Conhecer a Bíblia Aula 1 A Revelação divina Palavras e factos bíblicos A Bíblia é o livro que contém a Palavra de Deus expressa em palavras humanas. É uma grande obra literária; um livro único, inesgotável, onde se encontra tudo o que se refere a Deus e ao homem. O termo «bíblia procede do grego e significa etimologicamente «livros» ou livrinhos». A Igreja usava este plural para designar a colecção completa das Escrituras Sagradas. Desde os começos do cristianismo, a Bíblia foi a base da vida espiritual, da pregação e ensinamentos da doutrina cristã. A Bíblia: Antigo e Novo Testamento A colecção dos 73 livros que formam a SAGRADA ESCRITURA tem duas partes bem diferenciadas, chamadas «Antigo Testamento» (AT) e «Novo Testamento» (NT), que correspondem aos escritos antes ou depois da vinda de Cristo. A palavra «testamento» equivale aqui praticamente a pacto ou aliança. O AT é composto por 46 livros. Chama-se NT ao conjunto dos restantes 27 livros, escritos de acordo com a «Nova Aliança» de Jesus Cristo, gravada não sobre tábuas de pedra, mas sobre corações de carne. Todos eles anunciam a «Boa Nova» proclamada por Jesus. A divisão actual da Bíblia em capítulos e versículos remonta ao século XVI, por Roberto Stephan. Foi, no entanto, Stephan Langton, à volta do ano 1214, quem primeiro introduziu a divisão dos capítulos nas cópias da versão latina da Vulgata. AT e NT são duas partes de uma mesma história da salvação, e embora nós, os cristãos pertençamos já ao povo da «Nova Aliança», nem por isso podemos ignorar o que diz respeito à «Antiga Aliança» que durante tantos séculos preparará a humanidade para a chegada da «plenitude dos tempos». A Sagrada Escritura viveu durante muito tempo na tradição oral. Só depois se puseram por escrito as leis, as palavras dos Profetas, as sentenças dos Sábios, os cantos e os poemas dos Salmistas e as recordações históricas das intervenções salvíficas de Deus. 1 A Revelação divina Um facto central e ao mesmo tempo um dos mistérios fundamentais da religião cristã é que se nos apresenta como tendo origem e fundamento numa Revelação histórica. Porque se revelou Deus? Porque quis e porque nos ama. Com que finalidade? Para se dar a conhecer de modo gratuito e nos convidar a uma íntima comunhão com Ele, através de uma relação de amizade. A revelação divina é, pois, um grande dom, imerecido e inesperado do amor de Deus, em forma de diálogo amoroso, «conversa» ou comunicação entre amigos. Em suma, «revelando-se a Si mesmo, Deus quer tornar os homens capazes de Lhe responderem, de O conhecerem e de O amarem, muito para além de tudo o que seriam capazes por si próprios». Revelação por meio de palavras e de obras A revelação divina é realmente Palavra de Deus, mas é também – e inseparavelmente – acontecimento, manifestação e desenvolvimento do plano de Deus ao longo da História. A salvação de Deus aparece em tudo o que faz ao intervir na história dos homens e não só na consciência dos crentes ao ter conhecimento dessa história. Mediante a Sagrada Escritura Deus dá a conhecer o sentido salvífico dos acontecimentos, e estes podem assim compreender-se como história da salvação. Para aprofundar neste mistério da palavra divina, é preciso ter em conta que «como, porém, na Sagrada Escritura Deus falou por meio de homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada Escritura para compreender o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar atentamente o que os hagiógrafos queriam realmente significar e o que aprouve a Deus manifestar com a palavra deles». O encontro de Deus com o homem realiza-se por meio da história, quer dizer, por meio de factos, acontecimentos e acções que depois são explicados por meio de palavras. A palavra bíblica tem origem num passado real - e não só dum passado, mas ao mesmo tempo desde a eternidade de Deus -; mas passa pelo caminho do tempo, ao qual correspondem passado, presente e futuro. Etapas da revelação divina Os elos ou etapas desta revelação divina são em síntese: o proto-evangelho ou primeiro anúncio da salvação, 2 a aliança com Noé, a escolha de Abraão com a aliança e as promessas, o êxodo ou a saída do Egipto com Moisés e a aliança do Sinai, a promessa a David de um Messias descendente da sua linhagem. o Exílio ou cativeiro da Babilónia e o regresso à Terra Prometida no AT; a Encarnação do Redentor, a Igreja fundada por Cristo e, finalmente, a Parusia ou segunda vinda do Senhor no NT. Na realidade, Deus dá-se a conhecer desde as origens em tudo o que criou através do seu Verbo e, especialmente, na relação pessoal que estabeleceu com os nossos primeiros pais, a quem «convidou a uma comunhão íntima consigo, revestindo-os de graça e justiça resplandecentes». Ao quebrar-se pelo pecado a unidade do género humano, Deus faz um pacto ou aliança com Noé depois do castigo do dilúvio; este pacto afecta toda a humanidade e revela o plano divino para todas as nações da terra. Mais tarde, para reunir a humanidade dispersa, Deus escolhe Abraão, chamando-o para fora da sua terra, da sua pátria e da sua casa, e fá-lo pai de uma multidão de nações. Depois dos patriarcas, Deus formou Israel como seu povo, salvando-o da escravidão do Egipto. Concluiu com ele a aliança do Sinai e deu-lhe, por Moisés, a sua Lei, para que Israel O reconhecesse e O servisse como único Deus vivo e verdadeiro, Pai providente e justo Juiz, e vivesse na expectativa do Salvador prometido». Mais tarde, Deus formará o seu povo através dos profetas, na esperança da salvação – o Messianismo do AT-, na espera duma Aliança nova e eterna destinada a todos os homens, gravada nos corações e que terá o seu cumprimento no Cristo o Messias, Jesus de Nazaré. A plenitude da revelação E, por fim, a plenitude dos tempos: a Encarnação do Verbo de Deus, Jesus Cristo. A conclusão não pode ser mais contundente: o Filho de Deus feito homem é, pois, a Palavra única, perfeita e insuperável do Pai; n’ Ele disse tudo, não haverá outra palavra para além desta, como afirma S. João da Cruz. Embora a Revelação esteja acabada – encerrou-se com a morte do último Apóstolo -, não está completamente explicitada; o seu conteúdo poderá ser conhecido melhor e gradualmente no decorrer dos séculos. Esta é uma razão da própria existência da Igreja. A palavra entregue por Cristo à sua Igreja A Palavra divina de Jesus chega à Igreja de duas maneiras: oralmente e por escrito. 3 Por um lado, os Apóstolos, com a sua pregação e o seu exemplo, transmitiram por palavra o que tinham aprendido das obras e palavras de Cristo e aquilo que o Espírito Santo lhes ensinou; E, por outro lado, os próprios Apóstolos – juntamente com outros da sua geração inspirados pelo Espírito Santo, puseram por escrito a mensagem da salvação. Por isso, junto à Sagrada Escritura existe também na Igreja, a Sagrada Tradição, que recebe a palavra de Deus, transmitida por Cristo e o Espírito Santo aos apóstolos, e a transmite íntegra aos seus sucessores; «para que eles, com a luz do Espírito da verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação». Ambas constituem o depósito sagrado que contém verdades de ordem tanto sobrenatural como natural. A Bíblia deve ser lida na Igreja e com a Igreja. O próprio Cristo quis que existisse nela um Magistério vivo com a função de interpretar autenticamente a palavra divina, escrita ou transmitida oralmente, exercendo a sua autoridade em nome de Jesus Cristo, isto é, entregue aos Bispos – sucessores dos Apóstolos – em comunhão com o Papa – sucessor de Pedro -. Tradição e Escritura foram confiadas à Igreja e, dentro d’ Ela, só ao Magistério compete interpretá-las autenticamente e pregá-las com autoridade. Conclusões A Revelação divina deu-nos o enquadramento próprio para as palavras e acontecimentos que se narram nos livros sagrados. A causa principal de uma incorrecta e incompleta compreensão do texto sagrado deve-se com frequência mais à ignorância do que à malícia. Para o evitarmos, o Magistério da Igreja aconselha-nos três coisas: 1. Meditar, estudar e contemplar as Escrituras meditando-as no nosso coração, e em particular anima os investigadores a aprofundarem o conhecimento da verdade revelada; 2. Ouvir o Papa e os Bispos em comunhão com ele, porque são os sucessores dos Apóstolos no carisma da verdade; 3. finalmente, procurarmos compreender internamente os mistérios que vivemos. A leitura meditada da Bíblia fez, com efeito, muitos santos. Portanto, não basta o estudo dos textos bíblicos; se queremos crescer na inteligência do «depósito» revelado temos de pedir luzes ao Espírito Santo para aprofundarmos, cada vez mais, na Palavra de Deus 4 Aula 2 Os livros da Bíblia O país, os escritos e a sua história O país da Bíblia A memória de um povo O quadro histórico dos livros da Sagrada Escritura Etapas principais na formação do AT 1. A etapa patriarcal. 2. A etapa mosaica. 3. Etapa da Monarquia. É então que se põem por escrito duas grandes tradições: a Javista (J) no Reino do Sul (século IX) e a elohista (E) no Reino do Norte (século VIII), assim chamadas pela maneira de designar Deus, como Iavé ou Elohim, respectivamente. Algum tempo depois, no ano 612, quando no Sul governava o rei Josias, descobre-se no Templo de Jerusalém o rolo da Lei. O livro do Deuteronómio situa-se na confluência de três grandes correntes que inspiraram e construíram a alma de Israel: a Tradição mosaica, o Profetismo e a Sabedoria. Os investigadores opinam que é nesta altura que se cristaliza aquilo que vulgarmente se chama a História Sagrada. Efectivamente, os redactores da tradição deuteronómica (D) entenderam a analogia, ou melhor, a continuidade que existia entre o Israel do deserto e o reino de Judá do século VII 4. Etapa do Exílio ou cativeiro da Babilónia. No ano 587 Jerusalém cai em poder dos babilónios, e com ela desmoronam-se os fundamentos da vida religiosa de Israel: a dinastia de David, a «terra prometida» e o Templo de Jerusalém. Os cinquenta anos do exílio vão ser a “época dourada” do livro escrito. Nestas circunstâncias históricas faz-se a redacção dos livros de Ezequiel e do Segundo Isaías. 5 5. Etapa do judaísmo Costuma chamar-se assim porque só voltam a Jerusalém e à «terra prometida» um «resto dos descendentes de Judá – os que formavam o Reino do Sul – graças ao decreto libertador do rei persa Ciro. Nesta etapa distinguiremos três períodos: persa, helenístico e macabeu. Período persa (538-333 a.C.) Período helenístico (333-63 a.C.) Período macabeu (até ao ano 175 a.C.) Os livros do NT e o seu aparecimento histórico O período de elaboração dos livros do NT é apenas de 50 anos (do 51 ao 100). Antes da fixação por escrito da mensagem de Jesus de Nazaré, é preciso distinguir duas etapas de tradição oral. A primeira corresponde aos ensinamentos, com palavras e factos, do próprio Jesus; a segunda é a tradição oral acerca de Jesus, vivida, testemunhada, celebrada e defendida pela Igreja primitiva. Devemos a São Paulo os primeiros escritos cristãos. - entre os anos 51-52 escreve as duas cartas aos Tessalonicenses; - entre 54-58, as chamadas «Grandes epístolas»; duas cartas aos Coríntios; aos Gálatas e aos Romanos; - à volta do ano 62 as chamadas «Cartas do Cativeiro»: Filipenses, Colossenses, Efésios e Filemon; - entre os anos 65-66, as «Cartas Pastorais»: as duas de Timóteo e a de Tito. - A data mais provável para a carta aos Hebreus é à volta do ano 65. - A redacção definitiva dos três primeiros Evangelhos, Mateus, Marcos e Lucas, chamados Sinópticos, deve situar-se no período que vai do ano 65 ao 80, se bem que prevaleça a opinião de que foram escritos antes do ano 70; - As «Cartas católicas» têm uma data muito variável: a de Santiago entre os anos 50-60, e a de Judas à volta do ano 70; a primeira de Pedro no ano 64, enquanto que a segunda é possível que seja por volta do ano 80. - O livro dos Actos dos Apóstolos é situado, por uns no ano 53 e por outros no ano 80. - E o grupo dos escritos joaninos fecha a colecção dos escritos do NT com o Apocalipse, três Cartas e o Quarto Evangelho entre os anos 85-100. 6 O Magistério da Igreja pronunciou-se em defesa da verdade histórica dos Evangelhos, a 21-IV-1964, com a Instrução Santa Mater Ecclesia; no nº 2 deste documento expõem-se os três momentos básicos da redacção escrita dos Evangelhos, recolhida pelo Catecismo da Igreja Católica assim: vida e ensinamentos de Jesus, tradição oral e evangelhos escritos. Conclusões Esta rápida olhadela à história da elaboração dos livros bíblicos facilita-nos descobrir, em parte, o «mistério» da sua origem e leva-nos a concluir que as sagradas Escrituras não foram redigidas «de uma assentada», mas sim elaboradas ao longo de um milénio. Além disto recordamos que a Bíblia não é precisamente um livro, pelo contrário é uma pequena biblioteca de 73 livros, redigida por autores muito diversos e através dos mais variados géneros literários. A Palavra de Deus, dirigida sem excepção a todos os homens de todos os tempos e sem se despojar do selo desta dimensão universal, toma formas literárias próprias de uns autores humanos (inspirados) e do seu meio histórico e cultural. Finalmente, a Sagrada Escritura é um livro «popular», surgido de um povo e destinado a um povo (o antigo e o novo Israel): é, portanto, o livro que está vivo numa comunidade crente que caminha pela história. Aula 3 A integridade da Bíblia As línguas, o texto e a sua história Os textos originais (autógrafos) da Bíblia – tal como os da literatura clássica antiga – perderam-se, não se conserva nenhum. Conservamos alguma fonte documental? Sim, conservam-se manuscritos, cópias dos originais escritas à mão ainda que fosse mais exacto dizer, “cópias de cópias”. As línguas da Bíblia Existem hoje traduções da Sagrada Escritura praticamente em todas as línguas da humanidade; estas são, certamente, necessárias e úteis, mas insuficientes. Os livros sagrados do AT foram escritos em três línguas: hebreia, arameia e grega. A maior parte, em hebreu; uma parte mínima em arameu e dois deles, em grego, Sabedoria e segundo livro dos Macabeus. À excepção do original “arameu” do Evangelho de São Mateus, o NT foi todo escrito em grego. Contudo, o grego bíblico, não é o grego clássico, mas sim a língua popular – a que se falava na rua, poderíamos dizer -, chamada koiné (comum ou vulgar), e foi usada no Oriente desde a época de Alexandre Magno (século IV a.C.). 7 Os manuscritos, fontes documentais da Bíblia O material para escrever, desde os tempos antigos foi muito variado. Os assírio-babilónicos, por exemplo, empregavam tábuas de argila fresca em que imprimiam sinais com um ponteiro de madeira ou de metal, que deixava uma impressão em forma de cunha - o nome de cuneiforme – e que punham depois a secar ao sol ou ao lume para que endurecessem. Primitivamente, as folhas de papiro ou de pergaminho uniam-se umas às outras em rolos. O costume de coser as folhas por grupos de quatro páginas – quaternion, palavra de que procede caderno –, e que depois se agrupavam num volume, data já do século II a.C. e foi particularmente propagada pelos cristãos. Para escrever sobre o papiro usava-se como instrumento o caule da mesma planta; nos pergaminhos usava-se o tálamo, talo de junco afiado e com uma fenda na ponta. Até ao século XV d.C. com a intervenção e aparição da imprensa, a transmissão dum texto antigo fazia-se por cópias sucessivas, pelo que o texto corria perigos múltiplos; Os escribas ou copistas eram muitas vezes negligentes, ignorantes …ou tão desejosos de fazer as coisas bem que chegavam a “melhorar” à sua maneira o original que transcreviam. Por exemplo, a distância entre a redacção e o primeiro manuscrito conhecido de qualquer outro texto antigo é enorme: 1 400 anos para as tragédias de Sófocles, bem como para Ésquilo; Aristófanes e Tucídides; 1 600 para Eurípedes e Catulo; 1 300 para Platão e 1 200 para Demóstenes. Os textos bíblicos não são uma excepção: não possuímos nenhum autógrafo bíblico, conhecemo-los pelas suas transcrições sucessivas, das quais conservamos muitos milhares de manuscritos. Entre os anos 1947 e 1956, com a descoberta dos manuscritos bíblicos nas cavernas de Qumrán, na ribeira ocidental do Mar Morto, abre-se um novo capítulo na história do texto hebraico do AT. Conhecem-se mais de 5 000 manuscritos gregos do NT. Costumam classificar-se em três grandes categorias: os papiros, os minúsculos e os maiúsculos ou unciais. Os papiros, pela sua antiguidade, são muito importantes na história da transmissão do texto. O fragmento mais antigo conhecido do NT, foi encontrado no Egipto e contém uns versículos do Evangelho de São João (Jo 18, 31-33a. 37b-38); datado do primeiro quarto de século II é o papiro Ryland, que ostenta o nome do seu descobridor. 8 Os minúsculos são todos posteriores ao século IX a.C. Os mais importantes são os códices ou maiúsculos, entre os quais se destacam os seguintes: 1 2 3 4 Vaticano (B), do século IV Sinaítico (S), também do século IV Alexandrino (A), já é do século V Códice de Efrém (C), também do século V História do texto hebraico do Antigo Testamento Podemos dividir o longo caminho percorrido pelo texto hebraico através das diversas transcrições em três períodos: o das flutuações do texto, o da fixação definitiva do texto de consoantes, e, por último, o da fixação definitiva das vogais. O primeiro termina no século I a.C. e caracteriza-se por se encontrarem muitas variantes; quer dizer, diferenças entre umas e outras cópias. Trata-se, contudo, de modificações acidentais breves que nunca alteram a substância do texto. O segundo desenrola-se entre os séculos I a.C. e VI d.C. O Hebreu, como em geral as outras línguas semitas escrevia-se só com as consoantes. O terceiro abrange os séculos VI a X d.C., quando se fixam as vogais e outros sinais necessários para uma leitura segura e correcta do texto sagrado. Este trabalho foi realizado por uns tradutores ou copistas que se conhecem com o nome de masoretas (de masar, transmitir, ensinar). A partir do século X, o Texto Masorético foi sempre escrito segundo as normas da masora, quer dizer, todo o conjunto de anotações críticas relativas ao texto sagrado feitas pelos masoretas. A primeira edição católica foi a incluída na Bíblia Poliglota Complutense, patrocinada pelo Cardeal Cisneros e publicada em 1520. História do texto grego do Novo Testamento Os livros do NT e as suas cópias foram escritos em papiro; e mais tarde em pergaminho. A transmissão do texto grego do NT realizou-se de duas maneiras: directamente, em códices e papiros; e indirectamente, através das versões citadas pelos Santos Padres e pelos escritores eclesiásticos. 9 Já dissemos que conservamos mais de 5 000 manuscritos gregos do NT e, além disso, ultrapassam os 10 000 o número de manuscritos de versões antigas e são milhares as citações dos Padres da Igreja. Um tal número de fontes documentais faz com que as variantes sejam mais de 150 000. Crítica textual Em relação aos clássicos da antiguidade, a Bíblia encontra-se numa posição de indiscutível vantagem. A crítica textual é a disciplina científica que reconstitui o texto original a partir das fontes documentais disponíveis. Pio XII já em 1943 escreve sobre a importância desta ciência «para compreender com rectidão os escritos dados pela inspiração divina». Os critérios seguidos para identificar o texto mais fiel ao original, podem reduzir- se – pensando sobretudo no NT – a três: Critério geográfico Critério genealógico Critério literário-estilístico O texto bíblico, tal como hoje o possuímos, é, em definitivo, bastante sólido e seguro para servir de base à fé. As versões da Bíblia Hoje lemos a Bíblia em traduções; só os exegetas é que recorrem ao texto original, à grande edição hebraica de Rudolf Kittel (1951), ou à famosa Bibelanstall de Estugarda (1967-1977), e tratando-se das edições gregas aos textos cristãos de Bover (1959), Merk (1064), Nestle-Aland (1979), etc., onde se recolhem os resultados da crítica textual. Entre as versões gregas a mais célebre é a dos Setenta (LXX), feita no Egipto nos séculos III-II a.C. Assim que apareceram os textos evangélicos fizeram-se numerosas traduções para outras línguas, em particular para duas mais usadas nas comunidades cristãs – o siríaco e o latim. Entre as versões latinas merece atenção especial a Vulgata, de São Jerónimo. São Jerónimo viveu entre os anos 347 a 420, primeiro em Roma e depois numa ermida solitária de Belém. 10 A Vulgata de São Jerónimo foi, até aos nossos dias, a referência principal de outras versões e a que os cristãos leram durante muitos séculos. O êxito da Vulgata supôs o abandono das antigas traduções latinas. . Dez dias antes da conclusão do Concílio Vaticano II, Paulo VI instituiu a Comissão Pontifícia para a Neovulgata, com a finalidade de dotar a Igreja com uma edição latina da Bíblia para o uso litúrgico, que tivesse em conta o progresso dos estudos mais recentes. Conclusões Deus, que quis deixar-nos uns livros sagrados para que pudéssemos conduzir a vida para Ele, velou amorosamente para que, apesar das vicissitudes da história humana, a Igreja conservasse íntegro o depósito da Revelação contido na Sagrada Escritura. A sua integridade é um facto histórico, que podemos conhecer não só pelo testemunho do Magistério eclesiástico, mas também seguindo a história do texto sagrado, sobretudo através dos manuscritos das versões antigas. A Bíblia oficial da Igreja Católica de rito latino é a versão latina da Neovulgata, promulgada por João Paulo II (1979). Portanto não podemos considerar a Neovulgata como uma versão mais, fruto do trabalho de “peritos”, pois goza da garantia da autoridade da Igreja. Aula 4 Livros inspirados e verdade da Bíblia Palavra de Deus em palavras humanas A Bíblia é o momento chave e privilegiado da Revelação divina, mas uma revelação que Deus realiza na História, como vimos ao estudarmos a redacção do texto e a elaboração dos livros. A Bíblia como literatura: uma literatura inspirada, normativa, santa e humana. A Bíblia como literatura inspirada Quando se diz que os livros bíblicos são inspirados quer-se expressar que a própria palavra de Deus nos chega através de umas palavras humanas. O carácter sagrado dos livros que integram a Bíblia deve-se mais à sua origem do que ao seu conteúdo ou à sua forma literária: a sua elaboração foi realizada sob um influxo 11 sobrenatural de Deus – inspiração bíblica -, e desta maneira todo o escrito é verdadeiramente revelação divina ou Palavra de Deus. A inspiração divina da Bíblia, verdade de fé A Igreja Católica considerou sempre a inspiração bíblica como uma verdade de fé. A inspiração é um facto sobrenatural e só se pode assumir pela fé. A Igreja reconhece a existência destes livros inspirados como uma verdade de fé recebida do próprio Jesus Cristo, através dos Apóstolos. Muitas das intervenções do Magistério da Igreja ao longo da história surgiram em defesa desta verdade: primeiro contra as diferentes heresias dualistas; depois contra os erros protestantes; e mais recentemente, opondo-se aos erros do protestantismo liberal e do modernismo. Este Magistério encontra o seu fundamento mais sólido 1. no testemunho da própria Escritura; 2. no testemunho dos Santos Padres; Natureza da inspiração bíblica Numa primeira aproximação, podemos já definir a inspiração bíblica como um carisma – graça sobrenatural – dado por Deus a certos homens no seio do Antigo Israel e da Igreja dos tempos apostólicos, para consignar por escrito tudo e só o que Deus quer comunicar aos homens. Por conseguinte, as diversas faculdades que o autor humano exercita ao escrever, receberam este influxo carismático, que eleva as suas possibilidades meramente humanas e assim «tudo o que afirmam os hagiógrafos afirma-o o Espírito Santo». Explicação teológica e bíblica 1. Teoria da causalidade instrumental Dentro das explicações teológicas da inspiração, destaca-se de um modo especial a denominada teoria da causalidade instrumental, baseada na doutrina de São Tomás de Aquino que, ao estudar a natureza das graças gratis data – especialmente a profecia –, expõe que o sujeito receptor das mesmas actua como instrumento divino. 12 Em todo o instrumento pode distinguir-se uma dupla acção: a especificamente sua, por exemplo, corresponde ao machado cortar por causa do seu próprio fio; e a acção instrumental, em virtude do agente que a utilize, do lenhador, no caso do machado. Para além do influxo no entendimento tem que se considerar a moção divina da vontade, de modo que os hagiógrafos transmitam a mensagem divina com absoluta fidelidade. E para completar a explicação da natureza íntima da inspiração bíblica, é necessário referir-se também uma assistência sobrenatural às faculdades do hagiógrafo que contribuem para a acção de redigir o livro. 2. Teoria da obra literária Os livros inspirados ensinam a verdade A verdade da Bíblia provém da veracidade e Deus, que a inspirou como autor principal. Veracidade e inerrância bíblicas Quando é contemplada como ausência do erro, a veracidade dos livros sagrados denomina-se inerrância bíblica. Nos livros bíblicos não se podem separar partes atribuídas a Deus e partes atribuídas ao homem, mas tudo é, ao mesmo tempo, Palavra de Deus e linguagem humana. Portanto o próprio Deus é o garante de que não há erro nas afirmações da Sagrada Escritura. Se a Bíblia foi inspirada, devemos pois concluir que é verdadeira. E como toda ela está inspirada – quer dizer, não existem partes, por mais pequenas que sejam, não inspiradas -, toda ela é verdadeira. Na Bíblia, em que sentido se pode e deve falar da «verdade»? Durante o século XIX, com o progresso das ciências, o problema foi-se tornando cada vez mais difícil. A apologética católica defendeu-se recorrendo ao concordismo, que consiste em demonstrar que a Bíblia é verdadeira porque todos os seus dados se podem pôr de acordo com os das ciências positivas e históricas. Alguns autores defenderam que a inerrância ou ausência de erro da Bíblia abrange só o referente à fé e à moral. 13 É mais exacto dizer que «a Bíblia não é toda ela verdade», do que dizer que «a Bíblia não contém erros», porque não se trata de uma verdade científica, nem histórica, mas sim salvífica, ordenada à salvação. Na Bíblia tudo é verdadeiro sob este ponto de vista, segundo a perspectiva religiosa do plano salvífico de Deus. Conclusões A Bíblia revela agora não só o seu valor de caminho único que conduz a Jesus Cristo, mas também a sua origem: o Espírito de Deus, o Espírito de Iavé do AT que é o próprio Espírito Santo. Aula 5 O Cânone das Escrituras Tradição, Igreja e Bíblia Os livros sagrados chamam-se também canónicos: eles são o «cânone» ou a «lei» da verdade revelada por Deus. A Tradição apostólica estabeleceu o cânone da Bíblia, quer dizer, reconheceu como inspirados e sagrados aqueles livros, não depois de longas investigações científicas mas sim sob a condução do Espírito Santo que nela actua e a leva ao conhecimento da verdade plena. A Bíblia como literatura normativa Como é que sabemos quais são os livros inspira dos? Ou quais os critérios válidos para discernir que um livro bíblico é inspirado? A Igreja discerniu os escritos que devem ser conservados como Sagrada Escritura guiada pelo Espírito Santo e à luz da Tradição viva que recebeu. Um livro diz-se inspirado por ter Deus como autor principal. Um livro chama-se canónico, porque, sendo inspirado, a Igreja – através do seu Magistério infalível – o reconheceu como tal. A canonicidade de um livro supõe pois a inspiração: é canónico porque é inspirado e não o contrário. 14 O cânone dos livros inspirados, regra de fé Entende-se por cânone bíblico o conjunto de todos os escritos que formam a Bíblia e que, pela sua origem divina, constituem a sua regra da fé e costumes; quer dizer, o catálogo completo dos escritos inspirados. Por circunstâncias históricas denomina--se a maioria dos escritos bíblicos como protocanónicos porque foram tidos como inspirados sempre e em todas as comunidades cristãs: para os distinguir de uns poucos – sete de cada Testamento – que se chamam deuterocanónicos. A Bíblia foi considerada desde o princípio como norma de fé e vida para os cristãos; e por causa disto, se denominará rapidamente cânone ao conjunto dos livros inspirados. História do cânone do AT O discernimento do cânone da Sagrada Escritura foi o ponto de chegada de um longo processo. 1. Na tradição judaica. – O elenco dos livros sagrados era classificado pelos judeus, já no tempo de Jesus Cristo, em três partes: A Lei, os Profetas e os Escritos. 2. O problema dos livros “deuterocanónicos” do Antigo Testamento. – Os livros deuterocanónicos do AT são: Tobias, Judite; Sabedoria, Baruc, Eclesiástico, 1 e 2 Macabeus; e, além disto, fragmentos de Ester (10, 4–16, 24) e Daniel (3, 24-90; 1314). Estes escritos foram reconhecidos como sagrados desde o século II a.C., quando se concluiu a tradução grega dos Setenta. 3. A tradição apostólica e o cânone do Antigo Testamento. – A fixação definitiva do cânone do AT aparece já no século IV, com a declaração do Concílio regional de Hipona (ano 393), em que interveio o próprio Santo Agostinho. Posteriormente, o cânone dos livros inspirados consta da declaração do Concílio ecuménico de Florença (1441) e na definição infalível do Concílio ecuménico de Trento (1546). História do cânone do Novo Testamento Como já ficou exposto, os livros do NT foram escritos entre os anos 50 e 100 da nossa era e sobre o seu cânone houve sempre uma tradição constante e firme. Depois da morte do último apóstolo, São João, cessou toda a revelação pública e já não aparece nenhum outro livro inspirado ou canónico. 15 Os Testemunhos históricos mostram que entre os finais do século I e finais do século II se fez paulatinamente a selecção e o catálogo dos livros inspirados. Na segunda metade do século II chega a formar--se um «corpus» de quatro Evangelhos e outro paulino de pelo menos 10 cartas; os outros escritos do cânone do AT ainda não eram considerados importantes. Esta codificação foi, ao que parece, feita em Roma, como o testemunha o famoso Cânone de Muratori dos finais do século II, descoberto em 1740. Os livros “deuterocanónicos” do NT Contudo, entre os séculos III e V surgiram dúvidas limitadas geograficamente, sobre a inspiração de sete deles: a Carta aos Hebreus – especialmente no Ocidente - , o Apocalipse e a maior parte das chamadas “Cartas católicas”: a de São Tiago, a segunda de São Pedro, a segunda e a terceira de São João e a de São Judas. São os livros deuterocanónicos do Novo Testamento. As dúvidas prolongaram-se até ao século VI mas convém precisar quantas e quais eram estas dúvidas. Todas estas dúvidas não tardaram em ser absorvidas pelo peso da Tradição. Critérios de canonicidade O dado revelado definido pela Igreja, é certamente o critério supremo e infalível para conhecer a inspiração e a canonicidade dos livros da Bíblia. É necessária a proposição do Magistério eclesiástico porque a inspiração e canonicidade de um livro é um facto sobrenatural que só se pode conhecer por revelação divina, através da Igreja. A definição dogmática de cânone bíblico encontra-se na IV sessão do Concílio de Trento, de 8 de Abril de 1546. 1) Critérios católicos. – Podemos destacar resumidamente três critérios objectivos que guiaram a Igreja para reconhecer quais são os escritos inspirados do NT: 1. Critério da origem apostólica 2. Critério da ortodoxia 16 3. Critério da catolicidade. 2) Critérios protestantes. Outros critérios subjectivos Os livros apócrifos Chama-se apócrifo a um livro de autor desconhecido que tem certa afinidade com os livros sagrados no argumento ou no título mas ao qual a Igreja Universal nunca reconheceu autoridade canónica por não ser inspirado. Têm um certo valor porque mostram ideias religiosas e morais mais ou menos difundidas nos tempos próximos de Jesus Cristo e porque recolhem dados da Tradição que não se encontram nos Evangelhos; por exemplo, os nomes dos pais da Santíssima Virgem, a sua Apresentação no Templo, etc. O termo grego apokrypha, da raiz Kryphein (ocultar), no seu sentido primitivo significava coisas ocultas, ou mais exactamente livros ocultos ou secretos. Conclusões O único critério válido universalmente, claro e infalível é a revelação divina conservada na Tradição viva da Igreja e proposta infalivelmente pelo Magistério eclesiástico. Juntamente com a Tradição sagrada a Igreja teve sempre e continua a ter as Sagradas Escrituras como regra suprema da sua fé. Aula 6 Santidade e unidade de ambos os testamentos A unidade dos livros sagrados A origem divina dos livros inspirados garante a sua veracidade. Tratemos agora da santidade da Bíblia, reflexo da santidade divina e da unidade do seu conteúdo, que garante a harmonia íntima entre todos os seus ensinamentos. A Bíblia como literatura sagrada A santidade da Bíblia, expressa de modo negativo, significa imunidade de todo o erro moral; quer dizer, não se pode encontrar nos livros inspirados nada que repugne 17 As Escrituras – dizemos com São Tomás – são santas – por três motivos: pela sua origem divina, porque foram inspiradas pelo Espírito Santo; pelo seu conteúdo, pois ensinam uma doutrina moral santa e sem mancha; e pelo seu fim, porque nos santificam ao conduzir-nos à santidade. Embora alguns episódios que se contam nos livros sagrados não sejam moralmente irrepreensíveis, o que de verdade importa é o juízo que faz o autor sagrado desses factos sob o carisma inspirativo divino. Perfeição moral dos livros bíblicos Embora os dois Testamentos sejam santos e estejam livres igualmente de todo o erro moral, podemos afirmar uma maior perfeição moral do NT – por se tratar do regime definitivo da lei evangélica – sobre o Antigo. A unidade da Sagrada Escritura A Sagrada Escritura é una, por muito diferentes que sejam os livros que a compõem, por causa da unidade do desígnio de Deus em Cristo. Para compreender e aprofundar o «mistério», desta unidade, uma vez bem escolhido o ponto de partida – o NT é a plenitude do AT – o percurso pode fazer-se de duas maneiras: 1. Através dos conteúdos 2. Por meio da relação e ordenação de ambos os Testamentos. Ou seja, com duas sentenças dos Santos Padres: A primeira de São Jerónimo quando diz que «o rio das Escrituras tem duas margens, que são o AT e o NT», e em ambas as margens está plantada a árvore que é Cristo; A segunda é a famosa sentença agostiniana: «o Novo Testamento está oculto no Antigo e o Antigo patente no Novo». O Novo Testamento, plenitude do Antigo A manifestação suprema, completa e definitiva da revelação de Deus reside em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem e enviado aos homens. 18 Unidade de conteúdos de ambos os Testamentos A mensagem bíblica da Criação (AT) e da Redenção (NT) forma parte de um único projecto, não só porque são, respectivamente, a etapa inicial e a culminação desse projecto, mas também porque se insinua nos textos do AT – lidos à luz do NT – a acção do Filho e do Espírito Santo Em resumo, Jesus Cristo revela-nos Deus como Pai de uma nova maneira. Depois da morte do último apóstolo, São João, cessou toda a revelação pública e já não aparece nenhum outro livro inspirado ou canónico. Leitura do Antigo Testamento a partir do Novo As palavras e os acontecimentos do AT estão presentes no NT: 1) Palavras: promessa-cumprimento. – No AT há muitos textos cujo sentido literal é o de anunciar ou prometer da parte de Deus a Nova Aliança que se cumpre no NT. 2) Actos: Preparação-realização. – O Antigo fala do Novo Testamento não só com palavras, mas também com factos, com os acontecimentos que narra. Conclusões Em síntese, podem contemplar-se em três direcções a unidade e harmonia dos dois Testamentos, direcções essas que se entrelaçam mutuamente: 1. O AT anuncia e promete aquilo que o NT testemunha como cumprido; 2. O AT apresenta situações e realidades que são assumidas pelo NT enchendo-as de um sentido novo, como a Lei, a oração, a Liturgia e outras realidades vetero-testamentárias. 3. O AT oferece tipos e prefigurações das realidades neo-testamentárias, de enorme valor e actualidade especialmente para a catequese baptismal. A Igreja serviu-se de todas estas figuras desde a época apostólica para mostra a unidade do Antigo e Novo Testamento. Como as verdades que a Bíblia contém se ilustram e iluminam mutuamente verifica-se uma perfeita harmonia em todo o conjunto. Este “princípio hermenêutico” – interpretativo – bíblico conhece-se por analogia da fé bíblica. 19 Aula 7 A interpretação da Bíblia Docilidade ao Espírito e fidelidade à Igreja Como Deus fala ao homem à maneira dos homens, para uma interpretação correcta dos textos bíblicos, «é preciso estar atento ao que os autores humanos quiseram verdadeiramente afirmar e ao que Deus quis manifestar-nos mediante as suas palavras». Portanto «para descobrir a intenção dos autores sagrados é necessário ter em conta as condições do seu tempo e da sua cultura, os géneros literários usados naquela época, as maneiras de sentir, de falar e de narrar aquele tempo». A Bíblia como literatura humana A Bíblia é um livro de uns autores humanos e, ao mesmo tempo, inspirado porque Deus nos fala nele. Chama-se hermenêutica ao conjunto de princípios e métodos de interpretação que nos permitem entender com exactidão uns textos e os seus contextos. O intérprete divino da Bíblia A docilidade ao Espírito Santo é o prólogo de qualquer disposição correcta do intérprete humano, porque para fazer das palavras inspiradas são precisas a guia e a ajuda do Espírito. Esta docilidade ao Espírito Santo produz outro fruto no intérprete humano: a fidelidade à Igreja. A Encarnação e a interpretação da Palavra O mistério da Encarnação do Verbo é o mistério da união do divino com o humano em Jesus Cristo. Se a palavra de Deus se torna numa linguagem humana toda a interpretação cristã da Bíblia tem o seu apoio mais firme e o seu foco mais luminoso em Cristo, a Palavra que se tornou carne. Disposições do intérprete humano da Bíblia Quais as disposições pessoais que há-de cultivar qualquer intérprete da Bíblia? 20 A virtude da fé é o primeiro meio, e insubstituível, para conhecer a Palavra de Deus escrita; assim o exige a própria natureza do sobrenatural. Também é especialmente necessária a virtude da humildade, porque o Espírito Santo transmite-nos a sua verdade mediante a Igreja e estabeleceu nela um Magistério. Em resumo, todo o intérprete da Escritura deve ser homem de ciência, mas também, e, precisamente como exegeta (o teólogo), homem de oração. Métodos e abordagens para a interpretação bíblica O documento A interpretação da Bíblia na Igreja da Pontifícia Comissão Bíblica de 21-IX1993, fala de métodos e abordagens. Método histórico-crítico. Método exegético – conjunto de procedimentos científicos postos em acção para explicar os textos. Chama-se aproximações à procura orientada segundo um ponto de vista particular. Outros métodos de análise literária desenvolvida pelas ciências modernas da linguagem; em concreto o retórico, o narrativo e o semiótico. Planos na interpretação bíblica Plano histórico-literário. Plano teológico. Plano actualizante. O método Histórico-crítico (Plano histórico-literário) Etapas: 1. 2. 3. 4. 5. 6. Crítica textual. Análise literária. Crítica literária. Crítica dos géneros. Crítica das tradições. Crítica da redacção. 21 Os sentidos da Escritura santa (Plano teológico) 1) Sentido literal. – É aquele que foi directamente expresso pelos autores humanos inspirados. 2) Sentido espiritual. – Poder-se-ia definir, compreendido segundo a fé cristã, como o sentido expressado pelos textos bíblicos, quando são lidos sob a influência do Espírito Santo no contexto do mistério pascal de Cristo e da vida nova que d ‘Ele provém. 3) Sentido pleno. – Define-se como um sentido profundo do texto, querido por Deus, mas não claramente expresso pelo autor humano. A Bíblia, livro de todos os tempos (Plano actualizador) A palavra bíblica dirige-se universalmente a toda a humanidade no tempo e no espaço e o fim da interpretação da Bíblia é contribuir para esta missão. Actualizar a mensagem bíblica supõe dar dois passos importantes: traduzir a sua linguagem para a nossa; actualizar a sua mensagem ao nosso tempo. Critérios hermenêuticos da Exegese católica O Concílio Vaticano II assinala três critérios para uma interpretação da Sagrada Escritura conforme o Espírito que a inspirou: 1. Prestar uma grande atenção ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura. 2. Ler a Escritura na Tradição viva de toda a Igreja, porque a Escritura – segundo um adágio dos Santos Padres – está mais no coração da Igreja do que na mentalidade dos livros escritos. 3. Ter em conta a analogia da fé entendida como a coesão das verdades da fé entre si e no projecto global da Revelação. Erros actuais No nosso tempo verificam-se dois pontos de vista hermenêuticos defeituosos, hipercrítico e fundamentalista. O ponto de vista hipercrítico converte a tarefa exegética – crítica, textual, estudo linguístico, análise literária, etc. – num fim. Os pontos de vista fundamentalistas, se bem que movidos pela fidelidade à Palavra de Deus, não aceitam plenamente as consequências da Encarnação, menosprezam os trabalhos dos exegetas e pretendem converter estes estudiosos em simples tradutores – 22 ignorando que qualquer tradução é uma tarefa exegética – e devido a isto distanciam-se do sentido exacto dos textos bíblicos. Convém recordar que a Palavra eterna, Jesus Cristo, encarnou numa época precisa da história, num meio social e cultural concretos e quem deseja compreendê-la deve procurá-la humildemente onde se tornou perceptível, aceitando a ajuda necessária do saber humano. Conclusões A interpretação científica da Bíblia – Exegese bíblica – é uma tarefa indispensável para a Igreja e para o mundo. Finalmente, torna-se oportuno – e inclusivamente necessário – recordar que os exegetas têm de ouvir as reflexões e palavras dos santos para descobrir a sua mensagem. Aula 8 As ideias mestras da Antiga Aliança Mensagem salvífica da preparação evangélica Vamos procurar, de forma muito sintética, as chaves da mensagem bíblica de salvação, como preparação na Antiga Aliança, e como cumprimento na Nova. Os livros do AT, embora contenham elementos imperfeitos e passageiros, dão testemunho da pedagogia maravilhosa do amor salvífico de Deus, cujo fim principal é a preparação da vinda de Jesus Cristo, Redentor universal. «História sagrada», história da salvação Nós, os cristãos, veneramos o AT como verdadeira Palavra de Deus; é uma parte da Sagrada Escritura – a Antiga Aliança não foi revogada – da qual não podemos nem devemos prescindir, porque os seus livros inspirados por Deus conservam um valor permanente. Os livros do AT narram, em geral, as relações mantidas por Deus com determinados homens, em determinados locais e em circunstâncias também concretas. Pedagogia divina e preparação evangélica Esta «selecção» permite-nos descobrir as chaves do AT para a preparação evangélica. Por um lado, a eleição, as promessas, a aliança e a Lei são fios que se entrecruzam na trama do Pentateuco e que atravessam de cima a baixo todo o AT. Por outro lado, a terra prometida – conquista e posse –, a instituição da monarquia, a construção do Templo e a pregação profética, são novos fios que se entrecruzam com os anteriores na trama das 23 narrações dos outros livros históricos e proféticos do AT. Finalmente, a reflexão dos sábios nos livros sapienciais, completam o enriquecimento e o quadro da preparação evangélica. A Eleição Iavé, o Deus uno e único, actua na história humana escolhendo um povo para ser instrumento de salvação dos outros povos. A primeira lição da Torá consiste numa Eleição, fruto do libérrimo amor divino, em que se nos fornece a primeira “chave” para interpretar o desenvolvimento da história salvífica de toda a Bíblia e, em particular, do Pentateuco. As Promessas A eleição é acompanhada das promessas. As promessas, ao princípio, referem-se directamente à posse do país onde viveram os Patriarcas – a Terra Prometida -, mas implicavam outras coisas: significam que existe entre Israel e o «Deus dos pais» relações singulares, únicas. Porque Iavé chamou Abraão para desempenhar uma missão peculiar e na sua vocação prefigura-se a eleição de Israel. Iavé fez da sua descendência um povo e adoptou-o como seu povo, numa eleição puramente gratuita, por um desígnio amoroso, concebido desde a criação e continuado no tempo, apesar das infidelidades dos homens. Já a partir das origens, a todos os descendentes de Adão lhes é permitida a libertação e a vitória sobre o mal; depois a Noé, após o dilúvio, é-lhe garantida e prometida uma nova ordem no mundo. Depois vem a promessa divina ao patriarca Abraão, renovada aos seus descendentes Isaac e Jacob, até que abrange todo o povo nascido a partir deles. Conduzido por Moisés e resgatado do Egipto, renova-se a promessa ao povo, a terra dos pais: Israel é o povo de Deus entre as nações, simplesmente porque Deus assim o quis e só por isso Israel recebeu a Promessa, que atingirá o seu cumprimento definitivo em Cristo. A Aliança A eleição e as promessas estão garantidas e ratificadas pela Aliança. A parte central do Pentateuco é constituída pela Aliança de Deus com o seu povo tendo Moisés por mediador. Mas essa Aliança é um elo mais numa cadeia de alianças que começa em Noé – impropriamente com Adão e Eva no Paraíso – e continua com os patriarcas até Moisés. Israel considerar-se-á a partir de então, e com razão, o povo da Aliança. A Lei A Aliança traz consigo a Lei, que constituirá o conjunto de normas que o povo, por seu lado, deve cumprir para manter o seu pacto com Deus. Na etapa mosaica os livros do Êxodo, Números, Levítico e Deuteronómio contêm os dados básicos. Deus revela então a Moisés o seu nome: YHWH. É o chamado «tetagrama sagrado», lê-se Iavé e significa «Aquele que é». Daí para diante o monoteísmo será a primeira verdade da fé de Israel. 24 A Terra prometida Terminada a etapa mosaica, os livros do AT contam-nos uma história que é também história salvífica. Desde a morte de Moisés - finais do século XIII a.C. – o eleito é Josué, primeiro protagonista de uma longa história que chega até João Hircano – 135104 a.C. -; quer dizer, desde a entrada na Terra Prometida até à monarquia dos Macabeus. A história contada nos livros históricos – Josué, Juízes, Samuel, Reis; Crónicas, Esdras, Neemias e Macabeus – é uma história santa, marcada pela contínua intervenção de Deus nas vicissitudes do seu povo. O Reino ou reinado de Deus A promessa da posse da terra, indica veladamente a posse do Reino. A noção do Reino ou Reinado de Deus é outra das “chaves tipológicas” da Antiga Lei. Nos escritos do AT, destacam-se duas ideias: a Soberania de Deus sobre a criação inteira, e de modo especial sobre um povo que escolhe para si entre todas as outras nações. No AT, e em particular nos Salmos, é-nos revelada a soberania universal de Deus, embora fale mais da sua «soberania» que da sua condição de «soberano» ou «rei». Quer dizer. o Reino de Deus deve ser entendido como exercício do poder divino e da sua providência sobre os homens, Reinado de Deus no qual se realiza o seu plano de salvação. A Monarquia davídica É razoável que o povo já estabelecido na terra de Canaã, por influência dos povos vizinhos, deseje ter um rei que unifique as doze tribos. Iavé considera este desejo como uma rejeição da sua soberania e, através de Samuel, faz-lhes ver os inconvenientes da Monarquia. Mas o povo continua a suplicar um rei e, finalmente, Deus acede ao seu pedido. O rei em Israel é só um “ajudante de campo” de Deus, não é uma encarnação de Deus como no Egipto e na Babilónia, com a divinização do faraó ou do monarca. Iavé é o rei de Israel, e rei universal, Senhor dos céus e da terra. David é o fundador da nação israelita unida e independente. É verdade que esta situação não sobreviveu muito tempo ao seu fundador e a seu filho Salomão, mas David – a sua figura e a sua época – será sempre recordado como o rei ideal dos israelitas, referência principal do monarca messiânico e um dos grandes protagonistas da história da salvação, como Jacob, Moisés ou Josué. Os seus sucessores no trono serão também os ungidos de Iavé e o seu trono o trono de Iavé. O Templo 25 Salomão, filho de David, concluiu o projecto de seu pai e iniciou a construção do Templo por volta de 970 a.C. . Deus tinha ordenado a Moisés no deserto, a caminho da terra de Canaã, a construção do antigo Santuário portátil – onde se conservavam as Tábuas da Lei –. Era aí que se manifestava, de modo particular, a presença de Iavé no meio do povo, e era-lhe tributado o culto devido. Durante a conquista da Terra Prometida, o Santuário foi colocado em vários lugares – Guilgal, Siquém e Silo –, porque era desmontável de acordo com a situação nómada do povo. Só depois de David estabelecer a capital em Jerusalém, o rei concebeu a ideia de mudar para lá o santuário e acomodá-lo num grande templo de pedra. O Templo de Salomão – orgulho do povo judeu – foi completamente destruído pelas tropas de Nabucodonosor em 586 a.C. quando da deportação dos hebreus para a Babilónia. Depois do desterro, de regresso à Palestina, iniciaram-se as obras de reconstrução que, depois de inúmeras dificuldades, terminaram em 515 a.C. . Este segundo Templo foi denominado também de Zorobadel, por ter sido este rei davídico o principal impulsionador das obras. Nas suas linhas gerais era o mesmo que o de Salomão, mas muito mais pobre na sua ornamentação e construção. No exílio aprenderam a lição: Ezequiel vê a glória de Deus no desterro e compreende que Deus está presente em toda a terra e que recebe agradado o culto que sai do coração humano; o “templo” da terra não é senão uma imagem imperfeita do “trono” de Deus nos céus. O Exílio As previsões de Deus sobre a escolha do rei foram-se cumprindo, mas os reis davídicos foram-se esquecendo da Aliança e frequentemente violavam-na; eram rebeldes em relação aos mandamentos de Iavé e afastavam-se de Deus. Os profetas, guiados pelo Espírito de Iavé, lutaram muitas vezes contra a infidelidade dos reis, com duras e enérgicas ameaças. As suas profecias cumpriram-se, e os reis de Israel (Reino do Norte) e de Judá (Reino do Sul) serão deportados. O povo rejeitou a realeza de Iavé e no exílio sofrerá as consequências. O Messias O messianismo é outra das chaves do AT para poder entender a pedagogia divina na preparação evangélica. Os profetas aparecem no tempo da Monarquia davídica e sobrevivem ao exílio. Grande parte da luta para manter a fé monoteísta – o Deus único, vivo e verdadeiro – no povo eleito, foi confiada por Deus aos profetas. Esta fé no auxílio do único Deus foi uma magnífica ajuda para fomentar e desenvolver a esperança bíblica do Messias, mas dificilmente pôde fundá-la ou criá-la. Esta esperança deve-se procurar, em último caso, na própria relação divina. O messianismo é um fenómeno que surge no seio do judaísmo, anterior ao cristianismo. A Sabedoria 26 Os livros do AT que os judeus chamaram Escritos ou Ketubim, e que nós denominámos sapienciais, vêm completar a preparação da chegada do Evangelho. Com efeito, se a Lei apresenta a relação do homem com Deus e dos homens entre si, e os Profetas vêm, sobretudo, recordar o cumprimento da Lei e a fidelidade à Aliança, explicando as suas aplicações à vida, os Escritos sapienciais desenvolvem os conteúdos da recta conduta do homem perante Deus e com os outros homens, não já como normas morais, mas como reflexões religiosas. A sabedoria eleva o nível das suas reflexões e aborda-se o misterioso problema do governo de Deus. A sabedoria humana enfrenta-se e compara-se com a sabedoria divina. É este precisamente o tema do livro de Job. A partir de agora a auto-crítica da sabedoria aprofundará ainda mais os ensinamentos dos profetas. Termina reconhecendo que a última palavra da sabedoria está em Deus. Chega-se assim à conclusão de que a revelação divida do AT se pode compendiar na noção de sabedoria. Uma boa amostra é a identificação que se verifica no livro de Sirácida (Eclesiástico) entre Lei e Sabedoria: a Lei é a plenitude da Sabedoria, o sábio não tira já a sua doutrina da experiência e observação quotidianas, mas dos textos sagrados do AT. Desta forma chegamos ao fim do último dos livros sapienciais e no qual o autor do livro da Sabedoria incorpora também o saber profano à sabedoria recebida pela revelação de Deus. Conclusões O AT lido à luz da fé cristã, não só não perde nada do seu excelso sentido religioso, como é capturado com maior profundidade. Primeiro nos tempos apostólicos, e depois na sua tradição, a Igreja descobre e esclarece a unidade do plano divino nos dois Testamentos graças à tipologia. Os acontecimentos vividos por Israel, sendo reais e pessoais daquele povo, são tipos ou figuras dos nossos. Como acreditamos que Deus actua na história, reconhecemos que esses acontecimentos existem também em função das realidades vindouras que são Cristo e a Igreja. Acontece o mesmo que numa maqueta dum edifício: o que contemplamos de antemão é a sua realização. Pois assim também no AT o que podemos ver é a vida de Cristo e a nossa. Aula 9 A Nova Aliança de Cristo Salvação e história no Novo Testamento Toda a história bíblica é uma história de salvação, uma empresa de redenção realizada por Deus em Cristo. A Bíblia, força de Deus para a salvação do que crê, é uma mensagem de salvação em Jesus Cristo, que não chega de repente à humanidade, mas gradualmente através da história e dos livros do AT, tempo da preparação evangélica. Os escritos do NT apresentam-nos a Boa Nova, verdade definitiva da revelação divina e 27 têm como protagonista central Jesus Cristo, assim como o início da Igreja sob o impulso do Espírito Santo. Plenitude dos tempos e Nova Aliança de Jesus Cristo O NT recolhe a mensagem de esperança do AT na plenitude dos tempos. A finalidade da eleição de Israel – ser instrumento de bênção para todos os povos da terra –, é cumprida no Salvador surgido deste povo eleito. Israel é figura de Cristo pois Ele é o eleito de Deus – o Filho e o Amado – para trazer a salvação a todos os homens, e com Ele, e através d’Ele, o número de eleitos ultrapassou de maneira inimaginável, qualquer limitação. A mensagem salvífica dos Evangelhos Os Evangelhos são, sem dúvida, o coração de todas as Escrituras «por ser o testemunho principal da vida e doutrina da Palavra feita carne, nosso Salvador». Foram sempre objecto da máxima honra na vida da Igreja: na sua liturgia, na pregação dos pastores, na meditação dos fiéis, no estudo dos seus teólogos e nos escritos dos Santos Padres e do Magistério dos Bispo e dos Papas. A Igreja no livro dos Actos O livro dos Actos apresenta a salvação em Jesus Cristo através da Igreja. Ao longo do relato da primeira propagação do livro do Evangelho – tanto de judeus como pagãos –, Lucas apresenta-nos o cumprimento da obra apostólica que Jesus confiou aos seus Apóstolos: ser suas testemunhas «até aos confins da terra». Os protagonistas escolhidos para este livro são precisamente Pedro e Paulo. O livro dos Actos dos Apóstolos é, no seu conjunto, uma «eclesiologia narrativa», porque narra o estabelecimento da nova Igreja e a propagação inicial do Evangelho depois da Ascensão de Jesus Cristo. Lucas, historiador e teólogo, apresenta Jesus como o cume da história da misericórdia de Deus para com os homens. A salvação nas cartas de São Paulo O epistolário do NT recolhe a mensagem de salvação aplicada ao tempo presente. Considerado a partir de uma perspectiva social, cultural e histórica, encontra-se entre dois mundos: o grego e o judaico. Paulo pertence a estes dois âmbitos tão diferentes: sem renunciar a nenhum deles, empreende o trabalho de fazer uma síntese adequada. A fé em Cristo morto e ressuscitado, como único caminho de salvação, é, nas «Grandes Epístolas» tema de confrontação com as outras duas vias salvíficas propostas até então: a «Lei» dos judeus, e a «Sabedoria» dos gregos. 28 Salvação e vida cristã nas Cartas católicas Em conjunto com as epístolas paulinas, e para as distinguir destas, existe o grupo de sete cartas conhecidas por «Católicas»: a de São Tiago, as duas de São Pedro, as três de São João e a de São Judas. Pelos seus conteúdos, situam-se entre o pensamento Paulino e judeu-cristão, apoiados ambos na doutrina de Jesus Cristo. Iluminam a vida e os costumes da primitiva comunidade cristã e proporcionam indícios do seu desenvolvimento doutrinal. O seu estilo vivo está pleno de citações e alusões ao AT; há também algumas referências a escritos apócrifos e a tradições populares. Salvação e tempo futuro no Novo Testamento O Apocalipse de São João é o fecho da Bíblia, iluminando a figura de Jesus Cristo glorioso, de sua Esposa, a Igreja triunfante, e exortando a esperança na vida eterna. O «tempo futuro» em geral e a consumação, em particular, como transcende toda a experiência humana, não pode ser descrito directamente, mas só de forma analógica, por meio de comparações e imagens. Da mesma forma que as profecias do AT não eram fáceis de entender até ao seu cumprimento em Jesus Cristo, assim as profecias do NT não se compreenderão totalmente até à Parusia ou Segunda Vinda do Senhor. Conclusões A mensagem salvífica da Nova Aliança decorre na história e estrutura-se à volta de três eixos: Jesus de Nazaré, a Igreja e a Parusia. O livro dos Actos dos Apóstolos relata a vinda do Espírito Santo no dia de Pentecostes. Sob a sua acção assistimos à primeira expansão da Igreja entre judeus e gentios. A Igreja será o instrumento de salvação para tornar realidade o Reinado de Deus na vida presente. As Cartas paulinas e católicas ensinam-nos como alcançar a salvação de Cristo no «tempo da Igreja». Finalmente, o Apocalipse consola-nos nas tribulações, e mantém viva a fortaleza e esperança na vitória final, ao profetizar a segunda vinda de Cristo. Aula 10 A escritura na vida da Igreja Bíblia e vida cristã A Bíblia na vida da Igreja A Sagrada Escritura é considerada pelos cristãos, não só como um conjunto de documentos históricos que avalizam a sua origem ou explicam os seus fundamentos, mas também como livros inspirados que contêm a Palavra de Deus, dirigida no tempo presente à Igreja e ao mundo inteiro. 29 A unidade dos cristãos e os Livros sagrados Se o ecumenismo – como movimento específico e organizado – é relativamente recente, a ideia da unidade do povo de Deus, que este movimento se propõe restaurar, está profundamente enraizada na própria Escritura. Foi, logo de início, uma preocupação constante do Senhor, contida na pregação apostólica e especialmente por São Paulo. A Bíblia define o fundamento teológico do trabalho ecuménico. A primeira comunidade apostólica continua a ser um modelo concreto e visível. A Sagrada Escritura na Liturgia A Liturgia é o lugar privilegiado, não o único, em que os fiéis se aproximam dos Livros Sagrados. Logo nos primeiros tempos da Igreja, a leitura das Escrituras formou parte da liturgia cristã, parcialmente herdeira da liturgia da sinagoga. Na Santa Missa, «a liturgia da Palavra compreende “os escritos dos profetas”, quer dizer, o Antigo Testamento, e «as memórias dos apóstolos», ou seja, as suas cartas, e os Evangelhos; depois a homilia que exorta a receber esta palavra como aquilo que é verdadeiramente, Palavra de Deus. O Saltério é, sem dúvida, o livro em que a Palavra de Deus se converte em oração do homem. A liturgia das horas, em particular, recorre ao livro dos Salmos para fazer rezar a comunidade cristã. A Sagrada Escritura, alma da Teologia A Sagrada Teologia apoia-se, como em perene fundamento, na palavra de Deus escrita, ao mesmo tempo que na Sagrada Tradição, e nela se consolida firmemente e se rejuvenesce continuamente, investigando, à luz da fé, toda a verdade encerrada no mistério de Cristo. As Sagradas Escrituras contêm a palavra de Deus; por isso, o estudo das Sagradas Páginas há-de ser como a alma da Sagrada Teologia. Em todo o caso, a reflexão teológica, é reflexão sobre o dado revelado, que pertence à grande tradição da Igreja – Escritura e tradição oral – guardada e conservada pelo Magistério. Neste sentido diz-se que a Sagrada Escritura é a alma da Teologia. Bíblia e oração A Lectio divina, como prática, está testemunhada, no ambiente monástico, a partir de épocas muito longínquas. Trata-se da leitura, individual ou comunitária, de uma passagem da Escritura, recebida como Palavra de Deus, e que se vai transformando, sob a moção do Espírito Santo, em oração, meditação e contemplação. A meditação é, antes de mais, procura, porque a alma quer compreender o porquê e o como da vida cristã para aderir mais e responder ao que o Senhor pede. 30 Os Livros sagrados na catequese O ensino e a explicação da doutrina cristã, fim da catequese, tem como primeira fonte a Sagrada Escritura. Apresentada no contexto da Tradição, é ponto de partida, fundamento e norma da praxis catequética. A catequese pretende conseguir uma compreensão da Bíblia e orientar a sua leitura proveitosa, para descobrir a verdade divina que contém, e suscitar uma resposta, o mais generosa possível, à mensagem que Deus dirige através da sua Palavra à humanidade. A pregação e a Sagrada Escritura Da mesma forma podemos falar do ministério da pregação, que deve recolher dos textos sagrados um alimento espiritual adaptado às necessidades actuais dos fiéis cristãos. A finalidade da pregação é difundir a fé cristã, como uma linguagem viva e ardente, de maneira que os ouvintes se sintam motivados a praticá-la, com a graça de Deus. Trata-se de instruir o entendimento na Palavra de Deus, provocar o afecto do ouvinte ao ouvi-la e mover a sua vontade para que se decida a viver e a amar o aprendido. A Bíblia e a inculturação Não podemos terminar sem tecer uma breve consideração sobre a obra apostólica da inculturação. «É uma tarefa difícil e delicada – escreve João Paulo II –, já que põe à prova a fidelidade da Igreja ao Evangelho e à Tradição apostólica na evolução das culturas». O fundamento teológico da inculturação é a convicção de fé de que a Palavra de Deus transcende as culturas nas quais se expressa, e tem a capacidade de se propagar em todas as culturas, de modo que pode chegar a todos os homens e mulheres de todos os tempos. Conclusões «É tão grande o poder e a força da Palavra de Deus, que constitui o sustento e o vigor da Igreja, firmeza de fé para os seus filhos, alimento da alma, fonte límpida e perene da vida espiritual». Na vida corrente de um cristão, a Sagrada Escritura é uma referência fundamental, onde de forma viva e verdadeira o Deus em que crê – feito carne e feito palavra –, para alimentar a nossa vida espiritual. O Senhor chamou-nos, aos católicos, para que o sigamos de perto e, nesse Texto Santo, encontras a Vida de Jesus; mas, além disso, deves encontrar a tua própria vida. Aprenderás a perguntar tu também, como o Apóstolo, cheio de amor: “Senhor, que queres que eu faça?”… – A Vontade de Deus! – ouvirás na tua alma de modo terminante. – Pois, toma o Evangelho diariamente, e lê-lo e vive-o como norma concreta. Assim procederam os santos». 31