crítica e humanismo no renascimento

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CRÍTICA E HUMANISMO NO RENASCIMENTO*
1 — A edição crítica nunca foi característica da ciência literária
portuguesa. Apesar dos esforços da escola de D. Carolina Michaêlis,
são ainda poucos os exemplos entre nós desse tipo de múltipla investigação, o que constitui, sem dúvida, um sinal da fragilidade da nossa
actividade científica. Isto sem desprestígio para o que, de carácter
parcelar ou não, já se tem realizado, incluindo, evidentemente, a contribuição de estrangeiros...
Se a realidade actual é, genericamente, esta, podemos adiantar
desde já que nos anos quinhentistas do nosso Humanismo não era
melhor. Na realidade, em Portugal o movimento editorial no séc. xvi
viveu à margem da edição crítica.
O texto que se vai seguir não pretende ser uma análise das características formais e técnicas da edição crítica e da filologia dos séculos xv
e xvi ; nem tão pouco pretende abordar essa outra questão que seria
a das realizações editoriais portuguesas nesse campo l. O objectivo
que se tem em mente pôr em evidência consiste no pensamento de que
* Texto de uma conferência produzida na Associação Portuguesa de Estudos Clássicos em Março de 1976, revisto para publicação.
1
Não esquecendo outra bibliografia, principalmente catálogos, parece-nos conveniente chamar a atenção para os trabalhos e investigações de José de Pina
Martins, «Livros quinhentistas sobre o amor. Apostila bibliográfica», in Arquivos
tio Centro Cultural Português, Paris, I (1969), p. 80, «Para a História da Cultura
Portuguesa do Renascimento: A Iconografia do Livro Impresso em Portugal do
Tempo de Durer», ibidem, vol. V (1972), p. 80, «O Livro português no reinado de
D. Manuel I», in Panorama, Lisboa (1969), n.° 23/1V Série, p. 58, assim como a
organização e «Introdução» do Catálogo da Exposição Bibliográfica, Iconográfica e
Medalhistica de Camões. Biblioteca Nacional, Lisboa 1972. Veja-se ainda o recente
trabalho de Jorge Borges de Macedo, «Livros impressos em Portugal no Século XVI.
Interesses e Formas de Mentalidade», in Arquivos do Centro Cultural Português,
Paris, IX (1975), Homenagem a Marcel Bataillon, p. 183.
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JORGE
ALVES
OSÓRIO
a edição crítica, para alem de motivações mais restritamente filológicas, foi uma resposta a problemas e questões que pairavam no horizonte do Humanismo renascentista. Em certa medida, poderá dizer-se
ainda que a edição crítica vai ser aqui focada — pelo menos é esse
um intuito nosso
como sinal e como símbolo de uma mentalidade
e de uma sensibilidade formuladas, ambas, dentro do ideário humanista.
Em primeiro lugar, parece conveniente dizer que a edição crítica
assenta, fundamentalmente, na observação, comparação e classificação de variantes conhecidas de um texto. Costuma apontar-se,
mas pouco rigorosamente, Francisco Petrarca como o erudito laico
que mais cedo deu divulgação a esta faceta do saber literário, ou seja,
que mais cedo se preocupou com a determinação do texto mais legítimo através da comparação das variantes 2. Petrarca, no entanto,
já ia mais longe, e discutia o valor comparativo dos próprios manuscritos, ajudando a lançar as bases dessa difícil tarefa que é o estabelecimento das respectivas famílias 3.
A história foi um dos estudos favoritos de Petrarca 4 , entendida
como «historia rerum gestarum» na expressão de Lorenzo Valla 5 ;
por causa dela procurou activamente manuscritos, em especial de
Tito Lívio e de Plínio. Lia-os, anotava-os e corrigia-os; e, como sucedia por vezes no Renascimento, as guardas serviam-lhe também para
registar troca de correspondência com outros leitores eruditos 6. Estas
2
Sobre o assunto, vid. G. Billanovich, «1 primi umanisti c Pantichità clássica»,
in Classical Influences on European Culture A.D. 500-1500. Ed. by R,R. Borgar.
Gimbridgc University Press 1971, p. 57, Sobre Petrarca a bibliografia é imensa;
mas vale a pena referir Arnaud Tripet, Pétrarque ou la connnaissance de soi. Genebra
1967; J. Pina Martins, «Petrarca, esse primeiro moderno», in Arquivos tio Centro
Cultural Português. VI11 (1974), p. 45; G. N. J. Mann, «Petrarch and the transmission
of classical elements», in Classical Influences, ob. cit., p. 217.
-1 E a lição foi bem aprendida por Coluccio Salutati; numa página do De Fato,
a propósito da interpretação de Séneca moral, recorda como, perante as dificuldades
que lhe surgiam causadas pela corrupção dos manuscritos, foi recolhendo «muitos
codices... non modernis solum, sed etiam antiquis scriptos litteris»; citado de Eugénio
Garin, VUmanesimo Italiano, Bari 1970, p. 12. Vid. Remigio Sabbadini, Le Scoperle
dei Codici iatini e greci ne' secoli XIV e XV, edição anastática, Florença 1967,
vol. I, cap. II.
4
Cfr. Pierre Nolhac, Pétrarque et F Humanisme. Nouvelle édition, remaniée
et augmentée, Paris 1965, vol. II, cap. VI «Pétrarque et les Historiens romains».
5
Cfr. Francesco Adorno, «Di alcune orazioni e prefazioni di Lorenzo Valla»
in Rinasciniento, vol. V (1954), p. 191.
6
Nolhac, ob. cit., t. II, p. 19.
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25
e outras notas marginais testemunham, hoje, a cultura literária de
Petrarca, mas são, ao mesmo tempo, a manifestação de um ideário
que o Humanismo renascimental transformará em manifesto anti-medieval: a acusação lançada contra os séculos anterioTes, os tempos
«recentiores» na expressão de Erasmo, de haverem esquecido o latim
e, em consequência, terem barbarizado o saber literário.
Este é — assim o podemos considerar — um dos mais fortes
vectores doutrinários do Humanismo. A introdução da noção de
distância histórica entre o presente e os vários passados poderá ter-se
como uma das características da personalidade humanista 7 , mas,
evidentemente, não esgota toda a sua problemática. A importância
reconhecida ao texto antigo — que se reflecte inclusivamente no interesse pelas traduções e na consciência dos problemas que levantam 8 —
é sentimento arreigado principalmente nos círculos de homens doutos
que se atribuíam um sentimento de dignitas humana justificada não
pela linhagem genealógica, mas pela superioridade de cultura de que
estavam possuídos. Tsto patenleia-se frequentemente na epistolografia humanista, por onde abundam as referências directas às preocupações desses homens pela aquisição de edições de autores antigos,
pela busca de manuscritos, pelos comentários eruditos, sendo raríssimas as notícias sobre uma outra literatura, de divertimento geralmente cortesanesco ou similar, de que faziam parte, por exemplo,
obras como a Menina e Moça. Um nível intermédio, porém, cabia
à poesia culta, de filiação italiana, símbolo de bom gosto e de apurado
«juizo» crítico, de que são exemplos Boscán, Garcilaso, Sá de Miranda
e o seu séquito literário.
As edições críticas destinavam-se prioritariamente a tais homens
e, através deles, também a um público escolar frequentador dos colé7
Cfr. Léon — E. Halkin, Initiation à la Critique Historique, Parish 1973,
«Les catégories en Histoire».
K
A problemática da tradução, tanto do grego para latim, como de latim para
as línguas vulgares, já de si complexa, assumiu proporções maiores desde o momento
em que se descutia a questão da tradução dos textos sagrados. Sobre Erasmo,
cfr. por exemplo Margaret Mann Phillips, «Erasmus and the Classics», in Erasmus,
(vol. colectivo) ed. by T. A. Dorey, London 1970, pp. 7-8; Damião de Góis, que não
desconhecia opiniões literárias de Erasmo, abordou o mesmo assunto na sua tradução para português do De Senectute ciceroniano na dedicatória a D. Francisco de
Sousa, conde de Vimioso; igualmente se podem relembrar as explicações prévias
de Diego Gracián de Alderete na versão que fez dos Morales de PIvtarcho, na edição
de Salamanca 1571.
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JORGE
ALVES
OSÓRIO
gios humanistas que proliferavam pela Europa. Podemos dizer que
os grandes herdeiros deste movimento foram os Jesuítas, na segunda
metade do século.
Editar textos antigos respondia, porém, a dois objectivos: a divulgação do próprio texto, num aproveitamento das possibilidades que
a impressão tipográfica permitia, e a definição contrastiva da nova
cultura frente a uma outra que se apelidava depreciativamente de
«goda» ou «bárbara».
Todavia, de forma alguma se pode concluir que os protestos
entusiastas dos humanistas pelos textos antigos, cuja divulgação ia de
facto ao encontro de necessidades e expectativas de um público leitor
recentemente alargado, correspondem ao valor das próprias edições
que produziram. Frente à metodologia moderna da edição crítica e
da crítica dos textos, os humanistas aparecem, na quase totalidade dos
casos, como ainda largamente continuadores da tradição medieval 9 .
Na verdade, a metodologia humanista parece, neste campo, ter-se
caracterizado pelo princípio de que uma versão era de valor tanto
maior quanto mais antiga se afigurava, o que era sinal de que escapava,
cm mais larga medida, à corrupção barbarizante dos copistas medievais.
É sabido que este critério é em grande parte falacioso, e de tal se
deram conta alguns raros humanistas. A maioria, porém, tinha no
seu espírito a ideia de que o afastamento histórico traduzia uma qualidade mais alta do texto, de forma que um dos processos para recuperar
a primitiva pureza — a primitiva dignitas — consistia em depurá-lo
das corrupções dos «recentiores» através de um rejuvenescimento das
antigas «elegantiae latinae». O livro de Valia que toma este título
é o melhor exemplo desta metodologia, que se faz acompanhar da
apologia do grammaticus segundo o conceito de Quintiliano 10.
Contudo — e isto é outra das permanências medievais no Humanismo — mantinha-se em larga utilização a «leitura» alegórica do
9
Sobre esta matéria, vid. Giorgio Pasquali, Storia delia Tradizione e Critica
dei Testo, s.l. 19742, em particular o cap. IV «Recentiores, non deteriores. Collazioni umanistiche ed editiones principes». Cfr. E. J. Kenney, «The character
of humanist philology», in Classical Influences, cit., p. 119; Giuseppe Saitta // Pensiero italiano nelF Umanesimo e nel Kinaseimento, I — L'Umanesimo, Firenze (1961),
cap. IV.
10
Cfr. Giulio Vallese, «Novum Opus Novae Scholae»: Erasmo e il Ditplici Copia Verbomm ac Rerum», Estratto da Le Parole e le Idee, vol. X (1968), p. 12.
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27
texto antigo, de que um dos mais notáveis exemplos foram, sem dúvida,
as Adagiorum Chiliades de Erasmo.
Neste sentido, o Humanismo, colocado perante problemas que
pertenciam e haveriam de pertencer durante muito tempo ainda ao
horizonte cultural europeu — em especial o da legitimidade de o cristão se instruir pelos livros dos antigos pagãos —, tentou respostas
algo diferentes das que herdara dos lempos medievais; mas nem por
isso deixou, necessariamente, de prolongar muitas das linhas de força
que deles provinham. Ora no campo da transmissão dos textos,
por muito que os copistas medievais os tivessem adulterado por ignorância, não mereceriam, no entanto, ser acusados de uma forma tão
absoluta, pois é sabido que, pelo menos no que respeita à literatura
latina, foram eles que permitiram essa mesma sobrevivência dos textos.
Contudo, Petrarca e os humanistas em geral reagiam fundamentalmente
contra a prática de versões feitas nas oficinas das corporações de copistas que viviam normalmente para satisfação das necessidades das
grandes escolas; aí, na verdade, as infidelidades ao texto proliferavam
facilmente, o que constituía um motivo mais para a condenação da
escolástica. As raízes sociológicas e históricas da tipografia, ao que
parece, incluem também esta situação 1] . A arte da impressão tipográfica veio, na realidade, ao encontro dos desejos, que eram já necessidades, de um modo de entender e respeitar o texto, que, segundo os
humanistas, não existia nos tempos medievais.
II — Desejos e necessidades podem ser manifestações de uma
mesma problemática. Uma diferença, contudo, se notará, se se tiver
em atenção que o desejo aponta para o ideal, enquanto a necessidade
exige respostas mais imediatas e, às vezes, mais «prosaicas». A interpretação das próprias manifestações é tarefa delicada; no caso presente
do Humanismo, não basta apontar, como já se tem feito, preocupações
gramaticais e filológicas em alguns estudiosos medievais para ser legítimo fundamentar um recuo excessivo no seu tempo histórico. O que
é preciso é ter presente que o Humanismo implica uma forma mental
que, sendo em si mesma complexa por abranger sectores de natureza
ética, religiosa, estética, politica, filosófica, foi, por isso mesmo, distinta da forma mental «medieval».
11
Cfr. Lucien Febvrc et Henri-Jean Martin, L'Apparition du Livre, Paris,
19712, cap. II.
28
JORGE
ALVES OSÓRTO
O que caracteriza a. forma mentis do Humanismo é a apropriação
e utilização que os homens cultos faziam do conjunto de ideias que
estava por trás da designação de studia humanitatis. Dois pormenores
nos parecem significativos. Em primeiro lugar reparemos que os
termos humanismo e humanista, se bem que relativamente recentes,
provêm dessa expressão ciceroniana, o que coloca o conceito na órbita
da tradição filosófica de acentuado cariz moral c político. Em segundo
lugar, atentemos ainda que, quando os humanistas procuram uma
definição de «humanismo», citam quase sempre um mesmo passo
célebre de Aulo Gélio 12 ; é assim que procede um professor de retórica
em Coimbra, num discurso de 1538, onde, não dispondo ainda do
termo humanista, usa a expressão humanitatis peritus, como podia
usar tão só doctus.
Ora esta explícita dependência de Aulo Gclio aponta, ao que nos
parece, para uma faceta importante do Humanismo renascimental,
na medida em que nos coloca na presença do interesse pelas colecções
de histórias, sentenças, notas, curiosidades, antiguidades, que é possível
ver exemplificado quer no interesse também por Plínio, quer nas edições de dicionários, de colecções de provérbios e adágios, de antologias,
de tratados de natureza enciclopédica e histórica, de silvas, de miscelâneas em latim e em vulgar, quer ainda nas colecções de medalhas,
estatuetas, fragmentos de escultura grega e romana, etc. 13.
Tudo isto traduzia um modo de realização do Humanismo no
âmbito histórico. Significativo é, por isso, o título da obra de Lorenzo
Palmireno, «Vocabulário dei Humanista, compuesto por (...) donde
se trata de aues, peces, quadrúpedos, con sus vobablos de caçar y
pescar, metales, monedas, piedras preciosas, gomas, drogas, obras y
otras cosas que ai estudiosos en letras humanas ha menester, (...)
Hay tambien de antiguallas para entender a Cicerón, César y Virgilio» de 1569 »4.
12
Nodes Atticae, XII], 17; o passo aparece em muitos textos académicos,
como em Belchior Beleago, Oração sobre o Estudo de todas as Disciplinas, ed. de
Maria Helena da Rocha Pereira, Porto 1959 (vid. nota 67 na p. 91).
13
Cfr. André Chastcl, Ari et Humanisme à Florence au temps de Laurent le
Magnifique, Paris 1961, p. 34-35.
14
Vid. José de Pina Martins, Humanismo e Renascimento. A propósito de
um estudo de Ernst-Robert Curtius, sep. de Revista de Faculdade de Letras, Lisboa,
III série, n.° Il (1967), p. 28, n. 58.
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HUMANISMO
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RENASCIMENTO
29
Mas outras hipóteses de manifestações o Humanismo concebeu,
quer ao nível das realizações individuais, por onde passavam as polémicas— e tantas foram entre estes leitores de Luciano... —-, quer ao
nível das próprias correntes e suas localizações na geografia política
europeia. Uma dessas hipóteses era a que se realizaria numa atitude
crítica, a qual assumiu, entre outras formas, a de crítica filológica.
Um e outro nível, porém, entrecruzavam-se : as enciclopédias,
as antologias, as miscelâneas não se organizavam sem uma escolha,
portanto sem uma crítica. Pierre Noihac teve razão em salientar
que Petrarca, em quem se costuma ver o princípio do próprio Humanismo, quando copiou por sua mão em Verona as Episíolae ad Atticum,
procedeu a uma escolha, formando uma colecção unicamente de acordo
com os seus gostos ou as curiosidades do seu espirito l5 .
Não era pois, a quantidade que constituía o motivo de uma admiração, mas a maneira como certos textos, elementos, argumentos e
dados dos autores antigos eram utilizados: deviam ser vistos na convergência para um conceito que se poderá designar, com certo rigor,
por humanitas se lhe apusermos logo um outro — dignitas hominis.
Este último podia ter várias interpretações e consequências filosóficas,
mas, na grande generalidade dos humanistas, foi pensado em contexto
cristão, no sentido de que, se o saber literário —as elegantiores litterae —
era necessário a todas as condições dos homens, a sua grande utilidade
consistia em que «Harum studia ad pietatem, et humanitatem nos
informant, et divinarum atque humanaram rerum scientia instruunt»,
como dizia em 1548 Arnaldo Fabrício aos estudantes na abertura do
Colégio das Artes l 6 . Para o mesmo Fabrício, as letras apresentavam-se
como as perpectuadoras de todo um saber acumulado pelos homens
ao longo dos tempos l 7 . Nesta perspectiva, o saber literário era como
que a condição técnica que permitia não só o conhecimento na genera-
15
Vid. Pétrarque, ob. cit., I, p. 47. Noihac acentua que o Humanismo é
inseparável da valorização do livro: p. 65. Cfr. Pasquali, ob. cit., pp. 88 ss.
,(
> Arnoldi Fabrícii Aquitani de Liberalium Artium studiis oratio (...); vid.
Quatro Orações Latinas proferidas na Universidade e Colégio das Artes (Século XVI).
Publicação e prefácio de Luís de Matos, Coimbra 1937, pp. 1-23.
17
«Et certe nulla est hominum conditio, nulla fortuna, nullus ordo, qui earum
usu carere possit. Etenim sive in rerum cognitione, sive in actione versamur, sive
privata, sive publica negotia gerimus, littcrarum subsidio nobis opus est.»;
ibidem, p. 19.
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OSÓRIO
iidade, mas a pTÓpria compreensão ontológica do homem. Embora
fosse certo que a resposta a esta questão se podia dizer explicitada na
palavra divina, a verdade é que os humanistas introduziram uma ideia
nova, segundo a qual, para responder a tão fundamental questão,
o homem mais culto, o docíus ou o humanitatis peritus, — isto é o
homem mais digno — não devia utilizar os elementos — textos e tradições — corrompidos pela própria circunstância material histórica,
mas as fontes primitivas desse mesmo saber. A importância que
Erasmo, logo nos tempos seguintes à sua saída de Steyn, dá aos estudos
literários como principal actividade da sua vida 18 , ou o interesse que
revela, também na correspondência, pelo grego desde que visita a
Inglaterra, são exemplos, entre muitos outros, desta atitude.
Desta feita, o reuocare ad fontes tem um significado duplo: em
sentido vertical, apontando para uma penetração no tempo histórico;
em sentido horizontal, assumindo a forma de expressões, realizações
e atitudes vária e polemicamente interpretadas. Mas em ambos os
sentidos, a filologia e a edição crítica de textos funcionavam dentro
de um mecanismo complexo de respostas aos interesses, desejos e
expectativas constituintes do horizonte mental e cultural dos séculos xv,
xvi e ainda xvii. No entanto, um sector havia nesse horizonte mais
sensível, ou em que as respostas accionavam reacções com uma muito
maior facilidade: o religioso.
A filologia e edição crítica não escaparam a isso; basta recordar
as linhas de pensamento quatrocentista e quinhentista que se opuseram
às mais genuinamente «humanistas», acusando-as de «ateísmo» e
sobrevalorizando a humildade como antídoto da ambição de saber,
a ponto de que «ateu» e «luterano» l 9 se tomaram frequentemente
sinónimos nos processos inquísitoriais, cabendo o rótulo não só às
divergências religiosas, mas àqueles que, entre o público, eram tidos
por entusiastas das «letras humanas», por se julgar que assim «como
emienda el humanista un lugar de Cicerón, así podia emendar uno
de la Escritura, y diciendo mal de comentadores de Aristóteles, que
18
Vid. James D. Tracy, Erasmus, The Growth of a Mind, Genève 1972, em
esp. o cap. II, «Schooldays»; cfr. ainda R. DeMolen. «Erasmus as adolescent: «Shipwrecked am I, and lost, 'Mid waters chill'», in Bibliothèque d'Humanisme et Renaissance, tome XXXVIII, Genève (1976), pp. 7-25.
!' Sobre esta matéria, vid. Augustin Redondo, «Luther et l'Espagne de 1520
à 1536». in Mélanges de la Casa de Velazquez, Madrid 1 (1965), pp. 109-165.
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31
hará lo mismo de los Doctores de la Iglesia», conforme escrevia em 1556
o helenista espanhol Pedro Juan Núhez 2 0 .
De ambas as tendências, devemos considerar humanista a segunda,
vendo a primeira essencialmente na continuação das linhas de força
medievais que se virão a esbater só em meados do século xvm.
Neste âmbito, a filologia foi entendida como a característica mais
importante, se não a única, do Humanismo; todavia, este foi algo
de muito mais vasto e complexo, como salientou Kristeller 21 , quando
viu que o Humanismo fora no fundo «un movimento culturale, lettcrario e erudito»; movimento variado, portanto, num mundo em que
as dificuldades de comunicação ampliavam as diferenças regionais;
mas um movimento com vectores comuns. Um deles, que Kristeller
evidencia, residiu num estilo, numa cultura e numa atitude literária.
Poderíamos tentar caracterizar isto numa expressão: «uma teoria
do bom gosto» 22 , justificada por uma tradição que vinha oferecer
respostas a problemas que não se solucionavam facilmente no âmbito
da forma mentis medieval, sentida cada vez mais demasiado restrita.
O reuocare ad fontes pretendia, desta maneira, responder, tanto no
plano dos conhecimentos e da sua organização, como no plano da
abertura dos horizontes do conhecimento, à problemática que a própria realidade histórica e social acarretara.
Os vários aspectos ou momentos que de seguida se vão pôr em
evidência poderão exemplificar, ao que nos parece, o que acaba de ser
dito; no entanto, advirla-se que outros aspectos, além dos filológicos,
constituíram também resposta a preocupações semelhantes ou muito
próximas deste reuocare ad fontes; sirva de exemplo a literatura de
assunto pastoril.
111 — A grande maioria dos manuscritos de obras da literatura
antiga — latina principalmente — foi descoberta nos cem anos que se
20
Marcel Bataillon, Erasmo y Espana. Estúdios sobre la historia espiritual
del sigh XVI, trad, esp., México I9662, p. 727.
21
Paul Oskar Kristeller, «Linflusso dei primo umanesimo italiano sul pensiero e sulle scienze», in // Pensiero Italiano dei Rinascimento e il Tempo Nostro, Atti
dei V Convegno Interna/ionale dei Centro di Studi Umanistici Montepulciano,
Firenze 1970, p. 1-2.
22
Vid. o título do trabalho «La teoria dei buengusto entre los humanistas»,
de Sanford Shepard, in Revista de Filologia Espanola, Madrid, XLVIII (1965).
p. 415-421.
32
JORGE
ALVES
OSÓRIO
seguiram à morte de Petrarca e ocorreu na Itália 23 . Para esta abundância vários factores intervieram com certeza, um dos quais terá
sido a localização na península da própria sede da cristandade. Com
as ricas colecções então organizadas, criaram-se conjuntos bibliográficos que constituem, hoje, a valiosa herança de algumas bibliotecas
italianas.
Nessas colecções, como a que Niccolò Niccoli preparou para os
Médicis, predominavam os espécimes latinos; no entanto, e principalmente depois da queda de Constantinopla, os manuscritos gregos,
bem como os hebraicos, foram objecto igualmente de buscas e aquisições 24. Pode dizer-se, portanto, que quando se chega à primeira
metade do século xvi, quase todos os textos que hoje conhecemos da
literatura antiga latina estavam encontrados. Contudo, não façamos
deduções demasiado rápidas sobre a circulação dos textos novamente
descobertos, pois cerca de vinte anos após o achado das comédias
plautinas ainda ignoradas, Valia lamentava em carta de 1441 nunca
ter podido 1er as «duodecim comoediae Plauti recenter inventae»... 25
IV
No prefácio dos Elegantiamm Linguae Latinae Libri, Lorenzo
Valla lançou uma condenação total sobre os medievais por entre eles
não encontrar nenhum que tivesse sabido usar o latim. Para além
do exagero evidente 26 , na defesa do latim como língua «imperial» 27
Valia tinha em mente um ressurgimento cultural da Infinitas, interpretada agora como christianitas, numa união da Europa cristã sob
uma autoridade comum. Esta reductio omnium ad latum, que fora
uma das linhas principais do agostinianismo politico ao longo da
23
24
Vid. Sabbadini, o b . cit., vol. I, p. 164.
Vid. Christian Bec, Les marchands écrivains. Affaires et humanisme à
Florence 1375-1434, Paris — L a Haye 1967, III partie.
25
Vid. in Sabbadini, ob. cit., I, p. 189, n. 27; cfr. também Antonio Stauble,
La Commedia Umanistica del Quattrocento, Florença 1968, p. 147.
2(1
«Laurentii Valensis clarissimi: et de lingua latina: benemerentis: ad loannem Tortellium Arctinum: cui opus Elegantiarum linguae latinae dedicat: Epistola»,
Roma 1471.
27
«Breui spatio linguarn romanam: quae eadem latina a latio: ubi roma est:
dicitur: celebrem et quasi reginam effecerunt. Et quod ad ipsas prouincias actinet:
uelut optimam quandam frugem mortalibus ad faciendam sementem praebuerunt.
Opus nimirum multo preclarius multoque speciosius: quam ipsum imperium propagasse»; fol. i da cd. supra cit..
CRÍTICA
E
HUMANISMO
NO
RENASCIMENTO
33
Idade Média e como tal defendida por Raimundo Lúlio 28 , coloca o
reuocare ad fontes ao serviço de um desejo que, no contexto religioso
europeu da segunda metade de Quatrocentos 29 , se torna uma necessidade. O interesse pelo remontar às fontes da latinidade aparece-nos,
assim, ligado a um projecto de utopia que Eugénio Asensio verificou
reproduzir-se na Península Tbérica, quando estudou a utilização do
tema da língua c do império por alguns autores hispânicos, para quem
a língua podia ser a expressão do novo império 30 . Ora a verdade é
que parte do pensamento linguístico do século xvi andou ligado também à defesa política do nacionalismo; ou. por outras palavras, à
ideia de que a língua, se purificada das corrupções a que os tempos a
sujeitaram 31, pode renascer em si a dignidade antiga do latim como
língua imperial. É neste contexto que Luís de Camões afirma com
tanto interesse que, exceptuada alguma «pouca corrupção», a língua
portuguesa era quase a latina: o motivo de orgulho reside na proximidade do português em relação à fonte; isto é, reside na sua digrtitas
histórica, agora ao serviço de um grande «império».
Com isto se relaciona o tema das qualidades inerentes a cada
língua, bem como as polémicas dos antigos e dos modernos, as defesas
das línguas vulgares; mas, no âmbito do Humanismo, a filologia c o
estudo crítico dos textos eram pensados prioritariamente em relação
às obras antigas.
V— Um cristão, porém, não dispunha de plena liberdade quanto
à utilização dos autores antigos, tanto para a leitura, como para a
imitação. S. Basílio Magno, na epístola «Ad nepotes quomodo ex
gentilium doctrinis proficiant» i2 aconselhava a que, nas leituras dos
2!t
Antonio Oliver, «El agustinismo politico en Ramon LIull», in Augustintts.
Revista Trimestral publicada por los padres Agustinos Recoletos, Madrid, XXI
(1976), n." 81, p. 17.
29
Cfr. Jean Delumeau, Le Catholicisme entre Luther et Voltaire, Paris 1971,
Deuxième partie, chap. I.
10
«La lengua compafiera del império», in Revista de Filologia Espanola,
Madrid (1962), t. 43., p. 399.
il Vid. Juan de Valdês, Diálogo de la Lengua, éd. de Juan M. Lope Blanch.
Madrid (1969), pp. 57 ss.
M «Basilii Magni Caesar ensium in Cappadocia Antistilii sanctissimi Opera
plane diuina, variis c locis sedulo collecta: et accuratione Iodoci Badii Ascensii (...)»,
1523, fol. CXXXV v.°. A questão é subjacente à teoria literária do see. XVI; cfr. E.
C. Riley, Teoria de la novela en Cervantes, trad, espanhola, Madrid (1966), cap. 111.
34
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ALVES
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autores antigos, se actuasse como as abelhas, que procedem a uma
escolha das flores onde recolham o mel. S. Jerónimo, contudo, tornou-se mais significativo, a ponto de Valia e ETasmo fazerem dele o
paradigma dos limites até onde poderia ir, sem perigo, o cristão na
leitura dos autores pagãos, ideia que André de Resende desenvolveu
perante os estudantes de Lisboa em 1534. S. Jerónimo, na visão que
descreve na Epistola ad Eustocliium 33, vê-se acusado pelo juiz supremo
de se ter tornado «ciceroniano» mais do que cristão; e resolve abandonar a leitura dos livros seculares, numa atitude que Santo Agostinho retomará noutro passo célebre dos Confessionum Libri.
Lorenzo Valla aproveita-se deste exemplo para acentuar que um
espírito cristão pode 1er com utilidade os autores antigos se guiado
pela necessidade de usar uma expressão mais eloquente, ou sejam as
«humaniores litterae». Na In quartum Etegantiarum Librum praefatio, Lorenzo argumenta contra os detractores da eloquência latina,
acusando-os de a reduzirem a Cícero, como se os livros dos oradores,
dos historiadores, dos poetas, dos filósofos, dos jurisconsultos não
fossem, todos, também os «saeculares Libros» que Jerónimo lera com
tanto interesse 34. Uma coisa, diz ele, é a filosofia de Cícero, outra
a sua eloquência, ao mesmo tempo que nota ironicamente que as
pessoas se preocupam tanto com o epíteto de «ciceronianus» e não
se incomodam com o de «platonicus», numa evidente alusão à revivescência do platonismo e correntes alins devida, cm grande parte,
à actividade filológica de Ficino 35.
»
S. Jerónimo, Cartas, ed. B.A.C., vol. I, p. 192.
«Quid ais tu non esse legendos (autore Hicronymo) seculares libros? Qui
sunt isti quaeso libii? omnes ne oratores, omnes historiei, omnes poetae, omnes
phiiosophi, omnes iurisconsulti, caeterique scriptores? an unus Cicero?».
35
E comenta: «At ornatus ipse dicendi reprehendus est non seientia».
Vid. na edição ascensiana de Paris, 1521, fol. LXVI v.". A expressão em latim
implicava várias elegâncias na opinião de Valia, pois que a eloquência latina não
se reduzia a Cícero. A ideia tem a ver com a complexa teorização sobre
a obra literária e sobre o estilo que germinou no humanismo renascentista; Angelo
Policiano, por exemplo, no Liber Miscellaneorum há-de defender o recurso a um
estilo variado para evitar o taedium de uma única c formal imitação. Mas invocar
a variedade não constitui explicação suficiente que nos coloque frente à função que
se esperava ver satisfeita através dessa mesma variedade; no ambiente de mentalidade e de sensibilidade desse «mundo que nós perdemos» — cfr. Peter Laslett, Un
monde que nous avons perdu, trad, franc, Paris (1969)- espcrava-se da oratória cristã,
ou seja da sermonária, o tratamento de assuntos «verdadeiros». E se bem que esta
34
CRÍTICA
F
HUMANISMO
NO
RENASCIMFNTO
35
Erasmo que se queria — e era — muito mais Christianas que
ciceronianus, e que elaborou mesmo umas adtwtationes às Elegatuiae
de Valia, deu-se bem conta dos limites até onde era justificado o recurso
aos antigos autores; basta 1er a Vita I/ieronymi, sob a qual já se quis
ver uma espécie de autobiografia espiritual dele próprio 26, para se
observar como aconselha, como em muitos outros passos, comedimento na imitação desses autores; e usa, para tal, as mais das vezes
o advérbio modice, captado de Santo Agostinho 37 . O exprimir-se
um cristão cm latim duma maneira cuidada era algo de muito diferente de imitar os autores pagãos, como Policiano viu, e era, pelo menos,
um sinal de cultura que o cristão revelava; uma cultura sem a qual,
como defendeu em vários textos e em especial na Ratio seu Methodus
compendio perveniendi ad veram Theologiam, não podia abordar a
inteligência do texto sagrado. O nosso Damião de Góis pôde 1er
conselhos e opiniões sobre esta matéria em cartas que recebeu do
humanista de Roterdão 38 ; mas toda a Europa erudita pôde tomar
contacto com eles através de obras, umas de menor, outras de maior
oratória podia com relativa facilidade aproveitar-se das doutrinas de Cicero e de
Quintiliano sobre o orador, suas qualidades, formação e deveres, a realidade social
e histórica acarretava a exigência de uma outra linha de eloquência cristã dirigida
prioritariamente ao público iletrado das cidades — vid. Johan Huizinga, O Outono
da Idade Média, cap. X1I-XIV; Francis Rapp, L'Eglise et la vie religieuse en Occident à h/fin du Moyen Age, Paris 1972, Il partie, chap. V, n.° 2. Tal género, praticado
por pregadores que falavam dias seguidos na praça pública e perante quem desfilava — é o termo — em cortejo a população variada de uma cidade, e de que Savonarola loi, em (ins do see. XV, um exemplo a mais de um título significativo, não
cabia dentro dos cânones da eloquência «ciceroniana».
36
Émilc V. Telle, Érasme de Rotterdam et le Septième Sacrement, Genebra,
1954, I e r livre, chap. VI considera que a Vita «éclaire brillament la psychologie d'Érasme et résout enfin une fois pour toutes le problème de sa vocation religieuse...», p. 74.
17
Charles Béné, Érasme et Saint Augustin on Influence de Saint Augustin
sur l'humanisme d'Érasme, Genebra 1969, refere-se a esta atitude de Frasmo cm
vários passos do seu trabalho, por exemplo, p. 232-233, ao estudar o pensamento
de Frasmo acerca do ensino das três línguas antigas.
3lt
Por exemplo a carta de Maio de 1535, ao referir-se a umas «Annotationes
in Plinium» que Segismundo Gelénio dedicara a Góis, mas com tais alterações que
«et quodam modo novum Plinium nobis dedit»; vid. in Joaquim de Vasconcelos,
Goesiana. C) As Cartas latinas de Damião de Goes, p. 77. Cfr. Jorge Alves Osório,
«Em torno do Humanismo de Damião de Góis: a divulgação dos Opúsculos através
da correspondência latina», in Annali delV Istiiuto Universitário Orientale, Sezione
Romanza, tomo XVIII, Napoli (1976), pp. 297-342.
36
JORGE
ALVES
OSÓRIO
circulação, como o Ciceronianusí9. E não esqueçamos que esta
tendência para um estilo variado, entendido como procura de uma
expressão mais apropriada à verdade ou à realidade, se acentuará ao
longo do século xvi, cada vez mais integrada na teorização elaborada
a favor da literatura em língua vulgar. A própria Poética de Aristóteles, ao que anotou Marcel Bataillon 40 , alimentou a argumentação
teórica na disputa sobre a dignidade da literatura vulgar; e o «erasmismo» 4 I , como atitude, parece não ter estado ausente dessa questão
em dada fase.
De qualquer forma, a ideia que subjace é que o homem, cuja
actividade é o estudo da literatura, ou letras, deve possuir uma cultura
e uma erudição cuidadas. Nisso formava ele um contraste com o
medieval ignorante, preocupado com minudencias com que alimentava
grandes discussões; a Moria de Erasmo é bem o cortejo das várias
loucuras presunçosas dos homens, e entre elas a da ignorância. Mas
a pior das ignorâncias, aquela que realmente devia preocupar a um
cristão, era a que impedia a interpretação do texto sagrado. E os
piores ignorantes, os frades e os teólogos, naturalmente.
O mesmo Lorenzo Valla nos fornece elementos para vermos que
a preocupação pelo saber literário tinha em mente responder a questões colocadas bem mais fundo no horizonte das preocupações mentais
do Humanismo do que a só edição correcta dos textos. Ele mesmo,
como já alguém salientou, subordina claramente a filosofia à fé 4 2 .
Todavia, convém observar de novo, antes de avançarmos, que a
edição crítica humanista não tinha, naturalmente, a mesma significação que hoje possui. Hoje somos herdeiros de um conceito legado
pelo Romantismo, segundo o qual o texto literário (poético) é como
que um documento de uma dada maneira de ver o mundo, que é a do
artista, quando não um documento de um dado momento da vida
39
Que, de certo modo, contrabalança o Antibarbarorum liber, escrito na
juventude.
40
Bataillon, Erasmo y Espana, cit., p. 770.
41
Acerca do conceito complexo de «erasmiano», vid. Marcel Bataillon,
«Vers une définition de l'Érasmismc», in Colloquia Erasmiana Turoniensia, Actes du
Douzième Stage International d'Études Humanistes — Tours 1969, Paris 1972,
t. I, p. 21.
4
2 Vid. Paul Oskar Kristeller, Otto Pensatori dei Rinascimento
ital., Milano 1970, p. 31.
Italiano,
trad,
CRÍTICA
E HUMANISMO
NO
RENASCIMENTO
37
interior de um indivíduo, ou reflexo de uma época social. O estudo
do texto literário, nesta linha de perspectivas, virar-se-ia com facilidade
para a tentativa de reconstrução do momento ou momentos criadores
para, uma vez feito isto, explicar a obra a partir daí. As limitações
deste psicologismo na análise da obra literária foram já evidenciadas
tanto por correntes de inspiração formalista, como pela teoria de
filiação fenomenológica de Roman Ingarden, e ainda mais recentemente, pela teoria sociológica da recepção estética de Hans-Robert
lauss.
Não assim no Renascimento, em que os assuntos que para nós
hoje entram no campo da psicologia, cabiam no âmbito da religiosidade e, também, da medicina. Ao que nos parece, é nesta base que
se deve ver a edição crítica dos textos, como uma actividade própria
do saber literário cujos intuitos eram fornecer textos correctos (sem
corrupções) destinados ao sector mais importante da vida intelectual,
moral e política dos homens da época: o sentimento religioso.
No De professkme religiosorum4i, Valia mostra que a religio
não é a supers titio que frequentemente os frades manifestam e de que
Erasmo fará um dos pontos centrais do Enchiridion militis christian/'.
Notando que oboedio provém de obaudio, o italiano faz do saber obedecer a característica do homem esclarecido e, tocando num dos pontos
básicos do programa humanista, explica que a cultura, o estudo e a
doctrina afastam o homem do more bestiarum 44 para lhe permitirem
elevar-se na contemplação das coisas divinas. Por trás deste pensamento há toda uma longa linha de reflexão antiga, canalizada por
várias formas para o mundo cristão, entre as quais compete indicar as
correntes que, vindas do neo-platonismo tão em voga no Humanismo
florentino, passam pelo paulinismo e pelo agostinianismo. A ideia
central é de que a palavra, a faculdade de falar, constitui, ao lado da
razão, a característica fundamental da dignitas hominis. Isócrates,
no tratado sobre a troca (xv-253-257) 4S, fizera já a apologia da palavra,
e o assunto transforma-se em núcleo temático de toda uma filosofia
•*3 Cit. do vol. Prosatori Latim del Quattrocento a cura di Eugénio Garin,
Milano, p. 568 e p. 570.
44
Vid. Gioacchino Paparelli, Peritas, Humanitas, Divinitas. VEssenza
Umanistica dei Rinascimento, Napoli (1973).
45
Isocratc, Discours, tome III. Texte établli et traduit par Georges Mathieu, 3 èinc édition. Paris 1960, p. 165-166.
38
JORGE
ALVES
OSÓRIO
do homem no Renascimento. A própria ideia erasmiana de substituir o verbum da versão da Vulgata por sermo 4 6 não resulta só da
necessidade de um maior rigor filológico, mas da necessidade de significar que a «palavra» é um discurso, para o caso o discurso de Cristo,
ao longo do qual é exposta toda uma doctrina; em resumo, a philosopha Christi47. E Luís Vives, ao dedicar a D. João 111 o De tradendis
discipUnis, começará exactamente por abordaT o tema de que o homem
é distinto dos outros animais pela faculdade de se exprimir por palavras e, portanto, de pensar 4&.
Nada disso, porém, se obtinha sem o estudo aturado das letras,
não por elas próprias, num sentido que hoje poderia soar a especialização, mas ao serviço da problemática religiosa, que passava pelo
esclarecimento do texto. É evidente, contudo, que a exploração dos
textos de uma forma mais rigorosa e erudita podia fomentar — como
realmente fomentou — perspectivas, soluções e conclusões que não
caberiam com facilidade no contexto do pensamento religioso medieval.
Na verdade, o Humanismo esteve ligado, como têm evidenciado muitos
estudiosos, à gestação das correntes inovadoras do pensamento que
singraram através dos séculos posteriores da história europeia 49 .
A meditação sobre o texto, acompanhando a leitura silenciosa,
distinta da leitura em voz alta própria de comunidades como as religiosas ou as cortesãs, tornou-se uma faceta, característica da vida
cultural europeia. O retrato de Erasmo 50, com a pena suspensa sobre
46
Erasmo tinha atrás de si a velha questão da tradução do grego ?.óyo;;
cf. in G.O-A. Meershoek, Le Latin biblique d'après Saint Jérôme, Nijmegen — Utrecht
1966, p. 10.
47
Sobre este conceito, vid. Pierre Mesnard, Érasme, La Philosophie chrétienne (...), Paris 1970, «Introduction»; cfr. ainda Marcel Bataillon, «Humanisme
chetien et Littérature. Vives moqué par Resende», in Scrinium Erasmianum,
Leiden 1969, t. I, pp. 151-164 e Margaret Mann Phillips, "La "Philosophia Christi'
reflétée dans les 'Adages* d'Érasme", in Courants Religieux et Humanisme à la fin
du XV'- et au début du XVI* Siècle, Paris 1959, pp. 53-71.
4
8 A importância e a função que a Linguística desempenha no pensamento
L- oa teoria do conhecimento actual quase parece a continuação desta velha linha
humanista da filosofia ocidental.
49
Cfr. P. O. Kristcllcr, «L'influsso del primo umanesimo italiano sul pensiero
e sulle scienze», in // Pensiero Italiana dei Rinascimento, cit., p. 1; cfr. ainda J.-R.
Armogathe, «Emendatio intellectus. Éléments de longue durée et vie intellectuelle
en Europe au XVII e siècle», in XVIIe Siècle, Paris n.° 106-107 (1975), p. 131.
50
Cfr. Aloïs Gerlo, Érasme et ses portraitistes: Metsijs, Durer, Holbein,
Bruxelles (1950).
CRÍTICA
E HUMANISMO
NO
RENASCIMENTO
39
o papel, no acto de escrever, com o livro a seu lado, e que tanto comovia
Damião de Góis, torna-se o símbolo de um novo conceito de dignidade do homem, em que as actividades literárias — as letras — eram
pensadas como superiores às armas. Leonardo Bruni, após aludir
à necessidade de se lerem só os livros que foram escritos pelos melhores
autores latinos, ponderava que «a leitura é como o pasto da alma,
e a mente embebc-se dela e dela se nutre» 51. Ora nos tempos já da
tipografia, 1er os melhores textos significava também dispor das melhores impressões; Aldo Manúcio, o célebre impressor de Veneza junto
de quem estacionou e editou Erasmo, foi tão importante para a filologia como o mais erudito editor crítico.
Angelo Policiano é um exemplo ainda da defesa da ideia de que o
estudo dos assuntos literários permite a liberdade do homem nesse
sentido também mirandino de libertação das coisas humanas e terrenas.
Na dedicatória do Liber misceilaneorum a Lourenço de Médicis, adverte
que todo o saber aí patenteado não está desligado do sentimento religioso: «ne sub illorum auctoritate studiorum fides periclitaretur» 52 .
"Na Tealidade, o Liber contém estudos de erudição filológica, notícias
sobre códices, sobre coisas exóticas, sobre problemas de gramática e
de fonética histórica, sobre questões ortográficas, todo um manancial,
enfim, de ciência literária que, no fundo, assenta em preocupações
de religiosidade de um humanista que, além de erudito, foi também
poeta religioso 53.
Estamos, pode dizer-se, perante uma tentativa de recuperação do
conceito de grammaticus de Quintiliano, um tipo de homem que Erasmo
no De recti Latini graecique sermonis pronuntiatione dialogus 54 lamentava já não existir nos tempos modernos. Mas se Valia pode ser dito
o primeiro a aplicar de forma consequente a técnica filológica à exegese
bíblica, foi contudo Erasmo quem celebrizou a edição crítica do texto
sagrado. As suas edições dos Testamentos e dos Evangelhos, signiM
Cit. de E. Garin, Educazione umanistica in Italia, Bari 19665, p. 36, tradução do De studiis et iitteris liber de Leornado Bruni.
5
2 Vid. ed. cit. de 1567, p. 458. A ideia aparece em Erasmo: vid. Ratio seu
Methodus compendio perveniendi ad vera/n theologian), na edição de Hajo Holborn,
Desiderius Erasmus Roterodamus, Ausgewàhlte Werke, Munchen, reimpressão de
1964, p. 296-297.
5í
Vid, Giovannangiola Tarugi, «Scritti religiosi di Angelo Poliziano», in
il Pensierv Italiano dei Rinascimento, ob. cit., p. 43.
54
Opera Omnia, Leiden, t. I, 915.
40
JORGE
ALVES
OSÓRIO
licativamcnte dedicadas a príncipes ou grandes senhores, como que a
indicar as funções que lhe competiam na «respublica Christiana», tal
qual as sistematiza na Tnstitutio principis christian!, bem como as edições dos Padres, em especial Jerónimo, Crisóstomo e Orígenes, manifestam a orientação do programa humanista erasmiano de tudo reduzir
à pietas. Mesmo quando se faz editor de autores latinos, Erasmo
escolhe aqueles escritos que maior utilidade ofereciam ao cristão
enquanto elemento de uma sociedade de homens na terra, como sejam
o De Officiis, obras de Séneca ou comédias de Terêncio.
Os elogios que faz da cultura literária e linguística têm de ser vistos
nesta perspectiva. A Ratio c, ao lado de outros textos como as Adnotationes, uma obra toda ela preenchida por uma argumentação filológica
posta ao serviço da interpretação do texto cristão. Desde o sentido
de episcopus, para evidenciar que no seu tempo um abismo separava
a actuação dos bispos da que fora entre os primeiros cristãos, até à
explicitação de parábolas, tudo passa pela elucidação filológica do
texto. Trata-se de um reuocarc ad fontes que, evidentemente, não
dispensa os ataques aos que, emaranhados nas redes da filosofia natural, se preocupam com o significado misterioso dos números
e «videantur aferri magis ad ostentationem ingenii quam ad fruetum
pietatis» 5S.
Detinham-se esses perigosamente na libido rixandi, naquela «sterilium disputationum ventosa iactantia» na expressão de Petrarca 56 ,
acusação que perpassa pelas respostas Ad Censuras Facultatif Theologize Parisiensis e Adversus Monachos quosdam Hispanos, em vez de
se deterem no significado poético, por exemplo, dos nomes de Cristo 57.
Haviam sido os teólogos medievais, os «recentiores», quem introduzira a filosofia natural nos assuntos divinos 58 , distraindo os homens
da «philosophia Christi», a ponto de várias vezes ele, Erasmo, afirmar que a legião desses autores o deixavam mais «frio» do que a leitura de escritos de Cícero, por exemplo. Os bons alimentos, de que
o cristão devia servir-se, encontravam-se nos primitivos escritores,
aqueles que não haviam sido corrompidos pela barbarie posterior.
Daí que uma das funções do «orador» cristão consistisse, para além
55
Vid. ed. Hoiborn, cit., p. 281. Cf. o adágio Herculei labores da edição
aldina de 1508.
56
De Remediis utriusque Fortunae Libri II; na ed. de Lião, 1577, p. 6.
» Ibidem, p. p 283-284.
58 Ibidem, p. 297.
CRÍTICA
E
HUMANISMO
NO
RENASCIMENTO
41
da pregação, para além da explicação da res, na tarefa de apresentar
a palavra, o sermo, purificada das interferências resultantes do próprio
facto de o texto estar sujeito a uma transmissão mundana. E surgem,
então, as referências aos erros dos copistas, aos erros de leitura, aos
erros de interpretação.
Na carta que em 1527 enviou de Basileia ao humanista Juan de
Maldonado 59 , mas que tinha evidentemente em vista o círculo de
leitores c admiradores espanhóis, chamava a atenção para a sua actividade e contribuição na «promoção dos estudos linguísticos e das
boas letras». As letras humanas, escrevia ele, deviam estar ao serviço
das disciplinas mais graves, em particular da Teologia; por isso sempre
exortara ao longo da sua vida à leitura séria e directa dos Livros Sagrados, dos Doutores e Apologistas da Igreja, cujas lucubrações os que
ignoram as letras de humanidades dificilmente podem 1er e muito
menos compreender. Deste passo ressalta a alusão a um aspecto
ainda não posto em evidência aqui: o da necessidade do estudo das
línguas antigas, além do latim. O grego e o hebraico são complementos necessários para a leitura do texto sagrado, mas Erasmo entendia que a dedicação ao seu aprendizado não devia ir além da satisfação
da necessidade de leitura das versões testamentárias.
Os estudos linguísticos tornaram-se então como que o símbolo
de uma revivescência religiosa, paralela ao renascimento cultural.
Os elogios aos monarcas pela criação de colégios trilingues, para além
de serem, entre outras coisas 60 , momentos do panegirismo habitual,
significavam O apreço pela realização de uma expectativa que os humanistas tinham sabido alimentar no horizonte das necessidades culturais
da Europa erudita do Renascimento. Não admira, pois, que Oliveteau coloque à cabeça da sua Bíblia de 1535 a felicitação a Francisco 1
pela ideia de edificar e fundar um tão magnifico e necessário colégio
como o «des troyes langues» que é um bom começo para fazer com
que «nous ayons en noz jardins la belle fontaine de la claire et pure
59
A tradução espanhola da carta pode ler-se na versão de Lorenzo Riber,
in Erasmo, Obras Escogidas, (Madrid l%4 2 ), p. 1688.
60
E entre elas índices de um modo de entender a função do príncipe até como
modelo de comportamento religioso; é neste sentido que D. João III se vê elogiado
pelo agostiniano Fr. Luis de Alarcón, no «Prólogo dei libro que trata del camino dei
cieío y de la maldad y ceguedad de este mundo», editado cm Alcalá em 1547; vid. a
edição de Angcl Custodio Vega, O.S.A., Barcelona 1959, p. 49.
42
JORGE ALVES OSÓRIO
caue de vérité duicte et menue de la vive source, par tuyaux netz et
entiers desgorgeans...» 6 I .
A ligação entre a filologia, a edição crítica e a problemática religiosa parece-nos, por conseguinte, ser de salientar, até na medida em
que entre as duas primeiras e a terceira se estabeleceram relações de
natureza complexa, onde, às necessidades contidas numa realidade,
se faziam responder desejos constantes de ideais filosóficos e éticos
veiculados por uma literatura que — quase — tinha por único defeito
haver sido escrita por pagãos... O tema desenvolvido por Valia de que
«sempre a língua fora companheira do Império», como escrevia António
Nebrija na sua Gramática castellana de 1492, exemplifica bem como,
perante a realidade dos impérios novos, às necessidades de prestígio
político que estes implicavam se podia tentar responder com a temática provinda dos Romanos. E neste contexto funcionava perfeitamente o reuocare ad fontes, facilmente posto ao serviço do gosto pelas
arquitecturas genealógicas, tão importantes no Renascimento.
VI — Entretanto, o que sucedia entre nós? O simples perpassar
as páginas da Bibliografia das' obras impressas em Portugal no século XVI
faz-nos sentir o vazio de edições críticas no nosso Humanismo. Se
exceptuarmos a actividade editorial jesuítica, de intuitos pedagógicos
bem determinados e levada a cabo já na segunda metade do século,
e ainda se pusermos de lado os comentários aristotélicos dos conimbricenses, podemos quase dizer que não há exemplares da actividade
filológica portuguesa na nossa tipografia quinhentista.
É possível que certas características do Humanismo português
ainda muito mal estudadas tenham contribuído para isto. É de supor
que os círculos cultos portugueses tivessem visto as suas interrogações
e interesses no sector da filologia satisfeitos com a bibliografia provinda da Europa, até porque, apesar da introdução do Humanismo
em certos meios portugueses da alta nobreza nos últimos anos de Quatrocentos, ele só se realizará entre nós como atitude generalizada já
entrado o século xvi. E nessa altura já muita água havia corrido sob
as pontes do Humanismo europeu 62 .
61
Cit. de Michel Jcanneret, Poésie et Tradition Biblique au XVI' siècle, Paris
1969, p. 181.
<>2 Neste particular, duas opiniões divergem: a que valoriza o preceptorado
de Cataldo Sículo entre nós desde os últimos anos do séc. XV (vid. Américo da
CRÍTICA
E
HUMANISMO
NO
RENASCIMENTO
43
No entanto, um estudo apurado dos exemplares que existem nas
nossas bibliotecas pertencentes ao tipo de edições críticas, desde Aristóteles a Virgílio e aos textos bíblicos, poderia revelar que o público
erudito português se terá fornecido largamente das edições estrangeiras. O caso de João da Costa, que declara em 1550 à Inquisição
possuir em francês livros de Clément Marot, os «quatro livros do
Amadis», os Económicos de Aristóteles, em italiano Petrarca, Dante,
o Decameron, o Cortesão, a Moria de Erasmo e as Eglogas de Sannazzaro, além de obras cm latim de Melanchton» c «os testamentos novos
derasmo» 63 , não foi evidentemente isolado. E é fácil supor que o
comércio de livros a que o mesmo declarante alude na sequência do
texto foi um meio de entrada de obras hoje só possível de reconstruir
para casos isolados ou excepcionais.
VII — Todavia, alguma edição filológica portuguesa existiu no
século xvi.
Em 1529 Martinho de Figueiredo publicava em Lisboa, nas oficinas
de Germão Galharde, a Epistola Plinii secunda veram lectionê ex exquisitissimis et antiquissimis exemplaribus. Ab Angelo Politiano magnis
sumptibus: et summa diligentia perquisitis 64 . Não deixa de ser significativo o facto de, para além do próprio teor e propósitos da edição,
Costa Ramalho, in Estudos sobre a Época do Renascimento, Coimbra 1969, e noutros
trabalhos infra indicados), e a que chama a atenção para o vazio da produção humanista portuguesa até 1529 (vid. José V. de Pina Martins, in Humanismo e Erasmismo
na Cultura Portuguesa do Século XVI. Estudo e Textos, Paris 1973). Por outras
palavras, quando os ideais filosóficos e literários humanistas entram no ambiente
português e a ele se tentam acomodar, ou dito ainda de oulra maneira, quando os
ambientes portugueses se vêem na situação de receber o programa temático humanista, esse corpo de ideias já não é assunto pacifico. Atentemos em que, quando o
humanismo ultrapassa os limites reduzidos de certos círculos onde é possível documentá-lo desde o final do séc. XV, isto é, quando se leva a cabo a mudança nos estudos e por fim quando se inaugura o Colégio das Artes, já Lutero alterara profundamente o panorama religioso europeu, já as obras de Erasmo, falecido em 1536, não
eram lidas sem reservas, já, enfim, estamos em anos do Concílio de Trento, o qual,
se não representa o termo do Humanismo, nem por isso deixa de ser uma interpretação do programa humanista feita num dado contexto da história europeia.
h3
Vid. O processo na Inquisição de Mestre João da Costa, publicado por
Mário Brandão, Coimbra 1944, p. 35; cfr. Mário Brandão, A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, vol. II, I parte, Coimbra 1969, p. 144 ss.
64
Vid. o n.° 580 da Bibliografia das obras impressas em Portugal tio século XV
por António Joaquim Anselmo, Lisboa 1926, p. 166.
44
JORGE
ALVES
OSÓRIO
ela divulgar um texto de Plínio, o autor cujos códices Petrarca tanto
procurara e que era um dos escritores antigos que melhor respondiam
aos interesses e expectativas culturais dos humanistas, a ponto de que
um passo dos Rerum memorabifíum libri65, em que Petrarca alude
ao ardor com que buscava códices de Plínio, já ter sido tomado com
o exemplo simbólico da passagem da Idade Média para ó Renascimento.
A edição de Martinho de Figueiredo é dedicada a D. João IÍI
e termina com uma epístola «humanissimis atque acutissimis lectoribus» a quem explica as circunstâncias em que ela era feita. Ficamos assim a saber que para Figueiredo, desde os tempos em que em
Itália seguia os cursos de Angelo Politiano e Socino, «erat enim mihi
in animo super obscuris atque difficillimis poetarum et oratorum locis
annotationes atque expianationem côponere». Entretanto, o tempo
passou sem se poder dedicar à tarefa, até que uns «viri doctissimi a
me precibus non modo petere sed etiam efflagitare ceperunt: ut Pliniû
ipsum interpretari et explanare atque publiée profiteri nõ recusarê»,
sabendo que ele ouvira as lições desse famoso Policiano. A informação mais importante deste trecho reside na notícia que nos dá sobre
a existência em Lisboa de um grupo de pessoas eruditas interessadas
em seguir um curso de explicação filológica, o que nos parece evidenciar que, antes de 1530, estava constituído um público, reduzido que
fosse, cujo horizonte de expectativas culturais era já orientado para o
Humanismo. O próprio Figueiredo nos aponta para isso, ao informar que «Muitos igitur eiusdem auetoris (Policiano) libros explanaui
publiée professus: donee pestilentie morbo in hac urbe seuiente destiti».
Além do mais, o que nos parece ser de acentuar de momento é
a atitude mental do português que, vindo da Itália humanista, se propõe insinuar ao monarca e aos círculos culturais a ele ligados um
potencial programa humanista, se bem que a orientação que «a política cultural» 66 portuguesa seguiu posteriormente se tenha inclinado,
ao que parece, para o programa que, de Paris, Diogo de Gouveia
propunha ao mesmo monarca.
Explicar Plínio pelo método filológico — e Figueiredo sintetisa-o
no fim desta epístola «aos leitores» — era, desta feita, pugnar por
65
Vid. a ed. crítica de Giuseppe Billanovich, Florença (1945), p. 19; cfr. Tripet, ob. cit., p. 121-122.
66
Vid. o título da obra de José Sebastião da Silva Dias, A Política Cultural
da Época de D. João III. Coimbra 1969.
CRÍTICA
E
HUMANISMO
NO
RENASCIMENTO
45
uma actualização da cultura portuguesa, com certeza sob o exemplo
estimulante de António de Nebrija em Alcalá, onde, ao que nos informa
Marcel Bataillon, perante um auditório sempre numeroso, «explicava autores eminentemente úteis para as três Faculdades: a História
Natural de Plínio alternava com textos como os Moralia de Aristóteles ou o De Doctrina Christiana de Santo Agostinho» 67. Trata-sc
de um programa de formação cultural do cristão humanista, baseado
nos «oradores e historiadores», como, anos depois, em 1535, Nicolau
Clenardo aconselhava a João Vaseu em carta de Évora, invocando
exactamente o exemplo de Nebrija 6S.
Ora a epístola aos leitores de Figueiredo parece-nos apontar precisamente para aquela função que o Humanismo atribuía ao texto
purificado das corrupções barbarizantes e que já referimos atrás.
O discípulo e editor português de Policiano explica que os homens
doutos que o haviam instigado à tarefa de editar os comentários a
Plínio invocavam como razão a necessidade de não permitir que se
perdesse quanto recebera de doutrina de tão grande autor; e eles tinham
em mente, precisamente, a leitura dos livros sagrados 69 .
Estamos dentro de uma reduetio omnium ad union, segundo a
qual os estudos literários são, em último plano, dirigidos para a teologia. Erasmo, já famoso nestes últimos anos da década de vinte,
considerava-os propedêuticos, próprios para tornarem o cristão apto
na interpretação da palavra sagrada. A atitude tem certo ar de
«medieval», mas o Humanismo foi, em larga medida, um movimento
continuador de expectativas e tendências medievais. Os círculos
humanistas de Florença em roda de Marsílio Ficino, tão interessados
nos textos antigos portadores daquela «prisca theologia» que queriam
ver continuada na cristã, viveram, no fim de contas, virados para a
Teologia, como Oskar Kristeller mostrou. Mas um dos aspectos que
os distinguiam dos medievais residia precisamente na atitude diferente
perante o texto, isto é, perante a palavra.
Neste contexto mental, Martinho de Figueiredo apresentava
em 1529 ao público português uma das tendências mais modernas do
programa filológico do Humanismo, centrado na necessidade de lei-
«7
68
M. Bataillon, ob. cit., p. 16.
Alphonse Roersch, Correspondance
de Nicolas
Clénard,
Bruxelas
t. I, p. 74.
69
Eis a expressão: «... obiciêtes euagelicù saluatoris nostri», fol. XVI.
1940,
46
JORGE
ALVES
OSÓRIO
tura e estudo dos textos libertos das corrupções. Esse público, contudo, já antes fora alertado para a necessidade de combater a barbaries
que campeava na cultura, quando, em 1516, Estevão Cavaleiro fez
sair a sua Noua ars grammatices™. Aí perguntava, referindo-se
polemicamente a António Martins 71 , se não haveria maneira de deixar de se lerem «semper has romanae linguae corruptelas». Cavaleiro lamentava com violência a ignorância bárbara entre os portugueses,
digna de compaixão, e enuncia uma lista de «cgregij doctores» cujo
exemplo haveria que seguir: Diogo Pacheco, Luís Teixeira, Francisco
Cardoso, Cataldo Sículo.
Trata-se de mais um exemplo de tentativa de estímulo para a
actualização humanista dos meios culturais portugueses, agora no
campo da linguística, mas tocando o ponto que acima também referimos da necessidade de remontar à língua latina anterior à corrupção
que a fez degenerar nas línguas vulgares 72 . Este ponto de vista não
era, evidentemente, o daqueles que, também no âmbito do Humanismo,
defendiam uma dignidade das línguas vulgares comparável à da latina,
com base na teoria de que as línguas acompanham o evoluir dos
tempos 73.
Contudo, apesar do exemplo de comentário filológico que Figueiredo apresentou aos leitores seus compatriotas, o panorama português
neste campo não se alterou. O que não significa que o saber filológico
tivesse estado ausente dos seus círculos humanistas; só que se veiculou
70
Vid. o n.° 557 da Bibliografia de Anselmo, cit., p. 159.
Vid. Américo da Costa Ramalho, A Introdução do Humanismo em Portugal, Sep. de Humanitas. vols. XX11I-XXIV, Coimbra 1972, p. 435.
7
2 O tema é muito vulgar n o pensamento linguístico do século X V I ; para
nos referirmos só aos autores aqui utilizados, bastará indicar, dentre os vários passos
de Erasmo alusivos ao assunto, Opera Omnia, Leiden, IX, 966-967; a ideia surge
tratada em termos muito próximos por Luís Vives, no De Disciplinis, ed. infra, cit.,
p. 79, onde divaga sobre a «barbaries multiplex» que caracterizava o estado linguístico da Europa, lamentando, evidentemente, a falta de unidade também nesse campo.
Nesta perspectiva, as línguas vulgares, na sua diversidade, eram entendidas como
exemplos das «disputas» características da tradição gramatical medieval, e tocar
neste assunto podia ser, também, um sinal de modernidade; vid. por exemplo o
«Prologus» da Noua ars gramatkes de Estêvão Cavaleiro, já referido.
73
Neste campo poder-se-iam incluir facilmente Pietro Bembo, Juan de Valdês
João de Barros e vários outros; para o caso português cfr. Eugénio Asensio, Introdução à Comedia Eufrosina de Jorge Ferreira de Vasconcelos, Madrid 1951, tomo I,
além de outros trabalhos.
71
CRÍTICA
E HUMANISMO
por outras formas e canais.
dessa actividade?
NO
RENASCIMENTO
47
Mas onde encontrar sinais e testemunhas
VIII — Temos, ao que nos parece, de os ir buscar em escritos de
natureza vária; por exemplo, nos prólogos, nos discursos e, particularmente, na epistolografia.
Quando o valenciano Luís Vives dedica a D. João 111 o De Tradentis disciplines em 1531, a primeira ideia que enuncia, como já se
apontou, é de que o homem, quando nasce, vem desprotegido daqueles
«naturae beneficia» que dizem respeito ao corpo e que os restantes
animais possuem de nascença; contudo, o homem vem dotado de um
«ingenii acumen uivax et sua sponte actuosum», que é um «instrumentum» de origem divina. Por isso, uma das características da
«humanitas» é a capacidade que revelou ao longo dos tempos de haver
«inventado» artes como o alfabeto e, naturalmente, a leitura, assim
como as disciplinas destinadas à preparação do homem culto que,
na versão mais «cristã» de Erasmo era o «miles christianus». Este
elogio da virtude inventora do homem animou, no século xvi, várias
obras, devendo lembrar-se de Polidoro Virgílio os De Rerum Inventorions Libri octo, cuja versão completa data de 1521.
Uma das artes mais demoradamente apreciada por Vives é a do
grammaticus, cujo «oflicium est os pueri et manum formare, hinc
intelligentiam, ut ad caeteras artes remittatur maximis adiumeniis
fultus eorum scriptorum, quos sub grammatico viderit» 74. Mas o
autor vai mais longe do que esta formulação daquilo que parece ser
um lugar comum do Humanismo. Depois de referir os nomes de
Policiano e de Nebrija, aborda um aspecto, complementar da teoria
humanista do texto, que é o do ensino das línguas; entenda-se, das
três línguas antigas, as que permitiam, como temos acentuado já ao
longo deste texto, o acesso às várias versões dos livros sagrados.
Segundo ele, os gramáticos medievais levaram a barbárie ao ponto
de considerarem que «línguas errorum esse quoddam uelut seminarium».
A observação é importante, porque Vives, nos anos da grande polémica entre Erasmo e Lutero, relaciona a ignorância com a heresia;
curiosamente, um pouco como Sadoleto ... Mas vale a pena citá-lo:
«Quid ergo si intelligas línguas, non potes esse haeretiqus? eris, si
74
tineti.
loannis Lodovici Vivis Valentim, de discipiinis Libri XX in três tomos dis(...) Coloniae (...) MDXXXIII, p. 66.
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JORGE
ALVES
OSÓRIO
loquarc? ceu ucro in sermone sita sit haeresis, et non in intclligcntia:
an ideo fons erit culpandus, si liquidior fluat et purior?» 75.
A defesa do estudo das linguas bíblicas faz parte integrante do
horizonte doutrinal e religioso dos humanistas; sem o conhecimento
do latim, do grego e do hebraico não é possível 1er os textos sagrados.
Diríamos mesmo mais: sem isso não estava o humanista cristão em
condições de reconstituir, pelo comentário ou pela paráfrase por exemplo, os cânticos de louvores divinos; ora é sabida a enorme importância
da leitura de paráfrases salmódicas no século xvi, tanto do lado católico como do luterano 76.
No entanto, nem sempre em ambiente português se teve consciência da importância do ensino das línguas. Em 1534, quando
incitava os estudantes da Universidade ainda em Lisboa à studiorum
dignitatem, André de Resende apresentou-lhes um programa de coloração erasmista 77, e de que fazia parte a afirmação de que, quer nos
estudos sagrados quer nos profanos, além do latim, era necessário o
conhecimento do grego 78 . E apontava o «cuidado e a prudência
dos estudos» como índice do progresso cultural dos vários países,
fazendo salientar que nisso italianos, franceses, ingleses e alemães
nos levavam largas vantagens. E André de Resende era homem bem
colocado para enunciar tais observações, pois convivera — como
Damião de Góis — nos ambientes do Norte europeu onde, em anos
de Erasmo, se entendia a ciência humana no contexto religioso. Além
disso, foi dos poucos que praticou entre nós a investigação filológica,
pois que o De Antiquitatibus Lusitaniae é um tratado de ciência filológica utilizada para evidenciar a dignitas de uma nação, radicada num
território de tão abundantes testemunhos — epigráficos ou não - da
permanência dos Romanos... A lição de Valia atrás referida, de que a
indagação filológica se ligava à indagação da «historia rerum gestarum», não estava esquecida.
75
Ibidem, p. 75.
* Vid. Michel Jcanncrct, Poésie et Tradition Bibikfiie m XVIe siècle ob. cit..
77
Sobre André de Resende, nesta perspectiva das suas ligações com a cultura
europeia do seu tempo, convém referir Odette Sauvage, L'Itinéraire éraxmien d'André
de Resende, Paris 1971 e José V. de Pina Martins, Humanismo e Erasmismo na
Cu/tura Portuguesa do Século XVI, Paris 1973, cap. VTIL
78
André de Resende, Oração de Sapiência (Oratio pro rostris), Lisboa 1956,
p 38-40; a tradução é de Miguel Pinto de Meneses.
7
CRÍTICA
E
HUMANISMO
NO
RENASCIMENTO
49
Já não assim num outro discurso latino, pronunciado dois anos
depois, em Lisboa também, por Jerónimo Cardoso 19 . A oração,
feita «de laudibus omnium disciplinarum», é muito significativa por
tocar, formalmente pelo menos, nos tópicos que coastituiam o corpo
doutrinal humanista. Mas, curiosamente, não se encontra nela a
defesa clara da necessidade do conhecimento, mesmo moderado, das
línguas. Como não se encontra num outro discurso, este pronunciado em 1538 já em Coimbra, do sevilhano Juan Fernandez.
A epistolografia poderá fornecer maior cópia de elementos, principalmente depois de explorada mais a fundo. A importância do
papel divulgador da epistolografia no Humanismo foi enorme, podendo
mesmo pensar-se que, ainda no século xvi, ultrapassou em alguns
sectores da actividade cultural outros canais de difusão, como o próprio livro impresso. Isto acontecia nos círculos que não eram propriamente universitários. Kristeller, ao estudar a difusão europeia
do platonismo florentino, anotou que a influência de Ficino e Pico
delia Miiandula durante e depois do Cinquecento não se baseou numa
tradição universitária do ensino platónico, mas quase exclusivamente
na leitura dos escritos daqueles autores 8<). E um dos meios de difusão
dessa corrente foi exactamente a epistolografia.
A epistolografia latina respeitante a portugueses está ainda pouco
estudada, apesar das tentativas de incentivo que no século passado
fez Joaquim de Vasconcelos. Contudo, é de supor que, para além
da importância das Epistolai' de Cataldo 81 na difusão de certo Humanismo em determinados meios culturais portugueses de fins do século xv,
SD tenha de atender à importância que, no que diz respeito à filologia,
nos parece ser de suspeitar maior, da correspondência de Nicolau
Clenardo, cujas Institutions grammaticae Latinae João Vaseu fez
79
Jerónimo Cardoso, Oração de Sapiência proferida em louvor de iodas as
disciplinas, Lisboa 1965, tradução de Miguel Pinto de Meneses.
80
Vid. «La diffusione europea dei platonismo florentino», in // Pensiero
Italiano dei Rinascimento, cit., p. 29. A importância da epistolografia está bem
documentada, por exemplo, pela correspondência de Angelo Policiano nos Epistolaram Libri XII, onde se salienta a trocada com Pico delia Mirandula.
81
Sobre Cataldo, vid. os trabalhos de Américo da Costa Ramalho, Estudos
sobre a época do Renascimento, ob. cit., e, mais recentemente, Cataldo Parísio Sículo,
Duas Orações, por M. Margarida Brandão G. da Silva e A. C. Ramalho e Martinho
Verdadeiro Salomão, por Dulce da C. Vieira e A. C. Ramalho, ambos de
Coimbra 1974.
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JORGE
ALVES
OSÓRIO
sair em Coimbra em 1546 aumentadas e actualizadas, com um epigrama elogioso de Jorge Coelho, secretário do cardeal D. Henrique.
E poder-se-ia apontar, como exemplo, a troca epistolar entre Clenardo e Damião de Góis sobre observações que aquele fizera à tradução goesiana do De Senectute 82.
IX — Toda esta actividade de preocupações, curiosidades, polemicas e edições, respondia, como vimos, a um conjunto de necessidades e expectativas caracterizadoras do horizonte cultural do Humanismo renascimental, as quais circulavam em torno de um pensamento nuclear: todo o saber, fosse profano, fosse sagrado, de que o
homem podia ser capaz estava orientado para a actividade mais compatível com a situação do cristão, ou seja, a interpretação do texto
sagrado. As grandes tensões religiosas da Europa desde o séc. xiv,
e de que a oposição entre «romanos» e «luteranos» constitui o aspecto
mais importante, passaram também por essa questão.
Desidério Erasmo, como sempre, soube condensar a problemática,
agora num adágio de sabor agostiniano, no qual explica a necessidade
de o cristão não abordar os livros sagrados «manibus illotis»; tal desiderato, porém, não se alcançava com as «nugacioribus nugae» dos
«recentiores», mas com o conhecimento «Graecae, Latinae, et Hebraicae linguae, denique et omnis antiquitatis» 83.
Parece-nos, pois, dever ser salientado que, se a filologia constitui a achega mais importante no campo da ciência literária levada
a cabo pelos humanistas, seria incorrecto concluir que a ela se reduziu
o Humanismo ou que este se tenha reduzido por sua vez à só exegese
bíblica, como se, tanto no pensamento religioso como no propriamente filosófico, outras interrogações e expectativas, outras respostas
e perspectivas não tivesse havido, e importantes. Aqui quisemo-nos
referir tão só a um vector que, pelo menos para o caso português,
parece ter sido importante 84.
82
Vid. na edição das Epistolae de 1544, apud Rutgero Réscio em Lovaina,
a carta «Damianus a Goes Nicolao Clenardo S.P.D.»,de 1537.
83
Vid. o adágio na edição Opera omnia, cit., II, 355 A.
84
O papel fundamental da filologia no pensamento do Renascimento não se
limitou ao campo aqui posto em evidência; as correntes neoplatónicas que marcaram
a cultura europeia muito mais profundamente do que poderá parecer à primeira
vista, alimentara m-se das traduções ficinianas de textos de Platão não utilizados na
Idade Média; sobre a importância desta corrente, inclusivamente no «dolce stil
CRÍTICA
E HUMANISMO
NO RENASCIMENTO
5]
Uma questão, porém, fica em suspenso, cujo tratamento não
caberia aqui aprofundai. É ela a do significado da crítica, em sentido
amplo, no séc. xvi. O que era, por exemplo, a crítica vicentina, uma
crítica tão apregoada restritivamente como «social»? A mesma pergunta se poria acerca da mirandina. Só a ignorância em que ainda
vivemos sobre a organização da vida social e mental do séc. xvi português— apesar dos esforços isolados de uns tantos—justifica que
se continue a dizer — e a escrever, para mal dos vindouros — que
Gil Vicente fez crítica social porque remeteu para o inferno fidalgos,
frades e juízes 8 5 . Geralmente esquece-se que fazer crítica — qualquer espécie de crítica, incluindo a literária — no séc. xvi, obrigava
fundamentalmente a ter em consideração as ligações dialécticas entre
o mundo das ideias e sentimentos religiosos e o conjunto ideológico
relativo ao comportamento social8<i. Não foi sem razão que o capítulo I do Enchiridion de Erasmo trazia o título: «Vigilandum esse
in vita» 87 .
JORGE ALVES OSóRIO
nuovo», vale a pena 1er os estudos sugestivos de Robert Klein editados postumamente por André Chastel sob o título La forme et l'intelligible, Paris 1970.
85
O problema da crítica vicentina não pode ser encarado seriamente sem
se considerar a função de «divertimento» que desse teatro se esperava; para tal é
necessário entrar em linha de conta com o papel do simbolismo alegórico de procedência medieval—e é conveniente ter presentes os trabalhos de Mário Martins
neste campo — assim como a circunstância de Gil Vicente ter podido 1er obras em
latim, conforme esclarecem os estudos de Américo da Costa Ramalho. Quanto a
Sá de Miranda, trabalhos de José Sebastião da Silva Dias, Eugénio Asensio e José
V. de Pina Martins têm acentuado as suas relações com o Humanismo europeu,
muito particularmente com o Erasmismo; sobre ele vid. o recente artigo de José
Adriano de Carvalho, «Os divinos livros» de Sá de Miranda: Bíblia ou Poesia?»,
in Colóquio!Letras, Lisboa. n.° 29 (Janeiro 1976), pp.23-34.
86
Curiosamente, há-de ser o aristotelismo, que tanto alimentou as ideias
sobre a dicotomia corpo-alma, que oferecerá alguns pontos de apoio filosóficos às
correntes de pensamento «experimentalista» do séc. XVII, quando o conceito de
«religioso» começar a sofrer funda alteração.
87
Enchiridion militis christiani, ed. Holborn, cit., p. 22.
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