A fundação de São Luis do Maranhão e o projeto urbanístico do Engenheiro Militar Francisco Frias de Mesquita. Luiz Phelipe de Carvalho Castro Andrès ................................................ S ão Luis, a capital setecentista do meio norte brasileiro, que assim foi batizada em 1612 pelos franceses, na metade do século dezenove, havia se tornado uma metrópole, sendo a quarta cidade mais importante do Império Brasileiro. Em 1997, foi reconhecida pela UNESCO como uma das grandes obras da humanidade na América Latina. Na origem desta trajetória, encontramos a contribuição decisiva do engenheiro militar Francisco Frias de Mesquita. As primeiras notícias de fundação de uma cidade na costa do Maranhão são de 1540. Informes resgatados de vários documentos da época nos dão conta de que nesse ano Ayres da Cunha organizou uma grande expedição a partir de Lisboa que se dirigiu à costa maranhense com intuito de desenvolver a capitania que fora concedida a João de Barros. ANO XIII / Nº 23 O próprio relato de João de Barros, grande historiador de sua época, atesta que esta expedição naufragou logo na chegada. Consta que os sobreviventes desta tragédia conseguiram alcançar a grande ilha loca-lizada na desembocadura confluente de três grandes rios, hoje denominados Mearin, Munin e Itapecuru, na vastíssima região do litoral meio norte brasileiro, nas bordas do oceano Atlântico, a dois graus abaixo da linha do Equador, e aí fundaram a vila de Nazareth. No entanto, até o momento nenhuma pesquisa chegou a encontrar detalhes como alguma imagem ou pelo menos um mapa que pudesse indicar o local exato do referido assentamento. 41 Já em 1612, Daniel de La Touche, Sieur de La Ravadière, e seu companheiro e sócio François de Razily, tenentes-generais de Luis XIII de França, a serviço de Maria de Médicis, com o propósito de implantar a “França Equinocial”, aportaram na mesma ilha e contando com a ajuda dos seus primitivos habitantes, os índios Tupinambás, fundaram, em 08 de setembro, o Forte e a Vila de São Luis, em homenagem ao Rei Santo Luís IX. Entretanto, já em 1615, os portugueses, sob o comando de Jerônimo de Albuquerque, expulsaram os franceses e assim não houve tempo para que os mesmos construíssem edificações duradouras. E, dessa forma, Portugal reassume a ocupação do território, ficando a cargo do engenheiro militar Francisco Frias de Mesquita, além de projetar as fortalezas que iriam consolidar o seu domínio, traçar um plano urbanístico para a cidade. Verifica-se aí uma característica comum aos demais episódios de fundação de cidades e vilas brasileiras: a participação decisiva de engenheiros militares no traçado urbano original, bem como a estreita relação entre a localização das fortalezas e o primeiro núcleo de habitação. A partir de 1619, os primeiros colonos açorianos, além de fundar a primeira Câmara Municipal, implantaram culturas de cana-de-açúcar e de algodão. Em 1621, a Coroa Portuguesa criava o Estado do Maranhão, sediado em São Luis, com administração separada do Estado do Brasil, com sede em Salvador. Durante mais de 150 anos, dividiu com a cidade de Belém do Pará o privilégio de ser a capital do Estado Colonial do Grão Pará e Maranhão, mas foi após 1775, com a criação da Companhia do Comércio pelo Marquês de Pombal, que experimentou um acentuado período de enriquecimento 42 Mapa da província do Maranhão. Desenho de 1615, de João Teixeira Albernaz incluído no manuscrito do “Livro de Razão do Estado do Brasil”, de Diogo de Campos Moreno. e de sofisticada urbanização, tornando-se, ainda na primeira metade do século XIX, “a quarta cidade mais importante do império bra-sileiro, ao lado de Rio de Janeiro, Recife e Salvador” (Spix e Martius,1828). O engenheiro militar concebeu o plano no formato de quadras regulares, ruas ortogonais no sentido dos pontos cardeais, e este desenho serviu como um plano diretor para a expansão local. Ao mesmo tempo, o Regimento deixado pelo Capitão-Mor Alexandre de Moura ao seu sucessor, Jerônimo de Albuquerque, em 9 de janeiro de 1616, “Urbs S. Ludovici” impresso em 1647 em Amsterdã para ilustrar os feitos do Conde Maurício de Nassau, sobre GHVHQKRGHDWULEXtGRD)UDQV3RVWHTXHUHÀHWHR projeto geométrico de Frias de Mesquita, de 1615. ANO XIII / Nº 23 “Maragnon” onde se retrata o canhoneio dos holandeses contra a Fortaleza de São Luis. Fonte: do livro de determinava a construção de uma casa como modelo para as que viessem a ser feitas. De toda forma, a cidade confirmava o modelo de assentamento adotado pelos colonizadores portugueses. A Cidade Alta, administrativa, militar e religiosa, e a Cidade Baixa, marinheira e comercial, que, asso-ciadas à tipologia dominante das edificações surgidas mais tarde, a partir do final do século XVIII, conferem a São Luis sua forte conotação lusitana. Menos de três décadas após a presença dos franceses, o Maranhão foi invadido pelos holandeses de Maurício de Nassau que, a partir de Recife, tomam São Luis em 1641, dela sendo expulsos menos de três anos depois. Embora breve e descrita como violenta e destrutiva, devemos à ocupação holandesa o único registro gráfico do que teria sido o projeto de Frias de Mesquita, cuja traça original também jamais foi encontrada. O que há de testemunho desta concepção é o que herdamos do período dos batavos ou seja, um mapa e uma perspectiva atribuídos a Franz Post, no livro de Barlaeus. ANO XIII / Nº 23 Desse plano subsistem precisamente as principais referências, como é o caso das edificações situadas no território interior da muralha: o Palácio do Governo e a Inten-dência, atual Palácio La Ravardière, sede da Prefeitura de São Luis. O projeto de urbanização do Eng. o Frias de Mesquita foi tão determinante para a evolução urbana de São Luis, que até mesmo as áreas da cidade que vieram a se consolidar, cerca de duzentos anos depois, já durante o século XIX, ainda obedeciam ao mesmo padrão reticulado uniforme de ruas estreitas que variam de sete a dez metros de largura e às dimensões de quadras que não passam de 80 X 80 metros. Acrescente-se a este o fato de que desde os primórdios estabeleceu-se uma comunicação mais estreita entre a capitania do Maranhão e a Europa do que com o resto do Brasil, em função das navegações favorecidas por determinadas correntes marítimas e ventos, os quais facilitavam a aproximação entre o meio norte brasileiro e a península ibérica. 43 A combinação de trabalho escravo com o lucro da exportação se materializou com maior ênfase nos principais pontos de escoamento, as sedes dos entrepostos comerciais, cidades portuárias, onde se localizaram os proprietários de terras e os comerciantes. O crescimento acentuado da produção de algodão também se deve a fatores externos como o fato de que este passou a ganhar valor no mercado internacional em decorrência das guerras de independência dos Estados Unidos da América do Norte (em 1776 e 1816) assim como a guerra de secessão (1861), que desorganizaram a exportação da matéria prima naquele país e obrigaram os ingleses a importá-lo do Maranhão em plena “Revolução Industrial”. Grande parte das riquezas oriundas das extensões pastoris dos sertões escoava-se pelo porto, este reunia, portanto, as vantagens de ser capital, sede administrativa e entreposto comercial, produzindo-se aí as maiores e mais expressivas manifestações de urbani-dade. Uma elite de comerciantes por aqui se estabeleceu em função destas rendosas atividades de comércio de exportação, e veio daí a necessidade de construir, em São Luis, um ambiente urbano capaz de reproduzir padrões de conforto aos quais seus pro-prietários estavam acostumados nas cidades europeias. Construtores e mestres de obras vindos diretamente de Lisboa ou do Porto passaram a utilizar-se de materiais importados, como as cantarias de Lioz, azulejos e serralherias, trazidos com a dupla função de servir também como lastro dos navios a vela. Há, neste caso em especial, uma inte-ressante relação com os métodos utilizados 44 Praça Benedito Leite, 1908. Foto: Gaudêncio Cunha na reconstrução rápida de Lisboa após haver sido destruída pelo terremoto de 1755 e que foi empreendida sob a liderança de Pombal, no mesmo período em que São Luis e Alcântara iniciavam seu crescimento. Padrões da azulejaria trazida de Portugal para revestir as fachadas de São Luis. ANO XIII / Nº 23 Conjunto arquitetônico da Rua Portugal, evidenciando a repetição de elementos construtivos das fachadas. Tais procedimentos construtivos implicavam, principalmente, padronizar elementos estruturantes em pedra, como vergas, portais e balcões, e pré-fabricar as cantarias em grande quantidade, para a sua aplicação simultânea em dezenas de edificações. Esta providência trouxe como resultado uma repetição intensiva de padrões, uniformidade de gabaritos e modulação de vãos. Repetição esta que culmina por caracterizar a arquitetura produzida sob a égide do Marquês de Pombal e que é vista na chamada baixa pombalina de Lisboa e, também, na arquitetura maranhense do mesmo período. Transformada em porto comercial importante da região do meio norte brasileiro, São Luis abastecia de algodão de boa qualidade os teares da Inglaterra, em plena revolução industrial e, enriquecendo, tornou-se também conhecida como Atenas Brasileira por causa de seus intelectuais. Famílias abastadas enviavam seus filhos para estudar na Europa nas melhores universidades de Portugal ou da França, os quais, ao retornarem, logo se destacavam no cenário nacional como jornalistas, escritores e poetas. ANO XIII / Nº 23 Os casarões, salvo as adaptações ao clima equatorial, em tudo lembravam aqueles construídos em Lisboa na mesma época. O Teatro São Luis (hoje Teatro Arthur Azevedo), construído em 1817, recebia companhias teatrais da Ópera de Índio potiguar Paris. Além do que, possuía dimensões expressivas com seus 740 lugares para uma população que não ultrapassava os 35 mil habitantes. Por volta de 1835, São Luis chegou a ser considerada a quarta cidade mais im- Cartão postal de época, evidenciando a urbanidade de 6mR/XLVQR¿QDOGRVpFXOR;,; 45 Vista da cidade a partir da ponta de São Francisco. Gravura de Ricardo Canto, 1860). portante do império brasileiro ao lado de Rio de Janeiro, Salvador e Recife, conforme atestam os depoimentos dos viajantes que percorreram nossas cidades: São Luis merece, à vista de sua população e riqueza o 4o lugar entre as cidades brasileiras. As casas de 2 e 3 pavimentos são na maioria construídas de grés de cantaria e a cômoda disposição interior corresponde ao exterior sólido, de conforto burguês. Para Robert de Avée Lallemant A impressão não poderia ter sido mais favorável. O mais belo Domingo estendia-se sobre altas colinas, banhadas de três lados pelo mar com bonitos, magníficos mesmo, edifícios, (...) Devo dizer que, depois das três grandes cidades comerciais, Rio, Bahia e Pernambuco, a cidade do Maranhão merece indu-bitavelmente a classificação seguinte e tem realmente esplendida aparência. Seu traçado em linha reta, embora com 46 subida e descida, e sua limpeza logo impressionam de modo sumamente agradável. Creio poder dizer que nenhuma cidade do Brasil conta proporcionalmente ao seu tamanho, tantas casas bonitas, grandes e até apalaçadas como o Maranhão. O suprimento de água potável era assegurado através da Companhia das Águas que abastecia a população com 6 fontes (do Ribeirão, das Pedras, do Bispo, do Mamoin, do Alecrin e do Marajá) e seis chafarizes localizados nas principais praças. Uma obra de engenharia admirável, de galerias subterrâneas com seus paredões laterais suportando abóbodas de berço feitas de tijoleiras de cerâmica, garantiu durante os séculos, a drenagem das fortes chuvas equatoriais. Já no início do século XIX, a cidade possuía um sistema de iluminação pública, com lampiões e óleo combustível. Em 1863, foi contratada a Companhia de Iluminação a Gás do Maranhão que instalou novo sisANO XIII / Nº 23 tema e passou a utilizar o gás hidrogênio por tubulação subterrânea toda em cobre. No final do século XIX, foi instalado um sistema de telefonia funcionando na cidade. A genial inovação tecnológica de Grahan Bell, apenas uma década após o seu lançamento mundial, na Exposição Internacional de Filadélfia em 1876, foi inaugurada no Rio de Janeiro e logo depois em Belém do Pará e São Luis do Maranhão, graças ao fato de que o Imperador Pedro II esteve presente àquela mostra internacional, gostou do invento e o adquiriu. Também no final do século XIX um cabo telegráfico submarino, ligava diretamente São Luis à Inglaterra, operado por outra empresa inglesa, a Western. Em 1868, a cidade passou a contar com um sistema de transportes urbanos, os bondes ou “tramwais”, inicialmente movidos por tração a sangue, como se denominavam em função do uso de animais como cavalos e burros. Hoje, seu centro histórico abrange 270 hectares e 5500 edificações e é reconhecido como um dos maiores conjuntos de arquitetura colonial de origem portuguesa datado dos séculos XVIII e XIX. Entretanto, durante o Bonde elétrico ANO XIII / Nº 23 ,PDJHPGR*DV{PHWUR)RQWH&81+$*DXGrQFLR Álbum São Luis 1908. século XX, até a década de 70, esteve ameaçado de arruinamento, como consequência da profunda recessão econômica que se abateu sobre a região do meio norte brasileiro. A partir de 1979, o Governo do Estado do Maranhão, em parceira com o IPHAN e a Prefeitura, iniciou a implantação de um Programa de Preservação e Revitalização que gradativamente assegurou a reabilitação do setor que foi mais afetado pelo abandono. Trata-se da parcela de 60 hectares que foi tombada em 1974 pelo IPHAN. Realizando inventários, estudos, pesquisas, projetos e obras, em sucessivas etapas de intervenções, o Programa executou um conjunto de intervenções que incluíram a recuperação da infraestrutura, a começar pela retirada dos postes de concreto e da fiação de energia elétrica e telefonia e pela sua substituição por novas redes subterrâneas e sistemas de iluminamento com lampiões. 47 Vista atual do Cais da Sagração, Fortaleza de São Luis, e Palácio dos Leões. Ao mesmo tempo, procedeu-se à recuperação dos sistemas de água, esgoto e drenagem, com a reconstituição dos pavimentos originais de pedra das ruas e calçadas. Desta forma recuperando-se também a paisagem urbana do século XIX. Simultaneamente, foram asseguradas a restauração e adaptação de dezenas de sobrados históricos antes arruinados, para usos contemporâneos de conteúdo social e por sua localização estratégica, capazes de contribuir para a reanimação sócio-econômica do bairro. Assim apresenta, entre suas realizações, a instalação de escolas profissionalizantes ou de nível técnico e superior, de centros culturais como museus, teatros, galerias de arte, e de núcleos de cultura popular e de criatividade. Ao mesmo tempo, promove a recuperação de equipamentos que favorecem o uso coletivo e a convivência da comunidade, como as praças, becos e escadarias e os mercados populares da área. 48 Projetos de Habitação no Centro His-tórico foram realizados com a restauração e adaptação de cinco grandes sobrados com 35 apartamentos e 15 lojas nos pavimentos térreos, para consolidar a alternativa do uso misto residencial/comercial, como fator preponderante na reabilitação da área, pelo seu potencial de associar os interesses da preservação arquitetônica com os de natureza social e econômica. E, finalmente, ações nas áreas de segu-rança pública, sinalização e trânsito, (todo o bairro da Praia Grande foi reservado para circulação exclusiva de pedestres), con-tribuem para que a área também tenha se tornado objeto de visitação, não só de turistas, mas principalmente do cidadão maranhense e, em especial, da classe estu-dantil que surge como nova aliada na defesa do patrimônio cultural. Na origem desta trajetória secular está o gênio do engenheiro Frias de Mesquita, criador do traçado geométrico que resistiu ANO XIII / Nº 23 incólume até os nossos dias e que direcionou a evolução da cidade e sobre o qual se ergueu um conjunto de arquitetura urbana dos mais sólidos, obra admirável de arquitetura urbana que em 1997 mereceu o reconhecimento e o título de patrimônio mundial da UNESCO. O engenheiro militar português, Francisco Frias de Mesquita, nascido em 1578, estudou arquitetura em Lisboa e com apenas 25 anos veio para o Brasil com a grande responsabilidade da função de Engenheiro-Mor, aqui permanecendo por 32 anos. Além de sua contribuição como projetista também combatia como soldado, tendo participado das lutas pela expulsão dos franceses do Maranhão. Trabalhador incansável, foi o autor de vários projetos de fortalezas no litoral norte e nordeste do Brasil, dentre os quais citamos em 1608 a Fortaleza da Laje em Recife, em 1613, a Fortaleza dos Reis Magos em Natal, Em 1614, o Forte de Santa Maria de Guaxenduba como estratégia para expulsão dos franceses e domínio definitivo do território pelos portugueses. Após a expulsão dos franceses do Maranhão, já em 1617, se desloca para a costa fluminense para projetar e orientar a construção do Forte de São Mateus, na barra da lagoa de Araruama, próxima da Vila de Cabo Frio, recém fundada. O engenheiro Frias de Mesquita foi também autor de projetos de arquitetura religiosa, sendo o mais notável, o do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, no mesmo ano em que trabalhou em Araruama. Já ANO XIII / Nº 23 6LWXDomRGR&HQWUR+LVWyULFRGH6mR/XLVDQWHVGDLQWHUYHQomRHDSyV em 1618, volta ao Nordeste para projetar e orientar a construção, na costa da Paraíba, da Fortaleza de Santa Catarina de Cabedelo e, em 1622, o Forte do Mar em Salvador que mais tarde foi denominado Forte de São Marcelo. Fica evidente por este breve resumo de sua obra, a importância da contribuição do Engenheiro Militar Francisco Frias de Mesquita não somente como autor dos 49 Vista da Praça João Lisboa com os trilhos de bondes. projetos, mas no acompanhamento de sua execução, que por sua função estratégica de defesa, vieram assegurar a posse e a consolidação do território colonizado pelos portugueses, o Brasil. Herança que nos foi legada e que por sua vasta extensão territorial onde se abrigam imensas riquezas naturais, nos confere a nós brasileiros, ao mesmo tempo, o privilégio de a possuirmos como nossa pátria, mas também como um atributo de imensa responsabilidade perante o mundo, na defesa intransigente e preservação deste patrimônio para as futuras gerações . MSc. Engo Luiz Phelipe de Carvalho Castro Andrès Ex-Coordenador do Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São Luís. 50 ANO XIII / Nº 23