes e não exigir quantidades, pois esta dependia das condições da Nação; 4) O Papa não poderia determinar a criação dos seminários, mas sugerir de acordo com as normas do Concílio de Trento (SOUSA, 1942, p. 76-78). Nas sessões da Assembleia Geral, em 1828, os deputados debateram acerca da presença das congregações regulares no Brasil. Na reunião de 17 de maio do mesmo ano, discutiram a questão da proibição dos frades estrangeiros. O parlamentar José Custódio Dias propôs a ideia de desestimular a filiação dos homens em casas religiosas, Feijó argumentou não ser necessária a existência das ordens e acusou-as de absolutistas (SOUSA, 1942, p. 89, 93). O posicionamento dos membros da Comissão de Negócios Eclesiásticos assemelhava-se às medidas liberais tomadas em Portugal, no entanto a situação brasileira não progrediu como no velho continente.3 Pe. Feijó ficou marcado pelo tema da abolição do celibato e pela luta contra a intromissão da Santa Sé em questões que, em seu pensamento, eram de responsabilidade do governo civil. No dia 25 de agosto de 1827, defendeu a legitimidade do poder civil para interferir nas questões referentes às anulações de casamentos e enunciou que os tribunais eclesiásticos deviam se submeter às organizações temporais (SOUSA, 1942, p. 81). Augustin Wernet ponderou que o debate sobre a reforma clerical iniciou-se no ano de 1827, sendo um confronto marcado por disputas entre ultramontanos e liberais. Os principais integrantes do primeiro grupo foram Pe. Luís Gonçalves dos Santos, cognominado “Padre Perereca”, D. Marcos Antônio de Sousa, bispo do Maranhão, e D. Romualdo Antônio Seixas, arcebispo da Bahia. No segundo grupo o nome mais conhecido é Pe. Diogo Antônio Feijó. A primeira discussão em 1827, foi acerca da reforma eclesiástica com a apresentação do projeto liberal, o qual defendia a permissão do casamento clerical e o fim dos frades e freiras no Brasil. A proposta foi submetida à Comissão de Negócios Eclesiásticos que publicou parecer contrário, apesar da opinião favorável de Pe. Feijó. Em outubro de 1827, este parlamentar leu seu voto de forma pública e apresentou um folhetim que defendia o fim do celibato (WERNET, 1987, p. 81-82). Embora Feijó seja o nome mais conhecido entre os políticos liberais, cabe ressaltar que ele não agiu sozinho. Um grupo de sacerdotes, que compunham o poder 136 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. legislativo concordava com sua opinião, citamos: José Bento Leite Ferreira de Melo, José Custódio Dias e Antônio Maria de Moura. Nem todos aceitavam o projeto de abolição do celibato, mas concordavam que a Igreja nunca alcançaria êxito impondo a disciplina eclesiástica. Desta forma, seria melhor liberar o casamento para evitar os escândalos (SOUZA, 2010, p. 380, 387-388). DIOGO ANTÔNIO FEIJÓ E A QUESTÃO DO CELIBATO CLERICAL No dia 3 de setembro de 1827 o deputado baiano, Antônio Ferreira França, propôs à Assembleia Geral que o casamento clerical fosse autorizado e os frades e freiras extintos. Neste episódio Feijó realizou sua atuação mais conhecida (NEVES, 2011, p. 405). No debate, Pe. Feijó defendeu que o Estado detinha o poder de regular os casamentos, pois equivaliam a um contrato firmando entre cidadãos. [...] O matrimonio é um contrato legítimo entre o homem e a mulher que Deus tem estabelecido para multiplicação do gênero humano. [...]. Sendo para tanto um contrato natural de Instituição Divina, seria absurdo no estado social negar ao poder temporal ou autoridade de estabelecer condições, e regular a forma de uma convenção, que mais que nenhuma outra influi na felicidade dos indivíduos, na tranquilidade das famílias, na boa ordem, conservação e progresso da sociedade. [...] [...] Assim o pensou Benedicto XIV do mesmo parecer foi Pio VI quando julgou validos os Matrimônios contraídos no tempo da Revolução Francesa, por serem feitos segundo as Leis Civis, não obstante fora da presença dos Próprios Párocos. [...]. De tudo isto se conclui com toda a evidência. 1º Que é da privativa atribuição do Poder Temporal estatuir impedimento do matrimonio, dispensar neles e derrogá-los. 2º Que a Igreja somente compete estabelecer condições e regular as formas pelas qual se possa valida ou licitamente receber o Sacramento. 3º Que o contrato, e o Sacramento são essencialmente distintos, que muitas vezes estão, e podem estar separados sem inconveniente algum [...] 4. O deputado deixou claro que o casamento consistiria em um contrato referente à felicidade de dois cidadãos. Por este motivo, o governo temporal não poderia ser impedido de atuar em favor das necessidades da população. Cabia à Igreja instituir a forma sacramental do ritual, contudo as regras que permitiam ou impediam o matrimônio necessitavam das definições das organizações civis. Na continuação de seu pronunciamento, ao passo em que defendia a permissão 137 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. para clérigos casarem-se, sustentou que o celibato não era algo natural, mas uma imposição estipulada ao longo da história. [...] A escritura não oferece uma só passagem ainda equivoca pela qual se entenda prescrito o celibato dos clérigos, pelo contrario o exemplo dos Apóstolos, e S. Paulo lembrando as qualidades necessárias para o sacerdócio, parece preferir o estado de casado. [...]. [...] Quando Gregório VII sobre a Cadeira Pontifícia, parecia estar em perfeito desuso em muitas Dioceses a lei do Celibato. Estava porém reservado a este Pontífice o generalizar no Ocidente uma pratica que seguida ao principio por conselho, não era própria para todos, segundo o mesmo Evangelho, mas já nesse tempo estava [constituída] a Monarquia absoluta da Igreja dando leis a seu arbítrio aos Católicos, fazia os mesmos Monarcas dobrarem-se ao seus jugo. É este Papa austero em sua vida, severo em suas máximas, inflexível em suas [pretensões], que proíbe aos Padres continuarem a viver com suas mulheres, e decreta perpetua nulidade aos matrimônios pelos mesmos contraídos [...] 5. Pe. Feijó não acreditava na existência de uma justificativa bíblica para a manutenção do celibato. Para ele, antes da proibição do casamento dos sacerdotes, estipulada por Gregório VII, a Igreja convivia com os padres e suas esposas. O impedimento do matrimonio seria uma medida autoritária derivada de uma monarquia católica liderada por um Papa severo, inflexível e austero. De acordo com Guilherme Pereira das Neves, Pe. Feijó baseou seus argumentos na obra do teólogo Franz Xaver Gmeiner (1752-1824), autor da obra Instituições de Direito Eclesiástico, que possuía argumentos contrários ao celibato clerical. Este intelectual defendeu que a Igreja proibia o matrimônio por imposição de Gregório VII, opinião compartilhada por Feijó (NEVES, 2011, p. 405-406). [...]Cansam-se os Concílios em formar regulamentos e estabelecer penas, para embaraçar o Concubinato dos Clérigos; mas nota-se por toda a parte que a força dos homens não pode vencer a força da natureza. [...] Enfim a historia conserva o triste quadro dos escândalos, deboches, adultérios, e mil outros crimes, que desonram a Santidade do Ministério Eclesiástico [...]; e tem sido tão públicos e tão frequentes os escândalos dos Padres nesta parte, que os Protestantes maliciosamente tem afirmado, que o Papa mais quer ver o seu Clero concubinado, do que casado. [...] [...] não deve estabelecer Lei alguma sem manifesta utilidade pública, principio 138 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. sancionado pela constituição do Império: sendo a Lei do Celibato inexequível em sua generalidade [...]sendo enfim a abolição da lei do Celibato a opinião geral dos homens de saber, e piedade, e dos soberanos Católicos, [...] é justa necessária e indispensável, a derrogação de semelhante Lei pela Assembleia Geral do Brasil. [...]6. O fim do celibato clerical se justificaria por não ser algo apropriado, já que os liberais acreditavam que o casamento era natural aos homens. A Igreja, ao estipular o solteirismo, permitiu que os clérigos se envolvessem em “escândalos”. Multiplicou-se o número de sacerdotes que viviam com concubinas e/ou prostitutas. Além disso, os sacerdotes eram alvos de piadas por parte dos protestantes que alegavam que os católicos preferiam padres com concubinas ao invés de casados. Na interpretação liberal, as leis não poderiam posicionar-se em desacordo com a natureza humana. Caberia ao governo temporal abolir as normas que não continham utilidade pública. Feijó terminou seu voto com o seguinte parecer: 1º Que se autorize ao Governo para obter de S. Santidade a revogação das penas Espirituais impostas ao Clérigo [...]. 2º Que o mesmo Governo marque ao nosso [Plenipotenciário] prazo certo, e só o suficiente, em que deve definitivamente receber da Sta Sé o deferimento desta Suplica. 3º Que no caso da Sta Sé recusar-se ao requerido, o nosso Plenipotenciário declare a S. Santidade mui clara e positivamente, que a Assembleia Geral não só derrogará a Lei do Celibato mas suspenderá o beneplácito a todas as Leis Eclesiásticas disciplinares, que estiverem em oposição aos Seus Decretos [...]. Paço da Câmara dos Deputados de Outubro de 1827. Diogo Antônio Feijó 7 O parlamentar concluiu que o Império do Brasil deveria solicitar, junto à Santa Sé, a permissão para revogar o celibato dos clérigos brasileiros. Caso não conseguissem resposta positiva, a Assembleia Geral deveria abolir a lei do celibato e suspender o beneplácito a todas as leis eclesiásticas que estivessem em desacordo com governo. O posicionamento do Pe. Feijó permitiu que o clero conservador emitisse sua opinião contrária. O padre Luiz Gonçalves dos Santos acusou Feijó de defender ideias calvinistas e sugeriu que o deputado abandonasse os escritos ímpios e estudasse o verdadeiro catolicismo (SOUZA, 2010, p. 393-394). A postura de Feijó demonstrou que ele não reconhecia no Papa a autoridade sobre qualquer questão eclesiástica. Sua visão evidenciava que a vontade do povo 139 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. era soberana e o parlamento era a expressão desse poder. Assim, a Assembleia Geral poderia extinguir as disciplinas que não eram condizentes com a realidade da nação. Apesar de contar com o apoio de outros parlamentares, Feijó não conseguiu aprovar o fim do celibato clerical na Assembleia. De acordo com Françoise Jean de Oliveira Souza, uma possível interpretação para esse fato encontra-se no receio dos deputados em estabelecer uma briga direta com a Santa Sé, a qual culminaria com um cisma. O Brasil era uma nação nova e necessitava do auxílio da religião para conservar a ordem e a tranquilidade político-social (SOUZA, 2010, p. 394). POLÍTICAS LIBERAIS E A REAÇÃO ECLESIÁSTICA NO BRASIL Após a elaboração e a promulgação da Constituição Imperial de 1824, foram organizados os códigos de leis que regulamentariam a carta magna. No entanto, em 1833, um vigário denunciou ao Ministro Secretário de Estado e Justiça e Negócios Eclesiásticos, Aureliano de Souza e Oliveira Couttinho, a existência de artigos em desconformidade com a Constituição. O sacerdote alegou que as leis, debatidas e aprovadas pela Assembleia Geral, feriam os direitos dos católicos. [...] O Artigo 5º da Lei Fundamental estabeleceo que = a Religião Catholica, Apostolica Romana Continuará a Ser a Religião do Império = Esta solemne declaração tão honrosa para o povo Brasileiro; este principio da Lei politica Fundamental, acha-se ferido em varios objetos como são os seguintes= 1 Artigo 79 do Codigo Criminal na Latitude, com que prohibindo, e declarando por Crime, reconhecerse, e obedecerse a Superior fora do Imperio; veda, que se reconheça e obedeça ao SSmo Padre, que he o Primaz, o Chefe visivel da Igreja, aquelle a quem J. C. entregou especialmente o poder das Chaves, e aquelle, a quem em suma deve todo, o que se diz e quer ser membro da Igreja de J. C. [...]. Este artigo não pode deixar de ser emendado, ao menos acrescentando a palavra Politico [...] 2º No artigo 81 do mesmo Codigo em quanto declara Crime = recorrer a autoridade Estrangeira rezidente dentro ou fora do Imperio sem legitima licença para impetrações de Graças espirituaes = Esta generalidade inclue a prohibição de implorar da Santa Sé, e seos Delegados, rezidentes no Brazil, [...]: Falha pois esse artigo esse recurso aos Catholicos Romanos Brasileiros, obrigado-os a su140 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. jeitarem-se ao poder temporal, por negocios espirituais,[...]. Na Igreja não há autoridade estrangeiras, nem jamais ser pode o S. Padre, que he o chefe visivel da Igreja: esta he huma única, e universal. [...]. [...] 6º Em permittir que os Prezidentes de Provincia se arroguem tão exhorbitante auctoridade sobre os Bispos, que chegão a dirijir-lhe Ordens terminantes, e até a declarar em conselho nullas as Pastoraes dos mesmos Bispos, quando estes na linha espiritual so tem por Superiores o Ssmo Padre e a Igreja, e na linha civil, e politica o Soberano Temporal [...]. [...] 13º Tem-se visto resoluções, ou Propostas às cameras de conselhos Provinciaes, extinguindo, ou propondo a extinção de institutos pios e Religiosos, dias Santos [...]. [...] 14º O Decreto de 11 de agosto de 1831 que declarou não haver Legislação em vigor no Brazil, que prohibe que os filhos illegimos de qualquer especie instituidos herdeiros por seos pais em [testamento] não tendo herdeiro necessarios. Esta lei [...] favorece, e anima a má conducta, e o dezaforo do Clerigo no Celibatario, e até protege o adulterio [...]. [...] Se o poder temporal [antolhava] a necessidade de qualquer alteração apenas ficava licito tenta-la encetando as respectivas negociaçoens, e realizando-se huma concordata, que respeitando os Direitos inalienaveis de hum e outro Poder, fixasse justo. [...] N. B.[...] . 8. A maior preocupação da Igreja dizia respeito à interferência do poder civil nas questões eclesiásticas. A legislação permitia que os filhos ilegítimos tivessem direito à herança, que os presidentes de províncias pudessem nomear cargos eclesiásticos e que as instituições e dias festivos católicos fossem barrados pelo poder temporal. Soma-se a isso, a proibição de obedecer às autoridades estrangeiras. Tais medidas reduziam o poder dos católicos e permitiam que o Estado controlasse o setor clerical como um departamento do governo. Para o denunciante, a Igreja gozava de caráter universal e, por isso, não poderia sujeitar-se a uma liderança específica. Sua subordinação era ao Santo Padre. Caso o poder civil necessitasse de benefícios, deveria firmar concordata entre o Império e a Santa Sé. Diante da queixa do referido padre, o ministro autorizou a organização 141 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. de uma comissão para averiguar quais normas não estavam em conformidade com as vantagens constitucionais garantidas ao catolicismo. A Regência em nome do Imperador Sr. D. Pedro II manda remeter a [V J] para fazer presente a comissão criada por decreto de 3 do corrente para rever a Legislação nos pontos em que estiver defeituosa as observações inclusas de um eclesiásticos sobre diversos artigos da legislação brasileira que [devem] estar em [harmonia] com a religião Católica Apostólica Romana, e sagrados Cânones da Igreja, a fim de que a mesma comissão faça delas o uso que julgar conveniente, nos trabalhos de que está encarregada quando os julgar acertados e justas. [ ] Paço em 27 de [setembro] de 1833 Aureliano de Souza e [Oliveira] Coutto. [Sr João Antônio [Rom] e Castro] 9 Com a anuência de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, uma junta foi formada para averiguar as supostas inadequações. O representante da Santa Sé no Brasil, Scipião Domingos Fabbini, enviou um documento ao Ministério da Justiça e Negócios Eclesiásticos, argumentando que era justa a tentativa de reformar o clero. Porém, tal reestruturação necessitava de uma obediência aos parâmetros instituídos pela Igreja. O abaixo assignado Encarregado de Negócios da Santa Sé, e delegado Apostólico neste Império, tendo sido pelos jornais públicos da sábia medida tomada pelo Imperial Governo de nomear uma comissão a qual se ocupe em rever os defeitos mais notáveis da Legislação, para apresentar ao mesmo Governo, diferentes projetos de Leis, tendentes a emendar tais defeitos; [...]. Se uma justa, e bem dirigida Reforma do Clero regular e secular, ocupa os cuidados do Governo Imperial, como o tem mostrado em muitas ocasiões: [...] certamente deve bem compreender, na sua sabedoria, que dando o exemplo luminoso de propor uma Reforma daqueles pontos de legislação que nela se tem introduzido, [...] favorecendo o exercício franco e livre das regras canônicas, disposições dos concílios, constituições, e outras providencias apostólicas, sobre as quais se tem levantado o majestoso edifício da Igreja [...]. Era então faça o Governo de S. M. I. que as leis civis, e criminais nesta feliz ocasião se ponham em perfeita harmonia com as leis Santas da Igreja [...]. [...] aproveita a ocasião para renovar a S. E. o Snr Desembargador Aureliano de Souza e Oliveira Couttᵒ Ministro Secretario de Estado da Justiça a quem tem, a honra de dirigir esta Nota, assentimentos da sua mais alta consideração e Respeito = Rio de Janeiro em 12 de Outubro de 1833. Assignada = Scipião Domingos Fabbini [...] 10. 142 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. O Internúncio argumentou que, para ocorrer a reestruturação eclesiástica, era necessário melhorar as leis do Império. Os regulamentos temporais precisavam estar em harmonia junto às regras canônicas, sem contestar resoluções e concílios da Igreja. As palavras de Scipião Domingos Fabbini demonstravam que o catolicismo desejava manter sua autonomia dentro do Império brasileiro. O ministro respondeu ao Internúncio que o governo tentaria atender às reivindicações da Igreja para sanar o problema. O abaixo assignado Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça em resposta a Nota que lhe dirigiu o Sr Scipião Domenico Fabbini em data de 12 do passado sobre a conveniência de se atender, na reforma da Legislação que o Governo Imperial projeta, a parte que tem relação com a Religião Católica Apostólica Romana dominante no Império, afim de que a mesma Religião mais fortalecida pelas Leis Civis, e criminais do País, [...] tem a satisfação de assegurar ao Sr Scipião Dominico Fabbrini que o Governo Imperial reconhecendo de quanta importância é o objeto em questão para a felicidade dos Povos, não deixará de o tomar na devida consideração, nos melhoramentos que por sua influência forem feitas nas Leis do País = [...] aproveita esta ocasião para renovar os protestos de sua particular estima e consideração = Palácio do Rio de Janeiro em 20 de Novembro de 1833 = Aureliano de Szᵃ e Oliverᵃ Coutᵒ 11. A preocupação em acatar as solicitações eclesiásticas no Brasil evidencia que o Governo Regencial, diferente do que ocorreu no parlamento durante o Primeiro Reinado, não pretendia confrontar a religião. A Igreja era vista como essencial para a organização e manutenção da sociedade. Verificamos uma inquietação estatal para reformar o clero regular e secular, mas essa reestruturação não significava imposição, ocorreu uma negociação, de um lado estava o poder divino com seus benefícios e, do outro, o governo temporal com influência na esfera religiosa. O historiador Guilherme Pereira das Neves defendeu que essa tendência estatal de interferir nas questões eclesiásticas era parte da herança lusitana, que partilhou conosco o padroado e o regalismo. A chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro teria iniciado o combate do poder civil ao clero regular. Além disso, trazia em si a convicção de que os padres seculares deveriam servir ao Estado como funcionários públicos (NEVES, 2011, p. 384-386). No entanto, acreditamos que essa influência não foi acentuada, pois apesar das propostas liberais/regalistas terem sido comuns no Primeiro Reinado e em parte do Período Regencial, elas não foram suficientes para impedirem a proliferação de ordens regulares. Ao contrário, o Império brasileiro constituiu-se como o 143 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. melhor local para a divulgação da ortodoxia romana, ao longo do século XIX. Aqui, o clero regular ganhou espaço com a nomeação de bispos congregados, com o repasse de seminários para a administração de ordens e com as missões que se propagaram nas províncias. A tentativa de nacionalização do catolicismo, defendida pelos regalistas, foi vetada pela resistência eclesiástica que exigia seus privilégios e a submissão ao Papa. Enquanto o Brasil permitia que a Igreja verificasse quais leis e medidas estavam em desacordo com seus interesses, Portugal perseguia o clero regular, rompia com Roma e fortalecia os sacerdotes seculares nacionais 12. Desta maneira, a Santa Sé encontrou, no Brasil, o ambiente perfeito para fortalecer e propagar sua ortodoxia. No decorrer do Período Regencial, os liberais, igualmente, confrontaram o relacionamento do Poder Temporal com o Poder Divino. No dia 16 de agosto de 1834, a Assembleia Geral autorizou a criação de uma estrada e de uma colônia de povoação no centro-oeste brasileiro. Para garantir o sucesso da empreitada, o governo doaria terrenos para a construção das paróquias e as ordens religiosas seriam obrigadas a transferirem suas expensas materiais e financeiras para aquelas localidades. A Assembleia geral Decreta Art. 1º Abrir-se-á uma Estrada Geral no centro do Brasil [...]. Art. 2º De vinte em vinte léguas se estabelecerá uma colônia [...]. [...] Art. 4º A abertura da Estrada Geral e das laterais, o estabelecimento das colônias, [...] e todas e quaisquer despesa, com a civilização e catequese dos Índios [...] tudo será á custa de todas as Ordens Religiosas do Império, [...]. Art. 5º Para o estabelecimento de cada colônia fica o Governo autorizado a dar de sesmaria uma légua quadrada de terra, para servir de patrimônio à Igreja, [...], podendo a Ordem Religiosa, [...], usufruir a terra, como sua [...]. Art. 6º As ordens religiosas ficarão obrigadas a remover para aquelas Estradas todos os bens que possuem [...] dentro do prazo de 20 anos [...], e findo o prazo se julgará pertencer à Nação os bens que ficarem por vender seja qual for a sua natureza. [...] Art. 8º Desde já fica considerado semelhantes estabelecimentos, como propriedade particular de cada uma das ordens [...]. Art. 9º Ficam pela presente lei autorizadas todas as Ordens Religiosas a admitirem anualmente oito noviços [...], podendo no 1º ano admitir o número correspondente a 3 anos, e cessando no fim dos 20 anos todo e qualquer admissão, que não for permitida pelo Poder Legislativo. 144 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. Art. 10º O Governo auxiliará as ordens Religiosas com o que estiver a seu alcance [...] permitindo o engajamento com oficiais Engenheiros, [...] e até com Estrangeiros que as Ordens Religiosas convidem para esse fim. Art. 11º Ficam derrogadas as Leis em contrario. Paço da Câmara dos Deputados 16 de agosto de 1834 (Assignado) O Deputado Innocencio José Galvão 13 A determinação exigia a composição das ordens religiosas nas colônias de povoação, que seriam criadas para integrar a região norte com a região sul. Apesar de ser uma imposição ao clero regular, a situação desses religiosos era melhor do que a enfrentada pelos regulares em Portugal, pois o Império do Brasil proporcionava o apoio político às ordens e permitia que tivessem propriedade particular, maior número de religiosos e a participação de clérigos estrangeiros que poderiam ser convidados para ajudarem as congregações.14 Neste mesmo ano, 1834, a condição das ordens religiosas no Reino de Portugal era perturbadora. Lá, a monarquia proibiu a presença do clero regular, tomou posse das propriedades e transferiu, para os próprios nacionais, os rendimentos que pertenciam às congregações. No Brasil, apesar do debate acerca do fim do celibato clerical e das tentativas de regulamentar o funcionamento do clero regular, o governo julgava as casas religiosas como elemento essencial. Acreditavam que eram úteis na integração nacional. O plano de transferi-las para o centro do país, por mais impositivo que fosse, continha benefícios, como o direito de inscrever oito noviços por ano e incorporar terrenos aos seus bens. Guilherme Pereira das Neves enfatizou que, embora as inúmeras restrições que pretenderam impor às ordens religiosas no Brasil durante o século XIX, nenhuma foi suficiente para impedir o seu crescimento. A Congregação da Missão obteve autorização para ocupar a ermida instalada na serra do Caraça, Minas Gerais, em 1820, e lá fundaram um colégio. Sacerdotes brasileiros foram enviados para o Seminário Latino-Americano em Roma, sendo que, em 1870, esta instituição contava com cinquenta alunos oriundos do Brasil (NEVES, 2011, p. 417). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo do século XIX, o governo Imperial do Brasil manteve as ordens religiosas em seu território, indicou sacerdotes congregados para ocuparem as principais dioceses, como foi o caso de D. Antônio Ferreira Viçoso nomeado para o bispado de Mariana, e permitiu o contato do clero nacional com a Cúria Romana. No decorrer do Primeiro Reinado e do Período Regencial, os liberais tentaram exercer maior influência sobre a situação eclesiástica brasileira. O clero regular não 145 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. poderia obedecer a superiores estrangeiros e sofriam restrições em relação ao número de noviços. No entanto, mesmo com essas normatizações, esses religiosos mantiveram privilégios e não sofreram perseguições exageradas. Os primeiros anos após a emancipação política foram marcados por um processo de construção do Estado. Neste movimento, surgiu o desejo de viabilizar uma Igreja nacional autônoma, mas não desligada de Roma, para que isso fosse possível, os parlamentares tentaram fortalecer os bispos enquanto enfraqueciam o Papa. Essa medida visava consolidar o poder nacional e fragilizar o poder estrangeiro. De acordo com Françoise Jean de Oliveira Souza, os parlamentares supunham que as ordens regulares faziam parte de uma conspiração romana contra o Estado, já que eram financeiramente independentes e sujeitavam-se a líderes estrangeiros adeptos ao ultramontanismo (SOUZA, 2010, p. 331, 342). Entre 1826 e 1837 o debate sobre a situação religiosa foi constante. Parlamentares defenderam que cabia ao governo temporal organizar a Igreja Católica, por isso, poderiam legitimar o casamento clerical. Mesmo com a influência liberal na política o Estado nunca se constituiu leigo. Manteve-se católico e por mais que pretendesse administrar a religião consentiu que o prelado opinasse na formulação das leis. Assim, a situação religiosa imperial se desenvolveu de forma mais tolerante, comparada ao que acontecia na Europa. Por mais que sucederam debates liberais que afetavam o catolicismo, nenhuma mudança drástica aconteceu no primeiro reinado e no período regencial. CATHOLICISM AND LIBERALISM IN BRAZIL (1826-1837) Abstract: the liberal Catholic project in nineteenth-century Brazil began in 1826 with a proposal that prevented clerics from obeying foreign superiors. Plans debating a national Catholicism emerged in the General Assembly. We analyze the clash between liberalism and ultramontanism. We wish to demonstrate that the Church could strengthen its congregation and encourage its relationship with the Holy See. Keywords: Congregation. Anti-Congregation. Liberalism. Catholicism. Regency. Notas 1 Constituição brasileira de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acessada em 10/12/2013. 2 Segundo David Gueiros Vieira, o padroado régio foi concedido pelo papa aos reis portugueses e espanhóis e permitia a eles exercer poderes sobre negócios eclesiásticos nas possessões desses governantes. Entre as funções concedidas aos monarcas estavam os direitos de recolher o dízimo e de nomear os bispos. Ver: Vieira, David Gueiros. O Protestantismo, a 146 , Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015. Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, Brasília: Editora da UnB, 1980. p. 28. 3 O decreto real de 28 de maio de 1834, assinado por D. Pedro IV, extinguiu as ordens regulares em Portugal e incorporou os bens nos próprios da Fazenda Nacional. 4 Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, fundo do Arquivo da Nunciatura no Brasil (ANB), fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827. 5 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827. 6 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827. 7 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827. 8 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 37-44, observações sobre diversos pontos da Legislação Brasileira não conformes com a Santa Religião Católica Apostólica Romana, assinada por N.B. 9 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 45, comunicado do dia em 27 de setembro de 1833, assinado por Aureliano de Souza Oliveira Couttinho. 10 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 46-47, Correspondência de 12 de outubro de 1833, dirigida para Aureliano de Souza e Oliveira Couttinho, assinada por Scipião Domigos Fabbini. 11ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 47 verso, Correspondência de 20 de novembro de 1833, dirigida para Scipião Domingos Fabbni, assinada por Aureliano de Souza e Oliveira Couttinho. 12De acordo com Antônio de Matos Ferreira, o fim da atuação dos regulares em Portugal reduziu as maneiras de relação entre a Igreja Católica e a população. Importantes centros educacionais foram fechados e a base do clero passou a ser formada por padres seculares. Ver: Ferreira, Antônio Matos. “Desarticulação do Antigo Regime e guerra civil”. In: Clemente, Manuel & Ferreira, Antônio Matos (orgs.). História Religiosa de Portugal. Religião e secularização, vol. 3, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, p. 34. 13 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 23, doc. 11, página 88,decreto de 16 de agosto de 1834, assinado pelo deputado Innocencio José Galvão. 14 Vítor Neto calculou que em Portugal durante a vigência do decreto de 28 de maio de 1834 provavelmente 448 casas religiosas teriam sido extintas. Estrutura que teria um capital de aproximadamente 15 mil contos e rendimento superior a 500 contos anuais. Ver: Neto, Vítor Manuel Parreira. O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1988, p. 52. Referências CROSS, F. L. The Oxford Dictionary of the Christian Church. 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