Gustavo de Souza Oliveira** Resumo: o projeto liberal católico no

Propaganda
CATOLICISMO E LIBERALISMO
NO BRASIL (1826-1837)*
Gustavo de Souza Oliveira**
Resumo: o projeto liberal católico no Brasil oitocentista iniciou em 1826 com a proposta
que impedia os clérigos de obedecerem aos superiores estrangeiros. Planos que
debatiam um catolicismo nacional surgiram na Assembleia Geral. Analisamos o
embate entre os liberais e os ultramontanos. Desejamos demonstrar que a Igreja
conseguiu fortalecer o congreganismo e estimular a relação com a Santa Sé.
.
Palavras-chave: Congreganismo. Anticongreganismo. Liberalismo. Catolicismo.
Regência.
O
século XIX foi marcado pelo movimento liberal na Europa e na América. A Revolução Francesa abalou as estruturas do Antigo Regime e o liberalismo aflorou
como opção para substituir o autoritarismo. A Igreja Católica sentiu os efeitos
dessa nova organização política que reduzia a influência religiosa. René Remond
afirmou que o liberalismo é uma ideia global e, por isso, não podemos reduzi-lo à
sua esfera econômica. Sua orientação é amparada no princípio da liberdade individual, neste pensamento, a história é feita por sujeitos e não por classes. Ao confiar
no mérito pessoal, rejeita-se as organizações autoritárias e a crença em tradições,
devido a isso, não se aceita o absolutismo do Antigo Regime e defende-se a constituição e a divisão dos poderes como elementos fundamentais para limitar o Estado.
No âmbito religioso, a Igreja teria sua influência restringida, pois esta reprimia a
liberdade ao impor seus dogmas (RÉMOND, 1974, p. 25-29).
A emancipação política do Brasil (1822) fortaleceu os princípios liberais inspirados na
Revolução portuguesa de 1820 e sua influência pode ser percebida na Cons–––––––––––––––––
*
Recebido em: 17.11.2014. Aprovado em: 28.12.2014.
** Doutorando em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: [email protected]
131
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
tituição de 1824. Para a historiadora Lúcia Maria Bastos P. Neves, o governo
constitucional foi o símbolo da revolução vintista portuguesa, a qual entusiasmou a monarquia constitucional brasileira. No entanto, no Brasil, o liberalismo se manifestou de maneira branda, se comparada à Europa, já que o Império
manteve características do Estado absolutista (NEVES, 2001, p. 89-91, 101).
Todavia, essa interpretação apresenta imprecisão, uma vez que Portugal também conservou características autoritárias ao longo do século XIX. A Carta Constitucional de 1826, promulgada no Rio de Janeiro por D. Pedro I e remetida para
Lisboa, consistia em uma adaptação da Constituição brasileira e validava a
existência de quatro poderes: Executivo, judiciário, legislativo e moderador.
A cargo do rei concentravam-se os poderes executivo e o moderador, este último lhe imputava diversas diligências, dentre elas nomear membros da Câmara
dos Pares, sancionar leis, prorrogar ou adiar as sessões das câmaras, nomear
ou demitir ministros, dissolver a Câmara dos Deputados, nomear funcionários
públicos e eclesiásticos, expedir decretos, conceder títulos e autorizar ou negar documentos eclesiásticos (OLIVEIRA MARQUES, 2002, p. 240).
Apesar da elaboração da constituição de 1822, com acentuado caráter liberal, e da constituição de 1838, de posicionamento moderado, o Reino de Portugal manteve
características absolutistas. Basta notarmos a maior vigência da Constituição
de 1826, de caráter centralizador, que prevaleceu na maior parte do século
XIX, de julho de 1826 a maio de 1828; de julho de 1834 a setembro de 1836 e
de 10 de fevereiro de 1842 a 5 de outubro de 1910 (OLIVEIRA MARQUES,
2002, p. 235-243).
De acordo com Françoise Jean de Oliveira Souza, a Assembleia Constituinte brasileira
se reuniu no dia 17 de abril de 1823 para elaborar as bases da carta magna.
Foram eleitos 100 deputados para representar as diversas províncias. D. José
Caetano da Silva foi escolhido para presidir aquela corporação. A primeira
experiência legislativa apresentou uma forte participação eclesiástica, não só
pela direção do governante episcopal do Rio de Janeiro, mas porque 22 padres
estavam entre os 100 parlamentares que compunham a constituinte. O principal debate, nas reuniões, relacionava-se a quem competia à supremacia do
poder, ao monarca ou ao legislativo. O entendimento da maioria dos parlamentares tendia a limitar os poderes imperiais, vetando o imperador de interferir
em resoluções parlamentares. Essa tendência desagradou a D. Pedro I e culminou com a destituição daquela assembleia (SOUZA, 2010, p. 166, 173 e 177).
A organização da constituição passou a ter a influência direta do imperador, o que
possibilitou a inserção de características que fortaleciam o executivo. Ao monarca foi concedido o poder moderador que o permitia governar interferindo
nos demais poderes que compunham o Império. No trecho a seguir podemos
entender melhor essa situação:
132
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador
I. Nomeando os Senadores, na forma do Art. 43.
II. Convocando a Assembleia Geral extraordinariamente nos intervalos das Sessões, quando assim o pede o bem do Império.
III. Sancionando os Decretos, e Resoluções da Assembleia Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62.
IV. Aprovando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciais: Arts. 86, e 87.
V. Prorrogando, ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos
Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua.
VI. Nomeando, e demitindo livremente os Ministros de Estado.
VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154.
VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réus condenados por
Sentença.
IX. Concedendo Anistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado 1.
A existência do poder moderador desequilibrava a filosofia liberal da divisão dos poderes, pois fortalecia o executivo em relação aos demais. A constituição deveria
limitar o monarca e impedir o absolutismo (RÉMOND, 1974, p. 29 e 40),
todavia o que percebemos foi o fortalecimento do soberano.
Promulgada a Constituição em 1824, o Império brasileiro necessitava consolidar-se
como um Estado independente. Em 1826, foi formada a primeira legislatura
com a tarefa de fortalecer a nação. Não bastava estar livre da antiga metrópole,
era preciso libertar a nação de qualquer concorrente que ameaçasse sua autonomia. Nesse sentido, a organização eclesiástica era entendida como rival e
deveria sofrer mudanças (SOUZA, 2010, p. 321-322).
O historiador Guilherme Pereira das Neves afirmou que, após a emancipação e a criação da constituição imperial brasileira, rompe-se com os termos jurídicos que
formavam a estrutura eclesiástica no Brasil. Apesar da Constituição garantir
o catolicismo como religião oficial, não existia nenhum documento que assegurava ao monarca brasileiro os benefícios de padroeiro concedidos aos reis
portugueses. 2. Era necessário solucionar essa questão, para assim, nomear
cargos eclesiásticos, normatizar as ordens regulares e cobrar os dízimos. Sem
o acordo, caberia ao Imperador tomar essas decisões, o que geraria um problema diplomático com a Cúria Romana. O reconhecimento papal aconteceu
após Portugal admitir a independência de sua ex-colônia, assim, duas bulas
foram expedidas. A primeira em julho de 1826, Sollicita Catholicis, que transformava em diocese as prelazias de Goiás e Mato Grosso e indicava os bispos
133
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
e prelados. A segunda em maio de 1827, Praeclara Portugalie, agraciava o
monarca com poderes de padroeiro semelhantes aos que usufruíam os reis
portugueses (NEVES, 2011, p. 396-397).
A bula Sollicita Catholicis causou desconforto na comissão eclesiástica da Assembleia
Geral, pois seus membros entenderam que ela feria a Constituição, pois esta
já havia concedido ao imperador o poder de indicar os bispos e determinar os
provimentos dos eclesiásticos. Desta maneira, apenas a criação das novas dioceses foi aprovada pelo parlamento. No ano de 1828, a Mesa da Consciência e
Ordens – antigo tribunal português que zelava pela implantação e organização
do culto na América e que vigorava no Império do Brasil – foi extinta e suas
funções foram transferidas para o Ministério da Justiça. Tais atitudes demostravam que Estado desejava exercer o controle sobre o padroado (NEVES,
2011, p. 382, 398-401).
O embate entre o poder temporal e a Igreja foi constante durante o primeiro reinado
e o período regencial, sendo que os liberais foram os principais responsáveis
pelos conflitos. Um dos políticos que mais se sobressaiu durante essa época
foi o padre Diogo Antônio Feijó que chegou a exercer os cargos de deputado,
ministro, regente e senador.
CATOLICISMO E LIBERALISMO NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO
Para a historiadora Françoise Jean de Oliveira Souza, a cultura política brasileira
pós-independência tentou relacionar o catolicismo ao liberalismo, isto é,
somar um pensamento político ao quadro religioso da nossa sociedade.
Padres que mesclavam princípios liberais e católicos foram atuantes no cenário politico-religioso, dentre eles: Diogo Feijó, José Bento, Custódio Dias,
Antônio Maria de Moura, entre outros. A autora defende que a composição
entre a religião e a política formou um grupo denominado “liberalismo cristão
e regalista” (SOUZA, 2010, p. 324). Todavia, precisamos enfatizar que esse
fenômeno não foi exclusivo. Padres com formação regalista e liberal também
foram comuns na França, Espanha e Portugal.
Contudo, a existência de um clero alicerçado em princípios liberais pode ser explicada pela formação difusa que os sacerdotes recebiam no Brasil. Nem todos os
estudantes que frequentaram o seminário estavam preocupados com a disciplina ou moral católica. Para o pesquisador João Camilo de Oliveira Torres, as
instituições eclesiásticas foram, por muito tempo, os únicos lugares de ensino
de qualidade. Muitos seminaristas, que passavam por esses educandários, não
almejavam a vida pastoral. Na impossibilidade de conduzirem-se para instituições de nível superior, como a Universidade de Coimbra, os seminários de
Olinda e Mariana serviram como local de formação para aqueles que busca134
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
vam maior capacitação. Tal situação favoreceu o surgimento de uma consciência que enxergava nos estabelecimentos católicos um instituto a serviço do
Estado e esta condição serve para explicar a atuação de padres no Império que
concordavam com as modificações na disciplina eclesiástica estipuladas pelo
poder legislativo (TORRES, 1968, p. 34).
Pe. Diogo Antônio Feijó parece ter vivido essa realidade, ao longo de sua formação
intelectual se manteve próximo aos princípios liberais e, por isso, não interpretou a disciplina católica como um dogma irrevogável. Este religioso nasceu em
1784 e era filho ilegítimo de uma reconhecida família paulista, os Camargos.
Durante o tempo em que viveu em São Carlos, São Paulo, atuou como professor de primeiras letras e filosofia moral, mas foi em Itu que sua formação
sacerdotal foi forjada. Nessa localidade, Feijó integrou um grupo de religiosos
conhecidos como padres do Patrocínio, este grupo seguia o Pe. Jesuíno e pregavam o evangelho pela região. Ficaram conhecidos por suas mortificações,
votos de silêncio, curas e milagres (RICCI, 2001, p.214-217, 221, 241-242).
Contudo, a partir do ano de 1821 a vida de Feijó intensificou-se na política. Ele foi
eleito para compor as Cortes de Lisboa como deputado. Sua vida pública fez
com que ele se deparasse com diferentes figuras e inúmeras formas de pensamento. Entre 1826 e 1831, Feijó passou a se relacionar com arcebispos, bispos
e políticos que foram eleitos para o parlamento estabelecido no Rio de Janeiro
(RICCI, 2001, p. 265-268, 276). Seu trajeto pessoal e político fizeram de Feijó
um padre não alicerçado na ortodoxia católica. Após a independência do Brasil, ele foi um dos principais representantes do liberalismo e, em 1826 assumiu
o posto de deputado (SOUSA, 1942, p. 68).
As propostas políticas de Pe. Feijó não agradavam a Santa Sé. Sua argumentação sugeria uma Igreja Nacional com o predomínio da liberdade individual. Nos anos
de 1820, combateu o celibato clerical com a alegação que o elevado número de
padres amasiados demonstrava a necessidade de uma nova organização eclesiástica. Seu desejo era executar uma reforma dos costumes do clero, mas não
no sentido ultramontano. Segundo Augustin Wernet, Feijó vislumbrava uma
Igreja nacional alicerçada no regalismo e no liberalismo (WERNET, 1987, p.
46-47).
Para a historiadora Magda Ricci, o Pe. Feijó, mesmo defendendo propostas polêmicas,
nunca separou a política da religião (RICCI, 2001, p. 203). Feijó acreditava
que a religião garantia a tranquilidade do Estado, entretanto os eclesiásticos
não possuíam boas condições para serem fontes da moral pública, porquanto
se encontravam em despreparo e imoralidade. Assim, era indispensável reformar a Igreja para garantir a melhor capacitação dos sacerdotes. Contudo, Feijó
defendia que essa reestruturação não deveria partir da Igreja, mas do Estado
(SOUZA, 2010, p. 378).
135
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
No ano de 1826, Pe. Feijó integrou a Comissão de Negócios Eclesiásticos da Câmara
dos Deputados. No mesmo ano, a comissão apresentou o parecer subscrito pelos parlamentares Miguel Reinaut, Antônio da Rocha Franco, José Bento Leite
Ferreira de Melo e Diogo Antônio Feijó. O documento estipulou as competências do poder temporal e os limites das bulas papais. Quatro pontos foram
apresentados: 1) Cabia ao Imperador prover os benefícios eclesiásticos; 2) Os
cabidos criados nas bulas eram desnecessários aos interesses da Igreja; 3) O
Papa poderia recomendar o número de sacerdotes e não exigir quantidades,
pois esta dependia das condições da Nação; 4) O Papa não poderia determinar
a criação dos seminários, mas sugerir de acordo com as normas do Concílio de
Trento (SOUSA, 1942, p. 76-78).
Nas sessões da Assembleia Geral, em 1828, os deputados debateram acerca da presença das congregações regulares no Brasil. Na reunião de 17 de maio do mesmo
ano, discutiram a questão da proibição dos frades estrangeiros. O parlamentar
José Custódio Dias propôs a ideia de desestimular a filiação dos homens em
casas religiosas, Feijó argumentou não ser necessária a existência das ordens
e acusou-as de absolutistas (SOUSA, 1942, p. 89, 93). O posicionamento dos
membros da Comissão de Negócios Eclesiásticos assemelhava-se às medidas
liberais tomadas em Portugal, no entanto a situação brasileira não progrediu
como no velho continente.3
Pe. Feijó ficou marcado pelo tema da abolição do celibato e pela luta contra a intromissão da Santa Sé em questões que, em seu pensamento, eram de responsabilidade do governo civil. No dia 25 de agosto de 1827, defendeu a legitimidade do
poder civil para interferir nas questões referentes às anulações de casamentos
e enunciou que os tribunais eclesiásticos deviam se submeter às organizações
temporais (SOUSA, 1942, p. 81).
Augustin Wernet ponderou que o debate sobre a reforma clerical iniciou-se no ano de
1827, sendo um confronto marcado por disputas entre ultramontanos e liberais. Os principais integrantes do primeiro grupo foram Pe. Luís Gonçalves dos
Santos, cognominado “Padre Perereca”, D. Marcos Antônio de Sousa, bispo do
Maranhão, e D. Romualdo Antônio Seixas, arcebispo da Bahia. No segundo
grupo o nome mais conhecido é Pe. Diogo Antônio Feijó. A primeira discussão em 1827, foi acerca da reforma eclesiástica com a apresentação do projeto
liberal, o qual defendia a permissão do casamento clerical e o fim dos frades e
freiras no Brasil. A proposta foi submetida à Comissão de Negócios Eclesiásticos que publicou parecer contrário, apesar da opinião favorável de Pe. Feijó.
Em outubro de 1827, este parlamentar leu seu voto de forma pública e apresentou um folhetim que defendia o fim do celibato (WERNET, 1987, p. 81-82).
Embora Feijó seja o nome mais conhecido entre os políticos liberais, cabe ressaltar
que ele não agiu sozinho. Um grupo de sacerdotes, que compunham o poder
136
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
legislativo concordava com sua opinião, citamos: José Bento Leite Ferreira de
Melo, José Custódio Dias e Antônio Maria de Moura. Nem todos aceitavam o
projeto de abolição do celibato, mas concordavam que a Igreja nunca alcançaria êxito impondo a disciplina eclesiástica. Desta forma, seria melhor liberar o
casamento para evitar os escândalos (SOUZA, 2010, p. 380, 387-388).
DIOGO ANTÔNIO FEIJÓ E A QUESTÃO DO CELIBATO CLERICAL
No dia 3 de setembro de 1827 o deputado baiano, Antônio Ferreira França, propôs à Assembleia Geral que o casamento clerical fosse autorizado e os frades e freiras
extintos. Neste episódio Feijó realizou sua atuação mais conhecida (NEVES,
2011, p. 405). No debate, Pe. Feijó defendeu que o Estado detinha o poder de
regular os casamentos, pois equivaliam a um contrato firmando entre cidadãos.
[...] O matrimonio é um contrato legítimo entre o homem e a mulher que Deus
tem estabelecido para multiplicação do gênero humano. [...]. Sendo para tanto
um contrato natural de Instituição Divina, seria absurdo no estado social negar
ao poder temporal ou autoridade de estabelecer condições, e regular a forma
de uma convenção, que mais que nenhuma outra influi na felicidade dos indivíduos, na tranquilidade das famílias, na boa ordem, conservação e progresso da
sociedade.
[...]
[...] Assim o pensou Benedicto XIV do mesmo parecer foi Pio VI quando julgou
validos os Matrimônios contraídos no tempo da Revolução Francesa, por serem
feitos segundo as Leis Civis, não obstante fora da presença dos Próprios Párocos. [...].
De tudo isto se conclui com toda a evidência.
1º Que é da privativa atribuição do Poder Temporal estatuir impedimento do
matrimonio, dispensar neles e derrogá-los.
2º Que a Igreja somente compete estabelecer condições e regular as formas pelas qual se possa valida ou licitamente receber o Sacramento.
3º Que o contrato, e o Sacramento são essencialmente distintos, que muitas vezes estão, e podem estar separados sem inconveniente algum [...] 4.
O deputado deixou claro que o casamento consistiria em um contrato referente à felicidade de dois cidadãos. Por este motivo, o governo temporal não poderia
ser impedido de atuar em favor das necessidades da população. Cabia à Igreja
instituir a forma sacramental do ritual, contudo as regras que permitiam ou
impediam o matrimônio necessitavam das definições das organizações civis.
Na continuação de seu pronunciamento, ao passo em que defendia a permissão
137
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
para clérigos casarem-se, sustentou que o celibato não era algo natural, mas
uma imposição estipulada ao longo da história.
[...] A escritura não oferece uma só passagem ainda equivoca pela qual se entenda prescrito o celibato dos clérigos, pelo contrario o exemplo dos Apóstolos,
e S. Paulo lembrando as qualidades necessárias para o sacerdócio, parece preferir o estado de casado. [...].
[...]
Quando Gregório VII sobre a Cadeira Pontifícia, parecia estar em perfeito
desuso em muitas Dioceses a lei do Celibato. Estava porém reservado a este
Pontífice o generalizar no Ocidente uma pratica que seguida ao principio por
conselho, não era própria para todos, segundo o mesmo Evangelho, mas já
nesse tempo estava [constituída] a Monarquia absoluta da Igreja dando leis
a seu arbítrio aos Católicos, fazia os mesmos Monarcas dobrarem-se ao seus
jugo. É este Papa austero em sua vida, severo em suas máximas, inflexível em
suas [pretensões], que proíbe aos Padres continuarem a viver com suas mulheres, e decreta perpetua nulidade aos matrimônios pelos mesmos contraídos
[...] 5.
Pe. Feijó não acreditava na existência de uma justificativa bíblica para a manutenção do
celibato. Para ele, antes da proibição do casamento dos sacerdotes, estipulada
por Gregório VII, a Igreja convivia com os padres e suas esposas. O impedimento do matrimonio seria uma medida autoritária derivada de uma monarquia católica liderada por um Papa severo, inflexível e austero. De acordo
com Guilherme Pereira das Neves, Pe. Feijó baseou seus argumentos na obra
do teólogo Franz Xaver Gmeiner (1752-1824), autor da obra Instituições de
Direito Eclesiástico, que possuía argumentos contrários ao celibato clerical.
Este intelectual defendeu que a Igreja proibia o matrimônio por imposição de
Gregório VII, opinião compartilhada por Feijó (NEVES, 2011, p. 405-406).
[...]Cansam-se os Concílios em formar regulamentos e estabelecer penas, para
embaraçar o Concubinato dos Clérigos; mas nota-se por toda a parte que a
força dos homens não pode vencer a força da natureza. [...] Enfim a historia
conserva o triste quadro dos escândalos, deboches, adultérios, e mil outros crimes, que desonram a Santidade do Ministério Eclesiástico [...]; e tem sido tão
públicos e tão frequentes os escândalos dos Padres nesta parte, que os Protestantes maliciosamente tem afirmado, que o Papa mais quer ver o seu Clero
concubinado, do que casado.
[...]
[...] não deve estabelecer Lei alguma sem manifesta utilidade pública, principio
138
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
sancionado pela constituição do Império: sendo a Lei do Celibato inexequível
em sua generalidade [...]sendo enfim a abolição da lei do Celibato a opinião
geral dos homens de saber, e piedade, e dos soberanos Católicos, [...] é justa
necessária e indispensável, a derrogação de semelhante Lei pela Assembleia
Geral do Brasil. [...]6.
O fim do celibato clerical se justificaria por não ser algo apropriado, já que os liberais
acreditavam que o casamento era natural aos homens. A Igreja, ao estipular o
solteirismo, permitiu que os clérigos se envolvessem em “escândalos”. Multiplicou-se o número de sacerdotes que viviam com concubinas e/ou prostitutas.
Além disso, os sacerdotes eram alvos de piadas por parte dos protestantes que
alegavam que os católicos preferiam padres com concubinas ao invés de casados. Na interpretação liberal, as leis não poderiam posicionar-se em desacordo
com a natureza humana. Caberia ao governo temporal abolir as normas que
não continham utilidade pública.
Feijó terminou seu voto com o seguinte parecer:
1º Que se autorize ao Governo para obter de S. Santidade a revogação das penas Espirituais impostas ao Clérigo [...].
2º Que o mesmo Governo marque ao nosso [Plenipotenciário] prazo certo, e só
o suficiente, em que deve definitivamente receber da Sta Sé o deferimento desta
Suplica.
3º Que no caso da Sta Sé recusar-se ao requerido, o nosso Plenipotenciário
declare a S. Santidade mui clara e positivamente, que a Assembleia Geral não
só derrogará a Lei do Celibato mas suspenderá o beneplácito a todas as Leis
Eclesiásticas disciplinares, que estiverem em oposição aos Seus Decretos [...].
Paço da Câmara dos Deputados de Outubro de 1827.
Diogo Antônio Feijó 7
O parlamentar concluiu que o Império do Brasil deveria solicitar, junto à Santa Sé, a
permissão para revogar o celibato dos clérigos brasileiros. Caso não conseguissem resposta positiva, a Assembleia Geral deveria abolir a lei do celibato
e suspender o beneplácito a todas as leis eclesiásticas que estivessem em desacordo com governo. O posicionamento do Pe. Feijó permitiu que o clero conservador emitisse sua opinião contrária. O padre Luiz Gonçalves dos Santos
acusou Feijó de defender ideias calvinistas e sugeriu que o deputado abandonasse os escritos ímpios e estudasse o verdadeiro catolicismo (SOUZA, 2010,
p. 393-394).
A postura de Feijó demonstrou que ele não reconhecia no Papa a autoridade sobre
qualquer questão eclesiástica. Sua visão evidenciava que a vontade do povo
139
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
era soberana e o parlamento era a expressão desse poder. Assim, a Assembleia
Geral poderia extinguir as disciplinas que não eram condizentes com a realidade da nação.
Apesar de contar com o apoio de outros parlamentares, Feijó não conseguiu aprovar o
fim do celibato clerical na Assembleia. De acordo com Françoise Jean de Oliveira Souza, uma possível interpretação para esse fato encontra-se no receio
dos deputados em estabelecer uma briga direta com a Santa Sé, a qual culminaria com um cisma. O Brasil era uma nação nova e necessitava do auxílio
da religião para conservar a ordem e a tranquilidade político-social (SOUZA,
2010, p. 394).
POLÍTICAS LIBERAIS E A REAÇÃO ECLESIÁSTICA NO BRASIL
Após a elaboração e a promulgação da Constituição Imperial de 1824, foram organizados os códigos de leis que regulamentariam a carta magna. No entanto,
em 1833, um vigário denunciou ao Ministro Secretário de Estado e Justiça e
Negócios Eclesiásticos, Aureliano de Souza e Oliveira Couttinho, a existência
de artigos em desconformidade com a Constituição. O sacerdote alegou que
as leis, debatidas e aprovadas pela Assembleia Geral, feriam os direitos dos
católicos.
[...]
O Artigo 5º da Lei Fundamental estabeleceo que = a Religião Catholica, Apostolica Romana Continuará a Ser a Religião do Império = Esta solemne declaração tão honrosa para o povo Brasileiro; este principio da Lei politica Fundamental, acha-se ferido em varios objetos como são os seguintes=
1
Artigo 79 do Codigo Criminal na Latitude, com que prohibindo, e declarando
por Crime, reconhecerse, e obedecerse a Superior fora do Imperio; veda, que se
reconheça e obedeça ao SSmo Padre, que he o Primaz, o Chefe visivel da Igreja, aquelle a quem J. C. entregou especialmente o poder das Chaves, e aquelle,
a quem em suma deve todo, o que se diz e quer ser membro da Igreja de J. C.
[...]. Este artigo não pode deixar de ser emendado, ao menos acrescentando a
palavra Politico [...]
2º
No artigo 81 do mesmo Codigo em quanto declara Crime = recorrer a autoridade Estrangeira rezidente dentro ou fora do Imperio sem legitima licença para
impetrações de Graças espirituaes = Esta generalidade inclue a prohibição de
implorar da Santa Sé, e seos Delegados, rezidentes no Brazil, [...]: Falha pois
esse artigo esse recurso aos Catholicos Romanos Brasileiros, obrigado-os a su140
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
jeitarem-se ao poder temporal, por negocios espirituais,[...]. Na Igreja não há
autoridade estrangeiras, nem jamais ser pode o S. Padre, que he o chefe visivel
da Igreja: esta he huma única, e universal. [...].
[...]
6º
Em permittir que os Prezidentes de Provincia se arroguem tão exhorbitante auctoridade sobre os Bispos, que chegão a dirijir-lhe Ordens terminantes, e até a
declarar em conselho nullas as Pastoraes dos mesmos Bispos, quando estes na
linha espiritual so tem por Superiores o Ssmo Padre e a Igreja, e na linha civil,
e politica o Soberano Temporal [...].
[...]
13º
Tem-se visto resoluções, ou Propostas às cameras de conselhos Provinciaes,
extinguindo, ou propondo a extinção de institutos pios e Religiosos, dias Santos
[...].
[...]
14º
O Decreto de 11 de agosto de 1831 que declarou não haver Legislação em vigor
no Brazil, que prohibe que os filhos illegimos de qualquer especie instituidos
herdeiros por seos pais em [testamento] não tendo herdeiro necessarios. Esta lei
[...] favorece, e anima a má conducta, e o dezaforo do Clerigo no Celibatario, e
até protege o adulterio [...].
[...]
Se o poder temporal [antolhava] a necessidade de qualquer alteração apenas
ficava licito tenta-la encetando as respectivas negociaçoens, e realizando-se
huma concordata, que respeitando os Direitos inalienaveis de hum e outro Poder, fixasse justo. [...]
N. B.[...] . 8.
A maior preocupação da Igreja dizia respeito à interferência do poder civil nas questões
eclesiásticas. A legislação permitia que os filhos ilegítimos tivessem direito à
herança, que os presidentes de províncias pudessem nomear cargos eclesiásticos e que as instituições e dias festivos católicos fossem barrados pelo poder
temporal. Soma-se a isso, a proibição de obedecer às autoridades estrangeiras.
Tais medidas reduziam o poder dos católicos e permitiam que o Estado controlasse o setor clerical como um departamento do governo. Para o denunciante,
a Igreja gozava de caráter universal e, por isso, não poderia sujeitar-se a uma
liderança específica. Sua subordinação era ao Santo Padre. Caso o poder civil
necessitasse de benefícios, deveria firmar concordata entre o Império e a Santa
Sé. Diante da queixa do referido padre, o ministro autorizou a organização
141
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
de uma comissão para averiguar quais normas não estavam em conformidade
com as vantagens constitucionais garantidas ao catolicismo.
A Regência em nome do Imperador Sr. D. Pedro II manda remeter a [V J] para
fazer presente a comissão criada por decreto de 3 do corrente para rever a Legislação nos pontos em que estiver defeituosa as observações inclusas de um
eclesiásticos sobre diversos artigos da legislação brasileira que [devem] estar
em [harmonia] com a religião Católica Apostólica Romana, e sagrados Cânones da Igreja, a fim de que a mesma comissão faça delas o uso que julgar
conveniente, nos trabalhos de que está encarregada quando os julgar acertados
e justas.
[ ] Paço em 27 de [setembro] de 1833
Aureliano de Souza e [Oliveira] Coutto.
[Sr João Antônio [Rom] e Castro] 9
Com a anuência de Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, uma junta foi formada
para averiguar as supostas inadequações. O representante da Santa Sé no Brasil, Scipião Domingos Fabbini, enviou um documento ao Ministério da Justiça
e Negócios Eclesiásticos, argumentando que era justa a tentativa de reformar o
clero. Porém, tal reestruturação necessitava de uma obediência aos parâmetros
instituídos pela Igreja.
O abaixo assignado Encarregado de Negócios da Santa Sé, e delegado Apostólico neste Império, tendo sido pelos jornais públicos da sábia medida tomada pelo
Imperial Governo de nomear uma comissão a qual se ocupe em rever os defeitos
mais notáveis da Legislação, para apresentar ao mesmo Governo, diferentes
projetos de Leis, tendentes a emendar tais defeitos; [...].
Se uma justa, e bem dirigida Reforma do Clero regular e secular, ocupa os cuidados do Governo Imperial, como o tem mostrado em muitas ocasiões: [...]
certamente deve bem compreender, na sua sabedoria, que dando o exemplo luminoso de propor uma Reforma daqueles pontos de legislação que nela se tem
introduzido, [...] favorecendo o exercício franco e livre das regras canônicas,
disposições dos concílios, constituições, e outras providencias apostólicas, sobre as quais se tem levantado o majestoso edifício da Igreja [...]. Era então faça
o Governo de S. M. I. que as leis civis, e criminais nesta feliz ocasião se ponham
em perfeita harmonia com as leis Santas da Igreja [...]. [...] aproveita a ocasião
para renovar a S. E. o Snr Desembargador Aureliano de Souza e Oliveira Couttᵒ
Ministro Secretario de Estado da Justiça a quem tem, a honra de dirigir esta
Nota, assentimentos da sua mais alta consideração e Respeito = Rio de Janeiro
em 12 de Outubro de 1833. Assignada = Scipião Domingos Fabbini [...] 10.
142
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
O Internúncio argumentou que, para ocorrer a reestruturação eclesiástica, era necessário melhorar as leis do Império. Os regulamentos temporais precisavam estar
em harmonia junto às regras canônicas, sem contestar resoluções e concílios
da Igreja. As palavras de Scipião Domingos Fabbini demonstravam que o catolicismo desejava manter sua autonomia dentro do Império brasileiro.
O ministro respondeu ao Internúncio que o governo tentaria atender às reivindicações
da Igreja para sanar o problema.
O abaixo assignado Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Justiça
em resposta a Nota que lhe dirigiu o Sr Scipião Domenico Fabbini em data de
12 do passado sobre a conveniência de se atender, na reforma da Legislação
que o Governo Imperial projeta, a parte que tem relação com a Religião Católica Apostólica Romana dominante no Império, afim de que a mesma Religião
mais fortalecida pelas Leis Civis, e criminais do País, [...] tem a satisfação de
assegurar ao Sr Scipião Dominico Fabbrini que o Governo Imperial reconhecendo de quanta importância é o objeto em questão para a felicidade dos Povos, não deixará de o tomar na devida consideração, nos melhoramentos que
por sua influência forem feitas nas Leis do País = [...] aproveita esta ocasião
para renovar os protestos de sua particular estima e consideração = Palácio
do Rio de Janeiro em 20 de Novembro de 1833 = Aureliano de Szᵃ e Oliverᵃ
Coutᵒ 11.
A preocupação em acatar as solicitações eclesiásticas no Brasil evidencia que o Governo Regencial, diferente do que ocorreu no parlamento durante o Primeiro
Reinado, não pretendia confrontar a religião. A Igreja era vista como essencial
para a organização e manutenção da sociedade. Verificamos uma inquietação
estatal para reformar o clero regular e secular, mas essa reestruturação não
significava imposição, ocorreu uma negociação, de um lado estava o poder
divino com seus benefícios e, do outro, o governo temporal com influência na
esfera religiosa.
O historiador Guilherme Pereira das Neves defendeu que essa tendência estatal de interferir nas questões eclesiásticas era parte da herança lusitana, que partilhou
conosco o padroado e o regalismo. A chegada da família real portuguesa ao
Rio de Janeiro teria iniciado o combate do poder civil ao clero regular. Além
disso, trazia em si a convicção de que os padres seculares deveriam servir ao
Estado como funcionários públicos (NEVES, 2011, p. 384-386).
No entanto, acreditamos que essa influência não foi acentuada, pois apesar das propostas liberais/regalistas terem sido comuns no Primeiro Reinado e em parte do
Período Regencial, elas não foram suficientes para impedirem a proliferação
de ordens regulares. Ao contrário, o Império brasileiro constituiu-se como o
143
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
melhor local para a divulgação da ortodoxia romana, ao longo do século XIX.
Aqui, o clero regular ganhou espaço com a nomeação de bispos congregados,
com o repasse de seminários para a administração de ordens e com as missões
que se propagaram nas províncias.
A tentativa de nacionalização do catolicismo, defendida pelos regalistas, foi vetada
pela resistência eclesiástica que exigia seus privilégios e a submissão ao Papa.
Enquanto o Brasil permitia que a Igreja verificasse quais leis e medidas estavam em desacordo com seus interesses, Portugal perseguia o clero regular,
rompia com Roma e fortalecia os sacerdotes seculares nacionais 12. Desta maneira, a Santa Sé encontrou, no Brasil, o ambiente perfeito para fortalecer e
propagar sua ortodoxia.
No decorrer do Período Regencial, os liberais, igualmente, confrontaram o relacionamento do Poder Temporal com o Poder Divino. No dia 16 de agosto de 1834,
a Assembleia Geral autorizou a criação de uma estrada e de uma colônia de
povoação no centro-oeste brasileiro. Para garantir o sucesso da empreitada, o
governo doaria terrenos para a construção das paróquias e as ordens religiosas seriam obrigadas a transferirem suas expensas materiais e financeiras para
aquelas localidades.
A Assembleia geral Decreta
Art. 1º Abrir-se-á uma Estrada Geral no centro do Brasil [...].
Art. 2º De vinte em vinte léguas se estabelecerá uma colônia [...].
[...]
Art. 4º A abertura da Estrada Geral e das laterais, o estabelecimento das colônias, [...] e todas e quaisquer despesa, com a civilização e catequese dos Índios
[...] tudo será á custa de todas as Ordens Religiosas do Império, [...].
Art. 5º Para o estabelecimento de cada colônia fica o Governo autorizado a dar
de sesmaria uma légua quadrada de terra, para servir de patrimônio à Igreja,
[...], podendo a Ordem Religiosa, [...], usufruir a terra, como sua [...].
Art. 6º As ordens religiosas ficarão obrigadas a remover para aquelas Estradas
todos os bens que possuem [...] dentro do prazo de 20 anos [...], e findo o prazo
se julgará pertencer à Nação os bens que ficarem por vender seja qual for a sua
natureza.
[...]
Art. 8º Desde já fica considerado semelhantes estabelecimentos, como propriedade particular de cada uma das ordens [...].
Art. 9º Ficam pela presente lei autorizadas todas as Ordens Religiosas a admitirem anualmente oito noviços [...], podendo no 1º ano admitir o número correspondente a 3 anos, e cessando no fim dos 20 anos todo e qualquer admissão, que
não for permitida pelo Poder Legislativo.
144
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
Art. 10º O Governo auxiliará as ordens Religiosas com o que estiver a seu alcance [...] permitindo o engajamento com oficiais Engenheiros, [...] e até com
Estrangeiros que as Ordens Religiosas convidem para esse fim.
Art. 11º Ficam derrogadas as Leis em contrario.
Paço da Câmara dos Deputados 16 de agosto de 1834
(Assignado) O Deputado Innocencio José Galvão 13
A determinação exigia a composição das ordens religiosas nas colônias de povoação,
que seriam criadas para integrar a região norte com a região sul. Apesar de ser
uma imposição ao clero regular, a situação desses religiosos era melhor do que
a enfrentada pelos regulares em Portugal, pois o Império do Brasil proporcionava o apoio político às ordens e permitia que tivessem propriedade particular,
maior número de religiosos e a participação de clérigos estrangeiros que poderiam ser convidados para ajudarem as congregações.14
Neste mesmo ano, 1834, a condição das ordens religiosas no Reino de Portugal era
perturbadora. Lá, a monarquia proibiu a presença do clero regular, tomou
posse das propriedades e transferiu, para os próprios nacionais, os rendimentos que pertenciam às congregações. No Brasil, apesar do debate acerca do
fim do celibato clerical e das tentativas de regulamentar o funcionamento do
clero regular, o governo julgava as casas religiosas como elemento essencial.
Acreditavam que eram úteis na integração nacional. O plano de transferi-las
para o centro do país, por mais impositivo que fosse, continha benefícios,
como o direito de inscrever oito noviços por ano e incorporar terrenos aos
seus bens.
Guilherme Pereira das Neves enfatizou que, embora as inúmeras restrições que pretenderam impor às ordens religiosas no Brasil durante o século XIX, nenhuma foi
suficiente para impedir o seu crescimento. A Congregação da Missão obteve
autorização para ocupar a ermida instalada na serra do Caraça, Minas Gerais,
em 1820, e lá fundaram um colégio. Sacerdotes brasileiros foram enviados para
o Seminário Latino-Americano em Roma, sendo que, em 1870, esta instituição
contava com cinquenta alunos oriundos do Brasil (NEVES, 2011, p. 417).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do século XIX, o governo Imperial do Brasil manteve as ordens religiosas
em seu território, indicou sacerdotes congregados para ocuparem as principais
dioceses, como foi o caso de D. Antônio Ferreira Viçoso nomeado para o bispado de Mariana, e permitiu o contato do clero nacional com a Cúria Romana.
No decorrer do Primeiro Reinado e do Período Regencial, os liberais tentaram exercer
maior influência sobre a situação eclesiástica brasileira. O clero regular não
145
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
poderia obedecer a superiores estrangeiros e sofriam restrições em relação ao
número de noviços. No entanto, mesmo com essas normatizações, esses religiosos mantiveram privilégios e não sofreram perseguições exageradas.
Os primeiros anos após a emancipação política foram marcados por um processo de
construção do Estado. Neste movimento, surgiu o desejo de viabilizar uma
Igreja nacional autônoma, mas não desligada de Roma, para que isso fosse
possível, os parlamentares tentaram fortalecer os bispos enquanto enfraqueciam o Papa. Essa medida visava consolidar o poder nacional e fragilizar o
poder estrangeiro. De acordo com Françoise Jean de Oliveira Souza, os parlamentares supunham que as ordens regulares faziam parte de uma conspiração romana contra o Estado, já que eram financeiramente independentes
e sujeitavam-se a líderes estrangeiros adeptos ao ultramontanismo (SOUZA,
2010, p. 331, 342).
Entre 1826 e 1837 o debate sobre a situação religiosa foi constante. Parlamentares
defenderam que cabia ao governo temporal organizar a Igreja Católica, por
isso, poderiam legitimar o casamento clerical. Mesmo com a influência liberal
na política o Estado nunca se constituiu leigo. Manteve-se católico e por mais
que pretendesse administrar a religião consentiu que o prelado opinasse na
formulação das leis. Assim, a situação religiosa imperial se desenvolveu de
forma mais tolerante, comparada ao que acontecia na Europa. Por mais que
sucederam debates liberais que afetavam o catolicismo, nenhuma mudança
drástica aconteceu no primeiro reinado e no período regencial.
CATHOLICISM AND LIBERALISM IN BRAZIL (1826-1837)
Abstract: the liberal Catholic project in nineteenth-century Brazil began in 1826 with a proposal that prevented clerics from obeying foreign superiors. Plans debating a national
Catholicism emerged in the General Assembly. We analyze the clash between liberalism and ultramontanism. We wish to demonstrate that the Church could strengthen
its congregation and encourage its relationship with the Holy See.
Keywords: Congregation. Anti-Congregation. Liberalism. Catholicism. Regency.
Notas
1 Constituição brasileira de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acessada em 10/12/2013.
2 Segundo David Gueiros Vieira, o padroado régio foi concedido pelo papa aos reis portugueses
e espanhóis e permitia a eles exercer poderes sobre negócios eclesiásticos nas possessões
desses governantes. Entre as funções concedidas aos monarcas estavam os direitos de
recolher o dízimo e de nomear os bispos. Ver: Vieira, David Gueiros. O Protestantismo, a
146
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, Brasília: Editora da UnB, 1980. p. 28.
3 O decreto real de 28 de maio de 1834, assinado por D. Pedro IV, extinguiu as ordens regulares em Portugal e incorporou os bens nos próprios da Fazenda Nacional.
4 Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, fundo do Arquivo da Nunciatura
no Brasil (ANB), fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de Diogo Antônio Feijó, outubro
de 1827.
5 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de
Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827.
6 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de
Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827.
7 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de
Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827.
8 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 37-44, observações sobre
diversos pontos da Legislação Brasileira não conformes com a Santa Religião Católica
Apostólica Romana, assinada por N.B.
9 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 45, comunicado do dia
em 27 de setembro de 1833, assinado por Aureliano de Souza Oliveira Couttinho.
10 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 46-47, Correspondência
de 12 de outubro de 1833, dirigida para Aureliano de Souza e Oliveira Couttinho, assinada
por Scipião Domigos Fabbini.
11ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB; fasc. 23; doc. 5; página 47 verso, Correspondência de 20 de novembro de 1833, dirigida para Scipião Domingos Fabbni, assinada por
Aureliano de Souza e Oliveira Couttinho.
12De acordo com Antônio de Matos Ferreira, o fim da atuação dos regulares em Portugal
reduziu as maneiras de relação entre a Igreja Católica e a população. Importantes centros
educacionais foram fechados e a base do clero passou a ser formada por padres seculares.
Ver: Ferreira, Antônio Matos. “Desarticulação do Antigo Regime e guerra civil”. In: Clemente, Manuel & Ferreira, Antônio Matos (orgs.). História Religiosa de Portugal. Religião
e secularização, vol. 3, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, p. 34.
13 ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 23, doc. 11, página 88,decreto de 16 de
agosto de 1834, assinado pelo deputado Innocencio José Galvão.
14 Vítor Neto calculou que em Portugal durante a vigência do decreto de 28 de maio de 1834
provavelmente 448 casas religiosas teriam sido extintas. Estrutura que teria um capital de
aproximadamente 15 mil contos e rendimento superior a 500 contos anuais. Ver: Neto,
Vítor Manuel Parreira. O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911), Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1988, p. 52.
Referências
CROSS, F. L. The Oxford Dictionary of the Christian Church. Oxford: Oxford University Press,
1997.
FERREIRA, A���������������������������������������������������������������������������
.��������������������������������������������������������������������������
M. Desarticulação do Antigo Regime e guerra civil. In: CLEMENTE, M�������
.;�����
FERREIRA, A. M. (Orgs.). História Religiosa de Portugal. Religião e secularização, v. 3. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2002.
147
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
NETO, V. M. P. O Estado, a Igreja e a Sociedade em Portugal (1832-1911). Lisboa: Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1988.
NEVES, G. P. das. A religião do império e a Igreja. In: GRINBERG, K.; SALLES, R. O Brasil
imperial (1808-1831), v.1. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011.
NEVES, L. M. B. P. Liberalismo político no Brasil: ideias, representações e práticas (18201823). In: GUIMARÃES, L. M. P.; PRADO, M. E. (Orgs.). O liberalismo no Brasil imperial:
origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Revan; UERJ, 2001.
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Organização administrativa e política. In: SERRÃO, J.;
OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Nova História de Portugal. vol. IX. Portugal e a instauração
do liberalismo. Lisboa: Editorial Presença, 2002.
RÉMOND, R. O século XIX (1815-1914). São Paulo: Cultrix, 1974.
RICCI, M. Assombrações de um padre regente. Diogo Antônio Feijó (1784-1843), Campinas:
Editora da Unicamp, p. 2001.
SOUSA, O. T. Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Rio de Janeiro: José Olympio, 1942.
SOUZA, F. J. de O. Do altar à tribuna. Os padres políticos na formação do Estado Nacional
brasileiro (1823-1841). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
TORRES, J. C. de O. Ideias religiosas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1968.
VIEIRA, D. G. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil.���������������
Brasília: Editora da UnB, 1980.
WERNET, A. A Igreja paulista no século XIX. A reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (18511861). São Paulo: Ática, 1987.
148
, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 131-148, jan./jun. 2015.
Download