OS VERBOS DE MODO DE MOVIMENTO NO PORTUGUÊS

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Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
OS VERBOS DE MODO DE MOVIMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Luana Lopes Amaral
Orientadora: Márcia Cançado
Belo Horizonte
2010
Luana Lopes Amaral
OS VERBOS DE MODO DE MOVIMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO
Monografia apresentada ao Colegiado de Graduação em
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em
Letras (habilitação em Linguística).
Orientadora: Profa. Dra. Márcia Cançado
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2010
Resumo
Este trabalho se insere na área de pesquisa que estuda a interface entre a sintaxe e a
semântica lexical. Assumimos, juntamente com outros autores, que propriedades semânticas
específicas das classes verbais determinam o comportamento dos verbos nas alternâncias
verbais das quais participam. Assim, descrevemos uma classe de verbos do português
brasileiro, ainda pouco estudada nessa língua, os verbos de modo de movimento, a fim de
investigar as propriedades semânticas desses verbos que têm papel de determinar seu
comportamento sintático. Esses verbos são verbos como sacudir, quicar e girar e descrevem
o modo como determinado objeto se move, sem que seja acarretada uma trajetória do
movimento. Além de descrever semantica e sintaticamente essa classe de verbos, pretendemos
descrever e explicar a alternância verbal da qual participa: um tipo de alternância transitivointransitiva. Tomando como base o trabalho de Cançado e Godoy (2010), propomos
representações semântico-lexicais para os verbos de modo de movimento do português
brasileiro, em termos de decomposição em predicados primitivos. Chegamos à conclusão de
que esses verbos podem ser subdivididos ainda em três classes de acordo com propriedades
sintáticas e semânticas, como a reflexivização e o aspecto lexical. Essa subdivisão não afeta a
alternância transitivo-intransitiva, já que a diferença que há entre esses verbos não tem relação
com a propriedade semântica relevante para a alternância: o modo de movimento. Ainda,
discordamos de alguns autores que propõem que os verbos de modo de movimento participam
da alternância causativo-incoativa. Mostramos a diferença entre verbos de modo de
movimento e verbos causativos e incoativos e porque a alternância em questão não se trata da
alternância causativo-incoativa.
Abstract
The present work is inserted in the research field which studies the syntax-lexical
semantics interface. We assume, together with other authors, that specific semantic properties
of verb classes determine the syntactic behavior of verbs within argument alternations. We
describe a verb class of Brazilian Portuguese, which has not been much treated in the
semantic literature of that language, the manner of movement verbs. We search for semantic
properties of these verbs that determine their syntactic behavior. These are verbs like
balançar, quicar and girar and they describe the manner how a determined object moves,
without the entailment of a path. Besides describing semantically and syntactically this verb
class, we also describe and explain the argument alternation in which it participates: a kind of
transitive-intransitive alternation. Following Cançado and Godoy (2010), we propose lexicalsemantic representations for the manner of movement verbs, in terms of predicate
decomposition. We conclude that these verbs can be subdivided in three classes, according to
their syntactic and semantic properties, like reflexivization and aktionsart. This subdivision
does not affect the transitive-intransitive alternation, since the difference between the verbs is
not related to the semantic property relevant to the alternation: the manner of movement. Still,
we disagree with some authors who propose that the manner of movement verbs participate in
the causative-inchoative alternation. We show the difference between manner of movement
verbs and causative and inchoative verbs and why the alternation is not the causativeinchoative.
Conteúdo
1. Introdução .......................................................................................................................... 6
2. Os verbos de modo de movimento na literatura ................................................................ 10
2.1 Levin e Rappaport (1992) e Levin (1993) ................................................................... 10
2.2 Jackendoff (1990) ....................................................................................................... 13
2.3 Talmy (1985) ............................................................................................................. 14
2.4 Ribeiro (2010) ............................................................................................................ 17
3 Referencial Teórico ........................................................................................................... 19
4 A nossa análise para os verbos de modo de movimento do PB .......................................... 25
4.1 Verbos de modo de movimento que denotam atividade: sacudir e quicar ................... 26
4.2 Verbos de modo de movimento causativos: girar ....................................................... 30
4.3 Estrutura de predicados .............................................................................................. 34
4.4 Alternância verbal ...................................................................................................... 38
5 Conclusões ........................................................................................................................ 43
6 Referências Bibliográficas................................................................................................. 45
Anexo .................................................................................................................................. 49
1. Introdução
Na literatura em Semântica Lexical, encontramos vários trabalhos sobre alternâncias
verbais e como essas alternâncias ocorrem em classes verbais específicas. Por exemplo, para o
inglês temos Levin (1993), Levin e Rappaport (1995), Hale e Keyser (2002), e outros; para o
português brasileiro, temos Cançado (2010), Ciríaco (2007), Godoy (2009), entre outros.
Neste trabalho, pretendemos contribuir com os estudos na interface sintaxe-semântica lexical
do português brasileiro (PB) através da descrição e da análise de uma classe verbal dessa
língua e de uma alternância verbal característica dessa classe. Assumimos, juntamente com
outros autores como Levin e Rappaport (1992, 1995), Cançado (2005, 2010), entre outros,
que as possibilidades das alternâncias verbais são determinadas por propriedades semânticas
sintaticamente relevantes das classes verbais.
A classe de verbos que tomamos como objeto de estudo são os verbos que
chamaremos de verbos de modo de movimento, pois são verbos que descrevem o movimento
de um objeto pelo ponto de vista do modo como se dá esse movimento, sem que haja a
descrição de uma trajetória. O objeto que sofre o movimento não tem necessariamente
controle sobre o evento. Verbos desse tipo são exemplificados a seguir:
(1) a. A empregada sacudiu os tapetes.
b. O menino quicou a bola de basquete.
c. O participante girou a roleta.
Esses verbos não expressam uma trajetória e não descrevem a direção do movimento,
nem implicitamente. Um objeto pode sacudir, quicar e girar sem sofrer mudança de lugar.
Segundo Levin e Rappaport (1992) e Talmy (1985), estas duas propriedades semânticas,
modo do movimento e direção do movimento, nunca são lexicalizadas pelo mesmo verbo, ou
seja, estão em distribuição complementar1. Alguns verbos do PB que lexicalizam a trajetória
são exemplificados a seguir:
1
O próprio Talmy cita contra exemplos para essa proposta, porém assume que esse tipo de lexicalização é raro.
Para Levin e Rappaport (2010) verbos que aparentemente lexicalizam modo e trajetória são, na verdade,
polissêmicos, de forma que em cada uso ou o verbo expressa modo ou trajetória, nunca os dois ao mesmo tempo.
Para o PB, podemos citar como contra exemplos a essa proposta verbos como rolar e caminhar, que são tratados
geralmente como verbos de modo de movimento. Esses verbos denotam o modo do movimento e acarretam uma
trajetória. Se um objeto rola, necessariamente ele muda de lugar. Jackendoff (1990) afirma que correr, no inglês
run, possui um argumento implícito que denota uma trajetória. Goldberg (2010) também cita contra exemplos e
propõe outro tipo de restrição para a lexicalização dos verbos.
6
(2) a. O brinquedo caiu no chão.
b. A menina foi para a casa da amiga.
c. A Maria voltou de Nova York.
Existe, ainda, um outro tipo de verbo que podemos também classificar como sendo de
modo de movimento. São verbos necessariamente agentivos como andar e correr2. Em um
primeiro momento, assumiremos que não é relevante separar esses verbos da classe maior de
verbos inergativos, que inclui verbos como falar e cantar. Além disso, esses verbos diferem
dos verbos que tomamos como objeto de estudo, por terem uma trajetória implícita. Se
alguém anda ou corre, anda ou corre de um lugar A até um lugar B. Deixaremos esses verbos
para uma pesquisa futura e neste trabalho, sempre que usarmos a denominação de verbos de
modo de movimento, estaremos nos referindo aos verbos que não acarretam trajetória nem
expressam direção do movimento e que denotam o movimento de um objeto, sem que este
tenha necessariamente controle sobre o evento.
O que nos leva a tomar os verbos de modo de movimento do PB como objeto de
estudo é o fato de que eles, assim como outros verbos do PB e de outras línguas, participam
de um tipo de alternância transitivo-intransitiva. Essa alternância ocorre quando um verbo
alterna o número de argumentos que toma, podendo aparecer tanto em uma forma intransitiva,
como em uma forma transitiva. Alguns autores, como Levin e Rappaport (1992, 1995) e
Ribeiro (2010), assumem que tal alternância se trata da alternância conhecida como causativoincoativa3. Entretanto, pretendemos mostrar que o tipo de alternância que ocorre com verbos
de modo de movimento, do ponto de vista semântico, não é o mesmo que ocorre com verbos
causativos e incoativos4. Vejamos o que estamos entendendo por alternância causativoincoativa.
A alternância causativo-incoativa é um processo semântico que possui um reflexo na
sintaxe na forma de uma alternância transitivo-intransitiva. Esse processo faz com que um
determinado predicador verbal alterne o número de argumentos que toma. Por exemplo,
verbos causativos como abrir podem aparecer na sintaxe com um argumento ou com dois:
2
Esses verbos podem ter usos não agentivos, como em A agulha andou/correu pelo corpo do rapaz ou em A
água correu, mas esses usos são claramente metafóricos e não invalidam a afirmação de que tais verbos são
agentivos.
3
Para mais detalhes sobre a alternância causativo-incoativa ver Levin e Rappaport (1995), Hale e Keyser (2002),
Ciríaco (2007), Ribeiro (2010), Chagas de Souza (1999) e Cançado e Amaral (2010).
4
Chamamos de verbos causativos verbos como quebrar, abrir, clarear e machucar. Chamamos de incoativos
verbos como amadurecer, apodrecer, murchar e talhar.
7
(3) a. A porta (se) abriu.
b. O menino/o vento abriu a porta.
Semanticamente, podemos analisar a alternância por meio de paráfrases. A forma transitiva
pode ser parafraseada da seguinte forma: um elemento X causa um elemento Y mudar de
estado. No exemplo em (3b), X é o menino ou o vento e Y é a porta. A forma intransitiva
pode ser parafraseada da seguinte forma: um elemento Y muda de estado. A forma transitiva,
que contém uma causa, é a contraparte causativa da alternância. A forma intransitiva, que só
expressa uma mudança de estado, é a contraparte incoativa 5. Sintaticamente, essa alternância
é um tipo de alternância transitivo-intransitiva e, nesse ponto, ela se assemelha a alternância
da qual participam os verbos de modo de movimento.
Neste trabalho, mostraremos que, na verdade, os verbos de modo de movimento são
diferentes dos verbos causativos e incoativos. Os verbos de modo de movimento não são
verbos de mudança de estado. Em um evento descrito por um verbo de modo de movimento,
o objeto não muda de estado, apenas sofre um movimento. Vejamos exemplos da alternância
transitivo-intransitiva que ocorre na classe de verbos de modo de movimento:
(4) a. O vento sacudiu a cortina.
b. A cortina sacudiu.
(5) a. O jogador quicou a bola de basquete.
b. A bola de basquete quicou.
(6) a. O Joãozinho girou a roleta.
b. A roleta girou.
Portanto, a hipótese que norteará esta pesquisa é a de que a alternância transitivointransitiva que ocorre com os verbos de modo de movimento é um processo sintático que
ocorre também com verbos causativos e incoativos. Porém, semanticamente, a alternância em
questão é específica dessa classe de verbos e sofre restrições de propriedades semânticas que
compõem os verbos dessa classe. Os objetivos deste trabalho são descrever os verbos de
5
O termo incoativo é muitas vezes utilizado na literatura para tratar de fenômenos diferentes. Segundo
Haspelmath (1987) o termo é utilizado na tradição da linguística americana para caracterizar verbos que
descrevem a transição para um estado. Para Jackendoff (1990), incoativo é um evento cujo ponto final é um
estado. Em outras abordagens, o termo se refere a um tipo de aspecto que especifica o início de uma ação
(Crystal, 2000).
8
modo de movimento do PB; explicar e caracterizar semanticamente a alternância transitivointransitiva da qual eles participam e propor uma representação lexical, em termos de
decomposição em predicados primitivos para essa classe de verbos.
Os procedimentos metodológicos a serem seguidos são coleta de dados através do
dicionário de Borba (1990) e dos trabalhos de Levin (1993) e Ribeiro (2010), aplicação de
testes aspectuais para verificar o aspecto lexical desses verbos, criação de sentenças
gramaticais e agramaticais com os verbos coletados.
Analisaremos os dados coletados tomando como quadro teórico o trabalho de Cançado
e Godoy (2010).
Esta monografia se organiza da seguinte forma: na parte seguinte, discutimos os
principais trabalhos encontrados na literatura sobre os verbos de modo de movimento; na
parte 3, apresentamos o referencial teórico adotado na pesquisa; na parte 4, mostramos a
nossa análise para os verbos de modo de movimento do PB; concluímos a monografia na
parte 5.
9
2. Os verbos de modo de movimento na literatura
2.1 Levin e Rappaport (1992) e Levin (1993)
No trabalho de Levin e Rappaport (1992), as autoras estão preocupadas com a relação
entre a classe de verbos de movimento e o fenômeno da inacusatividade. Tomados como
pertencentes a uma única classe verbal, os verbos de movimento pareciam ser um grande
contra exemplo para a Hipótese Inacusativa. A Hipótese Inacusativa, como formulada por
Perlmutter (1978) e adotada por Burzio (1986), é uma hipótese sintática que propõe que os
verbos intransitivos são divididos em duas classes: verbos inergativos e inacusativos, cada
uma associada a uma configuração sintática diferente. O único argumento de um verbo
inergativo possui propriedades de sujeito e o único argumento de um verbo inacusativo possui
propriedades de objeto direto.
Além de propriedades sintáticas, cada classe de verbos intransitivos apresenta
propriedades semânticas em comum, o que levou os pesquisadores a postularem a
determinação da semântica sobre a inacusatividade. Segundo as autoras, é possível, através da
Hipótese Inacusativa postular uma regra de correspondência entre a sintaxe e a semântica que
determina a qual classe o verbo pertencerá. Argumentos agentes são sujeitos em Estrutura
Profunda e argumentos pacientes são objetos diretos em Estrutura Profunda. Também, classes
semânticas de verbos tendem a se comportar da mesma forma com relação à inacusatividade.
Através dessas propriedades, foram propostos vários testes para saber se um verbo
intransitivo se comporta como inergativo ou inacusativo. Esses testes foram chamados de
diagnósticos de inacusatividade. Porém, nem sempre esses diagnósticos agrupavam a mesma
classe semântica. Os verbos de movimento, por exemplo, não apresentam comportamento
uniforme com relação aos diagnósticos de inacusatividade. Alguns verbos de movimento se
comportam como inacusativos, outros como inergativos e outros, ainda, parecem se
comportar como ambos, dependendo do uso.
Levin e Rappaport propõem então que a inacusatividade é semanticamente
determinada, ou seja, as propriedades semânticas de um verbo, como os papéis temáticos que
esse verbo atribui a seus argumentos, como o seu aspecto lexical ou como outras partes de seu
sentido, determinam se ele será um verbo inacusativo ou inergativo. O fato de que os verbos
10
de movimento não se comportam da mesma forma com relação aos diagnósticos de
inacusatividade é evidência de que movimento não é uma das propriedades semânticas que
determinam inacusatividade. Isso quer dizer que verbos que denotam movimento, que tem
essa propriedade semântica como parte de seu significado, não se comportam da mesma
forma com relação à inacusatividade. Podem existir verbos de movimento inacusativos e
inergativos. As autoras propõem, então, que os verbos de movimento não formam uma classe,
mas que entre eles existem três classes distintas, cada qual se comportando uniformemente
com relação aos diagnósticos de inacusatividade. As três classes que elas propõem são:
a) classe de arrive
Esses verbos incluem em seu significado a direção do movimento; denotam achievements6 e
são inacusativos. Direção do movimento é a propriedade semântica que diferencia essa classe
das outras duas. Exemplos em português (traduzidos dos exemplos em inglês das autoras) são:
chegar, ir, cair, retornar e partir.
b) classe de roll
Os verbos dessa classe são verbos cujo significado inclui a maneira como ocorre o
movimento; denotam atividades e também são inacusativos. Exemplos em português
(traduzidos dos exemplos em inglês das autoras) são: rolar, escorregar, mover, balançar.
c) classe de run
Esses verbos são inergativos e, como no caso dos verbos da classe de roll, o significado dos
verbos dessa classe inclui a maneira como ocorre o movimento; também denotam atividades.
Exemplos em português (traduzidos dos exemplos em inglês das autoras) são: correr, andar,
galopar, pular e nadar.
O que diferencia os verbos da classe de roll dos verbos da classe de run é um traço
proposto pelas autoras denominado DIRECT EXTERNAL CAUSE (DEC). Esse traço
especifica se a ação denotada pelo verbo só ocorre espontaneamente ou se é diretamente
causada por um agente ou uma força externa. É também o valor desse traço que determina se
um verbo será inergativo ou inacusativo. Verbos da classe de roll são +DEC, por isso
inacusativos. Verbos da classe de run são -DEC, por isso inergativos.
6
O aspecto lexical, ou aksionsart, é uma propriedade semântica dos verbos que se relaciona com o modo como
o evento ou estado denotado por um verbo se dá no decorrer do tempo. Tradicionalmente, segundo Vendler
(1967), os verbos podem ser divididos em quatro classes aspectuais diferentes: estados, atividades,
accomplishments e achievements. Os estados são situações que não mudam, não se desenvolvem no decorrer do
tempo, como O João sabe matemática. As atividades são processos que não possuem um ponto final definido,
como O João nada. Os accomplishments são eventos que caminham para um ponto final, que é o resultado de
outro evento, como em A Maria abriu a janela. Por último, os achievements são eventos que não se estendem no
tempo, como O menino chegou.
11
Até aqui, a proposta das autoras consegue explicar os diferentes comportamentos dos
verbos de movimento com relação à inacusatividade. Porém, o aspecto lexical é uma
propriedade semântica relevante para a determinação da inacusatividade. Verbos inacusativos
são normalmente verbos que denotam achievements, porém os verbos da classe de roll
denotam atividades e ainda assim são classificados através dos diagnósticos como
inacusativos. Levin e Rappaport propõem, então, que, nesse caso, o traço DEC é mais
determinante que o aspecto lexical. É somente nessa classe de verbos que a inacusatividade é
determinada inteiramente pelo valor do traço DEC.
Sobre os verbos da classe de roll, que são os que mais nos interessam aqui, as autoras
dizem que são verbos de modo de movimento cujo significado implica uma causa externa
direta. O argumento desses verbos não tem necessariamente controle sobre o evento. A
causativização desses verbos é uma evidência disso. As autoras apontam que é uma
propriedade de verbos +DEC participarem da alternância causativo-incoativa, mas nem todos
os verbos da classe de roll participam da alternância. Verbos como glide 'escorregar, deslizar'
e drift7 'flutuar, mover-se lentamente' não permitem que o movimento seja controlado por uma
força externa, por isso, não aceitam causativização. Exemplos de outros verbos +DEC no
português (traduzidos dos exemplos em inglês das autoras) são esfriar, endurecer, secar e
quebrar. Todos participam da alternância causativo-incoativa no PB.
Os modos lexicalizados nos verbos da classe de roll não especificam se as ações que
os verbos denotam são causadas por uma força externa ou por um agente que tem controle
sobre o próprio movimento. Por exemplo, a sentença em (7) é ambígua nesse sentido:
(7) O João girou.
Por fim, uma conclusão importante das autoras é que as propriedades semânticas
modo e direção do movimento estão em distribuição complementar, ou seja, um verbo que
denota a direção do movimento não lexicaliza também o modo do movimento e um verbo que
denota o modo do movimento não lexicaliza também a direção do movimento. Além disso,
essas propriedades parecem ter uma correspondência com telicidade, de modo que verbos que
expressam modo são atélicos e verbos que expressam direção são télicos.
7
Esses verbos não possuem uma tradução exata para o português. O inglês é uma língua que tende a lexicalizar
movimento e modo de movimento, enquanto o português é uma língua que tende a lexicalizar movimento e
trajetória, como veremos mais adiante. Por isso, é esperado que encontremos muitos verbos de modo de
movimento do inglês que não possuem uma tradução correspondente no português.
12
Para as autoras, esses verbos são basicamente transitivos como os outros verbos que
participam da alternância causativo-incoativa.
A proposta de Levin e Rappaport é interessante para tratar do problema da
determinação semântica sobre o fenômeno da inacusatividade. Porém, a classe que elas
chamam classe de roll pode não ser uma classe relevante para outros fenômenos sintáticos e
pode também não ser uma classe semanticamente uniforme, dependendo da propriedade
semântica que se toma como referência.
Seguindo Levin e Rappaport (1992), Levin (1993) divide os verbos de modo de
movimento em dois grupos: classe de run e classe de roll. A autora afirma que verbos da
classe de roll participam da alternância causativo-incoativa com algumas exceções. Isso
sugere que há ainda classes mais específicas dentro dessa classe. Levin coloca como uma
subclasse da classe de roll verbos de movimento em torno de um eixo, como rodar e girar.
2.2 Jackendoff (1990)
Para Jackendoff, os verbos de modo de movimento descrevem o movimento de um
objeto, mas não implicam que esse objeto percorre uma trajetória. Exemplos no português
(traduzidos dos exemplos do autor para o inglês) são: requebrar, dançar, girar e balançar.
Verbos como esses descrevem o movimento interno de um objeto. Não descrevem locação,
mudança de lugar, ou configuração em relação a outro objeto. Isso sugere que a função em
questão (o verbo) toma um único argumento. Além disso, outro motivo para dizer que esses
verbos são intransitivos é o paralelismo entre os verbos de modo de movimento não agentivos
e os verbos de modo de movimento agentivos, que Jackendoff agrupa em uma mesma classe.
O autor não parece levar em conta a alternância transitivo-intransitiva e como os verbos de
modo de movimento agentivos são intransitivos e não participam de uma alternância
transitiva, os verbos de modo de movimento não agentivos também são tratados como
intransitivos por pertencerem à mesma classe.
Jackendoff propõe para esses verbos a seguinte representação:
(8) [Event MOVE (Thing
)]
13
A representação em (8) é uma decomposição do sentido dos verbos de modo de movimento. É
composta por uma função MOVE, que indica a parte comum do sentido desses verbos. Essa
função toma um argumento, que é da categoria ontológica das coisas (Thing). O constituinte
conceptual formado pela função e seu argumento é da categoria ontológica dos eventos
(Event). A função MOVE diferencia esses verbos de verbos de movimento que implicam
trajetória. Esses verbos são representados pela função GO, que é biargumental e toma um
argumento que é o objeto que se move e um argumento que é a trajetória percorrida pelo
objeto.
O autor também propõe que a diferença entre os verbos de modo de movimento não
está codificada na estrutura conceptual (o componente da gramática que comporta a
semântica). A estrutura em (8) vale para todos os verbos de modo de movimento, não
apresenta diferenças entre os verbos. Esses verbos se diferenciam somente em uma estrutura
visual-espacial que está ligada à estrutura conceptual.
O problema da proposta de Jackendoff é que, segundo o próprio autor, somente
propriedades semânticas codificadas na estrutura conceptual são visíveis na sintaxe. Assim, a
diferença entre verbos de modo de movimento como dançar e andar e verbos de modo de
movimento como girar e balançar não seriam relevantes sintaticamente. O que não ocorre na
realidade. Esses verbos se diferenciam em várias propriedades sintáticas, ou seja, é relevante
que eles sejam agrupados em classes diferentes e que tenham representações diferentes. Um
exemplo dessa distinção na sintaxe é a própria alternância transitivo-intransitiva e a
inacusatividade (como mostram Levin e Rappaport, 1992).
2.3 Talmy (1985)
Nesse texto, Talmy trata da relação sistemática encontrada nas línguas entre elementos
semânticos e elementos sintáticos. Elementos semânticos são Movimento, Trajetória, Modo,
Causa, entre outros. Elementos sintáticos são verbo, adposição, oração subordinada, entre
outros. O autor mostra que a relação entre esses dois tipos de elementos linguísticos não é
um-para-um, mas mesmo assim obedece a regras específicas. A preocupação do autor é
justamente encontrar essas regras e observar seu comportamento em diferentes línguas a fim
de descobrir se as regras são particulares e cada língua se comporta de uma forma, se elas
14
apresentam um certo padrão tipológico ou se podem ser aplicadas a todas as línguas, ou seja,
se são universais.
Para isso, Talmy elegeu a raiz verbal como elemento sintático a ser investigado. Ele
busca quais elementos semânticos são lexicalizados nas raízes verbais. A lexicalização está
envolvida quando um componente de significado particular é associado regularmente a um
morfema particular.
Para a expressão do elemento semântico Movimento, Talmy propõe que existem três
padrões de lexicalização nas línguas do mundo. Cada língua elege um destes padrões:
a) Lexicalização de [Movimento + Modo/ Causa]
Línguas que elegem esse padrão possuem verbos de movimento que especificam o modo
como se dá o movimento ou a causa do movimento.
b) Lexicalização de [Movimento + Trajetória]
Línguas que elegem esse padrão possuem verbos de movimento que especificam a trajetória
que o objeto movido percorre, ou a direção do movimento.
c) Lexicalização de [Movimento + Objeto que move]
Línguas que elegem esse padrão possuem verbos que especificam o tipo de objeto que está
sendo movido. Por exemplo, uma língua desse tipo terá verbos diferentes para descrever o
movimento de objetos redondos e de objetos não redondos.
O quadro abaixo mostra quais línguas apresentam quais padrões (adaptado de Talmy,
1985):
Línguas/Famílias de línguas
Componente semântico lexicalizado no
verbo de movimento
Românicas
[Movimento + Trajetória]
Semíticas
Polinésias
Nez Perce
Caddo
Indo-européias, exceto Românicas
[Movimento + Modo/Causa]
Chinês
Atsugewi
[Movimento + Objeto que move]
Navajo
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O fato de uma língua eleger um padrão de lexicalização não significa que ela não
possua verbos de outros tipos. Talmy afirma que qualquer língua usa apenas um desses tipos
para o verbo em sua expressão mais característica do movimento. Expressão mais
característica significa o uso coloquial, o uso frequente e uma grande quantidade de itens
lexicais na língua. Podem ocorrer lexicalizações fora do padrão nas línguas, mas esses casos
serão especiais e muito restritos.
O que nos interessa mais na tipologia de Talmy é o padrão de lexicalização
[Movimento + Modo]. Verbos desse tipo expressam a maneira do movimento. O autor
apresenta três formas em que podem aparecer os verbos que expressam movimento e modo de
movimento: não agentiva, agentiva e auto-agentiva. A forma não agentiva se caracteriza por
descrever um evento autônomo, sem o desencadeamento de forças externas ou do próprio
objeto movido. Por exemplo:
(9) A garrafa girou.
A forma agentiva é o uso dos verbos na alternância transitiva. Nesse caso, existe um agente
que provoca o movimento de um objeto que não tem controle sobre o evento:
(10) O Joãozinho girou a garrafa.
A terceira forma é um uso específico em que o agente provoca o movimento do próprio corpo.
A forma auto-agentiva tem uma interpretação reflexiva, ou seja, o agente age sobre ele
mesmo, porém não apresenta uma forma reflexiva com se:
(11) O menino girou (no ritmo da música).
Os dados desta pesquisa estão de acordo com a proposta de Talmy. Os verbos de modo
de movimento do PB são poucos, como previsto para uma língua românica. Além disso,
encontramos também as três formas desses verbos no PB: não agentiva, agentiva e autoagentiva, como exemplificadas em (9)-(11).
16
2.4 Ribeiro (2010)
O objetivo do trabalho de Ribeiro é explicar a ocorrência do clítico se nas formas
intransitivas dos verbos que participam da alternância causativo-incoativa no PB. Segundo o
autor, os verbos de modo de movimento participam da alternância causativo-incoativa sem o
se. Para ele, a ausência do clítico se nas formas intransitivas desses verbos se deve à sua
estrutura argumental básica. Ribeiro assume que esses verbos são basicamente intransitivos e
que o clítico se sinaliza a retirada de um argumento da estrutura argumental de um verbo.
Assim, o clítico se não ocorre nas formas intransitivas dos verbos de modo de movimento, já
que esses verbos são basicamente intransitivos e nenhum argumento é retirado de sua
estrutura argumental. O autor conclui que esses verbos sofrem um processo de causativização,
e não de incoativização.
O autor conclui para os verbos de modo de movimento que "Assim, não seria
necessária a utilização do clítico se para evitar a ambiguidade [em relação ao papel temático
do argumento - sempre tema], o que explicaria o comportamento destes verbos em relação ao
uso deste clítico."
A proposta de Ribeiro apresenta alguns problemas. Como já dissemos anteriormente, é
um problema assumir que a alternância em questão é a alternância causativo-incoativa.
Sintaticamente, as alternâncias que ocorrem com verbos causativos e incoativos e com verbos
de modo de movimento são as mesmas. Porém, não podemos assumir que se tratam da mesma
alternância do ponto de vista semântico. Mostraremos o porquê na parte 4.
Outro problema é sugerir que o clítico se é um desambiguizador de ambiguidades de
papel temático e que, por isso, não é necessária a inserção do clítico na forma intransitiva dos
verbos de modo de movimento. Alguns verbos de modo de movimento geram ambiguidade de
papel temático na forma intransitiva. É o que ocorre em casos como A menina girou, em que a
menina pode ter girado propositalmente ou não. O papel temático dos argumentos de verbos
de modo de movimento não pode ser tratado unicamente como Tema. Existem outras
propriedades semânticas acarretadas pelos verbos a seus argumentos que são relevantes e que
não estão incluídas no rótulo Tema. Na literatura8, encontramos trabalhos que problematizam
os rótulos dados aos papéis temáticos, especialmente a noção de Tema, que geralmente é
8
Problemas da abordagem que trata os papéis temáticos como unidades indivisíveis e problemas de se utilizar
rótulos como agente, paciente e tema são abordados por vários autores. Dentre eles Jackendoff (1990), Levin e
Rappaport (2005), Dowty (1991) e Cançado (2005).
17
muito vaga, sendo utilizada às vezes como sinônimo de Paciente ou para rotular o papel
temático de um objeto em movimento.
18
3 Referencial Teórico
Para representar e definir a classe de verbos de modo de movimento do PB, explicar e
caracterizar a alternância transitivo-intransitiva que ocorre nessa classe e mostrar as
propriedades semântico-lexicais relevantes, utilizaremos a decomposição dos itens lexicais
em predicados primitivos. Tomaremos como base a proposta de representação lexical de
Cançado e Godoy (2010).
Cançado e Godoy propõem uma representação lexical para os verbos do PB em dois
níveis: um nível semântico-lexical e um nível sintático-lexical. O nível semântico-lexical
organiza e caracteriza semanticamente as classes verbais e é dado em termos de
decomposições em predicados primitivos. O nível sintático-lexical é o nível que faz a
correspondência entre as propriedades semânticas dos verbos e sua realização sintática
sentencial. Esse nível é dado em termos das estruturas arbóreas propostas por Hale e Keyser
(2002). Seguindo a proposta inicial de Cançado (2010), que propõe associar a estrutura de
decomposição de predicados às estruturas de Hale e Keyser (2002), Cançado e Godoy
expandem e aprofundam a idéia da vinculação entre esses dois níveis de representação lexical.
Primeiramente, vejamos a representação semântico-lexical. Segundo Rappaport
(2006), a decomposição de itens lexicais em predicados primitivos foi introduzida pelos
pesquisadores da semântica gerativa com o propósito de capturar relações temáticas entre
usos de predicadores. A decomposição em predicados primitivos é uma representação do
sentido dos verbos formulada em termos de um ou mais predicados primitivos. O significado
dos verbos é decomposto em unidades menores. Os predicados primitivos são unidades de
sentido recorrentes nos sentidos dos verbos. Por exemplo, verbos de mudança de estado
compartilham a propriedade semântica de mudança de um estado A para um estado B. A
unidade de sentido Mudança é representada pelo predicado BECOME. As representações
formadas a partir da decomposição em predicados primitivos são compostas por predicados
primitivos, argumentos (indicados pelas variáveis X, Y, Z, etc.) e um elemento idiossincrático
do verbo, a raiz, que o diferencia dos outros verbos da mesma classe. A idéia é que todo verbo
que expresse Mudança seja composto pelo predicado BECOME e assim ocorra com os demais
predicados. A decomposição dos itens lexicais em predicados primitivos é uma ferramenta de
análise que nos permite revelar propriedades semânticas comuns às classes de verbos,
19
possibilitando-nos descrevê-las semanticamente e isolar as propriedades semânticas
relevantes para as alternâncias argumentais das quais participam os verbos.
Cançado e Godoy propõem estruturas de decomposição em predicados primitivos para
as classes de verbos de resultado do PB. Os verbos de resultado são divididos pelas autoras
em verbos de mudança de estado e verbos de ação. Dentre os verbos de mudança de estado,
estão os verbos causativo/agentivos, estritamente causativos e incoativos. Vejamos as
estruturas semântico-lexicais que as autoras propõem para esses verbos.
Para os verbos causativo/agentivos, como quebrar, abrir e clarear, as autoras seguem
Cançado (2010) e propõem a estrutura:
(12) v: [[X (ACT) ] CAUSE [Y BECOME <STATE> ]]
Na estrutura acima, X é uma força externa, como um agente, um instrumento ou mesmo uma
eventualidade. Os parênteses no predicado ACT indicam que volição é uma propriedade
opcional para o argumento X desses verbos. Y é a entidade afetada e STATE é a raiz, ou seja, o
verbo denota uma mudança de estado, e não de lugar, por exemplo.
Os verbos estritamente causativos, como preocupar e aborrecer, terão uma pequena
distinção semântica com relação aos verbos causativo/agentivos:
(13) v: [[X] CAUSE [Y BECOME <STATE> ]]
A ausência do predicado ACT na estrutura dos verbos estritamente causativos expressa uma
propriedade semântica peculiar dessa classe de verbos: uma eventualidade, seja um evento ou
estado, é que causa a mudança de estado de Y. Como no caso dos verbos causativo/agentivos,
a mudança é de estado.
Os verbos incoativos são verbos intransitivos que aceitam causativização. O
argumento que entra na estrutura argumental de um verbo incoativo só pode ser uma causa,
assim como o argumento X dos verbos estritamente causativos. Verbos incoativos são verbos
como amadurecer, embolorar e enferrujar. Para eles, as autoras adotam a estrutura em (14),
seguindo a proposta de Cançado e Amaral (2010):
(14) v: ([X] CAUSE) [Y BECOME <STATE>]
20
Nessa estrutura, X é uma eventualidade que pode ser acrescentada ao verbo, ou seja, a causa
não é inerente ao verbo incoativo.
Todos os verbos de mudança de estado possuem semelhanças e diferenças entre si. As
diferenças são encontradas na parte da estrutura em que se situa o argumento X. O que esses
verbos têm em comum é serem verbos de mudança de estado. A parte da estrutura semântica
desses verbos que explicita essa propriedade semântica é igual para os três tipos de verbo.
Dentre os verbos de ação, as autoras destacam três tipos de verbo: verbos de location,
verbos de locatum e verbos benefactivos.
Para os verbos chamados verbos de location, como hospitalizar, engarrafar e
engavetar, as autoras propõem a estrutura:
(15) v: [[X ACT] CAUSE [Y BECOME [IN <PLACE> ]]]
O predicado ACT fora de parênteses indica que esses verbos são estritamente agentivos. A
categoria ontológica da raiz desses verbos é um lugar. Isso quer dizer que o resultado final
denotado por esses verbos é uma mudança de lugar.
Outra classe de verbos estritamente agentivos são os verbos chamados de locatum,
como amanteigar, algemar e selar. A estrutura proposta para esses verbos é:
(16) v: [[X ACT] CAUSE [Y BECOME [WITH <THING>]]]
Verbos de locatum apresentam uma estrutura que reflete o resultado final de Y: não tinha algo
e passa a ter algo. As autoras sugerem que também verbos benefactivos, como ajudar,
premiar e indenizar possuem essa estrutura. Elas ressaltam que talvez a única diferença entre
verbos benefactivos e verbos de locatum seja o fato de a denotação da raiz ser algo mais
abstrato, como ajuda ou prêmio e não algo concreto como manteiga, algema e sela.
Tomando as estruturas apresentadas acima como a representação semântico-lexical das
classes de verbos de resultado do PB e assumindo que tais propriedades semânticas
determinam as configurações dos argumentos dos verbos na sintaxe, as autoras propõem que a
sintaxe lexical de Hale e Keyser (2002) tem o papel de hierarquizar os argumentos dos verbos
e fazer a interface entre a semântica lexical e a sintaxe sentencial.
Na decomposição de predicados, a raiz é um elemento que representa o sentido
idiossincrático do verbo e pode ser classificada quanto a uma ontologia das raízes. Nas
21
estruturas sintático-lexicais, a raiz é um elemento pertencente a uma categoria gramatical. As
autoras propõem, então, que as raízes das estruturas semânticas serão projetadas nas estruturas
sintáticas de acordo com a categoria ontológica a que pertencem. É a raiz que relaciona os
dois níveis de representação lexical. Os verbos causativo/agentivos, os verbos estritamente
causativos e os verbos incoativos têm uma raiz da categoria ontológica dos estados (STATE).
Essa informação é projetada na sintaxe lexical do verbo como um adjetivo. Isso faz com que a
estrutura argumental desses verbos seja representada na sintaxe lexical por uma estrutura
sintática cuja raiz é de natureza adjetival. É essa a estrutura que permite que ocorra na sintaxe
sentencial a alternância causativo-incoativa. A parte da estrutura semântica que é relevante
para a projeção desses verbos na sintaxe lexical é [Y BECOME <STATE>]. Então, nesse
nível, as três classes de verbos se comportarão da mesma maneira. A parte da estrutura que
diferencia esses verbos será relevante para outros fenômenos sintáticos, como a passivização.
Verbos de location, locatum e benefactivos possuem raízes das categorias ontológicas
lugar (PLACE) e coisa (THING). Esses verbos serão projetados em uma estrutura cuja raiz é
um nome. Essa estrutura não possibilita a ocorrência da alternância causativo-incoativa. E
nesse ponto, também os três tipos de verbos de ação não se diferenciam. Entretanto, as
diferenças semânticas entre esses verbos podem ser relevantes para outros fenômenos
sintáticos. Um dos argumentos de Cançado e Godoy para a subdivisão dos verbos de ação em
três grupos é o comportamento deles com relação à construção reflexiva.
Assim, Cançado e Godoy conseguem prever a configuração sintática dos argumentos
dos verbos de acordo com propriedades semânticas das classes verbais. Neste trabalho,
proporemos apenas uma representação semântico-lexical para a classe de verbos de modo de
movimento do PB. Deixaremos uma proposta de representação sintático-lexical para um
trabalho futuro.
As autoras não tratam dos verbos de maneira ou modo, mas focam sua análise nos
verbos de resultado, que são verbos que estabelecem uma relação causal entre dois subeventos
e acarretam um resultado final. Dessa forma, assumiremos as propostas das autoras para esses
verbos e as estenderemos à classe de verbos de modo de movimento do PB.
Para estender as idéias das autoras aos verbos de modo de movimento, utilizaremos,
além das estruturas propostos por elas, alguns elementos da decomposição lexical encontrados
na literatura, como um conectivo que não estabelece relação de causa, um predicado para
exprimir movimento e uma raiz que seja adequada aos verbos de modo de movimento.
22
Primeiramente, vamos esclarecer o conceito de causa. Goldberg (2010) define a
relação de causa como uma relação entre dois eventos, e1 e e2, que não se sobrepõem
temporalmente, ou seja, e2 ocorre depois de e1, e e1 é suficiente para desencadear e2.
Também Wunderlich (no prelo) afirma que existe uma relação de causa se os elementos a
serem relacionados estão ordenados temporalmente em sequência. Lewis (1973) e Dowty
(1979), ambos apud Wunderlich (no prelo), também consideram a causação primeiramente
como uma relação entre eventos. Dois subeventos de um evento complexo, não podem
ocorrer concomitantemente. Por isso a relação de causa, que é uma relação entre eventos, está
relacionada à temporalidade, ou à sobreposição de tempos.
Cançado e Godoy (2010) utilizam o predicado CAUSE para ligar dois eventos que se
relacionam por uma causação na estrutura semântico-lexical. Já Wunderlich (no prelo) utiliza
o conectivo & para ligar dois componentes de um evento, sejam eles concomitantes, situados
em um mesmo tempo, ou em relação de causa. O autor elimina o predicado CAUSE e sugere
que & terá uma leitura de causa sempre que os dois elementos ligados pelo conectivo não
forem sobrepostos temporalmente e que o primeiro desencadeie o segundo.
Seguindo Godoy (em prep.), adotaremos o predicado CAUSE para ligar dois
subeventos relacionados por uma causação na estrutura de predicados e utilizaremos o
conectivo & proposto por Wunderlich (no prelo) somente para ligar dois elementos de um
evento único na estrutura de predicados.
Também utilizaremos o predicado MOVE proposto por Jackendoff (1990). O autor
representa verbos de modo de movimento como requebrar, dançar, girar e balançar com o
predicado MOVE porque esses são verbos que expressam o movimento interno de um objeto,
sem implicações com respeito a locação e trajetória. Como explicitamos na seção 2.2, esses
verbos não podem ser decompostos em uma função GO. A função MOVE é monoargumental
e toma um argumento que é o objeto que se move. Cada um desses verbos expressa uma
maneira específica de movimento, porém, para Jackendoff, essa maneira específica não está
codificada na estrutura conceptual. Repetimos em (17) a estrutura proposta pelo autor para os
verbos de modo de movimento:
(17) [Event MOVE (Thing
)]
A proposta do autor é que esses verbos se diferenciam somente em uma estrutura visualespacial que está ligada à estrutura conceptual.
23
Entretanto, seguimos a proposta de Rappaport e Levin (1998) e também de Cançado e
Godoy (2010) de que o sentido idiossincrático dos verbos, o que os diferencia dos outros
membros da mesma classe, é codificado na raiz, que é representada na estrutura semânticolexical do verbo. Dessa forma, o modo específico do movimento de cada verbo será
codificado na raiz.
Segundo Rappaport e Levin (1998), as raízes podem ser inseridas na estrutura de
decomposição em predicados primitivos de duas formas. Uma raiz pode ser argumento de um
predicado, como é o caso das raízes dos verbos de resultado, ou pode servir como modificador
de um predicado. As autoras afirmam que uma raiz que tem o papel de modificador de um
predicado é a mais apropriada para representar o sentido idiossincrático dos verbos de modo
de movimento, que se diferenciam somente na maneira específica do movimento. Uma raiz
desse tipo é da categoria ontológica "manner" 'maneira' e é notada como subscrito ao
predicado que modifica. Apesar de afirmarem que essa é a raiz ideal para os verbos de modo
de movimento, as autoras não propõem uma estrutura para os verbos de modo de movimento
não agentivos. A estrutura que as autoras propõem é para os verbos de modo de movimento
agentivos, como correr e andar:
(18) v: [X ACT <MANNER>]
Não podemos adotar a estrutura das autoras por dois motivos: primeiro, o argumento
do predicado ACT é um ser que age intencionalmente, ou por força própria. Essa não seria a
representação ideal para verbos de modo de movimento em sentenças como A cortina
saucdiu, em que o argumento apenas sofre o movimento, não tendo nenhum papel no
desencadeamento do evento. Também, essa estrutura não diferencia os verbos de modo de
movimento de outros verbos de maneira como cantar e falar, já que a raiz especifica maneira
e não maneira de movimento. Além disso, já ressaltamos na seção 2 a importância de se
separar os verbos de modo de movimento agentivos dos verbos de modo de movimento não
agentivos.
Concluindo, para propor representações semântico-lexical para os verbos de modo de
movimento do PB tomaremos como base a proposta de Cançado e Godoy (2010) e a
estenderemos utilizando para isso algumas adaptações de outras propostas encontradas na
literatura, as de Wunderlich (no prelo), Rappaport e Levin (1998) e Jackendoff (1990).
24
4 A nossa análise para os verbos de modo de movimento do PB
De acordo com a proposta de Talmy (1985), o português é uma língua que tende a
lexicalizar Trajetória em seus verbos de movimento. Por isso, os verbos que lexicalizam o
modo de movimento devem ser especiais e restritos nessa língua. Nossos dados do PB
evidenciam esse fato, já que os verbos de modo de movimento são muito poucos quando
comparados a outras classes verbais9, principalmente a dos verbos de trajetória 10. Em nossa
análise, conseguimos encontrar apenas 11 verbos que mostraram as características de
denotarem o modo como um objeto se move, sem expressar trajetória ou direção do
movimento e sem que o objeto que se move tenha necessariamente controle sobre o
movimento. Esses dados foram escolhidos de um conjunto de verbos coletados através do
dicionário de Borba (1990). Alguns verbos foram excluídos do nosso corpus por serem pouco
usados, por exemplo, verbos como menear e fremir.
Primeiramente, além de denotar modo de movimento, esses verbos também participam
de uma alternância transitivo-intransitiva que é exemplificada a seguir:
(19) a. O vento sacudiu a árvore.
b. A árvore sacudiu.
(20) a. O jogador quicou a bola de basquete.
b. A bola de basquete quicou.
(21) a. O menino girou o pião.
b. O pião girou.
Entretanto, por trás de uma aparente uniformidade entre as formas em que esses verbos
ocorrem na alternância, existem peculiaridades em cada caso. Vejamos cada um deles.
9
Amaral (2009) apresenta cerca de 70 verbos para a classe dos verbos incoativos, Godoy (2008) apresenta cerca
de 200 verbos para classe dos verbos recíprocos, Cançado (1995) apresenta cerca de 300 verbos para a classe dos
verbos psicológicos, Moreira (2000) apresenta mais de 100 verbos para a classe dos verbos estativos, Wenceslau
(2003) apresenta mais de 350 verbos da classe dos verbos beneficiários, Silva (2002) apresenta mais de 300
verbos de locação, Ciríaco (2007) apresenta cerca de 200 verbos para a classe dos verbos causativos. Dados de
classes verbais do PB estão disponíveis em www.letras.ufmg.br/nucleos/nupes.
10
Corrêa (2005) faz um levantamento de mais de 200 verbos para essa classe.
25
4.1 Verbos de modo de movimento que denotam atividade: sacudir e quicar
Verbos como sacudir são verbos que denotam um movimento oscilatório, de um lado
para outro. Em um processo de alternância verbal transitivo-intransitiva, como em (19b),
esses verbos perdem um argumento que é o provocador do movimento oscilatório. No caso
desses verbos, o provocador do movimento pode ser um ser animado que age
intencionalmente ou um fenômeno natural que possui força própria. Um evento nunca pode
provocar o movimento do objeto:
(22) a. O menino sacudiu a roupa (para que secasse logo).
b. O vento sacudiu a roupa.
(23) a. *A chuva que deu ontem sacudiu a roupa.
b. *A chegada da frente fria sacudiu a roupa.
c. *O empurrão que João levou sacudiu a roupa.
O movimento do objeto só acontece enquanto a força do provocador é aplicada sobre o
objeto que move concomitantemente. Imagine, nos exemplos em (22a) e (22b), que se o vento
pára e se o menino cessa seu movimento, a roupa não sacode mais. Como definimos
anteriormente, a causação é uma relação entre dois eventos que não se sobrepõem
temporalmente. Por isso, faz sentido propor que a relação entre a ação do provocador do
movimento e o movimento do objeto não se trata de uma causação e que uma sentença
transitiva com o verbo sacudir denota um evento único.
Também podemos utilizar esse argumento para justificar a agramaticalidade de
sentenças como as em (23). O fato de que uma sentença transitiva com um verbo do tipo
sacudir é um único evento impede, naturalmente, que um outro evento possa ser o provocador
do movimento.
O fato de que sentenças como O menino sacudiu a roupa não denotam uma relação de
causa é evidenciado pelo aspecto lexical desses verbos. Mesmo na forma transitiva, esses
verbos denotam atividades. Alguns testes encontrados na literatura comprovam essa
afirmação, como o teste do progressivo proposto por Dowty (1979). Esse teste procura
distinguir eventos que possuem um ponto final determinado, accomplishments, de eventos
que se desenvolvem no tempo, as atividades. A diferença entre esses dois tipos de eventos
26
está nos acarretamentos que os verbos geram quando colocados no progressivo. Como um
accomplishment é um evento que só se efetiva quando o ponto final é atingido, a forma no
progressivo de um verbo que denota esse tipo de evento não acarreta que o evento se
completou, somente que ele foi iniciado.
(24) a. O menino estava abrindo a janela.
b. O menino abriu a janela.
A sentença em (24a) não acarreta a sentença em (24b). Ou seja, o evento foi iniciado, mas não
chegou até seu ponto final. Essa é uma característica de accomplishments, que são eventos
compostos por dois subeventos.
No caso das atividades, que são eventos únicos, o simples fato de o evento ter sido
iniciado faz com que ele tenha ocorrido completamente. Ou seja, não é necessário que se
chegue a um ponto final para dizer que o evento ocorreu. Assim, a forma no progressivo de
um verbo que denota uma atividade acarreta que o evento ocorreu por completo. A sentença
em (25a) acarreta a sentença em (25b).
(25) a. O menino estava sacudindo a roupa.
b. O menino sacudiu a roupa.
Outra peculiaridade de verbos como sacudir é que eles aceitam um objeto animado,
como no exemplo em (26):
(26) O menino sacudiu o amigo.
Na forma intransitiva, um objeto animado pode aparecer na posição de sujeito, sem
que a leitura seja agentiva:
(27) a. O gatinho sacudiu (com o forte vento).
b. O gatinho balançou11 (pendurado no arbusto).
11
Os exemplos de sentenças intransitivas com sujeitos animados parecem melhores com o verbo balançar. Não
utilizamos esse verbo como exemplo prototípico dessa classe por causa de uma polissemia desse verbo que
parece envolver uma relação de causa. Em um contexto bem específico, em que alguém balança outra pessoa em
um balanço, a ação do provocador não parece ser necessariamente concomitante ao movimento de balançar.
27
Para que se tenha uma leitura em que o objeto que se move é o provocador do próprio
movimento, ou seja, uma interpretação reflexiva, é necessário que se tenha a construção
reflexiva com se:
(28) O menino se sacudiu (para tirar a poeira da roupa).
É importante observar que a forma intransitiva com o se não pode ser interpretada como uma
forma incoativa. A única leitura possível é a reflexiva, tanto que a sentença não é boa se o
objeto que move for inanimado:
(29) *A roupa se sacudiu.
Concluindo, verbos como sacudir são verbos que denotam um movimento oscilatório
em que o provocador desse movimento pode ser um ser animado ou um fenômeno da natureza
com força própria. Esses verbos podem ocorrer na forma transitiva, em que há dois
argumentos: o provocador do movimento e o objeto movido; e na forma intransitiva, em que
há apenas um argumento: o objeto movido. Na forma transitiva, a ação do provocador do
movimento e o movimento do objeto são concomitantes, ou seja, a sentença transitiva denota
um único evento. Além disso, esses verbos aceitam objetos animados e entram na construção
reflexiva.
Outros verbos como sacudir são balançar, chacoalhar, mexer e sacolejar.
Os verbos como quicar, em (20), denotam um modo de movimento em que o objeto se
move até um determinado ponto e volta ao ponto inicial. Em um processo de alternância
verbal transitivo-intransitiva, como em (20b), esses verbos perdem um argumento que é o
provocador do movimento, assim como os verbos do tipo de sacudir. Entretanto, esses verbos
só aceitam argumentos provocadores humanos. Isso ocorre porque o movimento específico
que o verbo descreve precisa de um provocador também específico, capaz de realizar um
movimento que é típico de seres humanos.
(30) a. O jogador quicou a bola.
b. *O vento quicou a bola.
28
Também como os verbos do tipo de sacudir, o movimento só acontece enquanto a
força do provocador é aplicada sobre o objeto que move concomitantemente. Imagine que se
o jogador pára de realizar a ação determinada de quicar, o objeto que se move também pára de
sofrer o movimento. Esse fato também pode ser explicitado através do aspecto lexical de
sentenças transitivas com o verbo quicar. Elas também denotam atividades, ou seja, um
evento único, como mostra o teste do progressivo:
(31) a. O jogador estava quicando a bola.
b. O jogador quicou a bola.
Como explicitamos anteriormente, esse teste mostra que em eventos únicos o simples fato de
o evento ter sido iniciado faz com que ele tenha ocorrido completamente. A sentença em
(31a) acarreta a sentença em (31b), então o teste mostra que se trata de uma atividade. Como
no caso de verbos como sacudir, podemos dizer que não há também no caso de verbos como
quicar uma relação de causa entre a ação do provocador do movimento e o movimento do
objeto.
Mas diferentemente de sacudir, verbos como quicar não aceitam um objeto animado e
não entram na construção reflexiva12:
(32) *O jogador quicou o colega.
(33) *O colega se quicou.
Concluindo, os verbos como quicar são verbos que denotam um tipo específico de
movimento que só pode ser provocado por um ser humano. O objeto que se move só pode ser
um objeto inanimado. Esses verbos não entram na construção reflexiva. Assim como verbos
do tipo de sacudir, esses verbos podem ocorrer na forma transitiva, em que há dois
argumentos: o provocador do movimento e o objeto movido; e na forma intransitiva, em que
há apenas um argumento: o objeto movido. Na forma transitiva, a ação do provocador do
movimento e o movimento do objeto são concomitantes, ou seja, a sentença transitiva denota
um único evento. Ainda, o provocador do movimento só pode ser um ser humano.
12
Segundo Godoy (em prep.) a restrição que impede que esses verbos aceitem a construção reflexiva é o fato de
que eles não aceitam objeto animado. Ou seja, se trata de uma restrição que diz respeito a restrições selecionais
dos verbos e não a suas propriedades semântico-lexicais.
29
Outros verbos como quicar são picar e vibrar.
Então, podemos concluir que a diferença entre esses dois tipos de verbo encontra-se
nas restrições selecionais do sujeito e do objeto. Ou seja, o que diferencia verbos do tipo de
sacudir de verbos do tipo de quicar é o fato de que os primeiros aceitam tanto sujeitos como
objetos animados e não animados e os últimos somente aceitam objetos não animados e
sujeitos humanos.
Apesar dessas diferenças, esses verbos são semelhantes no que diz respeito à estrutura
de evento. Em sentenças com os verbos apresentados, se existe um provocador do
movimento, o movimento ocorrerá concomitantemente à aplicação da força que provoca o
movimento.
4.2 Verbos de modo de movimento causativos: girar
Outro grupo de verbos de modo de movimento do PB é o grupo de verbos que
denotam movimento giratório, como girar13. Esses verbos também podem aparecer em duas
configurações sintáticas: transitiva ou intransitiva.
Na forma transitiva, o verbo toma dois argumentos, assim como quicar e sacudir, um
argumento provocador do movimento e um argumento que é o objeto que se move.
Entretanto, no caso de verbos como girar, o provocador do movimento pode ser um ser
animado, um fenômeno da natureza com força própria ou um evento:
(34) a. O menino girou a roleta.
b. O vento girou o cata-vento.
c. A ventania que deu ontem girou o cata-vento.
Diferentemente do caso de verbos como sacudir e quicar, no caso do verbo girar, a
ação do provocador provoca o movimento, que continua mesmo depois que o provocador pára
de agir sobre o objeto movido. Imagine que quando o menino gira uma roleta, ele inicia o
13
Apesar de o verbo rolar ser um exemplo prototípico dessa classe de verbos na literatura, excluímos esse verbo
do nosso corpus porque é semanticamente diferente dos outros verbos. O verbo rolar é um verbo que acarreta
trajetória, ou seja, diferentemente de verbos como girar, o verbo rolar denota um movimento em que o objeto
movido percorre uma trajetória. Neste trabalho tratamos exclusivamente de verbos que não denotam trajetória.
30
movimento e a roleta continua girando independente do menino. Podemos dizer, então, que
não há sobreposição temporal entre a ação do provocador e o movimento do objeto. Dessa
forma, é possível propor que existe uma relação de causa e que sentenças como as em (34)
denotam eventos complexos, compostos por dois subeventos. Evidência para isso é o fato de
que sentenças transitivas com esses verbos denotam accomplishments14. Accomplishments são
caracterizados como eventos compostos.
Para tornar a classificação aspectual do verbo girar mais clara, vejamos como a
sentença transitiva se comporta com relação a outro teste de aspecto proposto por Dowty
(1979), o teste do advérbio quase. Esse teste diferencia accomplishments de atividades através
dos acarretamentos gerados pelas sentenças modificadas pelo advérbio quase. Sentenças
compostas de dois subeventos são ambíguas quando modificadas pelo advérbio quase, pois a
modificação pode incidir sobre qualquer um dos dois subeventos. Por exemplo:
(35) O menino quase abriu a janela.
As interpretações possíveis para a sentença em (35) são: o menino tinha a intenção de abrir a
janela, mas mudou de idéia e não o fez (interpretação decorrente da modificação no primeiro
subevento) ou o menino fez alguma coisa para abrir a janela, mas a janela não ficou aberta
(interpretação decorrente da modificação no segundo subevento).
Sentenças que denotam um único evento não são ambíguas nesse sentido, já que o
advérbio quase tem a possibilidade de modificar apenas um evento. Por exemplo:
(36) O bebê quase chacoalhou o xique-xique.
A única interpretação possível para a sentença em (36) é que o bebê nem começou a realizar a
ação.
Vejamos como a sentença transitiva com o verbo girar se comporta com relação a esse
teste:
14
De acordo com Levin (2000), eventos complexos são equivalentes a eventos causativos. Porém, a noção de
accomplishment deve ser desvinculada da noção de evento causativo. Para a autora, essas noções são
independentes. Exemplos de eventos de accomplishment não causativos são os denotados por sentenças como O
João comeu uma maçã e O João correu até a esquina. Exemplos de eventos causativos que não são
accomplishments são os denotados por sentenças como O João quebrou copos por uma hora. Entretanto, Dowty
(1979) propõe formas lógicas para cada classe aspectual que sugerem que a estrutura interna de um
accomplishment é um evento complexo, composto por dois subeventos relacionados pelo operador cause. O teste
do advérbio quase proposto pelo autor reflete a complexidade de eventos de accomplishment. A ambiguidade só
se dá por causa da possibilidade de o advérbio incidir sobre um ou outro subevento.
31
(37) O menino quase girou a roleta.
A sentença em (37) pode ter as seguintes interpretações: o menino tinha a intenção, mas não
realizou a ação ou o menino fez alguma coisa para girar a roleta, mas não chegou a provocar o
movimento do objeto. Podemos imaginar que a roleta era muito dura e, apesar de seus
esforços, o menino não conseguiu girá-la. Assim, concluímos que, de fato, a sentença
transitiva com o verbo girar denota um accomplishment e que a relação estabelecida entre a
ação do provocador do movimento e o movimento do objeto é uma causação.
O fato de que a sentença transitiva com verbos que denotam movimento giratório
denota um evento composto justifica a possibilidade de um evento poder ser o provocador do
movimento.
Com relação aos testes aspectuais, temos ainda uma observação. Outro teste proposto
por Dowty (1979) é o teste dos sintagmas adverbiais em X tempo e por X tempo. Esses testes
separam eventos durativos de eventos não durativos. Os eventos durativos são aqueles que se
desenrolam através do tempo, sem que haja um ponto final específico. Os eventos não
durativos são aqueles que possuem um ponto final determinado. Dessa forma, sentenças que
denotam eventos durativos podem ocorrer com o sintagma por X tempo e ficam agramaticais
com o sintagma em X tempo. Com sentenças que denotam eventos não durativos ocorre o
oposto, elas podem ocorrer com o sintagma em X tempo e ficam agramaticais com o sintagma
por X tempo. Exemplificamos o teste com o verbo de accomplishment abrir e com o verbo de
atividade aplaudir:
(38) a. O menino abriu a janela em um minuto.
b. *O menino abriu a janela por um minuto.
(39) a. *A platéia aplaudiu o músico em um minuto.
b. A platéia aplaudiu o músico por um minuto.
Vejamos agora a aplicação desse teste com o verbo girar:
(40) O menino girou a roleta em um minuto.
32
A sentença em (40) é gramatical e a sua interpretação é que o menino levou um minuto para
girar a roleta.
Entretanto, uma sentença como a em (41) também é gramatical:
(41) O menino girou a roleta por um minuto.
A interpretação dessa sentença é que o menino repetiu a ação que provoca o movimento da
roleta durante um minuto. Ou seja, nesse caso há sobreposição de tempos entre a ação do
provocador do movimento e o movimento do objeto.
Segundo Rothstein (2004), a possibilidade de ocorrência com os dois sintagmas
temporais, em X tempo e por X tempo, é uma característica de verbos semelfactivos. Um
verbo semelfactivo pode denotar um evento pontual ou uma série de repetições do mesmo
evento. Uma sentença como João bateu na porta pode ter uma leitura pontual, em que João
bate uma única vez na porta, ou uma leitura em que João bate repetidamente na porta. Essa
última leitura é relacionada aos eventos que denotam atividades. Assumiremos, então, que
sentenças transitivas com verbos do tipo de girar são ambíguas. Elas podem denotar tanto um
accomplishment, em que não há sobreposição temporal entre a ação do provocador e o
movimento do objeto, como um evento em que há sobreposição temporal entre a ação do
provocador e o movimento do objeto. Sendo que a última interpretação é que a ação pontual
do provocador ocorre repetidamente.
Ressaltamos aqui a diferença entre verbos de atividades e verbos semelfactivos. No
caso de um verbo de atividade, como sacudir, a interpretação é de um único evento que se
desenvolve no tempo, mesmo que a ação do provocador seja repetitiva. Para que a ação seja
uma ação de sacudir é necessário que haja um movimento repetitivo de um lado para o outro,
porém a realização de apenas um movimento de ida e volta não se trata do evento descrito
pelo verbo sacudir. Já no caso de verbos semelfactivos, a interpretação é de um evento
pontual que se repete várias vezes. O evento descrito por uma sentença transitiva com o verbo
girar não é um evento único que se desenvolve no tempo, é um evento pontual em que o
provocador realiza uma ação em um ponto determinado no tempo. A interpretação de
atividade de uma sentença desse tipo é gerada quando se entende que a ação foi realizada
várias vezes, repetidamente. Ou seja, tanto a realização de apenas um movimento pontual do
provocador do movimento, quanto a repetição desse mesmo movimento várias vezes podem
ser eventos descritos pelo verbo girar.
33
Com relação à forma reflexiva com o se, os verbos do tipo de girar também se
comportam diferentemente de verbos como sacudir. Verbos que denotam movimento
giratório não entram na construção reflexiva, apesar de aceitarem objetos animados:
(42) a. O João girou o menino.
b. *O menino se girou.
Entretanto, a forma intransitiva com sujeito animado desses verbos é ambígua entre
uma interpretação em que o objeto movido apenas sofre o movimento e outra em que o objeto
que move é também o provocador do próprio movimento. A forma intransitiva em que o
objeto tem controle sobre o próprio movimento é chamada por Talmy (1985) de autoagentiva, como mostramos anteriormente. Essa forma possui uma interpretação reflexiva.
(43) a. O menino girou (conforme a dança).
b. O menino girou (feito um pião depois que saiu daquele brinquedo maluco).
(44) a. A dançarina rodopiou (pelo salão).
b. A dançarina rodopiou (até que alguém a socorresse).
Concluindo, os verbos como girar são verbos que denotam movimento giratório e
podem aparecer nas formas transitiva e intransitiva. Na forma transitiva, esses verbos pedem
dois argumentos, sendo um deles uma causa do movimento e outro o objeto que se move.
Ainda, a forma transitiva desses verbos denota um evento composto, um accomplishment,
mas pode também ter uma interpretação iterativa. Esses verbos aceitam como provocadores
do movimento seres animados, fenômenos naturais com força própria e eventos. Aceitam,
também, sujeitos e objetos animados e inanimados. Entretanto, não entram na construção
reflexiva. A forma intransitiva pede apenas o argumento que denota o objeto que se move,
porém essa forma é ambígua quando o sujeito é animado. As interpretações possíveis são o
objeto ter controle sobre o próprio movimento ou o objeto apenas sofrer o movimento.
Outros verbos como girar são rodar e rodopiar.
4.3 Estrutura de predicados
34
Partindo das propriedades semânticas comuns e não comuns entre os dois tipos de
verbos de modo de movimento do PB, proporemos representações lexicais para eles em
termos de decomposição em predicados primitivos.
Assumindo que propriedades semânticas das classes verbais determinam as
alternâncias verbais das quais elas participam, devemos em primeiro lugar isolar a
propriedade semântica comum entre esses verbos que é relevante para a alternância transitivointransitiva. Sabemos que a maneira específica de movimento de cada verbo que
apresentamos acima é diferente. Então, a propriedade semântica comum entre esses verbos
que determina a sua participação na alternância transitivo-intransitiva é denotar um modo de
movimento. Podemos, então, representar a parte comum das estruturas semânticas dos verbos
de modo de movimento do PB associando a raiz MANNER ao predicado MOVE da seguinte
maneira:
(45) [Y MOVE <MANNER>]
Essa é a estrutura da contraparte intransitiva desses verbos, ou seja, que apresenta
apenas o argumento que denota o objeto que se move. Nessa estrutura, Y é o argumento que
denota um objeto que se move, MOVE é o predicado que indica movimento e MANNER é a
raiz idiossincrática de cada verbo, o modo específico do movimento. A paráfrase da estrutura,
que reflete o sentido dos verbos dessa classe é: o Y se move de determinada maneira, em que
essa maneira é o modo específico do movimento descrito por cada verbo em particular. Para
uma sentença como:
(46) A corda sacudiu.
Teremos a estrutura:
(47) sacudir: [Y MOVE <SACUDINDO>]
Ou seja, a corda se movimentou sacudindo.
Com relação às formas intransitivas, não há diferença entre o aspecto lexical dos três
tipos de verbos de modo de movimento que apresentamos anteriormente. Podemos observar
35
que tanto sacudir como quicar e girar se comportarão da mesma forma em sentenças
intransitivas com relação ao aspecto lexical. O teste do progressivo explicita esse fato:
(48) a. A bandeira estava sacudindo.
b. A bandeira sacudiu.
(49) a. A bolinha estava quicando.
b. A bolinha quicou.
(50) a. O cata-vento estava girando.
b. O cata-vento girou.
Nos exemplos em (48)-(50) as sentenças em (a) acarretam as sentenças em (b).
Podemos levantar a hipótese de que todo verbo que apresentar a estrutura em (45)
participará da alternância transitivo-intransitiva. Nesse ponto, não existe diferença entre
verbos que denotam movimento oscilatório, verbos que denotam o movimento de um objeto
que vai até um ponto e volta ao ponto inicial e verbos que denotam movimento giratório.
Sentenças intransitivas com esses três tipos de verbos denotam atividades e podem ser
parafraseadas de acordo com a estrutura proposta em (45).
Com relação à representação completa, ou seja, aquela que explicita qual tipo de
argumento pode ser provocador do movimento, proporemos duas estruturas para os três tipos
de verbos de modo de movimento que apresentamos anteriormente.
Verbos como sacudir e quicar possuem um argumento que é o objeto que se move de
determinada maneira e um argumento que é o provocador do movimento e que exerce sua
força sobre o objeto concomitantemente ao movimento. A única diferença entre esses verbos
é relacionada às restrições selecionais e não à estrutura do evento. Por isso, elas não serão
codificadas na estrutura semântico-lexicais desses verbos. Propomos a seguinte estrutura para
esses verbos:
(51) v: [[X ACT] & [Y MOVE <MANNER> ]]
Essa estrutura representa apenas um evento15, em que a ação de X é concomitante ao
movimento de Y. A paráfrase da estrutura é: o X age e o Y se movimenta de determinada
15
Rappaport e Levin (1998) propõem uma condição para a realização sintática dos participantes da estrutura de
eventos: "Each argument XP in the syntax must be associated with an identified subevent in the event structure."
Ou seja, se existem dois argumentos XP na sintaxe, então a estrutura semântica é composta de dois subeventos.
36
maneira, concomitantemente. A relação entre a ação de X e o movimento de Y pode ser
depreendida da estrutura pelo fato de que são concomitantes e a estrutura representa um
mesmo evento. Ou seja, se a ação de X e o movimento de Y são concomitantes e são um
mesmo evento, só podemos entender que há uma relação entre eles. Uma sentença como:
(52) O jogador quicou a bola.
É representada da seguinte forma:
(53) quicar: [[X ACT] & [Y MOVE <QUICANDO>]]
O fato de que a estrutura acima é um evento único é evidenciado através do aspecto lexical.
As atividades são eventos únicos, não compostos e já mostramos anteriormente que os testes
mostram que sentenças como O jogador quicou a bola denotam atividades.
O predicado ACT aparece na estrutura em (51) fora de parênteses porque existem
apenas duas opções para o papel semântico do argumento X: ele é um ser animado que age
intencionalmente ou um fenômeno da natureza que possui força própria, mais
especificamente, o vento ou outros fenômenos relacionados a ele. Esses argumentos podem
ser classificados como agentes e o predicado ACT é, então, inerente à estrutura semânticolexical desses verbos.
Os verbos do tipo de girar possuem uma estrutura um pouco diferente da proposta
para verbos como sacudir e quicar. Esses verbos possuem um argumento que é o objeto que
se move e um argumento que é o provocador do movimento. Entretanto, diferentemente de
verbos como sacudir, a ação do provocador não é concomitante ao movimento do objeto. Pelo
contrário, existe uma relação de causa entre eles. Primeiro ocorre a ação do provocador, em
seguida ocorre o movimento. Esse fato é evidenciado pelo aspecto lexical de sentenças como
O menino girou a roleta. Essa sentença denota um acomplishment, ou seja, um evento
composto por dois subeventos ligados por uma relação de causa.
O tipo de provocador do movimento que esses verbos aceitam também é diferente do
caso de verbos como sacudir e quicar. Além de um agente, que pode ser um ser animado que
Entretanto, Levin e Rappaport (2005) apresentam uma reformulação dessa condição: "There must be at least one
argument XP in the syntax per subevent in the event structure." Essa condição diz que para cada subevento na
estrutura semântica deve haver pelo menos um argumento XP na sintaxe. Ou seja, não é necessário que para
cada argumento XP na sintaxe haja um subevento na estrutura semântica. Essa condição não impede que um
verbo biargumental denote um evento único, mas que um verbo monoargumental denote um evento composto.
37
age intencionalmente ou um fenômeno da natureza que possui força própria, esses verbos
aceitam eventos como provocadores do movimento. Por isso, não podemos assumir que o
predicado ACT é inerente à estrutura semântico-lexical desses verbos. Seguindo a proposta de
Cançado e Godoy (2010) para os verbos causativo/agentivos, propomos a seguinte estrutura
para verbos que denotam movimento giratório:
(54) v: [[X (ACT)] CAUSE [Y MOVE <MANNER> ]]
Uma sentença como:
(55) O menino/o vento girou a roleta.
Será representada da seguinte forma:
(56) girar: [[X ACT] CAUSE [Y MOVE <GIRANDO> ]]
A paráfrase da estrutura é: o X agir causa o Y se movimentar de determinada maneira.
E uma sentença como:
(57) A ventania que deu ontem girou a hélice do helicóptero.
Será representada da seguinte forma:
(58) girar: [[X] CAUSE [Y MOVE <GIRANDO> ]]
A paráfrase da estrutura é: um evento X causa o Y se movimentar de determinada maneira.
4.4 Alternância verbal
Tendo proposto uma representação semântico-lexical para os verbos de modo de
movimento do PB, partimos agora para a caracterização semântica da alternância verbal que
38
ocorre nessa classe de verbos. Tomemos como exemplo de cada um dos dois tipos de verbos
de modo de movimento apresentados os verbos sacudir e girar.
O verbo sacudir alterna da seguinte forma:
(59) a. O vento/a empregada sacudiu os tapetes.
b. Os tapetes sacudiram.
A alternância, nesse caso, pode ser caracterizada semanticamente da seguinte forma:
(60) [[X ACT] & [Y MOVE <MANNER> ]] alterna com [Y MOVE <MANNER> ]
Semanticamente, a estrutura [X ACT] & pode ser apagada. O aspecto lexical do verbo se
mantém durante a alternância. As formas transitivas e intransitivas denotam atividades, como
já mostramos a partir do teste do progressivo.
Notemos que a estrutura semântica [Y MOVE
<MANNER>]
não pode ser apagada,
originando outro tipo de alternância:
(61) a. O vento sacudiu a roseira.
b. *O vento sacudiu. (no sentido de que não é o vento que se move, mas que
provoca o movimento de algum objeto).
Isso ocorre porque a parte idiossincrática do verbo, a raiz MANNER não pode ser apagada.
Nas alternâncias verbais, a estrutura que contém a raiz é a estrutura que permanece. Por isso,
também na alternância em (60), a parte da estrutura que não contém a raiz é a parte que pode
ser apagada. Também na alternância causativo-incoativa, a parte da estrutura que permanece é
a parte que contém a raiz STATE, como mostraremos adiante. Levin e Rappaport (2005)
afirmam que a impossibilidade de um verbo causativo ocorrer na alternância causativoincoativa se deve ao fato de a raiz estar relacionada também ao argumento X da estrutura
semântica. As autoras afirmam que verbos como assassinar, por exemplo, não sofrem
detransitivização por esse motivo. Também, conforme a proposta de representação lexical de
Cançado e Godoy (2010), não faz sentido dizer que a raiz pode ser apagada. É a raiz que
relaciona o nível semântico-lexical ao nível sintático-lexical, que por sua vez se relaciona à
39
sintaxe sentencial. Assim, uma estrutura que não contenha raiz não será reconhecida pela
estrutura sintático-lexical e, consequentemente, não formará uma sentença.
É assim também com verbos como girar:
(62) a. O menino girou o pião.
b. O pião girou.
A alternância, para esses verbos, pode ser caracterizada semanticamente da seguinte forma:
(63) [[X (ACT)] CAUSE [Y MOVE <MANNER> ]] alterna com [Y MOVE <MANNER> ]
Novamente, a parte da estrutura que é apagada é a que não contém a raiz do verbo, ou seja, é
[X (ACT)] CAUSE. Nesse caso, existe uma mudança de aspecto lexical, como mostramos a
partir de testes aspectuais. Um accomplishment, a sentença transitiva, passa a uma atividade, a
sentença intransitiva. Essa mudança aspectual é esperada, já que um subevento é apagado da
estrutura na alternância e eventos simples não caracterizam accomplishments.
Agora vamos mostrar porque assumimos que a alternância transitivo-intransitiva que
ocorre com os verbos de modo de movimento não se trata da alternância causativo-incoativa.
Cançado e Amaral (2010) propõem que verbos causativos como abrir, quebrar e sujar e
incoativos como apodrecer, amadurecer e mofar participam dessa alternância no PB. Para as
autoras, sintaticamente, a alternância é a mesma para as duas classes de verbos. Porém,
semanticamente os verbos causativos passam por um processo de incoativização, enquanto os
verbos incoativos passam por um processo de causativização. Essas duas classes verbais
participam de um mesmo processo sintático, porque possuem uma propriedade semântica
comum: a mudança de estado. As representações semântico-lexicais dessas duas classes
verbais incluem o predicado BECOME em uma estrutura do tipo [Y BECOME <STATE>] e é
essa a estrutura relevante para a alternância causativo-incoativa. A paráfrase dessa estrutura é
FICAR ADJETIVO, em que o adjetivo é relacionado ao verbo. Isso levou as autoras a
proporem que esses verbos, causativos e incoativos, possuem a estrutura sintático-lexical dos
verbos deadjetivais de Hale e Keyser (2002). Ou seja, apesar de possuírem representações
semânticas diferentes, as duas classes de verbos não são diferenciadas em um nível sintáticolexical. A diferença que existe entre as representações semânticas dos verbos causativos e
incoativos é externa a estrutura comum [Y BECOME <STATE>], que é a estrutura relevante
40
para a alternância. As propriedades semânticas que diferenciam esses verbos serão relevantes
para outros fenômenos sintáticos, como a construção de passivas e a inserção do clítico se na
forma intransitiva.
A incoativização de verbos causativos pode ser representada da seguinte forma, de
acordo com a estrutura semântico-lexical desses verbos:
(64) [[X (ACT)] CAUSE [Y BECOME <STATE>]] alterna com [Y BECOME
<STATE>]
Ou seja, em um processo de incoativização de verbos causativos, a parte da estrutura que
contém a causa é apagada. Em uma alternância desse tipo existem uma forma causativa, em
que dois subeventos são relacionados por uma causação, e uma forma incoativa, que denota
apenas o resultado final, a mudança de estado. Essa alternância é exemplificada em (65):
(65) a. O João sujou a roupa.
b. A roupa (se) sujou.
A causativização de verbos incoativos pode ser representada da seguinte forma, de
acordo com a estrutura semântico-lexical desses verbos:
(66) [Y BECOME <STATE>] alterna com [[X] CAUSE [Y BECOME <STATE>]
Ou seja, em um processo de causativização, a estrutura que contém o argumento X é inserida
na estrutura argumental do verbo incoativo. Em uma alternância desse tipo também existem
uma forma causativa, em que dois subeventos são relacionados por uma causação, e uma
forma incoativa, que denota apenas o resultado final, a mudança de estado. Essa alternância é
exemplificada em (67):
(67) a. A banana amadureceu.
b. O calor amadureceu a banana.
41
Tanto na causativização, quanto na incoativização há mudança de aspecto lexical. As
formas transitivas dos verbos denotam accomplishments e as formas intransitivas denotam
achievements.
Podemos observar que a caracterização semântica da alternância causativo-incoativa
de acordo com a decomposição em predicados primitivos é bem diferente da caracterização
semântica da alternância que ocorre com os verbos de modo de movimento. As paráfrases das
estruturas alternantes são bem diferentes. Para a forma intransitiva, temos a paráfrase o Y ficar
adjetivo e para a forma transitiva temos a paráfrase mais geral o X causa o Y ficar adjetivo. O
resultado final do processo é expresso pelo adjetivo relacionado ao verbo. No caso dos verbos
de modo de movimento, a forma intransitiva é parafraseada como o Y se movimenta de
determinada maneira e a forma transitiva pode ser de dois tipos: o X age e o Y se movimenta
de determinada maneira ou o X causa o Y se movimentar de determinada maneira. Não há
resultado final da ação, há apenas um modo específico do movimento de um objeto.
Concluímos, então, que as alternâncias transitivo-intransitivas que ocorrem com verbos
causativos e incoativos e com os verbos de modo de movimento são sintaticamente iguais.
Entretanto, sob um ponto de vista semântico, temos dois tipos de alternância: a alternância
causativo-incoativa e a alternância que ocorre com os verbos de modo de movimento. Ainda,
cada um desses dois tipos de alternância apresenta duas possibilidades, de acordo com
propriedades semânticas mais específicas dos verbos.
42
5 Conclusões
O nosso propósito nesta monografia foi descrever a classe de verbos de modo de
movimento do PB, explicar e caracterizar semanticamente a alternância transitivo-intransitiva
da qual eles participam e propor uma representação lexical para essa classe de verbos. Todos
os verbos dessa classe no PB expressam um modo específico de movimento e não acarretam
trajetória. A propriedade semântica relevante para a alternância transitivo-intransitiva da qual
esses verbos participam é o modo de movimento. Levantamos a hipótese de que todos os
verbos que apresentarem a estrutura [Y MOVE
<MANNER>]
participarão da alternância
transitivo-intransitiva. Concluímos que os verbos de modo de movimento do PB são uma
classe uniforme com relação ao fenômeno sintático da alternância transitivo-intransitiva.
Entretanto, com relação a outras propriedades sintáticas e semânticas, concluímos que
dentre os verbos de modo de movimento do PB existem três classes: verbos que denotam
movimento oscilatório, como sacudir, verbos que denotam o movimento de um objeto que vai
até um ponto e volta para o ponto inicial, como quicar, e verbos que denotam movimento
giratório, como girar. Sintaticamente, esses verbos diferem com relação à construção
reflexiva e semanticamente, quanto ao aspecto lexical da forma transitiva. Essa diferença no
aspecto lexical é reflexo de uma diferença entre as relações que se dão entre a ação do
provocador do movimento e o movimento do objeto que se move. Em sentenças transitivas
com verbos como sacudir e quicar existe uma relação de sobreposição temporal, de forma
que a ação e o movimento compõem um único evento. Em sentenças transitivas com verbos
como girar existe uma relação de causa entre a ação do provocador e o movimento do objeto.
Existe diferença entre esses verbos também com relação aos tipos de sujeitos e objetos que
aceitam. Verbos como sacudir diferem de verbos como quicar quanto às restrições selecionais
de seus sujeitos e objetos. Esses dois tipos de verbo diferem de verbos como girar pelo fato
de que não aceitam eventos como sujeitos, enquanto verbos que denotam movimento giratório
aceitam.
Com base nas propriedades das duas classes de verbos de modo de movimento do PB,
propomos representações semântico-lexicais para esses verbos. Essas representações
explicitam as diferenças e semelhanças semânticas entre esses verbos, bem como prevêem a
ocorrência da alternância transitivo-intransitiva. O argumento que pode ser apagado da
estrutura na alternância é aquele que é argumento do predicado primitivo que não se relaciona
43
à raiz MANNER. As representações em predicados primitivos que propomos para a classe de
verbos de modo de movimento do PB são contribuições importantes para a metodologia de
decomposição semântica. Inovamos associando o predicado MOVE à raiz MANNER e ao
adotar o conetivo & para relacionar duas partes de um evento único.
Uma outra conclusão importante deste trabalho é a diferenciação entre alternância
transitivo-intransitiva e causativo-incoativa. A alternância transitivo-intransitiva é uma
alternância sintática, determinada por propriedades semânticas dos verbos. A denominação
causativo-incoativa é uma denominação semântica para um tipo de alternância transitivointransitiva que ocorre com verbos de mudança de estado. Como os verbos de modo de
movimento não são verbos de mudança de estado, eles não participam da alternância
causativo-incoativa, apesar de participarem de um mesmo tipo sintático de alternância
transitivo-intransitiva.
Fica faltando em nosso trabalho uma proposta de representação sintático-lexical para
os verbos de modo de movimento do PB. Assim como Cançado e Godoy (2010) propõem
para outras classes verbais do PB, pretendemos estender este trabalho e propor uma
representação sintático-lexical para os verbos estudados. A função de tal representação é fazer
a correspondência entre as estruturas semânticas dadas em termos de decomposição em
predicados primitivos e a sintaxe sentencial. Pretendemos também em um trabalho futuro
investigar os verbos de modo de movimento estritamente agentivos. Esses verbos denotam
também a maneira específica de movimento de um objeto, porém possuem várias
propriedades sintáticas e semânticas diferentes dos verbos estudados neste trabalho.
44
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48
Anexo
Dados:
1 Verbos em que a ação de X e o movimento de Y são concomitantes
1.1 Verbos que denotam movimento oscilatório
Propriedades:
-aceitam a alternância transitivo-intransitiva;
-aceitam a construção reflexiva;
-aceitam objetos e sujeitos animados e inanimados;
-a forma intransitiva não é ambígua;
-o argumento provocador de movimento pode ser um agente ou uma força natural (o vento, a
ventania, etc.), mas nunca um evento.
-a sentença transitiva denota apenas um evento, uma atividade.
Representação:
[[X ACT] & [Y MOVE <MANNER>]]
1. Balançar
Teste de aspecto:
A árvore estava balançando. → A árvore balançou.
O menino estava balançando o brinquedo. → O menino balançou o brinquedo.
O babá balançou o neném.
O neném balançou (nos braços da babá).
O neném se balançou (no balanço).
O vento balançou o arbusto.
O arbusto balançou (com o vento).
*O arbusto se balançou.
2. Chacoalhar
Teste de aspecto:
Os ramos das árvores estavam chacoalhando. → Os ramos das árvores chacoalharam.
49
O menino estava chacoalhando o colega. → O menino chacoalhou o colega.
O bebê chacoalhou o xique-xique.
?O xique-xique chacoalhou.
O vento chacoalhou os ramos da árvore.
Os ramos da árvore chacoalharam.
*Os ramos da árvore se chacoalharam.
O terremoto chacoalhou o prédio.
O prédio chacoalhou.
O Pedro chacoalhou o João.
O João se chacoalhou (para não pensar que estava sonhando).
3. Mexer
Teste de aspecto:
O arbusto estava mexendo. → O arbusto mexeu.
O vento estava mexendo o arbusto. → O vento mexeu o arbusto.
A cortina mexeu.
O vento mexeu a cortina.
*A cortina se mexeu.
A Maria mexeu o menino.
O menino se mexeu.
O menino mexeu (com o choque que levou).
4. Sacolejar
Teste de aspecto:
O ônibus estava sacolejando. → O ônibus sacolejou.
O vendaval estava sacolejando o avião. → O vendaval sacolejou o avião.
O avião sacolejou.
O vento forte sacolejou o avião.
*O avião se sacolejou.
A lavadeira sacolejou a roupa empoeirada.
A menina sacolejou a irmã.
A menina sacolejou (quando o terremoto atingiu o quarto dela).
O cachorro se sacolejou (para se livrar do excesso de água no pelo).
5. Sacudir
Teste de aspecto:
50
O tapete estava sacudindo. → O tapete sacudiu.
A empregada estava sacudindo o tapete. → A empregada sacudiu o tapete.
O vento sacudiu a cortina.
A cortina sacudiu.
*A cortina se sacudiu.
A Maria sacudiu a menina.
O menino se sacudiu (para tirar a poeira da roupa).
O menino sacudiu.
1.2 Verbos que denotam o movimento de um objeto que vai até um ponto e volta ao
ponto inicial
Propriedades:
-aceitam a alternância transitivo-intransitiva;
-não aceitam a construção reflexiva;
-não aceitam objeto animado;
-só aceitam sujeitos humanos;
-a forma intransitiva não é ambígua;
-o argumento provocador de movimento pode ser um agente ou uma força natural (o vento, a
ventania, etc.), mas nunca um evento.
-a sentença transitiva denota apenas um evento, uma atividade.
Representação:
[[X ACT] & [Y MOVE <MANNER>]]
6. Picar
Teste de aspecto:
A bola estava picando. → A bola picou.
O jogador estava picando a bola. → O jogador picou a bola.
O jogador picou a bola.
A bola picou.
* A bola se picou.
*O jogador picou./ *O jogador se picou.
51
*O vento/ a chuva picou a bola.
7. Quicar
Teste de aspecto:
A borracha estava quicando. → A borracha quicou.
O menino estava quicando a bola. → O menino quicou a bola.
O menino quicou a bola.
A bola quicou.
* A bola se quicou.
*O jogador quicou./ *O jogador se quicou.
8. Vibrar
Teste de aspecto:
O celular do João estava vibrando. → O celular do João vibrou.
O índio estava vibrando o tacape. → O índio vibrou o tacape.
O sacristão vibrou o sino.
O sino vibrou.
*O sino se vibrou.
*O menino vibrou.
*O menino se vibrou.
2. Verbos em que a ação de X não se sobrepõe temporalmente ao movimento de Y
Propriedades:
-aceitam a alternância transitivo-intransitiva;
-a forma intransitiva é ambígua;
-não aceitam reflexiva;
-aceitam objetos e sujeitos animados e inanimados;
-o argumento provocador de movimento pode ser um agente, uma força natural (como o
vento, a ventania, etc.) ou um evento;
-a sentença transitiva denota um evento composto de dois subeventos, um accomplishment.
Representação:
[[X (ACT)] CAUSE [Y MOVE <MANNER>]]
52
9. Girar
Teste de aspecto:
O pião estava girando. → O pião girou.
O bebê quase girou o pião. (ele tentou, mas não conseguiu.)
O vento girou o cata-vento.
O cata-vento girou.
*O cata-vento se girou.
O menino girou.
O menino girou o cata-vento.
A mulher girou o menino.
*O menino se girou.
10. Rodar
Teste de aspecto:
A roleta estava rodando. → A roleta rodou.
O João quase rodou a roleta. (ela estava dura demais.)
O menino rodou a roleta.
A roleta rodou.
*A roleta se rodou.
O menino rodou.
*O menino se rodou.
A Maria rodou o João.
11. Rodopiar
Teste de aspecto:
O pião estava rodopiando. → O pião rodopiou.
O menino quase rodopiou o pião. (ele tentou, mas não conseguiu.)
O menino rodopiou o pião.
O pião rodopiou.
*O pião se rodopiou.
O dançarino rodopiou.
*O dançarino se rodopiou.
O dançarino rodopiou a parceira.
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