CAMINHOS DA COLONIZAÇÃO ALEMÃ NO RIO GRANDE DO SUL: POLÍTICAS DE ESTADO, ETNICIDADE E TRANSIÇÃO Raul Rebello Vital Junior 1 Introdução A camada dominante da sociedade brasileira que vai ancorar o movimento de independência política do País irá identificar-se como integrante de um Estado profundamente hierarquizado e escravista. D. Pedro era visto pelas elites que apoiaram a independência política do Brasil como a saída para um processo sem traumas. Preservar o sistema monárquico foi a fórmula pensada para evitar movimentos republicanos, abolicionistas e a participação das camadas populares no processo separatista. Evitar radicalismos e manter a escravidão eram desafios que se impunham ao Estado recém-formado. A monarquia brasileira que se constituiu a partir de 1822 trouxe consigo um formato social herdado das antigas estruturas coloniais. Latifúndio, monocultura e mão de obra escrava integraram o tripé que perpetuou a herança colonial para a base econômica do Brasil. Formou-se um Estado aristocrático, voltado para os interesses de uma elite escravocrata. Pode-se perguntar: que espaço existiria diante dessa dinâmica para uma política imigratória? Se dependesse da mentalidade das elites agrárias do País, essa resposta poderia ser dada de forma simples e objetiva: nenhum. A escravidão brasileira encontrava-se de tal forma incorporada ao ethos das elites nacionais que seguramente não cogitariam alternativas a ela. O sistema escravista fazia parte da “ordem natural da economia brasileira”. O trabalho, para a Sociedade Imperial, não se apresentava como um valor. O destino da aristocracia com ascendência europeia era usufruir das benesses do trabalho servil. Neste sentido, percebe-se uma aparente contradição entre os interesses do Império e os dos setores escravocratas no Brasil. Convém lembrar que as pressões internacionais cresciam de forma considerável para a abolição do tráfico internacional Mestre em História. Professor da FAPA e da rede municipal de ensino de Porto Alegre. de escravos. Desde a fase Joanina, a Inglaterra tentava impor ao Estado português o fim do comércio escravista desde o ano de 1810, por conta do Tratado de Aliança e Amizade. Em 1827, novo tratado foi firmado entre Brasil e Inglaterra. O compromisso do governo brasileiro em extinguir o tráfico até o ano de 1830 não se efetivou. A tentativa de decretar o fim do tráfico em 1831, por Feijó, também não foi colocada em prática. A culminância dessas pressões resultou na Bill Aberdeen (1845). Com esta lei, a Inglaterra se outorgava o direito de capturar qualquer navio negreiro, independente de sua nacionalidade, e julgar os traficantes. Mesmo com o contexto desfavorável para a manutenção do sistema escravista, mexer no sistema de mão de obra no Brasil não foi algo simples. Houve um longo período de transição. Logo, volta-se à questão anterior: qual a função da imigração em um País com uma estrutura escravocrata tão consolidada? Estaria o Estado brasileiro à frente dos próprios grupos que o mantinham? Certamente, não. Nem tampouco pode-se considerar a questão servil como fator único nas ações do Estado brasileiro diante da política imigratória na primeira metade do século XIX. Já na segunda metade do século XIX, essa situação mudou, e a questão servil ganhou corpo principalmente a partir da lei Eusébio de Queiroz (1850). Para as questões apresentadas, encontramos parte da resposta na necessidade de formação de um grande exército, voltado para a defesa do território, principalmente em áreas de fronteira. O recém-formado Estado brasileiro dava continuidade à pretensão portuguesa do século XVIII por intermédio do Conselho Ultramarino, que entendia a colonização como forma de firmar soberania. A mesma intenção foi reafirmada na fase joanina. Em 1808, foram promulgados dois decretos por D. João, dando início à política de estabelecimento de colônias agrícolas na Brasil, sendo determinada a vinda de 1.500 famílias trazidas dos Açores para a Capitania do Rio Grande do Sul e permitida a concessão de sesmarias a estrangeiros, buscando aumentar a lavoura e a população. No ano de 1818, foi fundada a colônia de Nova Friburgo, na então província do Rio de Janeiro. Junto com essa demanda, existia a necessidade de ocupação dos espaços vazios, conjugando-os ao desenvolvimento da agricultura e de outras áreas da economia. Os séculos que marcaram as práticas escravistas no Brasil naturalizaram a crença na incapacidade para o trabalho por parte do caboclo e do negro. Entre os séculos XIX e XX, essa crença passou a ser incorporada como verdade por parte da intelectualidade brasileira. No entanto, não era só a suposta incapacidade que estava em jogo. A ideia de branqueamento da sociedade brasileira vinha perpassando as iniciativas governamentais pelo menos desde 1818, quando o Brasil ainda era uma colônia portuguesa. A independência do Haiti e as agitações decorrentes nas primeiras décadas do século XIX criaram nas elites brasileiras um verdadeiro pavor em torno da expectativa de uma superioridade negra num País que iniciava sua história com uma população em que dois terços apresentavam-se como negros e mestiços. Branquear o recém-formado Estado brasileiro era fundamental. O imigrante alemão enquadrava-se nas necessidades de uma ação eugênica de um Estado europeizado e escravista. 2 As expectativas diante da política imigratória Diferentes expectativas apresentavam-se diante da colonização europeia durante o I Reinado (1824-1831). O imperador tinha como pretensão maior o recrutamento de soldados mercenários. A imperatriz, de forma idealista, buscava, por intermédio dos colonos, trazer para o Brasil a cultura europeia como forma de “civilizar” a recémformada nação. José Bonifácio defendia a colonização como forma de pôr fim ao sistema escravista. Alguns intelectuais, como, por exemplo, Hypolito José da Costa, defendiam a colonização europeia enquanto possibilidade de qualificação cultural, povoamento, qualificação “física e moral”, bem como preparar o caminho da abolição (LEMOS, 1993, p.13). No Correio Brasiliense, em 1810, Hypolito da Costa, ao discutir o Tratado de Comércio entre Brasil e Inglaterra, chamou atenção para o perigo de ruína do comércio externo brasileiro. Pensou como alternativa no aumento da população e do comércio interno (PETRONE, 1982, p. 18). A saída era a imigração. Independente das posições não consensuais por parte dos representantes do Estado acerca da imigração, durante o I Reinado, foi assumido um projeto institucionalmente organizado que se voltava não só para questões militares, mas para a constituição da pequena propriedade rural. O imigrante europeu alemão no Rio Grande do Sul, segundo o discurso oficial, deveria superar as deficiências da produção nacional para abastecer os núcleos urbanos. Nas regiões não ligadas diretamente à cultura de produtos para o mercado externo, os imigrantes utilizariam sua própria força de trabalho, e assim deveriam diminuir os efeitos da crise de mão de obra na produção de alimentos, povoando as áreas devolutas. O projeto não incluía posseiros e indígenas presentes nas áreas coloniais. Cabe ressaltar que os interesses de ocupação das terras devolutas no nordeste do Rio Grande do Sul não ficaram restritos apenas à questão da produção e do abastecimento. Existiu forte interesse em promover um processo de valorização fundiária decorrente do processo de povoamento de terras, que passaram a constituir-se como um elemento de grande importância nesse cenário. Esse processo de valorização fundiária esteve diretamente ligado à Lei de Terras, de 1850, que, além de gerar uma diminuição da oferta de terras, contrastaria com o aumento da demanda decorrente da política migratória. É possível encontrar estas práticas especulativas mesmo antes de 1850. No período da fundação de São Leopoldo, objetivando o povoamento da área das antigas Missões, foi feita a transferência para São João das Missões. Além da questão do povoamento, foi buscada a valorização fundiária da área. O isolamento da região acabou inviabilizando o projeto (PETRONE, 1982, p. 17). A política migratória trouxe para a então província a expectativa do desenvolvimento de outros setores da economia, bem como a possibilidade de implementar serviços de infraestrutura na região. Por meio do agenciamento, o Governo Imperial recrutou, em vários Estados germânicos, simultaneamente, colonos e soldados, buscando definir, inclusive, questões de soberania nacional. Pensar na criação de classes sociais intermediárias no sul do País como forma de atenuar o poder das elites latifundiárias e escravocratas era outra preocupação existente. Enfim, a pequena propriedade, o mercado interno, a ocupação do território e a constituição de efetivos militares são algumas das razões que levaram a uma política colonizatória por parte do Império brasileiro. 3 O cenário europeu diante da política imigratória A menor influência, se comparado com a Inglaterra e a França, diante do cenário brasileiro, não impediu que, no século XIX, o País recebesse uma quantidade significativa de imigrantes alemães. A imigração alemã deu início a uma política intencional do governo de atrair contingentes populacionais europeus não portugueses para o Brasil. A intensificação do contato se deu a partir do casamento da princesa Dona Leopoldina, da casa de Habsburgo, com o Imperador Pedro I. Até o início do século XIX, a Alemanha manteve-se como uma região essencialmente agrária. Os 38 Estados alemães integrantes da Confederação Germânica mantinham forte oposição à unificação. A hegemonia austríaca sobre esses Estados só conseguiria ser mantida mediante a permanência da fragmentação do território. Nestas condições, o desenvolvimento capitalista esteve travado. A exceção a esse cenário é a região da renana. A influência da Prússia provocou uma relativa expansão industrial e comercial. A criação do Zollverein (união aduaneira dos Estados alemães), no ano de 1830, colaborou para esse processo. A Unificação da Alemanha, que só se consumou em 1871, foi influenciada por uma Europa em constante transformação. A Europa, nesse período, atravessou ondas revolucionárias das mais diversas ordens. Os movimentos liberais de 1830 e 1848, e a aceleração econômica decorrente das Revoluções industriais mudaram a feição do continente. Trabalhadores agrícolas e outros contingentes populacionais foram duramente atingidos por essas transformações. Em um período de uma Alemanha ainda não unificada, a velocidade das transformações econômicas trouxe sequelas sociais que estimularam o processo migratório em suas diferentes fases. O desenvolvimento industrial, a partir de 1850, acelerou a passagem de uma sociedade rural para urbana e abriu caminho para grandes deslocamentos populacionais. Junto com as transformações econômicas, cabe a lembrança das ondas nacionalistas despertadas na Europa durante a era napoleônica. A derrota de Napoleão, a reação conservadora legitimada pelo Congresso de Viena (1815) e pela Santa Aliança, não foram suficientes para abrandar o ímpeto revolucionário. Este cenário mais amplo refletiu de maneira incisiva sobre a unificação da Alemanha. Tensões sociais, políticas e fortes mudanças econômicas constituíram um quadro favorável para que representantes do governo brasileiro buscassem a mão de obra excedente no continente. Neste contexto, havia uma equação possível entre a carência de trabalhadores que existia no Brasil com a necessidade de espaço e trabalho das populações europeias. 4 Colonização alemã no Rio Grande do Sul (1824-1840) Georg Schaeffer aportou no Rio de Janeiro no ano de 1818. Amparado pelo título de “navegador mundial” e dono de uma indiscutível cultura, aproximou-se da princesa Leopoldina. As portas da Corte lhes foram abertas em um curto espaço de tempo. As facilidades oferecidas na fase joanina renderam dividendos ao major com o futuro imperador do Brasil, D. Pedro I. O militar embarcou em missão oficial e sigilosa para Europa em setembro de 1822 (LEMOS 1993, p. 32-33). O embarque para a Europa, em 1822, do agenciador major Schaeffer, pouco antes da independência, deixaram claras as intenções da Corte em obter a aprovação dos governos da Santa Aliança para a causa brasileira, assim como de atrair mercenários para a guerra iminente contra Portugal. Além da questão portuguesa, as constantes tensões no Prata, no período pósindependência, criavam necessidades do aumento do contingente militar na região. No ano de 1825, lideranças separatistas da Cisplatina, sob o comando de Lavalleja e cientes da adesão de Frutuoso Rivera, proclamaram a independência da província em relação ao Brasil. A declaração de guerra do Brasil foi imediata. O conflito durou até 1828. A intervenção diplomática da Inglaterra fez com que o Brasil aceitasse o Uruguai como um Estado independente. Os encaminhamentos feitos na Europa para os recrutamentos em questão descreditaram o projeto do governo de D. Pedro I diante das elites brasileiras e de grande parte dos governos europeus (CUNHA, 2010, p. 282). O objetivo maior de recrutamento militar para formar os batalhões estrangeiros denunciados por jornais contribuiu muito para o descrédito da missão. Era evidente a existência de uma lógica geopolítica presente nas intenções do Estado brasileiro durante o I Reinado. Cabe ressaltar que o processo de ocupação das terras devolutas não trouxe consigo qualquer princípio de respeito com as populações autóctones das regiões distribuídas aos colonos. Os conflitos gerados entre colonos e índios levaram a um processo acentuado de extermínio étnico. A figura dos bugreiros ganhou importância nas áreas coloniais para dirimir conflitos entre o colonizador europeu e os índios. Quanto à tentativa de recrutamento na Europa, o resultado não foi o esperado. As críticas foram duras, pois desagradou muito o fato de o governo ter confiado tão importante missão a alguém que não estaria à altura de tal empreitada (LANDO; BARROS, 1981, p. 35). Entre 1824 e 1828, conseguiram embarcar para o Brasil cerca de 4.500 imigrantes, entre soldados e colonos em 21 expedições. Se considerado o período de 1824 a 1830, tem-se o número aproximado de 5.350 imigrantes. Abaixo, tem-se a reprodução de um bilhete de viagem utilizado por um dos milhares de imigrantes alemães que vieram para o Brasil no período. Ilustração 1 – Passagem de imigrante para o Brasil: século XIX Fonte: Disponível em <http://aepan.blogspot.com>. Acesso em: 31 jul 2011. Como não se fala, neste período, de um Estado unificado, os imigrantes alemães que para cá vieram integravam grupos étnicos distintos e com dialetos próprios. Os primeiros colonos vieram de Hunsrück, Saxônia, Württeerg, Saxônia-Coburg. Diante da nova realidade, confrontados com uma cultura estranha, desenvolveram entre eles um sentimento de pertencimento étnico. As promessas do governo brasileiro foram muitas. Dispunha-se a pagar as passagens e os custos da viagem para os que quisessem vir como colonos. Os que se dispusessem a vir como soldados receberiam, a partir do embarque, um soldo em dinheiro. Ao chegar ao Brasil, o colono teria o direito de escolher a função a desempenhar (soldado, colono, artesão, etc.). Para os colonos, ficaria garantido um lote gratuito, com a infraestrutura adequada para sua manutenção e a da sua família. É sabido que as promessas feitas foram cumpridas de forma parcial. A primeira fase caracterizou-se como um período de intensas dificuldades. Os colonos enfrentaram um forte isolamento, agravado pela ausência de infraestrutura. A Ilustração 2, abaixo, retrata as precárias condições de vida dos primeiros colonos, bem como sua situação de isolamento. Ilustração 2 – Imigrantes alemães instalando-se em São Leopoldo/RS: século XIX Fonte: Disponível em: <http://cc25dejulho.blogspot.com>. Acesso em: 31 jul 2011. As ameaças “naturais” levavam a epidemias. Os enfrentamentos com índios foram constantes nessa fase. A demarcação de linhas e lotes nas colônias era feita pelo imigrante, bem como a construção de pontes e estradas, a edificação de alojamentos públicos, etc. Havia demora na obtenção dos títulos definitivos de propriedade. O isolamento a que os colonos foram submetidos reforçou a criação de um sentimento étnico, cultural e religioso próprio. O reforço desse sentimento está vinculado à ausência de direitos políticos por parte dos colonos que aqui chegaram durante o século XIX. Essa situação de isolamento era mais agravada entre colonos luteranos do que entre católicos. O Estado mostrava-se ausente nas áreas coloniais. A carência de políticas públicas para a região denunciava uma mentalidade que se estendia aos demais setores da sociedade brasileira. A governabilidade do Império não se dava pela sua relação com os mais diversos segmentos sociais. O que importava era que se estivesse atento às demandas das elites agrárias. Logo, desenvolver políticas públicas em áreas coloniais não fazia nenhum sentido. O resultado foi a produção de “quistos étnicos” que, em parte, dissociavam a realidade colonial do restante da província, forjando uma aproximação identitária que se sobrepôs às diferenças entre os grupos germânicos que colonizaram a região. Escola, igreja e família se configuraram como instituições que passaram a exercer um papel determinante na afirmação da identidade coletiva entre os alemães. As escolas, nas colônias, ganharam contornos étnicos, sendo orientadas por princípios germânicos, que reforçavam a consciência étnica dos filhos dos imigrantes. Essa identidade também seria fortalecida por outros elementos, como existência de uma imprensa local de língua alemã, bem como de produções literárias, entre outras publicações que circulavam junto às comunidades. Os primeiros jornais voltados para a comunidade alemã, escritos em alemão, surgiram, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, em 1852 e 1853, respectivamente. A síntese desse processo relacionado à constituição de uma identidade étnica foi a composição de um campesinato com características próprias, apesar da diversidade existente entre os grupos que vieram para o Brasil. Afirmar o reforço do sentimento étnico do grupo não significa desconsiderar a diversidade daqueles que para cá vieram. Essa diversidade se encontra em decorrência das regiões de origem dos imigrantes, como bem apresenta o Quadro 1, a seguir. Quadro 1 – Procedência de alguns grupos alemães para o Sul do Brasil Localidade Fundação Origem São Leopoldo/RS 1824 Hunsrück, Saxônia, Württeerg, Saxônia-Coburg Sta. Cruz/RS 1849 Renânia, Pomerânia, Silésia Sto. Angelo/RS 1857 Renânia, Saxônia, Pomerânia Nova Petrópolis/RS 1859 Pomerânia, Saxônia, Boêmia Teutônia/RS 1868 Westfália São Lourenço/RS 1857 Pomerânia, Renânia Blumenau/SC 1850 Pomerânia, Holstein, Hannover, Braunschweig, Saxônia Busque/SC 1860 Bade, Oldenburgo, Renânia, Pomerânia, SchleswigHolstein, Braunschweig Joinville/SC 1851 Prússia, Oldenburgo, Schleswig-Holstein, Hannover, Suiça Curitiba/PR 1878 Teutos do Volga Sta. Isabel/ES 1847 Hunsrück, Pomerânia, Renânia, Prússia, Saxônia Sta. Leopoldina/ES 1857 Pomerânia, Renânia, Prússia, Saxônia Fonte: WILLEMS, Emílio. A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil. 2 ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980, p.38-39. A diversidade também se manifestou em torno de interesses divergentes que se configuraram na dinâmica econômica do mundo colonial. Essas diferenças são manifestas também em decorrência da orientação religiosa. Os primeiros colonos chegaram ao Rio Grande do Sul no ano de 1824. O Presidente da Província, José Feliciano Fernandes Pinheiro, encaminhou os imigrantes para a Feitoria do Linho Cânhamo. A partir de abril de 1824, a feitoria passou a se chamar “Colônia Alemã de São Leopoldo”. O município de São Leopoldo foi o berço da colonização alemã no sul do Brasil, juntamente com Três Forquilhas (RS, alemães protestantes) e São Pedro de Alcântara das Torres (RS, alemães católicos). São Leopoldo se constituiu como o primeiro empreendimento de sucesso. Tal sucesso foi atribuído à fertilidade das terras e à privilegiada posição geográfica do município. A Ilustração 3, a seguir, retrata a abrangência do recém-criado município de São Leopoldo: Ilustração 3 – Carta da Colônia de São Leopoldo Fonte: Disponível em: <www.rootsweb.ancestry.com>. Acesso em: 30 jul 2011. Esgotadas as terras da região do Vale dos Sinos, dadas aos primeiros imigrantes, os próximos colonos passaram a receber terras mais distantes, próximas a outros rios, como os do Vale do Caí, os do Vale do Rio Taquari e os do Vale do Jacuí. Todas essas regiões receberam grande influência germânica na construção da sua cultura. No Vale dos Sinos, surgiram as colônias de Campo Bom, em 1825; Dois Irmãos, em 1824; e Ivoti, em 1828. Inúmeras são as defesas feitas em torno do sucesso do empreendimento colonizador em decorrência do fator étnico como essencial ao sucesso colonial. Maestri (2010, p. 129) contradiz essa tese ao afirmar que [...] colônias de Três Forquilhas e de São Pedro vegetaram na pobreza, em razão da baixa qualidade das terras e, principalmente da distância dos mercados consumidores provinciais. Isolados e esquecidos, os colonos germânicos terminaram semiacaboclados, quase se confundindo com as populações brasileiras que ali viviam. Os alemães do Rio Grande do Sul buscavam a posse de terras. A partir de 1824, constituiu-se um sistema de colonização fundamentado na pequena propriedade familiar. Além da agricultura, que ocupou espaços significativos na dinâmica econômica das colônias alemãs no Rio Grande do Sul, merece destaque que, na fase inicial da colonização ainda voltada para a subsistência, o artesanato doméstico desenvolveu um papel fundamental. Eram produzidos tecidos de linho e algodão. A produção artesanal disseminou-se em vários ofícios como o de alfaiate, sapateiro, etc. A importância de produzir artigos para a vida local era grande. Com o desenvolvimento dos transportes e com o surgimento do comerciante no mundo colonial, a atividade artesanal tendeu a desaparecer (MOURE, 1992, p. 97-98). A imigração no Rio Grande do Sul foi interrompida entre 1830 e 1844 em parte em decorrência do movimento Farroupilha (1835-1845). O Estado brasileiro, a partir da abdicação de D. Pedro I, teve sua instabilidade política agravada. Além do movimento Farroupilha, outras rebeliões se espalharam pelo País. O governo acabou por cortar recursos destinados à imigração, e só retomou a partir de 1846. Nesse período, a representação diplomática brasileira em Berlim deixava clara a intenção do governo brasileiro em investir na colonização alemã. Possíveis relações que possam ser feitas entre imigração, colonização e leis restritivas ao tráfico negreiro devem considerar que o fato de a imigração ser percebida como alternativa à diminuição de mão de obra escrava, não se dá em decorrência de pensar o escravismo como uma instituição imoral. O sistema é percebido como arcaico. Nestes termos, a África não é cogitada como continente que pudesse servir como base imigratória, mas percebida como um continente bárbaro; os negros, como inaptos para o trabalho. Trazê-los em outra situação, que não a de escravos, terminantemente desqualificaria uma sociedade em formação como a brasileira. Logo, não se rompe com uma percepção “naturalizada” no Brasil do século XIX sobre a inferioridade do negro diante do imigrante europeu (SEYFERTH, 2002, p.202). Apesar de os colonos terem sido fixados em áreas que não interessavam ao latifúndio, a forte oposição dos grandes proprietários rurais à política de colonização também reforçou o corte de recursos na Lei do Orçamento, aprovada em dezembro de 1830. A luta dos grandes proprietários rurais era em torno da manutenção do sistema escravista. O trabalho escravo no Brasil praticamente deixou homens livres fora do sistema produtivo. No Brasil do século XIX, o trabalho manual era considerado coisa de escravo, visto como propriedade do fazendeiro. As pressões inglesas e a distribuição gratuita de terra aos colonos (77 ha em 1824) não era visto como compatível com os interesses da grande lavoura. O descaso com uma política oficial de imigração entre 1830 e 1850 demonstrou de forma clara a força política dos grandes proprietários rurais. Neste quadro apresentado pode-se pensar o espaço rio-grandense como diferenciado. Cabe questionar se, comparativamente a São Paulo, os colonos alemães no Rio Grande do Sul apresentavam uma ameaça maior aos grandes proprietários rurais quanto à quebra da hegemonia latifundiária. Acredita-se que não, na medida em que estavam distantes das áreas de grande propriedade, e sua produção econômica era diversa do latifúndio. Além do mais, as terras designadas para colonização no Rio Grande do Sul não eram de interesse dos grandes proprietários rurais. Vale lembrar que o latifúndio no Rio Grande do Sul configurou-se economicamente por intermédio da pecuária destinada ao mercado interno. Por conta disso, a demanda de mão de obra, se comparada com a de São Paulo, não era tão grande. Consequentemente, o imigrante não seria visto com o mesmo peso para a resolução de problemas ligados à crise da mão de obra. Vale lembrar que as elites gaúchas apresentaram-se fortemente apegadas ao sistema escravista praticamente durante todo o Império. Logo, os conflitos de interesses encontravam-se diluídos em duas realidades que permaneceram como paralelas durante o período do Império. 5 Colonização alemã no Rio Grande do Sul (1840-1870) A política de imigração nas mãos das províncias não prosperou. Ainda que, no ano de 1848, o Governo Geral, por meio da Lei Geral nº 514, tenha cedido a cada uma de suas províncias 36 léguas quadradas de terras devolutas para colonização. O Governo Imperial, ainda no período do Primeiro Reinado, já havia extinto o regime de sesmarias, dotando as áreas de colonização com dimensões menores. No ano de 1848, os lotes, que antes eram de 77 hectares, foram reduzidos para 48. O setor privado, ao fazer investimentos nos contratos de parceria na região de São Paulo, não conseguiu encontrar o equilíbrio entre a utilização de mão de obra livre e uma economia amparada no latifúndio escravista. Uma das primeiras experiências privadas com o sistema de parceria ocorreu por intermédio do Senador Nicolau Vergueiro, proprietário da Fazenda Ibicaba, que trouxe imigrantes para trabalhar no Brasil, na fazenda de sua propriedade. O imigrante tinha o valor do transporte adiantado, e o colono devolveria o valor em parcelas. A empreitada foi malsucedida, na medida em que os ganhos finais dos imigrantes mal davam para pagar as despesas com alimentação, ocasionando dívidas impagáveis. Além disso, os fazendeiros não faziam distinção clara entre os limites do trabalho livre, para o escravo, o que dificultava o relacionamento com os colonos. Os contratos também não eram respeitados. Tal cenário só iria modificar-se de forma mais incisiva a partir de 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, e com a ampliação da produção de café, fazendo com que o Brasil recebesse maior fluxo migratório. Fatores externos ligados à crise econômica e à política na Europa também vão contribuir para alterar esse quadro. Observem-se os dados da Tabela 1, abaixo: Tabela 1 – Imigração alemã no Brasil Período Total 1824-47 1848-72 1872-79 1880-89 1890-99 1900-09 1910-19 1920-29 1930-39 1940-49 1950-59 1960-69 8.176 19.523 14.325 18.901 17.084 13.848 25.902 75.801 27.497 6.807 16.643 5.659 Fonte: MAUCH, Claudia; VASCONCELOS, Naira (Org.). Os alemães no sul do Brasil: cultura, etnicidade e história. Canoas: Ed. Ulbra, 1994, p. 165. Essa tabela confirma os efeitos da expansão cafeeira e da Lei Eusébio de Queiroz sobre a entrada de imigrantes no Brasil. Tal cenário acabou atingindo a vinda de alemães. No período de 1848-1872, a imigração alemã atingiu índices muitos mais elevados do que no período de 1824-1847. As razões já evidenciadas passaram a ser a garantia de um processo irreversível de transição da mão de obra de escrava para livre no Brasil. Mesmo com a necessidade de braços livres ampliada, o sistema de parceria não conseguiu pôr fim a uma mentalidade escravista fortemente presente. Denúncias de abusos por parte de grandes produtores rurais fizeram com que países europeus restringissem o envio de colonos para o Brasil. Este cenário levou o governo Imperial a reassumir o controle do processo de colonização, mesmo que de forma lenta e com políticas oficiais duvidosas diante da perspectiva futura dos colonos no País. Ainda em 1870 podem ser encontradas inúmeras dificuldades diante do quadro colonizatório. A imigração foi retomada no Rio Grande do Sul a partir de 1845, atingindo a região do Vale do Taquari e do Rio Pardo. O governo provincial, a partir de quatro de dezembro de 1851, por meio da Lei nº 229, assumiu a incumbência de instituir agentes para atuar na Europa com a finalidade de promover a imigração alemã para o Rio Grande do Sul. Nesse período de colonização provincial, vale destacar a fundação de Santa Cruz (1849), Santo Ângelo (1857), Nova Petrópolis (1858) e Monte Alverne (1859). Santa Cruz foi a primeira colônia provincial. Foi fundada em terras devolutas por intermédio da Lei nº 514, de 28 de outubro de 1848. A primeira Lei Provincial remete à Lei nº 229, já citada. Essa lei autorizava a Província a medir, demarcar, designar valor em terras de colônias existentes ou por serem estabelecidas. No entanto, o início efetivo da colonização provincial se fez por intermédio da Lei nº 304, de 1854, que se constituiu como uma adaptação do Rio Grande do Sul à Lei de Terras (IOTTI, 2001, p. 30-31). Cabe lembrar que todas as colônias alemãs que alcançaram destaque, com exceção da colônia de São Leopoldo, foram fundadas na segunda metade do século XIX. Ao contrário do que ocorreu na fase inicial do processo colonizatório (1824) − quando a busca por mercenários orientava as ações do governo brasileiro na Europa −, no ano de 1850, a prioridade foi a busca por agricultores e artesãos. O Decreto nº 537 dizia que, para os colonos desembarcarem no Brasil, deveriam ter na bagagem instrumentos de ofício, sementes e outros utensílios destinados ao trabalho agrícola. É curiosa a preferência existente pelo colono alemão por parte das elites e do Estado brasileiro. Experiências anteriores eram utilizadas como exemplo do sucesso empreendedor trazido pela colonização germânica (SEYFERTH, 2002, p.122). O interesse manifesto do governo provincial pelas terras da região para o estabelecimento de colônias no Vale do Taquari não foi suficiente para sua participação efetiva. Esse processo, a partir de 1850, foi desenvolvido por empresas particulares que tiveram empreendimentos maiores que os do Estado. Apesar da participação de empresas particulares, o Estado não abriu mão de buscar o controle sobre o processo de imigração. Nesses empreendimentos, se havia uma participação reduzida por parte do Império, menor seria ainda a da Província, que ficava em torno de 1% dos empreendimentos entre 1850 e 1889. Apesar dessa pouca participação da Província, existia uma previsão legal quanto às condições de chegada dos colonos: alojamento, sustento e deslocamento dos imigrantes do desembarque ao destino final. Centros como Rio Grande, Porto Alegre e Rio Pardo eram importantes locais de desembarque. A concentração geográfica do processo colonizatório no período em questão fez-se nos vales dos rios Jacuí, Taquari e em seu entorno (KARAM, 1992, p. 43). Esta etapa caracterizou-se por um processo em expansão (1845-1870) decorrente da produção de excedentes agrícolas. Os colonos praticavam a policultura e criavam animais. A essas atividades estava associada a produção artesanal de derivados. Dependiam de relações comerciais com os estabelecimentos existentes na região (Ilustração 4). Ilustração 4 – Casa de comércio na região de São Leopoldo Fonte: Disponível em: <http://imigracaoalemanosuldobrasil.blogspot.com>. Acesso em: 29 jul. 2011. As trocas comerciais decorrentes desse processo deram origem ao comerciante alemão que acumularia capitais advindos da produção colonial. O isolamento das colônias criou condições adequadas para que um grupo de comerciantes pudesse deslocar os excedentes para a capital da Província, tirando proveito da situação por possuírem meios adequados de transporte (KUHN, 2002, p. 91). Os lucros obtidos pelos comerciantes eram grandes. Também obtinham lucros no transporte de mercadorias e em empréstimos. Com os ganhos, obtinham o capital de giro necessário para novos investimentos, que se ampliaram para a indústria, as empresas de navegação, os bancos, etc. (PESAVENTO, 1985, p. 49). A ideia de comerciantes alemães explorando colonos coloca em xeque a tão apregoada “solidariedade” étnica na região. O fato de São Leopoldo estar às margens do Rio dos Sinos criou condições favoráveis para o fluxo comercial com Porto Alegre. Esse fluxo comercial, ao intensificar-se, trouxe consigo o crescimento populacional de São Leopoldo. Entre 1852 e 1854, quando houve o implemento de embarcações a vapor, deu-se o favorecimento da posição de entreposto e intermediário da região. Essa situação se estendeu até o ano de 1874, quando se estabeleceu a via férrea, ligando Porto Alegre a São Leopoldo e criando novos e diferentes vínculos de comércio (ROCHE, 1969, p. 429-430). Com a expansão do capital comercial, os comerciantes alemães dominaram não só o comércio de suas colônias. No período pós-1875, com a chegada dos italianos, eles iriam dominar comercialmente também essas colônias. A progressiva hegemonia do capital comercial em São Leopoldo criou um fluxo econômico que, se por um lado acentuou as desigualdades sociais na região, por outro criou condições para que ocorresse um crescimento populacional que impulsionasse a ocupação de novas áreas. Mesmo sendo percebido nessa segunda fase um empreendedorismo que ampliava os espaços econômicos dos imigrantes para a esfera comercial, e a partir de 1870, para a industrial, os problemas não cessaram. Havia precários recursos para a promoção de serviços públicos. Assistência médica, educação e segurança pública passavam longe das áreas coloniais. As demarcações de terras eram imprecisas; os transportes, precários; e as vias de comunicação, mesmo com alguns avanços, ainda deixavam muito a desejar. 6 Conclusão O Rio Grande do Sul passou, durante o século XIX, pelo processo de imigração e colonização, com a consequente formação de pequenas e médias propriedades voltadas para o mercado interno. Viu-se que tal experiência propiciou a formação de uma produção destinada ao mercado interno, oportunizando uma diversidade produtiva não encontrada no latifúndio pecuarista. As diferentes etapas da colonização alemã manifestaram distintos interesses que envolveram o processo colonizatório ao longo do século XIX. Enquanto no Primeiro Reinado constataram-se interesses na arregimentação de mercenários na Europa, no Segundo Reinado, por conta da proibição do tráfico negreiro, a vinda do imigrante progressivamente passou a cumprir a função na substituição de braços na lavoura. Viu-se também que, no contexto econômico riograndense dominado pelo latifúndio pecuarista, tal impacto não se fez sentir de forma tão rápida, e que o conflito entre latifúndio e imigração foi menos intenso por ocuparem espaços e interesses distintos. A questão da branquidade foi outro elemento importante destacado. Ao se colocar em evidência esse ponto, observa-se que ele perpassou a questão colonizatória ao longo de todo o século XIX, evidenciando o caráter racista das elites brasileiras. Quando foi abordado o isolamento a que foram submetidas as colônias alemãs, foi chamada atenção para a formação de um “quisto étnico” que forjou uma identidade teuto-brasileira, apesar das diferenças internas existentes nos grupos de imigrantes que vieram para o Brasil. A ocupação de terras devolutas por colonos e artesãos, a formação de quadros militares, a dinamização de mercado interno e outras dinâmicas envolvidas no processo colonizatório alemão no Rio Grande do Sul trouxeram para o Estado novas dinâmicas econômicas relacionadas à agricultura, ao comércio e à indústria que romperam com uma cultura latifundiária no Estado, mas que não foram suficientes para dirimir as mazelas decorrentes do processo de transição da mão de obra escrava para a livre tanto em nível nacional como regional. Referências BARROS, Eliane Cruxên; LANDO, Aldair Marli. A colonização alemã no Rio Grande do Sul: uma interpretação sociológica. Porto Alegre: Movimento, 1981. CUNHA, Jorge Luiz da. Imigração e colonização alemã. In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (Coord.). História do Rio Grande do Sul: Império. Passo Fundo: Méritos. v. 2, 2006, p. 279- 300. IOTTI, Luiza Horn (Org.). Imigração e colonização: legislação de 1747 a 1915. Porto Alegre: Assembleia Legislativa do Estado do RS; Caxias do Sul: EDUCS, 2001. KARAM, Elaine Maria Consoli. Raízes da colonização: em destaque a colônia de Guaporé e município de Dois Lajeados. Porto Alegre: CORAG, 1992. KUHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2002. LEMOS, Juvêncio Saldanha. Os mercenários do imperador: a primeira corrente imigratória para o Brasil. Porto Alegre: Palmarinca, 1993. MAESTRI, Mario. Breve história do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. UPF, 2010. MOURE, Telmo. A inserção da economia imigrante na economia gaúcha. In: LANDO, Aldair Marli et al. (Org.). RS: imigração & colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. PETRONE, Maria Thereza Schorer. O imigrante e a pequena propriedade (18241930). São Paulo: Brasiliense, 1982. ROCHE, Jean. A colonização alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969. SEYFERTH, Giralda. 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