UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE MARGARETH CALDAS PITROWSKY CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À QUESTÃO DA ADESÃO AO TRATAMENTO DOS PORTADORES DE HIV/AIDS Rio de Janeiro 2013 MARGARETH CALDAS PITROWSKY CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À QUESTÃO DA ADESÃO AO TRATAMENTO DOS PORTADORES DE HIV/AIDS Dissertação apresentada ao Programa de Pós - graduação – Strictu sensu Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração – Psicanálise e Saúde ORIENTADOR (a): Profª. Drª. Maria da Glória Schwab Sadala RIO DE JANEIRO 2013 RESUMO Esta dissertação tem como objetivo principal proporcionar uma contribuição teórico-clínica para os profissionais de saúde que se deparam com dificuldades na busca da adesão ao tratamento dos usuários com HIV/AIDS. O fenômeno da transferência, um dos conceitos da psicanálise, aposta na singularidade como fator primordial para o atendimento e poderá favorecer na eficácia da adesão. A transferência pode ser considerada uma estratégia no tratamento onde uma escuta e um olhar diferenciado favorecerá a identificação desse fenômeno na relação entre o profissional de saúde e o usuário. Palavras-Chave: Psicanálise, adesão, transferência. ABSTRACT This dissertation has the main objective providing a contribution to theoretical and clinical health professionals who run into difficulties in seeking treatment adherence by HIV/AIDS patients. The phenomenon of transference, one of the concepts of psychoanalysis, focus on uniqueness as a key factor for the service and may favor the effectiveness of adhesion. The transference can be considered as a treatment strategy where a listening and a different look will favor the identification of this phenomenon in the relationship between the health professional and patients. Keywords: Psychoanalysis, adhesion, transference. DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU E DE PESQUISA Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922 FICHA CATALOGRÁFICA P686c FICHA CATALOGRÁFICA Pitrowsky, Margareth Caldas. Contribuições da psicanálise à questão da adesão ao tratamento dos portadores de HIV/AIDS / Margareth Caldas Pitrowsky, 2013. 73 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2013. Orientação: Profª Drª Maria da Glória Schwab Sadala. 1. Psicanálise. 2. Adesão. 3. Transferência. I. Sadala, Maria da Glória Schwab. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título. . CDD – 616.89 Decs Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho FOLHA DE APROVAÇÃO MARGARETH CALDAS PITROWSKY CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE À QUESTÃO DA ADESÃO AO TRATAMENTO DOS PORTADORES DE HIV/AIDS Dissertação apresentada ao Programa de Pós - graduação – Strictu sensu Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração – Psicanálise e Saúde APROVADA EM 20 DE SETEMBRO DE 2013. BANCA EXAMINADORA __________________________________________ Profª Drª. Maria da Glória Schwab Sadala Universidade Veiga de Almeida __________________________________________ Profª Drª. Maria Helena Martinho Universidade Veiga de Almeida __________________________________________ Prof. Dr. Ademir Pacelli Universidade do Estado do Rio de Janeiro AGRADECIMENTOS À minha família pelo incentivo e em especial às minhas filhas Evelyn e Erika, pelo apoio prestado diante das minhas dificuldades nesse período. À Prof. Drª. Maria da Glória Sadala pela paciência e ajuda dispensada por todo o período de direcionamento desta pesquisa. Às amigas Marilene Barroso, Andrea Nietto, e Lilian Faertes, pela união e oportunidade em trilharmos juntas esse caminho. Aos usuários e à equipe de saúde do HUAP, pela rica contribuição oferecida no dia a dia do meu trabalho. “Penso que os seres humanos não conseguiram de modo algum perceber o poder do amor. Se o tivessem percebido, teriam erigido templos e altares grandiosos para ele e o honrado grandiosamente com sacrifícios, enquanto constatamos que nada disso foi realizado para ele, ainda que particularmente lhe seja devido. De todos os deuses ele é o que mais ama os seres humanos; permanece ao lado da humanidade e é o curador daqueles males cuja cura representa a suma felicidade da raça humana”. Aristófanes (O Banquete). LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIDS- Síndrome da Imunodeficiência Adquirida CFESS- Conselho Federal do Serviço Social CTA- Centro de Testagem Anônima DIP- Doenças Infecciosas e Parasitárias DST- Doença Sexualmente Transmissível GEIA- Grupo de Estudo Interdisciplinar de AIDS HIV- Vírus da Imunodeficiência Humana HUAP- Hospital Universitário Antonio Pedro LOAS- Lei Orgânica da Saúde MEC- Ministério de Educação e Cultura SICLOM- Sistema de Controle Logístico de Medicamentos SUS- Sistema Único de Saúde UFF- Universidade Federal Fluminense SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO................................................................................................ 11 2. DA HISTÓRIA À CLÍNICA ............................................................................... 16 2.1. HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ANTONIO PEDRO: SUA HISTÓRIA E TRAJETÓRIA ........................................................................................................ 16 2.2. A HISTÓRIA DA AIDS NO BRASIL ........................................................... 21 2.3. UMA EXPERIÊNCIA CLÍNICA COM PORTADORES DE HIV/AIDS NO HUAP ..................................................................................................................... 28 3. A TRANSFERÊNCIA COMO ESTRATÉGIA PARA A ADESÃO AO TRATAMENTO DO HIV/AIDS.............................................................................. 36 3.1. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO SIGMUND FREUD ................................ 39 3.2. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO JACQUES LACAN................................. 43 4. CASOS CLÍNICOS......................................................................................... 48 5. CONCLUSÕES .............................................................................................. 60 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... 67 APÊNDICE ............................................................................................................ 70 11 1. INTRODUÇÃO Minha experiência no Hospital Universitário Antonio Pedro da Universidade Federal Fluminense com usuários portadores de doenças crônicas¹, iniciou-se na década de 80, como assistente social, com o surgimento dos primeiros casos de AIDS. Antes, um diagnóstico que causava pânico e graves transtornos psíquicos, sociais e físicos por se tratar de uma doença fatal, hoje com contornos de uma doença crônica e controlável através da terapia antiretroviral combinada, possibilita uma maior expectativa e qualidade de vida. Não há dúvida do impacto que a epidemia de HIV/AIDS causou no mundo inteiro na década de 80. A sociedade brasileira, nos primeiros anos da AIDS, viu-se perplexa diante de tão forte doença, ainda misteriosa, que afetava pessoas de forma mortal. Foi um momento crítico em que as instituições brasileiras de atenção à saúde estavam submetidas às turbulências da crise econômica e a medicina em todo o mundo sofria o impacto do progresso, onde a prática médica afastava os médicos dos doentes e das famílias. Gradativamente surgiram profissionais especializados em fazer diagnósticos através de resultados de exames cada vez mais sofisticados e os índices de sobrevida no período 1983/1986 eram baixíssimos. Os doentes internavam num dia e morriam no outro. Aos poucos, esse tempo foi aumentando e em pesquisa realizada na FIOCRUZ onde foram analisados 55 doentes com AIDS entre 1986/1988, concluiu-se que 60% ainda estavam vivos um ano depois de iniciarem o tratamento e 30% continuavam vivos dois anos depois (Sá & Costa, 1994). Com o passar dos anos, a minha prática foi se ampliando na medida em que passei a atuar nas enfermarias de Infectologia, Centro de Diálise e Unidade Coronariana, onde o trabalho é realizado com usuários com três tipos de doenças crônicas, que apesar de serem distintas, nos três casos, exibem as dificuldades de adesão ao tratamento por tempo indeterminado como questões que preocupam às equipes de saúde das diferentes enfermarias. No entanto, vale dizer, o interesse é desenvolver essa pesquisa circunscrevendo-a à HIV/AIDS, devido à minha inserção 1 Despacho Conjunto dos Ministérios da Saúde, da Segurança Social e do Trabalho, n.º 861/99, de 10 de Setembro, considera: Doença crônica, a doença de longa duração, com aspectos multidimensionais, com evolução gradual dos sintomas e potencialmente incapacitante, que implica gravidade pelas limitações nas possibilidades de tratamento médico e aceitação pelo doente cuja situação clínica tem de ser considerada no contexto da vida familiar, escolar e laboral, que se manifeste particularmente afectado. 12 profissional, atuando no atendimento desses usuários, no setor de Infectologia desde a referida década. Durante meu trajeto como assistente social neste hospital, pude experimentar a realidade cotidiana das práticas de saúde pública, nas redes do Sistema Único de Saúde (SUS) no município de Niterói. Um cotidiano, cuja intensidade logo me lançou à força e ao paradoxo de um singular cenário e foram exatamente as marcas dessa experiência que, repercutindo ainda neste tempo, fizeram-me conectar a outros profissionais que trabalhavam a adesão junto a esses usuários atendidos de HIV/AIDS. Aos poucos, os profissionais foram se organizando frente à sobrecarga de atendimento dos usuários e seus familiares, que demandavam questões relacionadas ao surgimento dessa nova doença. Surgiram então novos projetos a fim de atender a diferentes demandas implicadas com a mesma questão, que serão melhores descritos nesta pesquisa. Nossas ações começaram com a formação de um grupo de discussão sobre a relação do profissional com o usuário implicado, que se chamou GEIA (Grupo de Estudo Interdisciplinar de AIDS). Após, iniciamos outro projeto destinado às pessoas de fontes diversas (encaminhamentos internos e externos), candidatas à realização do teste antiHIV. Buscava-se preencher uma lacuna no atendimento a uma demanda que além de solicitar a realização do teste, desejava esclarecimentos sobre uma nova doença e suporte emocional, com o nome de Atendimento Psicossocial. Paralelamente, eram trazidas para as reuniões do GEIA, uma solicitação por parte dos médicos, de atendimento às famílias dos usuários HIV/AIDS, que significava outra demanda carente de informações, de apoio emocional, originando então um grupo de familiares. Foi formado também outro grupo chamado de Sol, dessa vez através de solicitação dos próprios usuários HIV/AIDS, que desejavam um espaço para discutirem suas questões, na troca de vivências objetivas e subjetivas relacionadas à doença, ao tratamento, assim como incursões pela vida social. Portanto, a partir dessa experiência compartilhada com outros profissionais de diferentes áreas de atuação, desejei torná-la uma materialidade empírica para poder pensar nessa prática de cuidado, neste trabalho de mestrado. A presente pesquisa trata de uma conexão interdisciplinar voltada para uma prática implicada na busca da adesão, 13 instigando e problematizando acerca do atendimento em seus cotidianos de trabalho. Esse questionamento surge quando se constata que há abandono de tratamento, apesar de inúmeros estudos e pesquisas sobre os motivos e estratégias para a adesão e que não basta então o sistema e os profissionais oferecerem o cuidado ao usuário para que haja adesão. Para muitos profissionais de saúde, bom paciente é aquele aderente ao tratamento. É importante definir a adesão na prática, como um processo em construção onde esperamos a aderência por todos os usuários, mas há aqueles que se recusam a tomar os remédios prescritos onde o acompanhamento contínuo por profissionais torna-se uma estratégia a ser investida. Tenho como hipótese na presente pesquisa, que uma das principais condições para a adesão ao tratamento refere-se à relação usuário e profissional, e ainda suponho que a transferência, tal como concebida pela psicanálise, constitui uma estratégia para a adesão ao tratamento por parte dos usuários com HIV/AIDS. Começando a problematizar o fato e acompanhando os usuários considerados “problema”, encaminhados pelos profissionais de saúde que alegavam indisponibilidade de tempo, verifiquei que não passava pelo campo da informação, do convencimento e nem do estágio da doença. Comecei a perceber que poderia ter relação direta com o olhar do profissional de saúde e com sua disponibilidade para estar com os usuários e que esse profissional poderia funcionar como uma rede afetiva, levando-os a buscar outro modo de viver adoecedor. Neste cenário, segundo Dr. Mauro Shechter (2001), chefe do Laboratório de Pesquisas em AIDS da UFRJ: No início da epidemia, adoecer significava morrer. Hoje, quem se trata dificilmente adoece. Se isso ocorre, a pessoa pode se tratar e continuar vivendo. Hoje um paciente com AIDS pode viver o mesmo tempo que alguém, que não tenha a doença. A mortalidade por AIDS atualmente ocorre justamente entre os que não se tratam ou não tomam os remédios direito. (SHECHTER, 2001). 14 Em uma concepção mais restrita, adesão, pode ser definida conforme nos ensina Haynes (1991), como o comportamento de uma pessoa tomar remédio, seguir uma dieta ou fazer mudanças no estilo de vida que correspondam às recomendações da equipe de saúde. No campo da saúde, adesão corresponde ao “grau de seguimento dos pacientes a orientação médica”. (Fletcher et al., 1989, p.70). Problematizando a questão da adesão ao tratamento, certa vez atendendo a um usuário internado, a sua percepção era de que haviam muitos profissionais trabalhando para o cuidado, mas sentia uma diferença entre eles: “uns ficam, outros estão junto aos usuários”. Dentre tantas questões suscitadas por meu trabalho na enfermaria do Serviço de Infectologia, percebi que alguns usuários aderem ao tratamento e outros não. A prática instiga-nos a pensar o que efetivamente contribui para a adesão do usuário ao tratamento. Isso poderia ser reduzido apenas ao plano do usuário? Ou mesmo unicamente à questão dos profissionais? Outro usuário, mecânico de automóveis, comparou a necessidade de seu engajamento no tratamento a uma engrenagem onde cada dente representa a atuação dos profissionais da equipe envolvidos no cuidado, os remédios, as consultas, os exames, para que o todo do processo tenha um resultado satisfatório. No segundo capítulo deste trabalho abordarei aspectos históricos da AIDS no Brasil, assim como do Hospital Universitário Antonio Pedro onde desenvolvi a prática que deu origem a esta pesquisa. Ainda neste capítulo encontra-se um breve relato de minha experiência clínica com portadores de HIV/AIDS no HUAP. O interesse dos profissionais implicados na adesão é de construir um dispositivo que, longe de qualquer possibilidade de juízo de valor, possa vir a se constituir como um canal capaz de aumentar o número de usuários aderentes ao tratamento necessário. Para o desenvolvimento desta pesquisa a respeito da adesão ao tratamento dos portadores de HIV/AIDS, privilegiarei o estudo do fenômeno da transferência, conceito desenvolvido pela psicanálise, presente em todas as formas de relações humanas e que será trabalhado, mais especificamente, no terceiro capítulo. Serão apresentados no quarto capítulo, alguns relatos de casos clínicos atendidos na enfermaria de Infectologia, que caracterizam o cenário vivenciado 15 pelos usuários, cujo foco do tratamento se baseia na adesão, assim como o dia a dia das relações entre os profissionais de saúde e usuários, a fim de investigar a hipótese desta pesquisa. Esta pesquisa contribui para a compreensão da questão da adesão ao tratamento, à medida que aponta a transferência como estratégia nos diversos tratamentos na área de saúde. Levar em conta a subjetividade no processo de adesão ao tratamento sugere rever a concepção linear desse conceito, segundo o qual bastaria se oferecer remédios e profissionais, para obter a resposta esperada. O que a psicanálise nos alerta sobre esse ponto é a presença de fenômenos subjetivos, dentre os quais se destaca a transferência. A transferência, em qualquer relação profissional na área de saúde, nosso foco de estudo, designa um laço de amor que se constrói sobre a base de uma suposição de saber em relação àquele que atende. A identificação, o reconhecimento e a valorização desse fenômeno nos atendimentos entre os usuários e os profissionais de saúde são de suma importância na busca de uma melhor relação durante todo o processo de tratamento. Essa ideia será explanada no capítulo das conclusões. 16 2. DA HISTÓRIA À CLÍNICA Neste capítulo descreverei a instituição onde trabalho, procurando relatar as experiências vivenciadas durante a trajetória da AIDS. Ao reviver essa história, marcada por uma série de mudanças na sociedade, percebemos os movimentos políticos, econômicos e sociais, como forma de entender um novo momento na prática do cuidado, onde forças emergem na busca de alcançar um melhor atendimento aos usuários acometidos pelo HIV/AIDS. 2.1. HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ANTONIO PEDRO: SUA HISTÓRIA E TRAJETÓRIA O Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), surgiu na década de 40 na mente de dois políticos, o interventor Amaral Peixoto e o então prefeito Brandão Júnior. Em 15 de janeiro de 1951, o Hospital Municipal Antônio Pedro foi inaugurado e contava com 350 leitos assumindo integralmente a demanda do Município de Niterói e de seus vizinhos. Concomitante à inauguração foram desativados os outros Serviços de Saúde, ficando o Hospital Municipal responsável pela demanda. O nome é em homenagem ao clínico geral Antônio Pedro Pimentel, um dos fundadores da Faculdade Fluminense de Medicina, que se destacou no estudo de doenças infecciosas. Infelizmente, a autonomia administrativa não foi muito aceita pelos governantes e uma nova bandeira de luta foi levantada para combater a então administração do hospital, sob a alegação de que a missão do hospital não estava sendo cumprida. Foi proibida a cobrança de serviços aos que podiam pagar, com a desculpa de que a gratuidade deveria ser para todos. A lei foi revogada, os serviços pararam de ser cobrados e a Prefeitura ficou com a administração direta. Com o passar do tempo os recursos da Prefeitura extenuaram-se e a instituição entrou em crise. Após três anos de intervenção Municipal o Hospital foi fechado, mantendo-se em funcionamento, em precário estado, apenas o Serviço de Emergência. Duas foram as tragédias que assolaram a região e que ficaram marcadas na história desse hospital. Mesmo antes da inauguração, já 17 funcionaria em caráter de urgência para atender às vítimas do desastre ferroviário de Tanguá, em que morreram 56 pessoas e 61 ficaram feridas. A tragédia lastimável do incêndio do Gran Circus Norte- Americano ocorrida na cidade e que sensibilizou todo o Brasil, fez com que o Governo Federal reabrisse suas portas, ainda como Hospital Municipal. Com o advento desse incêndio, o Hospital, em caráter emergencial, foi cedido ao Ministério da Saúde em 29 de dezembro de 1961. Reavaliando sua posição diante do desastre, a Prefeitura resolveu doar a instituição em 26 de maio de 1964 à Universidade Federal Fluminense que havia sido criada recentemente. O Governo Federal recebeu um Hospital inadimplente e carente de recuperação e modificações, para transformar-se em um Hospital Escola, passando a ser chamado de Hospital Universitário Antônio Pedro. Coube à Universidade Federal Fluminense a incumbência de administrar um grande patrimônio. Aos poucos os funcionários da Prefeitura começaram a ser substituídos, o que acarretou um enorme encargo para a Universidade. Embora os custos tenham se mantido altos, durante muito tempo a universidade manteve-se presente realizando um trabalho persistente e continuado de recuperação e aprimoramento do HUAP, fazendo da instituição uma escola. A Universidade Federal Fluminense (UFF) foi criada pela Lei n.º 3.848, de 18/12/60, com o nome de Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFERJ). Constituiu-se da incorporação de cinco faculdades federais já existentes em Niterói (Faculdade de Direito de Niterói, Faculdade Fluminense Medicina, Faculdade de Farmácia e Odontologia do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade Fluminense de Odontologia e Faculdade de Medicina Veterinária); três escolas estaduais (Escola de Enfermagem, Escola Fluminense de Engenharia e Escola de Serviço Social) e duas faculdades particulares (Faculdades Fluminense de Filosofia e de Ciências Econômicas), que foram federalizadas e incorporadas posteriormente pela Lei nº 3.958, de 13/09/61). A UFF teve seu nome atual homologado pela Lei n.º 4.831, de 5/11/65, e se caracteriza como uma universidade de grande porte, com ensino, pesquisa e extensão em quase todas as áreas do conhecimento. É a mais interiorizada das universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro, com cursos em 16 cidades, incluindo a sede em Niterói. 18 O hospital hoje é considerado a maior e mais complexa unidade de saúde da grande Niterói e pela hierarquia do SUS, é caracterizado com hospital de nível terciário e quaternário (alta complexidade, em áreas especializadas de diagnósticos e terapias, dentro dos princípios da universalização da assistência, com garantia de acesso igualitário à saúde, resguardando os princípios constitucionais), atendendo a uma clientela de cerca de onze municípios vizinhos, incluindo as cidades da Região Metropolitana II. A Região Metropolitana II do Rio de Janeiro é formada por sete Municípios, representa 6,18% do território do estado e 11,89% da população estadual. Integram a Região os Municípios de Itaboraí, Maricá, Niterói, Rio Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá. É o principal campo de atividades de várias profissões como hospital de ensino, além de prestar assistência à saúde da população, desenvolvendo atividades de capacitação de recursos humanos nas áreas dos campos de formação em graduação e pós-graduação em Medicina, Enfermagem, Nutrição, Odontologia, Farmácia, Psicologia, Foniatria e Fisioterapia. Quanto à articulação com o gestor local, desde o ano 2000, o financiamento de custeio do HUAP é regulamentado por contrato estabelecido entre a UFF, logo parte de seu recurso advém do MEC (Ministério de Educação e Cultura) e pelo Sistema Único de Saúde (SUS), através da Secretaria de Saúde do Município de Niterói. Os recursos são de dotação orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional. O Ministério da Saúde, através do Departamento de Ciência e Tecnologia (DECIT) em iniciativa conjunta dos Ministérios da Saúde e de Ciência e Tecnologia, no ano de 2005 foi lançado um edital (MCT/MS/FINEP Implantação de Unidades de Pesquisa Clínica), com o objetivo de selecionar e implementar unidades de pesquisa que pudessem ser financiadas e estimuladas a atuar, formando a Rede Nacional de Pesquisa Clínica em Hospitais de Ensino, cuja missão é a de dar suporte técnico-científico às SULRULGDGHV GH SHVTXLVD GD 3ROtWLFD 1DFLRQDO GH 6D~GH GHILQLGDV QD Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde (2004). Através do decreto Nº 7.082 de 27 de janeiro de 2010, foi instituído o Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários FederaisREHUF e dispõe sobre o financiamento compartilhado dos Hospitais 19 Universitários Federais entre as áreas da educação e da saúde, disciplinando o regime da pactuação global com esses hospitais, o que proporcionou o planejamento de um plano de metas a serem alcançadas a curto, médio e longo prazo. Nos últimos anos, algumas áreas têm sido contempladas com reformas, principalmente aquelas vinculadas a programas prioritários da área de saúde. O Plano de Reestruturação dos HU’s, chegou em momento oportuno para viabilizar recursos, de forma a permitir os ajustes e intervenções necessárias tornando possível exercer de forma plena a sua missão institucional no ensino, pesquisa, extensão e assistência. O Programa estará retirando o hospital de uma situação praticamente de estagnação e precariedade, devolvendo à rede uma unidade capaz de aumentar a oferta de serviços de média e alta complexidade. O investimento nesse programa trará consequências, onde podemos destacar um aumento da oferta de procedimentos de alta complexidade, sobretudo nas áreas de cirurgia cardiovascular, oncologia/hematologia e transplantes; uma maior rapidez e precisão nos diagnósticos, promovendo significativa melhora nos indicadores de internação; um aumento da oferta de leitos de terapia intensiva pediátrica para a região metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro; uma maior integração com a rede regional de saúde do SUS; a otimização dos recursos disponíveis decorrentes das melhorias advindas nos processos de gestão administrativa, de informação, de materiais e de pessoas; a inclusão do HUAP na relação de hospitais com maior atividade em pesquisa clínica, sobretudo aquelas de interesse para o SUS; a criação de um ambiente acolhedor e humanizado para os pacientes e funcionários; uma maior satisfação dos servidores da instituição e dos usuários que serão atendidos em suas demandas em menor prazo através de um atendimento técnico altamente qualificado; uma maior disponibilidade de cenários didático-pedagógicos para alunos de graduação e pós-graduação, incluindo o Programa de Residência e uma maior produtividade na elaboração, execução e publicação de pesquisas clínicas realizados no hospital ou em colaboração com outras instituições. A atuação do Serviço Social no Hospital Universitário Antonio Pedro, se baseia na Política Pública de Saúde vigente do SUS (CFESS, 2008), e tem como parâmetros: 20 x Possibilitar a mobilização e garantia de direitos e acesso aos serviços na esfera da seguridade social, por meio da criação de mecanismos e rotinas de ação; x Democratizar as informações por meio de orientações (individuais e coletivas) e/ou encaminhamentos quanto aos direitos sociais da população usuária; x Fortalecer os vínculos familiares, na perspectiva de incentivar o usuário e sua família a se tornarem sujeitos do processo de promoção, proteção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde; x Buscar e garantir o direito do usuário ao acesso aos serviços; x Criação de uma nova cultura de atendimento, pautada na centralidade dos sujeitos na construção coletiva do SUS. Segundo Bravo & Matos (2001), a saúde foi uma das áreas em que os avanços constitucionais foram mais significativos. O Sistema Único de Saúde (SUS), integrante da Seguridade Social foi regulamentado em 1990, pela Lei Orgânica da Saúde (LOAS). O Projeto de Reforma Sanitária, tendo no SUS uma estratégia, tem como base um Estado democrático de direito, responsável pelas políticas sociais e, consequentemente, pela saúde. Destacam-se como fundamentos dessa proposta a democratização do acesso; a universalização das ações; a melhoria da qualidade dos serviços com a adoção de um novo modelo assistencial pautado na integralidade e equidade das ações; a democratização das informações e transparência no uso de recursos e ações do governo; a descentralização com controle social democrático e a interdisciplinaridade nas ações. Tem como premissa básica a defesa da saúde como direito de todos e dever do Estado (Bravo, 1999). Ao analisarmos a trajetória do Serviço Social na área da saúde, identificamos que alguns desafios estão postos na atualidade principalmente a partir dos anos noventa, dada a existência de dois projetos: o projeto de Reforma Sanitária e o projeto privatista. A prática do assistente social tem visado uma inserção de suas ações na sociedade brasileira, segundo seu Código de Ética, voltado para uma assistência aos grupos menos favorecidos e mais destituídos de seus direitos, na busca de viabilizar as Políticas Sociais. As novas diretrizes das diversas profissões têm ressaltado a importância 21 de formar trabalhadores de saúde para o Sistema Único de Saúde, com visão generalista e não fragmentada. Assim, compreende-se que cabe ao Serviço Social, numa ação necessariamente articulada com outros segmentos que defendem o aprofundamento do Sistema Único de Saúde (SUS), formular estratégias que busquem reforçar ou criar experiências nos serviços de saúde que efetivem o direito social à saúde, atentando que o trabalho do assistente social necessariamente, estará articulado ao projeto da Reforma Sanitária (Matos, 2003; Bravo & Matos, 2004). A presente pesquisa está sendo realizada no contexto de um mestrado interdisciplinar, o que facilita seu encaminhamento como uma prática interdisciplinar, em acordo com as novas diretrizes das políticas públicas de saúde que colocam o profissional com uma visão mais geral, procurando articular diversas áreas do saber. Ao focalizar neste trabalho o fenômeno da adesão que ocorre na prática da saúde, o assistente social poderá articular as políticas públicas, as técnicas específicas do serviço social e operadores da psicanálise, na busca de uma maior compreensão desse fenômeno. 2.2. A HISTÓRIA DA AIDS NO BRASIL Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Saúde/DST-AIDS, desde o início da epidemia, em 1980, até junho de 2011, o Brasil tem 608.230 casos registrados de AIDS (condição em que a doença já se manifestou), de acordo com o último Boletim Epidemiológico desse Ministério. Em 2010, foram notificados 34.218 casos da doença, com 11.965 óbitos e a taxa de incidência de AIDS no Brasil foi de 17,9 casos por 100 mil habitantes. Os números mostram o avanço da doença entre 1998 e 2011. Por região, em um período de 10 anos (2000 a 2010), a taxa de incidência caiu no Sudeste de 24,5 para 17,6 casos por 100 mil habitantes, no entanto, apresenta o maior número de casos acumulados, concentrando 56%. Nas outras regiões cresceu: 27,1 para 28,8 no Sul; 7,0 para 20,6 no Norte; 13,9 para 15,7 no Centro-Oeste; e 7,1 para 12,6 no Nordeste. Ainda segundo o Ministério de Saúde, atualmente ainda há mais casos da doença entre os homens do que entre as mulheres, mas essa diferença vem diminuindo ao longo dos anos. Esse aumento proporcional do número de casos de AIDS entre mulheres pode ser observado pela razão de sexos (número de 22 casos em homens dividido pelo número de casos em mulheres). Em 1989, a razão de sexos era de cerca de 6 casos de AIDS no sexo masculino para cada 1 caso no sexo feminino. Em 2010, chegou a 1,7 caso em homens para cada 1 em mulheres. Através de dados mais recentes apresentados nos termos das conclusões da XI Conferência Brasil Johns Hopkins University em HIV/AIDS, realizada no Rio de Janeiro em 2013 atualmente no Brasil são 608,230 mil casos acumulados, em 2012 houveram 18 mil novas infecções, 15 mil mortes e 26 drogas estão sendo utilizadas no tratamento (terapia antiretroviais). Atualmente no mundo possuem 68 milhões de infectados; 32 milhões vivem com HIV; 2 milhões e meio infectados a cada ano; 1,7 milhões morreram em 2012. Por minuto 25 pessoas se contaminam e 300 pessoas por hora. A faixa etária em que a AIDS é mais incidente, em ambos os sexos, é a de 25 a 49 anos de idade. Chama atenção os dados em jovens de 13 a 19 anos. Essa é a única faixa etária em que o número de casos é maior entre as mulheres e essa inversão se apresenta desde 1998. Em relação aos jovens, os dados apontam que, embora eles tenham elevado conhecimento sobre prevenção da AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis, há tendência de crescimento do HIV. Quanto à forma de transmissão entre os maiores de 13 anos de idade, prevalece a sexual. Nas mulheres, 83,1% dos casos registrados em 2010 decorreram de relações heterossexuais com pessoas infectadas pelo HIV. Entre os homens, 42,4% dos casos se deram por relações heterossexuais, 22% por relações homossexuais e 7,7% por bissexuais. O restante ocorreu por transmissão sanguínea e vertical (da mãe para o bebê). Apesar de o número de casos no sexo masculino ainda ser maior entre heterossexuais, a epidemia no país é concentrada. Ao longo dos últimos 12 anos, a porcentagem de casos na população de 15 a 24 anos caiu. Já entre os gays houve aumento de 10,1%. Em 2010, para cada 16 homossexuais dessa faixa etária vivendo com AIDS, havia 10 heterossexuais. Essa relação, em 1998, era de 12 para 10. Em números absolutos, é possível ver como a redução de casos em menores de cinco anos é expressiva: passou de 863 casos, em 2000, para 23 482, no ano de 2010. Comparando-se os anos de 2000 e 2010, a redução chegou a 55%. O resultado confirma a eficácia da política de redução da transmissão vertical do HIV. Às gestantes, o Ministério da Saúde recomenda o uso de medicamentos antiretrovirais durante o período de gravidez e no trabalho de parto, além de realização de cesárea para as mulheres que têm carga viral elevada ou desconhecida. Para o recém-nascido, a determinação é de substituição do aleitamento materno por fórmula infantil (leite em pó) e uso de antiretrovirais, onde tais medidas adotadas diminuem as chances de transmissão vertical para menos de 1%. A seguir, a descrição da trajetória da AIDS fornecida pelo Ministério da Saúde/ DST-AIDS, identificando algumas fases importantes para a evolução do tratamento e a inserção do HUAP como hospital de referência para atendimento: x Em 1980 surge o primeiro caso no Brasil (São Paulo). x Em 1985 foi disponibilizado o primeiro teste anti-Hiv para diagnóstico e surge o primeiro caso de transmissão vertical (de mãe grávida para o bebê). x Em 1986 houve a criação do Programa Nacional de DST e AIDS, No Brasil, a Lei no 9.313, de 13 de novembro de 1996 – de autoria do Senador José Sarney e assinada pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso – tornou obrigatória a distribuição de medicamentos anti-HIV pelo sistema público de saúde (MS, 1999a). No período de 1986 a 1990 é caracterizado pela organização de uma estratégia global, coordenada pelo Programa Global de AIDS da Organização Mundial de Saúde (OMS), numa proposta abarcando todas as áreas do planeta, definindo que o componente mais importante era a informação e educação. x Em 1987 houve a criação do primeiro Centro de Orientação SorológicaCOAS, em Porto Alegre/RS. Início da utilização do AZT, o primeiro a reduzir a multiplicação do vírus HIV. x Em 1988 foi criada a Portaria assinada pelo Ministério da Saúde passando a adotar o dia 1϶ de dezembro como o dia Mundial de Luta 24 Contra a AIDS. Criação do SUS. O ministério da Saúde inicia o fornecimento de medicamentos para o tratamento das infecções oportunistas. x Em 1991 inicia-se o processo para aquisição e distribuição gratuita de antiretrovirais (medicamentos que dificultam a multiplicação do vírus). x Em 1992 o Ministério da Saúde credencia hospitais para o tratamento de pacientes com AIDS e o Hospital Universitário Antonio Pedro/UFF é referenciado para o atendimento no município de Niterói. x Em 1994 estudos mostram que o uso de AZT ajuda a prevenir a transmissão do HIV de mãe para filho. Definição para diagnosticar casos de AIDS em crianças. x Em 1995 estudos revelam que a combinação de drogas reduz a progressão da infecção. Até esse ano a assistência medicamentosa era precária. x Em 1996 houve o primeiro consenso em terapia antiretroviral (regulamentação da prescrição de medicações para combater o HIV). Lei fixa o direito ao recebimento da medicação gratuita para o tratamento. Queda das taxas de mortalidade por AIDS, diferenciada por regiões. x Em 1997 houve a implantação da Rede Nacional de Laboratórios para o monitoramento de pacientes com HIV em terapia com antiretroviral, com a realização de exames de carga viral e contagem de células CD4 (células que fazem parte do sistema de defesa do organismo ou sistema imunológico). x Em 1998 uma lei define como obrigatória a cobertura de despesas hospitalares com AIDS pelos seguros de saúde privados. Onze medicamentos disponíveis, gratuitamente na rede de saúde. x Em 1999 aumenta para quinze o número de medicamentos disponibilizados pelo Ministério de Saúde. Queda de 50% na mortalidade dos pacientes com AIDS e melhora da qualidade de vida dos portadores do HIV. Estudos indicam que quando o tratamento é abandonado, a infecção torna-se outra vez detectável. Usuários desenvolvem efeitos colaterais aos remédios. 25 x Em 2000 houve a realização do I Fórum em HIV/AIDS e DST da América Latina no Rio de Janeiro. A partir de acordo promovido pelas Nações Unidas, cinco grandes companhias farmacêuticas concordam em diminuir o preço dos remédios usados no tratamento da AIDS para países em desenvolvimento. x Em 2003 o Programa Brasileiro de DST/AIDS recebe um prêmio de U$ 1 milhão da Fundação Bill & Melinda Gales como reconhecimento às ações de prevenção e assistência no país. O Programa é considerado por diversas agências de cooperação internacional como referência mundial. Total de casos acumulados: 310310. x Em 2007 o Programa Nacional DST/AIDS institui Banco de Dados de Violações dos direitos das pessoas portadoras do HIV. Aumenta a sobrevida das pessoas com AIDS no Brasil. Passados trinta anos, o Brasil tem como característica uma epidemia estável e concentrada em alguns subgrupos populacionais em situação de vulnerabilidade. Segundo dados do Boletim Epidemiológico/Ministério da Saúde (2011), em estudos onde cerca de 36 mil jovens entre 15 a 24 anos do sexo masculino foram entrevistados, apontaram que cerca de 97% da população de homens (de 15 a 24 anos) sabem que o uso do preservativo é a melhor maneira de evitar a infecção pelo HIV. A ação mais abrangente como a ampliação da testagem com estratégias diferenciadas, do acesso ao preservativo e de ações de promoção à saúde, que caracteriza a epidemia brasileira como estabilizada, refere-se ao Programa Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE) que promove a integração dos sistemas de ensino e de saúde no ambiente escolar em uma estratégia conjunta com o Ministério da Educação. O Programa é responsável pela promoção da saúde sexual e reprodutiva, o que inclui a distribuição de camisinhas nas escolas, e a formação continuada para professores e profissionais de saúde em sexualidade, além de envolver a comunidade (família, jovens) para a atuação conjunta com seus pares. Segundo Simão (2011), que fez reflexões sobre o progresso do Brasil no combate à doença, o sistema de saúde brasileiro foi organizado em dois subsistemas: o SUS (Sistema Único de Saúde), financiado com recursos 26 públicos, e o sistema complementar de atendimento médico privado. O SUS tornou-se o principal financiador e fornecedor de serviços de saúde para três quartos dos brasileiros. Os demais, formados pela população mais rica e localizada principalmente nas áreas urbanas das regiões sul e sudeste, compraram seguros de saúde privados e obtiveram acesso a médicos e hospitais particulares. Os segurados privados mantiveram o direito de acessar os serviços de saúde do sistema público. Cinco princípios regeram o desenvolvimento do SUS: a cobertura universal e gratuita; os serviços abrangentes desde a prevenção ao tratamento; a igualdade; a descentralização e a participação pública. Durante a década de 90, leis e normativos descrevendo esses princípios foram regulamentados e implantados. Acrescenta ainda SIMÃO (2011), que em 1996 o Brasil se tornou o primeiro país em desenvolvimento a oferecer tratamento antiretroviral com financiamento público para todas as pessoas vivendo com o HIV/AIDS. Em 2000, a epidemia do HIV havia se estabilizado e apresentava indicadores similares aos encontrados nos Estados Unidos e Europa Ocidental, sendo que as taxas mais altas da infecção concentravam-se nos grupos de alto risco, como os homens gays, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis. Este mesmo autor analisa que a governança do SUS é descentralizada, com um centro de comando único nas esferas federais, estaduais e municipais. Em nível federal, o Ministério da Saúde desenvolve e implanta políticas nacionais. Nos estados, as secretarias de saúde distribuem os recursos para os municípios e coordenam diretamente alguns hospitais e serviços médicos oferecidos pelas universidades. As secretarias de saúde municipais organizam e prestam a maior parte dos serviços de saúde. Autoridades eleitas nomeiam os administradores dos serviços públicos de saúde. Em geral, as eleições governamentais levam a mudanças administrativas impulsionadas por interesses políticos que não consideram a competência técnica ou o sucesso dos programas. O princípio da participação pública (chamada controle social) é realizado em todos os níveis da governança mediante os conselhos de saúde pública. Esses são compostos de médicos, burocratas, pacientes e membros de organizações da sociedade civil que ajudam a estabelecer as políticas orçamentárias e programáticas. Os conselhos têm poder estatutário, mas sua 27 influência depende do estado e da cidade. A política para a prevenção e controle do HIV consistiu de três áreas de atividades integradas: 1) garantir o acesso universal e gratuito ao cuidado e à terapia antiretroviral; 2) expandir o acesso a diagnóstico e prevenção e 3) manter um relacionamento proativo com a sociedade civil independente. Uma compreensão mais complexa e adequada dessa questão precisa relacionar o sucesso do tratamento de AIDS à dependência de múltiplos fatores ligados ao próprio usuário: sua rede social, familiar, oferta de serviços públicos de saúde e da equipe multidisciplinar, crenças individuais sobre saúde, o conhecimento equacionado dos riscos e benefícios da terapia, compromissos diários, uso do álcool e de outras drogas, querer evitar efeitos colaterais, depressão, angústia, estresse. Cabe novamente ressaltar a importância do contexto do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade, como possibilidade para uma melhor compreensão dessas questões, uma vez que incentiva as conexões entre diversos saberes, o que poderá contribuir, no caso da presente pesquisa, para uma compreensão mais ampla da questão da adesão ao tratamento pelos portadores de HIV/AIDS. Na verdade, a concepção “adesão à terapêutica”, conta com uma vasta literatura, especialmente a adesão ao tratamento de uma determinada enfermidade como a AIDS. Adesão, em geral, é compreendida como a utilização dos medicamentos prescritos ou outros procedimentos em pelo menos 80% de seu total, observando horários, doses, tempo de tratamento. Nas doenças crônicas ou muito graves, o envolvimento dos profissionais de saúde é de suma importância porque a adesão ao tratamento sempre depende da participação da pessoa doente, e esta participação não pode ser entendida como uma dedicação exclusiva à doença, mas em uma capacidade de reinventar-se. O acolhimento à escuta desses usuários é preconizada pelo SUS, pois geralmente se tornam poliqueixosos, tornando muitas vezes a situação de doença como o centro de suas vidas. É preciso que o usuário se situe no que está falando e que se implique, se investigue e examine seu posicionamento. A partir dessa escuta tanto o profissional como o usuário criam vínculo e transferem afetos, criando laços. Esse fluxo de afetos poderá facilitar a compreensão do outro para então trabalhar-se os inúmeros aspectos envolvidos nesse adoecer. A equipe de referência no atendimento passa a ser 28 uma ferramenta a ser utilizada em favor desse trabalho de adesão que deverá de preferência, continuar durante todo o processo. O exame do conceito de transferência tomado da teoria psicanalítica oferece contribuições valiosas para melhor compreensão desses aspectos. Segundo GEOCZE et al (2010), podemos considerar que existe uma questão a ser explorada na relação entre a adesão ao tratamento e qualidade de vida. Alguns estudos mostram um paradoxo: o aumento da adesão terapêutica pode determinar piora na qualidade de vida, porque os efeitos colaterais das medicações crescem ao longo do tempo. Questionar se o benefício da adesão afeta a qualidade de vida do usuário, incluindo aspectos físicos, psíquicos e sociais, é algo a ser considerado. Neste contexto a análise e o foco desta pesquisa sugere que a promoção do cuidado em saúde está implicada também na ordem do afeto entre as partes: trabalhador de saúde e usuário. Um cuidado que coloca em cena a subjetividade de um corpo que não é só orgânico, um processo que enfatiza o estabelecimento de um relacionamento seguro, respeitoso, de confiança, além de um plano de tratamento que se adapte à rotina de vida desse usuário que participaria mais ativamente desse processo. A idéia é dar maior autonomia e liberdade na condução do tratamento, considerando tanto à saúde como o usuário. Trata-se de um processo que possibilita um olhar do que se produz na relação profissional e usuário, possibilitando uma visão clínica da relação de trabalho, investigando de que maneira o olhar do profissional de saúde vai incitar o cuidado e nesse sentido amenizar a dor e a doença. Uma análise crítica dos tratamentos na área da saúde pode propiciar benefícios ao usuário. É preciso veicular a ideia que a adesão ao tratamento não implica, necessariamente, em prejuízos para a qualidade de vida. A adesão ao tratamento é alcançada então, através de uma composição e não de imposição. A psicanálise através do conceito de transferência poderá contribuir para se pensar melhor em termos de estratégia para alcançar êxito quanto à adesão ao tratamento dos portadores de HIV/AIDS. 2.3. UMA EXPERIÊNCIA CLÍNICA COM PORTADORES DE HIV/AIDS NO HUAP Na década de 80, a AIDS foi descrita nos EEUU como uma doença viral 29 em pacientes homossexuais, sexualmente transmissível, progressiva e incurável. Começamos a nos deparar no Hospital Universitário Antônio Pedro da Universidade Federal Fluminense, com situações clínicas semelhantes àquelas descritas que surpreendiam aos especialistas da época como uma entidade nova. Reações de pânico eclodiam, com frequência, entre os profissionais visto que, supostamente, cuidar desses pacientes esbarrava na ameaça de ser contaminado, em um hospital geral que conta com equipes cirúrgicas que também se sentiam ameaçadas, pois os mecanismos de transmissão dessa doença ainda não eram claramente conhecidos. Em outro âmbito hospitalar, os profissionais do banco de sangue tinham dificuldades em lidar com o doador cujo teste de rotina era positivo para HIV. Encaminhavam-no ao setor de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP) dizendo-lhe que ele estava com um “bichinho” no sangue. Outra preocupação era de que o doador com teste negativo pudesse encontrar-se no que se denomina de “janela imunológica” que corresponde ao tempo entre a infecção e o aparecimento dos anticorpos para o vírus e de apresentar um grande potencial na disseminação da doença através de doação de sangue. No ambulatório, os casos clínicos se multiplicavam, sem que os médicos soubessem como lidar com o diagnóstico e como comunicá-lo aos usuários. Em tudo se assemelhava às reações dos outros espaços hospitalares, tornando difícil o cuidado e o tratamento dessas pessoas. A primeira internação na enfermaria do DIP foi em 10/04/85 com alta em 04/06/85 e outra com data de 10/06/1985, mas desta vez, infelizmente, com data de óbito em 17/06/85. Nossas ações começaram por organizar um grupo de discussão sobre a relação profissional-usuário, dedicado especificamente aos usuários de AIDS/HIV. Criou-se assim o Grupo de Estudos Interdisciplinar de AIDS (GEIA) e um espaço de reflexão no qual os profissionais (médicos de diferentes especialidades, incluindo psiquiatras, psicólogos, enfermeiras, assistentes sociais), podiam pensar e discutir sua própria atuação e suas dificuldades no trabalho do cotidiano com seus pacientes. Pretendíamos com isto implicar os profissionais nesse processo de discussão. Ao longo dos anos, este grupo sofreu seguidas modificações em seus quadros, todavia logrou a criação de um espaço permanente de reflexões e de atuação clínica e social sobre os problemas oriundos da atenção aos portadores de uma doença nova, mortal e 30 cercada de preconceitos, com muitos agravos psico-sócio-institucionais a serem enfrentados. Nesse espaço de reflexão, a história de vida do portador transbordava e se entrecruzava com a história da doença orgânica atual onde se percebia o interesse do grupo na discussão de cada caso apresentado. Era clara a transformação que pouco a pouco foi se instalando no grupo, substituindo a condição de medo da nova doença para a preocupação com a pessoa doente. Já nesse período se considerava a importância da adesão como chance de tratamento, buscando se oferecer um atendimento humanizado de atenção ao usuário, ocasionando um sentimento de compreensão deste pelo profissional. Esse vínculo com o profissional, primordial para adesão ao tratamento, poderia não acontecer e provocar uma resistência ao tratamento, sendo indicada uma atuação psicoterapêutica. Este vínculo do usuário com o profissional é analisado no âmbito da teoria psicanalítica através do conceito de transferência, o qual será apresentado no capítulo 3 desta pesquisa. A experiência fez-nos entender que nossas preocupações não deveriam se limitar ao paciente e aos profissionais que conviviam naquela enfermaria específica da Disciplina de Doenças Infecciosas e Parasitárias (DIP), quando os mesmos problemas eclodiam em âmbito hospitalar. A AIDS envolve profissionais e/ou estudantes de diferentes ramos do conhecimento que buscam avaliar, além dos conhecimentos específicos da doença, o respeito pelos valores essenciais dos indivíduos implicados, o anonimato, a escuta e a possibilidade de trabalhar em condições adversas. Em janeiro de 1990, iniciamos um projeto novo destinado às pessoas de fontes diversas (encaminhamentos internos e externos), candidatas à realização do teste anti-HIV. Buscava-se preencher uma lacuna no atendimento a uma demanda que além de solicitar a realização do teste, desejava esclarecimentos sobre uma nova doença. O HUAP é um centro de referência de vários municípios de Niterói e adjacências e esse projeto surgiu de uma demanda institucional na concentração de esforços para atender a uma pressão e acolher a essas candidatas ao teste, que invadiam os ambulatórios clínicos com esse objetivo. Chamamos esse projeto de Atendimento Psicossocial cuja característica era introduzir no atendimento uma visão psíquica e social, para exercício do 31 qual os mesmos profissionais que participavam do GEIA eram treinados. Esse atendimento visava dois momentos: um antes e outro depois de realizado o teste. Atendimento pré-teste – Para esse atendimento eram encaminhados os usuários que tinham apenas suspeitas de estarem infectados. O profissional treinado para essa função conversava com ele sobre sua vida pessoal, amorosa, familiar, história de suas queixas clínicas e da necessidade de esclarecer seus sintomas através de exames laboratoriais. Esta abordagem visava também estabelecer uma indispensável confiança nos profissionais que faziam parte do projeto e despertar um sentimento de segurança nos cuidados médicos. A privacidade desses encontros era essencial para preservar o caráter eminentemente confidencial desse encontro. Após a primeira entrevista eram realizados outros atendimentos de acordo com as necessidades de cada caso. O profissional conduzia a conversa através da escuta, sempre seguindo o rumo do candidato que em sua fala deixava entrever suas necessidades, seus medos e preocupações as quais servem como indicadores do caminho a seguir. Estar atento não só para o que é dito, mas também para o não dito e o que esperávamos ouvir. É importante ser voluntária e consciente a decisão de fazer o teste, cabendo ao usuário, a decisão de sua realização. Atendimento pós-teste – Se o teste era positivo para HIV, este era o momento de preparar psicologicamente o usuário para receber a comunicação diagnóstica. Sabedores que éramos das consequências, física, moral e psicológica que ele enfrentaria e da necessidade do apoio nesse momento, valorizava-se a posição do profissional como aliado nessa luta, permitindo que uma relação de confiança despontasse. De fato, pudemos observar o surgimento de uma aliança a partir do estabelecimento de confiança mútua entre profissionais e usuários com HIV positivo. A partir de então, um canal se abria para as expressões de sofrimento despertadas pelo medo da imprevisível ameaça de morte. Ao mesmo tempo, surgia uma força de superação vinda das enormes dificuldades iminentes, que se desenvolvia pela esperança que passava a acalentar usuário e profissional. As lições apreendidas pelos profissionais acerca de seu papel na área 32 da saúde permitiram não só uma maior compreensão da pessoa doente, mas deu a eles o reconhecimento da importância da família e da comunidade nessa luta contra a doença, como também de desenvolver sua própria atitude de profissional da saúde. Foi também importante a decisão por parte do usuário de criar uma rede de pessoas em que ele confiava para apoiá-lo em caso do teste soropositivo, ajuda que tinha por objetivo contar com alguém nesse momento em que experimentava um sentimento de abandono, questão central ligado à descoberta do diagnóstico. A partir das discussões de casos clínicos no grupo, alguns cuidados no atendimento acabavam por se impor e serviam de orientação para os profissionais como uma função transformadora em suas condutas. Foi desta forma que se entendeu a necessidade de não estabelecer limites para o número de entrevistas de pré e pós-teste. Alguns usuários, com testes positivos ou não, mesmo depois de encaminhados, continuavam retornando para “uma conversa”. Outro exemplo era o cuidado de não apresentar resultados de testes às sextas-feiras à medida que não haveria possibilidade de atendimento no fim de semana para suporte. Com o passar do tempo, diminuiu o nível de comoção dos ambulatórios clínicos de HIV/AIDS e tal nível aproximou-se daquele das outras clínicas à medida que as tensões nos dois polos (profissionais e usuários) se acomodaram. Do lado dos profissionais, não apenas a ampliação do conhecimento sobre a doença ajudou, mas também a identificação com o sofrimento quando parentes e amigos seus morreram de AIDS. Contribuíram também, sem dúvida, os novos conhecimentos sobre os mecanismos de infecção, do controle profilático, o advento de novas drogas que foram traçando melhores caminhos para vencer a dolorosa batalha e a oportunidade dos profissionais de diferentes serviços em participar das reuniões regulares do GEIA, abertas ao acolhimento e atendimento desses. Os profissionais que faziam parte do GEIA, assumiam igualmente a responsabilidade de atender os usuários do atendimento psicossocial, estabelecendo um vínculo de confiança com eles. Entre suas funções como de todos da equipe, cumpria dar o resultado diagnóstico do teste, o que provocou choques com chefes administrativos e acadêmicos, criando polêmicas internas entre profissionais que consideravam tal ato uma função médica. Essa 33 polêmica não fazia sentido para o grupo que sabia da importância do vínculo e da confiança desenvolvidos na relação profissional-usuário para alcançar essa etapa do trabalho. Em defesa desse argumento uma das participantes do grupo resolveu ir ao seu Conselho Regional esclarecer e tornar público tal procedimento, o que acabou serenando os ânimos. Mais tarde, o atendimento psicossocial foi tomado como modelo, embora não reconhecido como tal pelas Secretarias de Saúde que resolveu criar o Centro de Testagem Anônima (CTA), iniciativa institucional que abrange hoje diversas unidades municipais e estaduais. Paralelamente, em reuniões do GEIA, discutia-se entre os profissionais uma sobrecarga no atendimento aos portadores da AIDS oriunda das famílias que buscavam esclarecimentos, suporte emocional e até a oportunidade de troca com outros que partilhavam das mesmas viscissitudes. Foi quando alguns membros do GEIA se disponibilizaram para iniciarem um trabalho de atendimento grupal às famílias. O grupo nesse momento se sentia movido por um desejo de organizar-se em razão de tarefas concretas e percebia que assumi-las, não implicaria em abdicar do seu esforço reflexivo. Esse grupo de familiares teve seu início em dezembro de 1989 e desde então se caracterizou por um grupo aberto com ingresso de membros encaminhados pelos profissionais que atendiam aos portadores de HIV/AIDS e que tinham vínculo com esses portadores. A proposta não era de um grupo terapêutico, mas com a idéia de que juntos poderíamos encontrar soluções, considerando os limites de poder individual ou grupal, onde era cabível a presença de outros profissionais convidados e habilitados na busca de soluções. As reuniões no primeiro momento do desenvolvimento grupal, focavam em cima de pleitos explícitos ou não, na busca de recursos materiais a fim de auxiliar no tratamento, mas já no momento seguinte, era demarcado pela predominância dos vínculos afetivos onde expressões de sofrimento eram colocadas baseadas no medo do imprevisível e da morte. Nesse sentido era trabalhado no grupo que apesar da presença constante e inusitada da perspectiva da morte, esta não poderia ocupar todo o tempo da vida, mas era preciso abrir espaços qualitativos além daqueles voltados para a quantidade do tempo de vida. 34 Desde 2002, houve outro desdobramento desse projeto GEIA chamado Grupo Sol com usuários com HIV/AIDS. O grupo visava reintroduzir o paciente ao convívio social, capacitando-o a uma autonomia perdida e percebendo a importância do acolhimento que é preconizado pelo Programa Nacional de HIV/AIDS do SUS onde o acesso, a universalidade e descentralização são presentes e considerando este espaço de atuação imprescindível para se trabalhar a adesão ao tratamento. Esse grupo permanece em atividade até hoje e faz incursões pela vida social: passeios por lugares turísticos, teatros, etc. O grupo propicia a expressão e a troca de experiências objetivas e subjetivas, além de possibilitar o diálogo do usuário com a equipe sobre os diversos aspectos do tratamento, sanando dúvidas e trabalhando temores relacionados ao adoecer, a perda da integridade física e da morte. Atualmente o HUAP, conta com uma equipe multiprofissional nas áreas de cardiologia, clínica médica, pediatria, obstetrícia, enfermagem, serviço social, farmácia, psicologia, nutrição e odontologia com o objetivo de organizar as ações através de uma Coordenação de AIDS. Acompanha as gestantes soropositivas provenientes do ambulatório de pré-natal, as crianças expostas que são as nascidas de mães soropositivas, porém não contaminadas e crianças positivas, além de adultos. Segundo dados fornecidos pelo SICLOM/Ministério da Saúde (2012), encontram-se cadastrados 691 usuários no HUAP para retirarem medicamentos antiretrovirais a fim de tratamento contra AIDS, sendo que 188 desses usuários encontram-se em atraso de dispensa, caracterizando dificuldade na adesão ao tratamento. Nesse cenário se inscreveu a história da AIDS no HUAP, uma doença que significava a morte, geradora de pânico, mas que hoje é considerada uma doença crônica, onde percebemos através das experiências vivenciadas, que apesar do avanço tecnológico que trouxe mais recursos para o tratamento, houve de maneira explícita ou não, por parte dos usuários ou dos profissionais de saúde, a necessidade de um olhar subjetivo nas práticas do cuidado. Nessa trajetória descrita, percebemos a presença constante e necessária do trabalho de equipe interdisciplinar e sua aplicabilidade como suporte básico no desenvolvimento da prática do cuidado em saúde preconizado pelo SUS e 35 de como a busca por um aprofundamento teórico nesse sentido, poderá trazer novas possibilidades no olhar desses profissionais que atuam nessa prática. O trabalho de equipe multiprofissional funciona então como um dos instrumentos utilizados no atendimento às pessoas vivendo com HIV/AIDS. Assim, o principal objetivo deste trabalho de pesquisa é analisar e trabalhar a questão da adesão à luz da psicanálise na busca de um aprofundamento teórico através do conceito de transferência que será estudado no próximo capítulo. 36 3. A TRANSFERÊNCIA COMO ESTRATÉGIA PARA A ADESÃO AO TRATAMENTO DO HIV/AIDS Este capítulo se propõe a trabalhar o fenômeno da transferência através de estudos realizados na psicanálise, privilegiando Sigmund Freud e Jacques Lacan, a partir da hipótese de que a transferência constitui uma estratégia para a adesão ao tratamento dos usuários com HIV/AIDS. O conceito de transferência poderá trazer uma contribuição teórico-clínica para os profissionais da saúde, mostrando que uma das principais condições para a adesão ao tratamento refere-se à relação usuário e profissional. A adesão ao tratamento do HIV/AIDS é o que atualmente possibilita a efetividade do cumprimento dos objetivos clínicos e finalidade terapêutica, contribuindo, assim, para a preservação da vida das pessoas afetadas, prevenção de agravos de saúde e melhora na qualidade de vida. Desse modo, os objetivos clínicos são a reconstituição imunológica e a diminuição do número de vírus do organismo o que demanda algumas condições e procedimentos. Porém, a indicação, a prescrição e o uso dos medicamentos antiretrovirais extrapolam estes objetivos, pois envolvem questões que vão além do prolongamento da vida biológica, envolvendo outros aspectos. O nosso acolhimento e a nossa escuta enquanto profissionais de saúde são dirigidos a todos os assuntos que na relação possam se fazer relevantes para a ocorrência do fenômeno da adesão. Diante da hipótese desta pesquisa de que a transferência é uma estratégia para se conseguir a adesão a um tratamento, proponho examiná-la neste capítulo. A palavra estratégia segundo o Dicionário da Língua Portuguesa (1975), vem do grego antigo stratègós (de stratos, “exército”, e ago, “liderança” ou “comando” tendo significado inicialmente “a arte do general”) e designava o comandante militar, à espera de democracia ateniense. Seu conceito é: “a arte militar de planejar e executar movimentos e operações de tropas, navios, e/ou aviões, visando a alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações táticas sobre determinados objetivos”. Nesse contexto, segundo Freud (1912), o que ajudaria e jogaria um peso preponderante para superar as resistências ao tratamento seria a mobilização 37 de energias prontas para a transferência, apontando que a força motivadora primária na análise é o sofrimento do paciente e o desejo de ser curado. Assim, o aspecto relacional, entendido nessa proposta, tem em síntese, um aspecto primordial para a adesão do paciente. A transferência está presente em todas as relações profissionais, mas dependerá do olhar diferenciado do profissional na sua compreensão e manejo nas diferentes práticas profissionais. A transferência poderá ser utilizada como ferramenta capaz de auxiliar aos profissionais a iluminar suas práticas no tratamento aos portadores de HIV/AIDS a conquistarem uma maior adesão à terapêutica, através de uma nova leitura a partir da psicanálise. Segundo Jacques Lacan, psicanalista francês, a transferência é um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, pois é a partir dela que se dá o tratamento analítico. Esse fenômeno poderá ocorrer em qualquer lugar e com qualquer profissional, mas o seu manejo somente o analista poderá fazê-lo. É considerada o marco para a entrada em análise, quando o paciente endereça um amor que se dirige ao analista como portador de um saber sobre seu inconsciente. Este suposto saber é o eixo do tratamento analítico, ou seja, é o pivô de uma análise. A transferência não é um termo específico da psicanálise. Retrata algo relativo a deslocamento, transporte, substituição, uma vez que apresenta uma atualização do real do paciente através de uma incursão histórica interessada num passado que invade, perdura e empregna o presente que se atualiza, fazendo-o coexistir simultaneamente temporal e materialmente. Segundo Hanns (1996), transferência (Übertragung), conotativamente pode-se dizer que nesse termo há um “arco” que mantém aceso um processo de ida e vinda, entre o passado e a atualidade, longe e perto ou de uma pessoa a outra, podendo ser assim representado: 38 Genericamente refere-se à idéia de aplicar (transpor) de um contexto para outro uma estrutura, um modo de ser ou de se relacionar. Podemos decompor o termo alemão Übertragung em três partes: Über, trag e ung. Über (prefixo verbal): denota um movimento em direção a algo; a ação de cobrir algo (distâncias, caminhos, objetos, pessoas, etc) e o deslocamento de um local para outro. Além disso, pode indicar uma ação excessiva bem como a repetição/revisão da ação anterior; trag: verbo tragen, que significa carregar, usar, vestir, sustentar, postar, etc e ung: sufixo de substantivação corresponde aproximadamente a “ção” em português. O amor de transferência é estratégia para a análise e não é de controle do analista. Trata-se de um amor falso e genuíno ao mesmo tempo, porque é repetição e atualização. A resistência prova a genuinidade desse amor na repetição dos sintomas infantis. A tese de Lacan (1964) é de que esse amor é endereçado ao saber: o analisando coloca o analista na posição de sujeito suposto saber, de um saber consistente, mas o analista não deve responder desse lugar. Quanto ao amor transferencial, trata-se de uma transcrição da observação clínica, em que o amor enquanto repetição significante se apoia na figura do analista, e este se serve deste fenômeno como instrumento motor da direção da análise. Afirma Lacan: “o inconsciente não resiste, o inconsciente repete, o inconsciente gira como uma mensagem em um computador, não deixa de girar e diz ademais sempre a mesma coisa” (LACAN, [1984] 1994, p.23). 39 Freud considera o amor de transferência o inconsciente em ação. O recalque na sua infinita repetição torna o analista cúmplice de seu inconsciente e este, no decorrer do processo de análise, desfaz esse equívoco. O analista coloca o paciente para produzir significado da cadeia de significantes através do discurso, buscando dar acesso ao seu próprio inconsciente. Freud defrontou-se com os impasses desse fenômeno da transferência, sobretudo no que se refere à sua ambivalência: ao mesmo tempo agindo como força motora e resistência ao trabalho de rememoração na associação livre. Do lado da resistência, Freud observa que sempre que ocorre uma parada das associações livres, portanto uma resistência à análise, surge a transferência. O manejo da transferência visa recolocá-lo no trilho da cadeia significante, fazendo-o retomar a rememoração, vencendo assim tanto a resistência, como o recalcamento, restabelecendo uma ponte entre os significantes e garantindo assim a associação livre. 3.1. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO SIGMUND FREUD A criação da psicanálise tem como marco principal a descoberta do inconsciente. Anteriormente acreditava-se que o Eu mantinha o controle de tudo. A descoberta de Freud revelou que o homem não possui o domínio sobre si mesmo e que algo escapa à sua consciência. Já se conhecia o termo inconsciente, mas Freud inovou apresentando um sistema de pensamento inconsciente. Segundo Freud: O termo inconsciente, que foi empregado antes no sentido puramente descritivo, vem agora a implicar algo mais. Designa não apenas as ideias latentes em geral, mas especialmente ideias com certo caráter dinâmico, ideias que se mantêm à parte da consciência, apesar de sua intensidade e atividade. (FREUD [1912] 1969, p.4). Freud criou um método de acesso ao inconsciente, o da associação livre de ideias, um campo fértil que valoriza o mundo da fantasia, a história pessoal, o passado infantil, os desejos, os sonhos, pensamentos e sentimentos, quaisquer que eles sejam. Apresentarei um breve histórico da vida de Freud até o surgimento da psicanálise para uma melhor contextualização do conceito de transferência. 40 Em 6 de maio de 1856, nasce em Freiberg (Morávia), Schlomo Sigismund, que mais tarde altera seu nome para Sigmund Freud, que marcou a história da humanidade quando descobre que o homem é regido pelo seu inconsciente, que altera o modo de pensar a vida psíquica. Em 1873, aos 17 anos, Freud, ingressou no curso de medicina atraído pela fisiologia e pela neurologia. Formou-se pela Universidade de Viena, em 1881, e especializou-se em Psiquiatria. No ano de 1883 trabalhou em clínica psiquiátrica e um ano depois começa a pesquisar sobre os efeitos da cocaína. Em 1885 conseguiu uma bolsa de estudo em Paris, já com o cargo de docente em neurologia. Trabalhou como tradutor de Jean Martin Charcot, um psiquiatra que acreditava que a histeria não se tratava de uma enfermidade imaginária. Freud decidiu trabalhar essas ideias através de atendimentos em sua clínica particular em Viena (1886), onde passou a ter como seu principal instrumento de trabalho, a sugestão hipnótica para a eliminação dos sintomas dos distúrbios nervosos. A primeira grande parceria de Freud foi com Joseph Breuer (1842/1925), um médico austríaco que desempenhou um papel muito importante nos primórdios da psicanálise sobre estudos da histeria através do caso clínico de Anna O. Fundamentalmente, os sintomas dos pacientes histéricos se apresentavam mediante cenas do passado esquecidas (traumas). Sob um estado hipnótico, a terapia consistia em lembrar e recordar essas experiências (catarse), considerando que a psicanálise não poderia explicar nenhum aspecto do presente sem se referir a algo do passado. Freud considerou que nesse caso foi utilizado um protótipo do que mais tarde foi chamado de transferência, ressaltando que a teoria da transferência não foi esclarecida por ele nesta ocasião. Freud (1914) acrescenta ao processo catártico como fonte de conhecimento do inconsciente, a teoria do recalque e da resistência, o reconhecimento da sexualidade infantil e a interpretação e exploração de sonhos. A hipnose ocultava a resistência e a história da psicanálise só se inicia com a dispensa desse método. Cita Freud: A teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes 41 do passado: a transferência e a resistência (FREUD [1914] 1969, p.26). Freud considera a teoria do recalque como fundamental na estrutura da psicanálise, e que este seria a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar, presente no processo de análise de um neurótico sem recorrer à hipnose. Nesses casos, encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho. A história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose e propõe a técnica da associação livre. A análise conduziu à origem dos sintomas até os traumas sexuais infantis dos primeiros anos da infância. A teoria freudiana na clínica com as histéricas destacará a existência, na base do sintoma histérico, de um trauma. Freud (1895) apontou a transferência (Übertragung) em seu estudo sobre a histeria que implica em envolver o analista na psicanálise de um sujeito. Para Freud, a transferência seria a repetição de protótipos infantis, onde haveria um deslocamento de afeto de uma representação para outra. Nesse sentido, a relação do paciente com as figuras parentais seria revivida na relação com o analista, marcada ainda pelos sentimentos de ambivalência de amor e de ódio. A partir daí surge então duas modalidades de transferência: a positiva (sentimentos ternos) e a negativa (sentimentos hostis). A transferência positiva reforça a confiança no analista e suscita a associação livre de ideias, essencial ao trabalho e de modo geral, se vincula a sentimentos amistosos ou afetuosos admissíveis à consciência. O fenômeno da transferência aparece em diferentes formas de tratamento e em diferentes práticas, mas muitas vezes o profissional não os identifica ou muitas vezes nem suporta o ódio e/ou o amor a ele vinculados. O saber do analista é dar acesso ao analisando ao seu próprio discurso através da associação livre e impulsioná-lo através de interpretações simbólicas que terão um significado na cadeia de significantes através da linguagem. O analista deve procurar manter o domínio do amor transferencial que atravessará o tratamento, remontando às suas origens inconscientes, trazendo fatos ocultos da vida erótica do paciente para a sua consciência. Freud (1912) enfatiza o período da primeira infância (antes dos seis anos), como fundamental constituinte e determinante aos impulsos que mais 42 tarde irão ser repetidos. A transferência é uma repetição atualizada do real do inconsciente. A transferência marca a entrada em análise, após as entrevistas preliminares. Estas são necessárias para criar condições para o estabelecimento da transferência, favorecer a construção de uma hipótese diagnóstica e ainda familiarizar o paciente com o método psicanalítico. Nas entrevistas preliminares, observa-se a presença da demanda de análise, que poderá partir de uma queixa, um sofrimento, que se endereçará ao analista como forma de pedido de ajuda. Quando o analista aceita a demanda do cliente e o recebe, está implícito que algo pode ser feito, havendo uma promessa de tratamento que será baseado na associação livre. Com a constituição da transferência, a análise se inicia e ao longo do tratamento analítico algo paradoxal é observado: a transferência é motor e resistência, ao mesmo tempo. Afirma Freud: A resistência acompanha o tratamento passo a passo. Cada associação isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem que levar em conta a resistência e representa uma conciliação entre as forças que estão lutando no sentido do restabelecimento e as que lhe se lhe opõe (FREUD [1912] 1969, p.138). Quanto maior a resistência, maior é a transferência. Quando aparece a resistência, já se evidencia o estabelecimento da entrada em análise que deverá ser manejada pelo analista durante todo o processo. O amor transferencial é paradoxal, pois o analista não deverá reprimir e nem aceitar esse amor. O manuseio da transferência é a parte mais importante da técnica de análise. O analista, segundo Freud (1915), não tem um modelo a seguir e seu caminho deverá ser não afastar-se do amor transferencial e não se colocar no lugar de sujeito “pois um amor deste tipo, fadado a permanecer oculto e não analisado, nunca poderá prestar ao restabelecimento da paciente a contribuição que a análise dele teria extraído”. Acrescenta ainda: O analista nunca deve, em quaisquer circunstâncias, aceitar ou retribuir os ternos sentimentos que lhe são oferecidos, mas tratá-lo como algo irreal, como uma situação que se deve 43 atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica do paciente para sua consciência e, portanto, par debaixo de seu controle (FREUD [1915] 1969, p.216). O amor transferencial caracteriza-se por uma posição especial. Primeiro por ser provocado por uma situação analítica, segundo, por ser grandemente intensificado pela resistência e também por faltar-lhe consideração pela realidade, sendo menos sensato nas considerações pelas consequências desse amor. Estar dentro dos limites prescritos pela ética e pela técnica não é uma tarefa fácil, mas necessária. 3.2. A TRANSFERÊNCIA SEGUNDO JACQUES LACAN O conceito de transferência sofreu acréscimos com Lacan, e este situa no seu fundamento, uma função inédita em Freud que é a do sujeito suposto saber, como sendo o pivô de tudo que se articula e relaciona com esse fenômeno. Lacan não tinha como objetivo reinventar a psicanálise, mas formular questões sobre as suas condições de possibilidades. Demonstrou então que o descobrimento sobre o inconsciente por Freud só encontra conexão através da proposição de que o inconsciente está estruturado com uma linguagem. Segundo Lacan: “o analista exerce uma pressão sobre o inconsciente pela própria oferta que faz de escutar o paciente, escutá-lo a medida que diz qualquer coisa”. (LACAN [1984] 1994,p.63). Lacan dedica o Seminário 8, A Transferência, ao ensino desse tema. Introduz esse estudo retomando o texto filosófico O Banquete de Platão, que se refere a um banquete entre filósofos onde o tema central era o amor. Por considerá-lo um texto original de interesse monumental, tradicionalmente respeitado, que diz respeito à estrutura do amor, Lacan apresenta neste Seminário um extenso comentário sobre o Banquete para auxiliá-lo nas investigações sobre o amor de transferência. O Banquete, também conhecido como Simpósio, é um diálogo platônico escrito por volta de 380 a.C.. Considerado uma obra prima literária tanto pelo seu conteúdo tanto pela capacidade de Platão no domínio do tema proposto para a produção de uma peça com clareza, beleza e elegância. Lacan o 44 descreve como uma cerimônia com regras, onde cada um contribui com a sua cota, uma espécie de concurso íntimo da elite, que consiste em discursar sobre o tema amor, formado por pessoas da sociedade. Constitui-se basicamente de uma série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor (Eros), suas facetas e pontos de vista heterogêneos sobre o amor, cujas questões não se esgotam. Os convidados deveriam fazer discursos para louvar o amor. Porém Sócrates intervém, ponderando que, antes de falar sobre o bem que o amor causa e seus frutos, deveriam tratar de definir o que é o amor. Sócrates é o mais importante dentre os homens presentes. Entre outros, também ali estão Aristodemo, amigo e discípulo de Sócrates; Fedro, o jovem retórico; Pausânias, amante de Agaton; o médico Erixímaco; Aristófanes, comediante que ridicularizava Sócrates e o político Alcibíades. Lacan esclarece que o importante não é extrair do texto Banquete a importância da natureza do amor, mas a sua relação com a transferência, articulando os discursos pronunciados, uma espécie de relato de sessões analíticas. Introduz o estudo da transferência a partir do tema do amor, nos mostrando que a transferência é um amor, um amor genuíno, como nos diz Freud. Lacan introduz nesse estudo as noções de agalma, sujeito suposto saber e desejo do analista. Sendo assim, a noção de agalma, uma palavra originariamente grega que designa um objeto precioso ou caixa de joias, é introduzido por Lacan no estudo da transferência e diz respeito ao objeto que nos captura e que o sujeito acredita ter encontrado, na pessoa amada, o objeto perdido desde sempre, buscado a vida inteira e que, portanto, nos é precioso. Comenta QUINET (1991, p.31), que para Lacan no Banquete de Platão, há uma identidade entre o algoritmo da transferência e o que é conotado como agalma, uma vez que há a presentificação da realidade do inconsciente enquanto sexual por causa desse objeto. Lacan (1960-1961) extrai do Banquete duas observações sobre o amor: a primeira é de que o amor é um sentimento cômico e a segunda, é que o amor é dar o que não se tem. Diz ele: ...o amor grego nos permite retirar, na relação do amor, os dois parceiros do neutro. Trata-se daquela coisa pura que se exprime naturalmente no gênero masculino, e que permite 45 inicialmente articular o que se passa no amor no nível deste par formado, respectivamente, pelo amante e pelo amado, o érastès e o érôméno (LACAN, [1960-1961] 2010, p.49). Continuando, Lacan aponta esses dois termos para falar da posição dos mesmos numa relação amorosa: érastès o amante, aquele que vai em busca daquilo que lhe falta e érômenos o amado, aquele que tem alguma coisa. Claramente aparecerá o amante como o sujeito do desejo e o amado como aquele que nesse par seria o único a ter algo. Acrescenta que seu interesse no amor vai interessar na medida que passará uma compreensão da transferência. A saber, qual a nossa relação com o ser de nosso paciente? Sabe-se bem, afinal, que é isso que se trata em análise. Nosso acesso a esse ser, será ou não do amor? O fenômeno da transferência é considerado imitar ao máximo, até mesmo chegando a confundir-se com ele: o amor (LACAN, [19601961] 2010, p.54). No início de uma análise, o analista é colocado pelo paciente na posição de amado, daquele que tem um saber e uma resposta para o seu sofrimento. Este então deve direcionar o tratamento não ocupando esse lugar de sujeito suposto saber, mas mostrando ao analisado que ele mesmo tem o saber sobre seu sofrimento, sobre seu inconsciente e, assim, não conduzir o tratamento nem do lugar de amado nem do lugar de amante, pois ele não tem o agalma. Assim permitirá que o analisando caminhe do amor ao desejo na análise, saindo da posição de amado para a do amante, indo em busca do que lhe falta, onde surgirá através dessa busca o desejo do sujeito. Desejo que para Lacan, surge no deslizamento significante, no deslocamento de um objeto a outro, já que não há nenhum objeto que complete o sujeito. Lacan (1960-1961) define a transferência como alguma coisa que se assemelha ao amor: A transferência é algo que põe em causa muito profundamente no que se refere à reflexão analítica por ter introduzido nela, como uma dimensão essencial, aquilo a que se chama a sua ambivalência. Se o sujeito busca encontrar na análise o que tem e não conhece, o que vai encontrar é o que lhe falta, a saber, seu desejo (LACAN, [1960-1961] 2010, p.88, 89). 46 Diz Lacan (1964) que o inconsciente é o discurso do Outro, do inconsciente que se encontra do lado de fora e que através do analista se presentifica, fazendo-o buscar soluções através da associação livre, no implícito, nas entrelinhas do enunciado. Na presença do analista o inconsciente se presentifica na fala, se atualiza. Lacan (1964) remete ao conceito de inconsciente freudiano que o considera como a soma dos efeitos da fala, sobre um sujeito, nesse nível em que o sujeito se constitui pelos efeitos do significante. A presença do psicanalista deverá estar incluída no conceito de inconsciente, jamais o confundindo com o Eu narcísico. Segundo ele, a função da transferência seria dar acesso à posição primária do inconsciente que se articula como constituído pela determinação do sujeito do desejo e não só pela demanda onde se coloca fora da cadeia do significante. Acrescenta: “no inconsciente há um saber que não é de modo algum a ser concebido como saber a ter acabamento, a se concluir” e mais: “a verdade só se funda pelo fato de que a palavra, mesmo mentirosa, a reclama e a suscita” (LACAN, 1964, p.133). Para Lacan (1964), o amor de transferência é sem dúvida um efeito do processo, mas em fase de resistência. Diz respeito ao amor, com a demanda de ser amado que se articula e como este será acolhido, tratado, em que a psicanálise se diferencia de outros métodos. Um fenômeno que está presente em todas as relações onde o amor se evidencia, mas a sua análise é a condição para o progresso do tratamento psicanalítico. Através da transferência a psicanálise se viabiliza como método de tratamento e será condição preliminar para o seu estabelecimento. Lacan nos ensina: “O sujeito suposto saber é para nós o pivô no qual se articula tudo o que se relaciona com a transferência”. A análise se inicia com um amor dirigido pelo paciente ao analista. Trata-se de um amor ao saber, saber suposto ao analista e por essa razão o lugar que este ocupa neste momento da análise é designado como sujeito suposto saber. (LACAN, 1994, p. 56). A dinâmica da transferência tão bem formulada e desenvolvida por Freud e Lacan está sempre presente em todas as relações humanas. Examinála no contexto da adesão ao tratamento poderá esclarecer sobre muitas 47 situações onde ela ocorre com mais facilidade e em outras onde aparecem dificuldades que impedem ao usuário aderir ao tratamento proposto. A seguir apresentarei alguns relatos de casos clínicos, os quais demonstram uma afinidade da teoria estudada sobre a transferência com a prática em atendimentos no HUAP. 48 4. CASOS CLÍNICOS Neste capítulo apresentarei alguns casos clínicos atendidos pela equipe da enfermaria do Serviço de Infectologia do Hospital Universitário Antonio Pedro/UFF. O objetivo ao abordar os casos, é de identificar um dos conceitos da psicanálise, a transferência, privilegiado nesta dissertação, de modo a investigar a hipótese desta pesquisa de que uma das principais condições para a adesão ao tratamento refere-se à relação usuário e profissional, e que este conceito, tal como concebido pela psicanálise, constitui uma estratégia para a adesão ao tratamento por parte dos usuários com HIV/AIDS. A percepção subjetiva sobre a sua doença por parte desses usuários, que muitas vezes pode torná-lo incapaz para manter a mesma qualidade de vida anterior, causa muito sofrimento. As limitações físicas e as alterações na vida social causam um intenso e progressivo desgaste emocional. Muitas vezes, o adoecer provoca um afastamento das atividades que o faz sentir vivo, perdendo a autonomia de se encaminhar na vida, gerando momentos de reflexão e questionamentos: porque logo comigo? Como será a minha vida a partir de agora? Nessa prática, percebo que à medida que o usuário recebe suporte (remédios para o tratamento, a realização de consultas, exames e o afeto, não piedoso), tem mais chance em realizar um maior movimento na busca de soluções para os problemas. As informações sobre os casos foram colhidas através de entrevistas com os próprios usuários, acompanhados algumas vezes por familiares, enquanto permaneceram internados. O critério de escolha foi feito através da seleção dos casos que permitissem pensar a questão abordada como tema dessa pesquisa. Relatos dos casos clínicos: 1° Caso Clínico: Usuário de 21 anos, sendo portador do vírus da AIDS há quatro anos, apresentava ascite e com a hipótese diagnóstica de linfodema no intestino. O início de seu tratamento ocorreu em outra unidade de saúde em seu município onde residia, tendo sido posteriormente transferido para o HUAP. 49 Residia com companheiro há três anos e meio, sendo este HIV negativo e teve um relacionamento heterossexual anteriormente. Comentou que chegou a procurar um psicólogo devido a sua preferência homossexual. Foi contaminado por seu ex- companheiro, com idade bem superior a sua e com quem não tinha mais contato. Sua família era composta de mãe e quatro irmãos e mantinham uma satisfatória relação entre eles. Sua mãe permanecia ao seu lado em horário integral durante o período de sua internação. Esta relatou que ele sempre foi o mais dengoso de seus filhos; cuidava da casa na sua ausência, mas não conheceu o seu pai biológico e nem o adotivo que foi um de seus namorados, tendo dele se separado, quando o usuário tinha apenas um ano. Ele sempre insistiu em conhecê-lo e fez muitas tentativas pela internet para encontrá-lo. Era extremamente afetuoso com a mãe e com seu companheiro. Foi adotado por um companheiro de sua mãe, que também o abandonou após brigas de casal. Verbalizou seu desejo de reencontrar esse homem e solicitou ajuda do serviço social para pesquisar na internet sobre seu paradeiro, mas não tinha dados suficientes O único vínculo afetivo que o amparava era o de sua mãe, até que se envolveu com um companheiro que o contaminou com o vírus da AIDS e o abandonou também. Sua mãe se entregou na posição de uso e abuso dos outros (homens) e ele também se colocou assim, vítima de um dos seus relacionamentos que o contaminou, o abandonou e que também não o tratou adequadamente. Sempre aderiu ao tratamento, indo às consultas, tomando seus remédios prescritos pelo médico e buscando realizar os exames necessários ao seu acompanhamento. Relata sua dificuldade em se tratar devido à falta de recursos e de infraestrutura em seu município. Os profissionais quando o atendiam, se colocavam a favor do esquema de saúde deficiente que não oferecia a oferta necessária de recursos, numa atitude de acomodação e ele não conseguia articular solução aos seus problemas. Consequentemente, esses profissionais faziam encaminhamentos para outras unidades de saúde com o objetivo de solução fora dali. Saía então em busca de atendimento, mas já se sentindo enfraquecido, desamparado, desprotegido e sem a assistência devida, o que acarretou a sua piora. Não teve acesso aos documentos e orientações necessárias para a 50 obtenção de seus direitos enquanto HIV positivo. Remédios faltavam e eram divididos por quem precisava Declarou que somente por amor à sua vida e a persistência em se tratar, encontrava-se naquele momento internado em um hospital de referência após ser encaminhado por um profissional que se sensibilizou com seu estado. Acrescentou que há muito tempo nenhum médico o examinava, o tocava. Percebeu então que apesar do tempo que havia perdido em seu tratamento inadequado, tudo estava sendo feito e providenciado para que venha restabelecer a sua saúde. Relatou queixas de abandono e de desleixo verificado em suas buscas de tratamento nos hospitais, onde constatou surpreendentemente o medo, a discriminação e preconceito dos profissionais em lidarem com a morte. Enfrenta outro desamparo quando busca tratamento em instituição pública. Após encaminhamento para o HUAP, encontra a possibilidade de através de tratamento adequado, resgatar a sua saúde. Faz vínculo com a equipe interprofissional, fato que mostra o amparo importante que se estabeleceu a partir daí. O atendimento diferenciado, baseado na singularidade do usuário, demonstra uma prática do cuidado onde é reconhecida a importância do vínculo de quem cuida para com quem é cuidado como premissa para um melhor andamento do tratamento. Nesse primeiro caso, percebemos o investimento do usuário em seu tratamento de saúde desde o início, mas este se depara com algumas dificuldades que instiga-nos a pensar o que efetivamente contribui para a adesão. Teve relacionamentos estáveis e com vínculos afetivos, contudo sempre foi abandonado. Sua mãe permaneceu durante todo o tempo ao seu lado, desejando sua recuperação e participando do seu tratamento. É possível supor que esses aspectos contribuíram para a adesão ao tratamento. Sempre colaborou com a equipe que o tratava, mas não obteve uma troca positiva em todas as instituições em que foi atendido. Percebeu logo uma diferença no atendimento ao chegar ao HUAP e enfatiza o toque do médico ao examiná-lo. Aqui fica evidenciada a percepção pelo paciente da diferença de qualidade dos vínculos. Estas questões das relações profissionais nos colocam diante do fenômeno estudado na psicanálise, foco dessa pesquisa, que é a transferência. 51 A transferência é um fenômeno que está presente em todas as relações onde o amor se evidencia. Na teoria psicanalítica ela é um conceito que tem como suporte um tipo de amor, denominado por Freud como o amor de transferência. Este diz respeito ao amor, ou seja, a demanda de ser amado que vem se articular ao suposto saber de diferentes profissionais. Podemos lançar como hipótese que o investimento do usuário em seu tratamento ao encontrar uma equipe profissional que desejava efetivamente tratá-lo, fortaleceu sua busca por tratamento, efetivando-se assim os efeitos do fenômeno da transferência. Provavelmente estes profissionais ocuparam o lugar na série materna, ou seja, os profissionais foram colocados pelo usuário no lugar daquela mãe que tanto queria seu tratamento e nunca o abandonou. Alguns pontos podem ser evidenciados como manifestações da transferência em jogo: o usuário mesmo exausto em sua busca por tratamento percebe que agora está sendo cuidado devidamente; colabora com todos os procedimentos sem questionamentos; segundo seus próprios relatos sabe que está em “boas mãos agora”, que será cuidado e obterá uma qualidade mínima de vida. 2° Caso Clínico: Usuária de 28 anos, portadora do vírus da AIDS há oito anos, sem adesão regular. Foi trazida por sua irmã e internada com sífilis, apresentando lesões de pele no corpo todo. Descobriu ser soropositiva durante o pré- natal do seu primeiro filho Sem moradia fixa, muitas vezes permanecia perambulando pelas ruas e usuária de drogas. Sua família era composta de mãe e dois irmãos. Recebia visitas regularmente de todos. Sua irmã havia contatado uma instituição evangélica a fim de interná-la para recuperação de drogas. Mantinha a esperança que ela um dia iria perceber que todo o investimento seria para o seu bem. Esta relatou que nunca puderam contar com a mãe por esta sempre alegar não querer envolvimento e lhe faltar tempo, havendo uma evidência explícita da ausência de amor pela mãe. Morou com a sua mãe até 12 anos de idade. Esta a colocava nas ruas para pedir dinheiro enquanto bebia diariamente. Aos 12 anos seu pai a pegou para criá-la junto com seu irmão. Aos 18 anos ele faleceu com problemas cardíacos em seus braços. Referia-se ao pai com carinho e dizia que sua mãe 52 não o valorizou como merecia e que o problema estava em sua mãe. Começou então a usar drogas e foi estuprada por um traficante, engravidando de seu primeiro filho. Este foi doado para uma família que tinha contato. Tem notícias dele até hoje através de seu irmão. Aderiu ao tratamento proposto para mães soropositivas a fim de evitar a transmissão vertical, mas abandonou tudo após o nascimento. Informou ter matado o pai desse filho, após este brigar com o bando de traficantes. Relatou com alguns detalhes, que logo após esse episódio, atirou nele para matar. Sentiu-se vingada e aliviada com essa atitude. Engravidou novamente de um homem mais velho, também usuário de drogas. Hoje esse filho tem dois anos e se encontra abrigado no Lar da Criança aguardando adoção. Através de contato com essa instituição, fomos informados que ela havia sido destituída do poder familiar e teve a suspensão da guarda do filho, pois vivia com ele nas ruas, drogada e muitas vezes em meio ao tiroteio. Certa vez escapou de morrer por ter colocado seu filho na sua frente, servindo como escudo. O juiz havia lhe dado tempo de recuperar-se por duas vezes, mas nenhuma mudança aconteceu. O pai abriu mão da paternidade e autorizou a adoção em audiência em que ela não compareceu por estar internada Solicitou ao serviço social que fizesse contato com o Lar da Criança a fim de justificar sua ausência na última audiência e saber notícias de seu filho. Fomos informados que ela não teria nem mais o direito em visitá-lo, mas que poderia recorrer através da Defensoria Pública em reaver seu filho judicialmente, desde que estivesse reabilitada do vício das drogas. Mostrava-se irônica e agressiva com todos da equipe da enfermaria de Infectologia onde permaneceu internada. Apresentava-se muito preocupada com as marcas que as lesões lhe deixariam e que poderia sofrer preconceito e discriminação após a alta. Comentava e reclamava que seria difícil para ela tratar das manchas após a alta. Havia recebido a orientação do médico dermatologista que teria que usar bloqueador solar, contudo segundo a usuária, não teria recursos financeiros para arcar com tais recomendações. Algumas vezes, cancelou o jejum a fim de não realizar exames, alegando ter demorado e de estar com fome. A equipe procurava fazê-la entender que sua internação seria mais prolongada devido a esses problemas e que buscava a 53 sua compreensão e colaboração, buscando mostrar que se interessava por ela. Ameaçou alguns profissionais, dizendo que lá fora ela poderia resolver pessoalmente seus impasses com eles. Aos poucos foi mudando sua postura frente ao tratamento oferecido e seu relacionamento com os profissionais foi ficando mais brando. Passou a aceitar os exames com maior compreensão e tolerância em participar do tratamento. Procurava entender o que estava sendo feito e o que estava programado para seu tratamento. Articulamos sua vaga em instituição de recuperação de usuários de drogas a seu pedido. Recebeu alta médica, porém permaneceu ainda internada aguardando o dia da liberação da vaga, uma vez que ela corria o risco de morte em comunidade vizinha da casa de sua irmã. Seria encaminhada para uma instituição que recorreria judicialmente para reaver seu filho, declarando que ela estava em recuperação e assim teria uma maior credibilidade. Solicitou iniciar a terapia antiretroviral e intencionava dar continuidade, pois sabia ter uma maior possibilidade de manter a sua saúde através do tratamento contínuo. Sua família (mãe e irmã) compareceu no dia de sua alta para se despedirem, pois ela iria passar um período de três meses internada em recuperação. Levou medicação para seu tratamento com antiretrovirais e ganhou da equipe dois frascos de bloqueador solar. Agradeceu emocionada a toda a equipe e prometeu voltar para continuar seu tratamento e visitar-nos. Notamos uma importante mudança de comportamento da usuária frente ao tratamento oferecido durante a internação. Remete-nos analisar, à luz do fenômeno da transferência, que a adesão pode se relacionar à habilidade dos profissionais de saúde de reconhecerem o processo transferencial, inerente a todas as relações humanas e que este poderá ser usado como estratégia para uma melhor resposta à adesão. Através do olhar diferenciado e do atendimento da equipe à usuária, possibilitou-se uma mudança de comportamento e uma nova postura frente à sua doença. Isto fica claro quando a usuária solicita tratamento em uma clínica de recuperação, quando se compromete em aderir ao tratamento e quando verbaliza que irá retornar para se tratar e visitar a equipe que a cuidou. 54 3° Caso Clínico: Usuário com 45 anos descobriu ser soropositivo há quinze anos, após uma internação em hospital conveniado da empresa em que trabalhava. Sua família era composta por mãe, pai e um irmão (42 anos). Referencia sua mãe como uma lutadora, compreensiva, mas sofredora e cercada de problemas familiares. Contou-nos que demorou dois dias para que conseguisse entender o que estava acontecendo. Chorou muito durante esse tempo e ressaltou o apoio que recebeu de uma enfermeira que não saiu de seu lado, pois não poderia passar essa notícia para sua mãe, já com tantos problemas. Conseguiu repartir com seu irmão esse momento de angústia. Percebeu que seus sonhos terminariam e que teria que conviver com uma doença cercada de preconceitos e discriminação, ainda sem cura e de difícil tratamento. Relatou ter sido internado dezoito vezes e houve várias trocas de remédios devido aos efeitos colaterais causados. Cada vez que reanimava, se reerguia, voltava a ficar doente. Pensou em suicídio pelo menos duas vezes e desistiu, por faltar-lhe coragem e por sua mãe, que teria mais um sofrimento. Lembrava o que havia aprendido no catecismo: “Deus dá a vida e só ele a tira”. Dizia que estava cansado, infeliz e revoltado. Deixar o tratamento seria uma maneira de morrer naturalmente, sem precisar se matar e que sua mãe sofreria menos. Comentou que sua aparência de forte, decidido, era só carcaça. Falava de suas dores e decepções, pois havia perdido muitos amigos que viraram seus inimigos. O peso dessa dor era tão grande que a morte seria mais suave e mais leve. Falou da dificuldade em mexer em suas feridas e que havia decidido morrer e não mais sonhar, vivendo o presente. Ressaltou a importância do seu bom relacionamento como seu médico, da maneira com foi acolhido e escutado toda vez que precisou, mas solicitou que repassasse para ele toda nossa conversa, poupando-o de mais um desgaste. Retornou para atendimentos subsequentes para conversarmos, mas não compareceu às consultas e exames com a regularidade esperada. Comentou certa vez, que desde que decidiu não mais sonhar e enfrentar a sua escolha, não havia mais precisado ser internado. Os atendimentos ao usuário ofereciam uma escuta às suas questões e acima de tudo respeitavam a sua escolha em não aderir ao tratamento 55 oferecido. A partir daí, criou-se um vínculo de confiança onde o usuário se sentia à vontade de expressar seus sentimentos e assumir a sua decisão em não se tratar. Retomando o conceito de aderência para a área de saúde, segundo Ministério de Saúde (2007), que considera que a adesão vai além do comportamento adequado em tomar os remédios e seguir as prescrições, mas que também faz parte de um processo de aceitação, integração, participação nas decisões e implicações acerca do tratamento, devendo ser compartilhadas e negociadas entre o usuário e o profissional. Nesse contexto, a psicanálise poderá contribuir para um melhor entendimento quando interrogamos onde está o sujeito do desejo, que muitas vezes prefere optar em não aderir ao tratamento e ter a liberdade de escolha do que quer para a sua vida, podendo ainda assim, continuar sendo apoiado e atendido pelo profissional de saúde. Na continuidade do atendimento com o serviço social, ele informou que havia resolvido se dar mais uma chance dizendo: “vamos ver se a vida não me apronta de novo!”. Percebe-se que foi através da transferência estabelecida com os profissionais de saúde e o não abandono do cuidado, mesmo o usuário relatando o seu desejo a não adesão, propôs-se a uma busca de cuidados medicamentosos, já que os cuidados afetuosos ele já os tinha. 4° Caso Clínico: Usuário com 40 anos, sendo soropositivo há seis anos e residindo com companheira há dez anos, também soropositiva. Foi internado para tratamento de uma tuberculose. Sua família era composta por esposa e quatro filhos. Tomaram ciência de seus diagnósticos após exame de pré-natal de seu penúltimo filho. No momento do resultado relatou que não acreditou, achou “pesado demais” (sic). A partir daí, tratou-se irregularmente durante um ano. Sua esposa tinha aderência regular ao tratamento. Seu último filho de um ano e meio era soronegativo (em acompanhamento). Seu primeiro médico fez várias tentativas para que ele se tratasse satisfatoriamente, mas justificou que o preconceito dos colegas de trabalho, a reação medicamentosa, farras, vício com álcool e o fato de não poder faltar ao trabalho, eram impedimentos para a 56 sua adesão. Seu médico chegou a trocar a medicação acarretando a sua melhora. Este buscava conversar e incentivá-lo durante todo o tempo. Quanto às internações, informou que foram todas muito ruins. Ressaltou que faltavam recursos e atenção por parte dos profissionais da equipe. Muitas vezes ficou na maca nos corredores. Foi então transferido para o HUAP, local segundo ele, deve a sua vida. Não pensa mais em ficar doente e precisar passar por tudo de novo, passando a reconhecer que se aderir ao tratamento provavelmente não ficará doente. Passou a compreender a importância da sua família, de sua fé (começou a frequentar a igreja), e de seu médico que tanto lhe incentivou, em todo o processo de seu tratamento. Este relato, ratifica o modelo de cuidado oferecido onde se valoriza, potencializa e possibilita a relação do usuário com quem o cuida, podendo desta forma, favorecer a adesão ao tratamento, onde o fenômeno da transferência será um facilitador nesse processo. A transferência se presentifica neste caso com a pessoa do médico, que mesmo com toda resistência, que acompanha a transferência, houve a adesão do usuário ao tratamento, que posteriormente ocorre devido a essa relação de confiança ter sido estabelecida. 5° Caso Clínico: Usuária com 59 anos; viúva, sendo soropositiva há dois anos. Sua família era composta por quatro filhos e dois netos. Recebeu o diagnóstico através de exames pré- operatórios para realização de cirurgia de hérnia. Percebeu que os médicos envolvidos no seu tratamento não revelavam algo de terrível. Após a revelação de que era uma nova portadora do vírus da AIDS, veio à ordem: “você tem que tomar os remédios”! Não aceitou, pois não tinha nenhum sintoma. Foi encaminhada para o HUAP e passou a ser acompanhada por outro médico que através de maiores esclarecimentos sobre a necessidade de começar o tratamento e adquirir confiança pelo médico, passou a aceitar e iniciar os antiretrovirais. Sua família participou de todo esse processo e continuou lhe apoiando Relatou que foi uma benção e que sentia ter mergulhado dentro de uma água cristalina. Tudo foi esclarecido sobre a necessidade dos remédios, com delicadeza e que não a deixou perturbada como antes. Diz: “Deus no céu e ele na terra!”. 57 Ao ser acometida por uma notícia ruim, a usuária se desestabilizou, assim como qualquer pessoa, mas ao receber os devidos esclarecimentos sobre a necessidade da medicação, a possibilidade de adesão se potencializa e ocorre. Neste processo de esclarecimentos, de cuidados, se presentifica a transferência, ela se encontra em todas as relações, sendo fundamental para a adesão ao tratamento. 6° Caso Clínico: Usuária com 69 anos, viúva, sendo soropositiva há oito anos. Possuía dois filhos casados que lhe apoiavam, principalmente após ter ficado viúva. Relatou que no início de seu tratamento, apresentou muitas dificuldades para ingerir os comprimidos que lhe causavam efeitos colaterais. Atribuiu à equipe profissional e especialmente à sua médica, toda a evolução positiva no seu tratamento. A relação com carinho, liberdade de expressões e opiniões sobre o seu tratamento e cuidado, sempre estiveram presentes em busca da solução dos problemas que surgiam. Estabeleceram-se duas fases no seu tratamento, antes e depois do vínculo criado com o profissional que lhe atendia com muito afeto e referenciou como uma relação de respeito, amizade e carinho, como de uma mãe para com seu filho. Ao longo desse tempo de convívio funcionou como um suporte para a sua vida e todo o desenrolar de seu tratamento. Por vezes o usuário vê na figura do médico uma figura materna, paterna, familiar, o que pode proporcionar uma maior interação entre ambos. Neste caso, isto ocorreu e resultou em uma adesão significativa para o tratamento. O fenômeno da transferência foi estabelecido entre a usuária e a médica que lhe acompanhava ao longo do tratamento e o vínculo foi se fortalecendo, possibilitando assim uma melhora na qualidade de vida da mesma. 7° Caso Clínico: Usuário de 55 anos, com diagnóstico em 2004 obtido em um laboratório particular e encaminhado para tratamento no PAM em seu município. Residia sozinho após quatro casamentos, com quatorze filhos (seis vivos). Possuía seis irmãos, mas nenhum o apoiava, sendo vítima da discriminação pela própria família, fato que lhe entristecia deveras. 58 Relatou que a princípio, foi bem atendido pela assistente social e pela médica de maneira satisfatória. Com o passar do tempo, percebeu que demorava em ser atendido nas consultas e exames e que já não lhe ofereciam a escuta para solucionar seus problemas. Parou o tratamento por não acreditar que estava com o vírus uma vez que não tinha doença. Permaneceu sem tratamento durante dois anos até que adoeceu e necessitou de internação. Passou vinte dias em outro hospital, até ser transferido para o HUAP, quase morto, segundo ele. O medo de morrer o fez ficar apavorado e pensava somente em poder reverter tudo e ter outra chance. O cuidado oferecido pela equipe interprofissional foi valioso nesse momento, pois tinha rejeição à medicação (vômitos). Aos poucos o tratamento correto com antiretrovirais foi proporcionando a sua melhora física e emocional. Percebeu a importância do seu engajamento no processo de tratamento junto à equipe interprofissional que o acolheu e revelou sua disposição em dar continuidade. O usuário ao perceber o investimento da equipe profissional em seu tratamento, se sentiu cuidado e a transferência foi ocorrendo ao longo desse processo e a adesão ao tratamento se presentificou. A transferência poderá se apresentar em qualquer relação profissional, podendo possibilitar outra escuta e um novo olhar para as demandas trazidas durante o tratamento, facilitando ou dificultando uma maior aproximação entre o usuário e o profissional. Cabe ressaltar que não basta haver cuidado, amizade, atenção, carinho e confiança para que a transferência se estabeleça em qualquer lugar e com qualquer pessoa, há algo fundamental na constituição da transferência que pertence ao campo do paciente em questão. O reconhecimento deste fenômeno pelos profissionais de saúde poderá abrir um canal de escuta diferenciada onde a verificação da possibilidade dela existir fará toda a diferença no atendimento, mas não necessariamente provocará a transferência. O analista pode favorecer o estabelecimento da transferência, mas esta poderá acontecer ou não, produzindo efeitos para o bem ou para o mal, na repetição de suas experiências amorosas e eróticas. A adesão poderá ser trabalhada de diferentes maneiras pelas várias especialidades profissionais, visando uma melhor qualidade de vida ao usuário, onde a valorização da escuta no atendimento é uma tática a ser investida, 59 tendo como estratégia a transferência. Este conceito trabalhado pela psicanálise, quando reconhecido pelo profissional, poderá contribuir para essa questão tão complexa- a adesão ao tratamento- vivenciada nos atendimentos nas unidades de saúde. Constata-se uma movimentação da transferência, ou seja, uma dinâmica da transferência, podendo esta funcionar como motor ou obstáculo em diferentes tratamentos na área de saúde. Considerar a presença do fenômeno da transferência e verificar a possibilidade de sua existência, propiciando condições para que ela funcione de modo a não constituir um obstáculo aos tratamentos, é a conclusão que podemos extrair dos casos clínicos relatados neste capítulo 4.· 60 5. CONCLUSÕES Passadas três décadas do surgimento dos primeiros casos de AIDS no Brasil, vivemos hoje um quadro bem distinto, graças ao surgimento da terapia antiretroviral distribuída através do Ministério de Saúde e da disponibilidade aos modernos testes de carga viral, como método de prevenção clínica e de orientação terapêutica aos portadores de HIV/AIDS. Muito se falou durante esse tempo da criação da vacina contra AIDS, mas o uso de preservativo ainda hoje, é o método mais eficaz. A política governamental adotada pelo Brasil, face à epidemia de AIDS, demonstrou através de medidas como a oferta de recursos para o tratamento, que é possível reverter um quadro epidêmico, salvar vidas, proporcionar uma melhor qualidade de vida e até trazer economia, na medida em que a adesão ao tratamento traz consequentemente uma diminuição do número de internações por possíveis surgimentos de doenças oportunistas. Apesar dos avanços, a AIDS no Brasil, ainda enfrenta algumas dificuldades. Fatores de risco relacionados ao tratamento como a percepção sobre a própria saúde, aceitação do diagnóstico, renda, religião, situação familiar, a ocorrência de sintomas e o grau de gravidade, a qualidade dos serviços de saúde, o acesso a esses serviços, são considerados problemas a serem enfrentados e trabalhados pelo usuário acometido pelo HIV/AIDS junto à equipe que o assiste. A adesão dos usuários com HIV/AIDS à terapia antiretroviral é um desafio enfrentado diariamente por profissionais de saúde, que buscam junto a esses usuários, a optarem pela saúde, utilizando estratégias e procurando adequar cada vez mais as prescrições aos hábitos de vida de cada um. Consideremos então, que é preciso anteriormente, que tenha havido a adesão do profissional, para que essa questão tão complexa seja trabalhada junto aos usuários. Adesão ao tratamento é um processo de quem cuida e quem é cuidado. O objetivo é trazer a participação ativa de seu acompanhamento médico e dos cuidados com a sua saúde, mantendo-o a par do objetivo do seu tratamento. Infelizmente, porém, há os que não aderem por mais que haja a oferta de profissionais e remédios, trazendo um sentimento de frustração à equipe, que procura entender que todos tem o livre arbítrio sobre suas vidas e que tem o direito a decidirem se querem ou não se tratar. 61 Quando as doenças são denominadas crônicas, de longa duração, o equilíbrio está em viver e conviver autonomamente com essa condição, pois não há cura com remédios. O acompanhamento ao tratamento ao portador de uma doença crônica deve favorecer adaptação a essa nova condição, oferecendo- lhes suporte que possibilitará o enfrentamento das dificuldades e melhor engajamento e compromisso no cuidado com a sua saúde e com uma vida independente, autônoma em busca do equilíbrio da saúde e de sua manutenção. Diante da complexidade, intensidade e tensão das questões a serem trabalhadas junto às pessoas vivendo com HIV/AIDS e seu círculo social, o tratamento delas não poderia se restringir, apenas, à consulta médica e ao recebimento das medicações. A contribuição da psicanálise na leitura dos problemas da adesão ao tratamento, nos leva a uma reflexão das dificuldades e impasses dos usuários, não apenas gerados por fatores externos trazidos por um cotidiano nas unidades de saúde que apresentam situações conflituosas e tensas, mas também à subjetividade dos protagonistas desse processo. Assim, tanto os profissionais de saúde quanto os usuários estão presentes com toda a bagagem que lhes é própria e que será posta à prova nas relações nas unidades de saúde. Levar em conta a subjetividade no processo de adesão ao tratamento impõe rever a concepção linear desse conceito de adesão, segundo o qual bastaria se oferecer remédios e profissionais, para obter a resposta esperada. O que a psicanálise nos alerta sobre esse ponto é a presença de fenômenos subjetivos, dentre os quais se destaca a transferência, conceito trabalhado nesta pesquisa. O profissional de saúde necessita ter a adesão como foco a ser trabalhado em todo momento, principalmente por ser uma patologia que ainda traz em si muito preconceito e estigma e estar intimamente ligada à sexualidade, ficando o portador de HIV/AIDS muito fragilizado em suas relações sociais e familiares. Essa linha tênue entre adesão e não adesão deve ser olhada de forma subjetiva e acolhedora a todo instante, pois muitas vezes se expressa nas entrelinhas do discurso. Para a construção dessa relação diária em prol da melhoria da saúde, de uma melhor qualidade de vida e o incentivo ao autocuidado, profissionais da saúde, necessitam reconhecer a importância da capacidade de ouvir o outro, 62 respeitando as suas decisões às questões surgidas, interagindo e compartilhando de modo a encaminhar o tratamento. Disponibilizar o medicamento não basta se os serviços não se imbuírem da idéia de que o usuário é um sujeito diverso, a partir da sua singularidade e respeitando as dificuldades específicas de cada um. A adesão ao tratamento está associada à forma de pensar, agir e enfrentar a vida, mesmo antes do diagnóstico do HIV. Conhecer melhor a AIDS através da oferta de informações ajudará o processo de adesão. Enfrentar uma doença ainda sem cura, o medo de adoecer, morrer, ser discriminado e de vislumbrar a impossibilidade de encontrar aliados capazes de escutar, respeitar e dividir esse momento faz parte desse cenário. Ao vivenciar o processo de adoecimento e de sua inserção no mundo do hospital, o usuário se percebe em outro prisma, o da doença, e a partir daí, a relação com o outro que cuida, requer uma dimensão de totalidade dessa nova situação que passa a fazer parte da sua vida. Nesse encontro há que se considerarem suas potencialidades e limitações, a singularidade de cada um, respeitando os horizontes traçados à busca do estar melhor que poderá não ser a adesão ao tratamento propriamente dito. Ao lado dos fatores de natureza biomédica que influenciam os níveis de adesão, aspectos psicossociais suscitam o nosso interesse como profissionais de saúde. Leva-nos a interrogar qual o olhar desse profissional melhor acolhe a singularidade desses usuários a fim levá-los a efetivação do cuidado. Embora muito já tenha sido dito a respeito da transferência, privilegiei este tema por considerá-lo um dos pontos centrais da prática analítica. Acredito que partindo de princípios que veem sendo elaborados desde Freud ao longo deste século, seja possível acrescentar algo novo, tomando como referência essa experiência vivida no atendimento aos portadores de HIV/AIDS durante vários anos. No começo da Psicanálise está o amor. No cenário inaugural, Breuer e sua paciente Anna O. Nesta trama amorosa, Breuer encontra e deixa escapar a chave que desvendaria os segredos da transferência. Freud a recupera e transforma o amor no mais forte instrumento da cura psicanalítica. A transferência atravessa também aquilo que oferece sustentação ao lugar de 63 permanente formação que são os laços sociais. Portanto, podemos dizer que sem transferência, não há psicanálise. A transferência, em qualquer relação, designa um laço de amor que se constrói sobre a base da confiança, admiração e suposição de saber àquele que o atende. O profissional de saúde, nesse processo, é o intermediário do acesso do usuário ao tratamento. Assim, instalada a transferência, o profissional deve ser capaz de identificá-la, para que esse amor ao saber não seja confundido com o amor à pessoa do profissional e, por outro lado, para que as características da pessoa do profissional, quando não favoráveis ao amor, não gerem aversão ao tratamento. Em alguns casos, a transferência não chega a se constituir. Surgem impasses que se impõem ao início do tratamento, fenômenos esses que nos interessaram nesta pesquisa sobre adesão ao tratamento. Afirma Lacan (1964) que a transferência é aquilo que se manifesta na experiência, a atualização da realidade do inconsciente, assim como Freud (1912) expõe que a transferência é aquilo que, em uma análise, tornam presentes os impulsos recalcados no inconsciente. Através dessas afirmações não há dúvidas quanto à função necessária da transferência. Neste sentido, ela é um veículo através do qual o inconsciente se manifesta, veículo que coloca em ato, no agora (atual), o inconsciente, tornando presente o que estaria ausente. Podemos entender a fenômeno da transferência como um mecanismo espontâneo, pois como diz Freud (1912), há precondições para enamorar-se que o sujeito estabelece. São as ideias libidinais infantis e por não serem inteiramente capazes de mudar diante de experiências recentes, dirigem-se a cada nova pessoa que se aproxima, seguindo um clichê e inclui o outro numa de suas séries psíquicas. O mecanismo da transferência remonta, então, ao estado de prontidão da libido que conservou as imagos infantis; referindo-se ao método próprio de se conduzir na vida amorosa, ao modo como constitui seus objetos. Destaca-se aqui a importância daquele que ocupa este lugar. Tem o dever de suportar a transferência, seja no sentido de consentir em recebê-la numa imagem daquilo que o paciente lhe confere, seja no sentido de sustentar 64 a questão do que o sujeito traz. Freud (1915) ensina sobre o caminho a ser seguido pelo analista, o qual não existe como modelo na vida real: Ele tem de tomar cuidado para não afastar-se do amor transferencial, repeli-lo ou torná-lo desagradável para a paciente, mas deve, de modo igualmente resoluto, recusar-lhe qualquer retribuição. Deve manter um firme domínio do amor transferencial, mas tratá-lo como algo irreal, como a situação que se atravessar no tratamento e remontar às suas origens inconscientes e que pode ajudar a trazer tudo que se acha muito profundamente oculto na vida erótica da paciente para a sua consciência e, portanto, para debaixo de seu controle (Freud [1915] 1969, p. 216). Reportando esse fenômeno ao atendimento nas unidades de saúde, muitas vezes o médico reconhece que esgotou todas as possibilidades com um usuário e o referencia para outro profissional na tentativa de obter melhor resultado na adesão. Chegam a comentar que algumas parcerias dão mais certo que outras, assim como nos relacionamentos. Admitem que algumas vezes, não seria o caso de desistirem daquele usuário, mas de perceberem que algumas relações nem sempre são satisfatórias para a eficácia do tratamento. Por isso a importância do trabalho em equipe interdisciplinar, de modo que o usuário perceba que poderá contar com todos, caso necessite. Há momentos em que se questionam, demonstrando um forte sentimento de tristeza e impotência: por que não deu certo? Embora reconhecendo que a transferência seja de fundamental importância para a ocorrência do processo de adesão, muitas vezes, o profissional encontrará dificuldades para que esse processo se estabeleça, pois irão se deparar com a recusa de alguns usuários que se veem acompanhados de situações adversas e não aderem ao tratamento. Freud (1912) apresenta essa questão como comum no fenômeno da transferência: Pode-se levantar ainda a questão de saber por que os fenômenos as resistência da transferência só aparecem na psicanálise e não em formas indiferentes de tratamento (em instituições, por exemplo). A resposta é que eles também se 65 apresentam nestas outras situações, mas tem de ser identificadas como tal (Freud [1912] 1969, p.141). Retomando o conceito de estratégia: “a arte militar de planejar e executar movimentos e operações de tropas, navios, e/ou aviões, visando a alcançar ou manter posições relativas e potenciais bélicos favoráveis a futuras ações táticas sobre determinados objetivos”, podemos relacionar a transferência como sendo a estratégia por parte do usuário para chegar ao seu objetivo e a tática será um recurso a ser utilizado para se cumprir a meta indicada pela transferência. Na análise, o desejo do analista é levar o sujeito à análise e direcionar o tratamento, necessitando do estabelecimento de um compromisso entre ambos. Como na análise, para se trabalhar a adesão, também é importante o estabelecimento desse compromisso entre o usuário e o profissional de saúde. A transferência acontece fora e dentro da análise, em diferentes experiências profissionais. Podemos associar tal fenômeno à relação que poderá ser estabelecida na prática de saúde entre o profissional que representa o saber da saúde e o usuário. Cita Lacan (1964): Mesmo se devemos considerar a transferência como um produto da situação analítica, podemos dizer que esta situação não poderia criar o fenômeno todo, e que, para produzi-lo, é preciso que haja, fora dela, possibilidades já presentes às quais ela dará composição, talvez única (Lacan, 1964, p.125). Acrescenta ainda: Isto não exclui de modo algum, onde não haja analista no horizonte, que ali possa haver, propriamente, efeitos de transferência exatamente estruturáveis como o jogo da transferência na análise. Simplesmente, a análise, ao descobrilos, permitirá lhes dar um modelo experimental que não será de modo algum forçosamente diferente do modelo que chamaremos de natural. De modo que fazer emergir a transferência na análise, onde ela encontra seus fundamentos estruturais, pode muito bem ser o único modo de introduzir a universalidade da aplicação desse conceito. (Lacan, 1964, p.125). 66 A identificação, o reconhecimento e a valorização do fenômeno da transferência nos atendimentos entre os usuários e os profissionais de saúde, são de suma importância na busca de uma melhor relação durante todo o processo de tratamento. Considerar o inconsciente, reconhecê-lo e identificar seus aspectos importantes, levará a uma escuta diferenciada nas diferentes profissões em que esse fenômeno acontece. Adesão ao tratamento de HIV/AIDS seria então a capacidade de reinventar-se, ou seja, de se organizar enquanto sujeito, e de reorganizar a sua realidade psíquica. Na prática, verificamos que, embora a adesão tenha a meta de salvar o corpo físico, ela pode destruir a vida enquanto potência, enfraquecida pelo sentimento de tristeza gerado pela não aceitação da doença. A transferência poderá ser usada pelo profissional de saúde com o foco na adesão ao tratamento, como uma espécie de estratégia, na medida em que forneça uma escuta adequada do usuário. O cuidado visto como uma minimização da dor do outro, procurando confortá-lo e diminuir a ansiedade. Mostrar, que ele é o personagem principal da sua história e que isso acarretará a sua escolha em cuidar ou não da sua própria vida e de ser o sujeito da sua saúde. Considero que os objetivos propostos nesta pesquisa foram atingidos, sobretudo ao contribuir para a área de saúde, a partir da sinalização da relevância do fenômeno da transferência para os profissionais que trabalham no atendimento aos usuários com HIV/AIDS, na busca de uma adesão ao tratamento, observando, no entanto, o desejo de cada um. 67 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAVO, M. I. A política de saúde na década de 90: projetos em disputa. Superando desafios - Cadernos do Serviço Social do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Vol. 4. 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OBJETIVO GERAL: Trazer contribuições, através do conceito de transferência à luz da psicanálise, para os profissionais de saúde, na construção da idéia do cuidado aos usuários portadores de HIV/AIDS, apontando e discutindo recursos e/ou intervenções à questão da adesão ao tratamento, respeitando a singularidade dos mesmos. OBJETIVOS ESPECÍFICOS: x Contribuir para um pensar sobre o atendimento feito nas unidades de saúde. x Desenvolver um pensamento sobre os obstáculos existentes na relação profissional de saúde e usuário portador do HIV/AIDS, na compreensão dos entraves para a efetivação do cuidado e especificamente à adesão ao tratamento. x Contribuir para um pensar crítico acerca da complexidade das práticas de cuidado junto a usuários com HIV/AIDS, realizados na unidade do Serviço de Infectologia do HUAP/UFF. x Apresentar o conceito de transferência da psicanálise à luz de Sigmund Freud e Jacques Lacan. x Enfatizar o fenômeno da transferência como na relação do profissional de saúde e usuário. x Aproximar teoria e prática. JUSTIFICATIVA: Investir na adesão é provavelmente a atitude mais importante que a equipe de saúde deve visar para esses usuários. Adesão à vida, porque vai além do uso das medicações, modificando seus cotidianos e podendo gerar 71 problemas de varias ordens. Cresce a demanda da necessidade do acompanhamento clínico para trabalhar a questão da adesão. A prática em atendimentos individuais na enfermaria de Infectologia do HUAP a alguns usuários e familiares recentemente sabedores de seus diagnósticos demonstram que os que recebem suporte desde o início e estabelecem um vínculo com um profissional da equipe, aceitam melhor e enfrentam o tratamento com menor dificuldade, já os que são encaminhados pelos médicos da equipe, com queixas de abandono do tratamento, na sua maioria não tiveram a mesma oportunidade de atendimento. Devemos considerar a subjetividade de cada um que de acordo com as suas vivências, conhecimento, crenças e valores, que apresenta um comportamento próprio ao “sentir-se doente”. Torna-se importante o profissional ouvir esse usuário a fim de contribuir no tratamento, oferecendolhes suporte que possibilitará o enfrentamento das dificuldades e melhor engajamento e compromisso no cuidado com a sua saúde e com uma vida independente, autônoma. A adesão ao tratamento será através de uma composição e não como imposição, onde a psicanálise através da transferência poderá acolher toda a singularidade do sujeito implicado, necessário ao processo na busca dos determinantes inconscientes expressos pela linguagem que irão favorecer a adesão. Torna-se necessário então construir espaços coletivos que favoreçam a participação da equipe de saúde, estimulando discussões e troca de experiências referentes ao cotidiano vivenciado, o enfrentamento do tratamento e suas dificuldades na adesão. 72 PÚBLICO ALVO: x Profissionais de saúde da equipe interprofissional que atendem aos portadores de HIV/AIDS na enfermaria de Infectologia do HUAP; x Profissionais de saúde convidados de outros setores do HUAP, envolvidos nesse atendimento. CONTEÚDO: x O conceito de adesão segundo Ministério de Saúde; x O conceito de transferência à luz da psicanálise (Freud e Lacan); x A importância da adesão ao tratamento dos portadores de HIV/AIDS; x Apresentação e discussão de um caso clínico; x A transferência como estratégia na adesão ao tratamento. METODOLOGIA: Palestra a ser realizada na enfermaria de Infectologia do HUAP, através de exposição oral e recurso audiovisual. 73 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FLETCHER, R. H; FLETCHER, S.W; WAGNER, E. 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