163 ISSN 1809-2616 ANAIS IV FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006 SOFTWARES PARA COMPOSIÇÃO COM QUARTOS DE TOM Felipe de Almeida Ribeiro1 [email protected] Resumo: No século XX, um novo conceito de afinação revolucionou a história da música. Compositores como Charles Ives (1874-1954), György Ligeti (1923-) e Alois Hába (1893-1973), começaram a compor usando microtons, mais especificamente quartos de tom. Isso trouxe inúmeras questões a serem resolvidas: como compor, como realizar uma notação e como executar. Para resolver esses problemas, compositores criaram instrumentos próprios (Harry Partch) ou limitaram a escrita a quartos-de-tom (Charles Ives). Atualmente, o desenvolvimento de softwares de notação com recursos microtonais (como o Finale e o Sibelius) e de tecnologias como Csound e MIDI, contribuiu muito para a proliferação desta nova música. O presente artigo visa a uma explanação sistematizada dos softwares disponíveis para que o compositor possa escrever e executar música com quartos de tom. Palavras-chave: Composição; Microtonalismo; Quartos-de-tom. O estudo das afinações é um tópico que está presente na história da música desde a antigüidade clássica. Pitágoras, filósofo e matemático grego, foi um dos primeiros a elaborar um sistema de afinação, em que “todas as 5as são naturais (na razão de freqüência 3:2)”.2 Esta afinação apresenta, por exemplo, terças maiores alongadas com relação à terça maior da escala com temperamento igual.3 Durante o renascimento e parte do barroco, o temperamento igual foi elaborado e defendido por teóricos e compositores como Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Johann Sebastian Bach (1685-1750).4 “Na escala temperada, a razão de freqüência é a mesma para todos os 12 semitons entre dó e dó”.5 Hoje, a grafia de música étnica (que não necessariamente utiliza o sistema temperado) é adaptada para notas fora da padronização temperada de doze sons. Tanto a escala pitagórica como as escalas 1 Universidade Federal do Paraná. Bacharelado em Produção Sonora (formando). SADIE, Stanley (Ed.). Dicionário Grove de Música – Edição Concisa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. Verbete: “afinação pitagórica”, p. 9. 3 A nota mi na afinação Pitagórica apresenta 331.13Hz, enquanto o mi na afinação temperada apresenta 329.64Hz. 4 Rameau baseou o seu Traité de l’harmonie (1722) em sistemas com temperamento igual, assim como J. S. Bach escreveu a coleção O Cravo Bem-Temperado, utilizando este sistema de afinação. 5 ROEDERER, Juan G. Introdução à Física e Psicofísica da Música. São Paulo: Edusp, 2002. p. 252. 2 164 étnicas são apenas sistemas que utilizam notas que não coincidem com o temperamento igual. A escola do microtonalismo, música que utiliza “intervalores menores que um semitom”,6 propõe uma reformulação dos sistemas de afinações. Um desses sistemas utiliza quartos de tom, ou seja, uma oitava dividida em 24 partes.7 A música com quartos de tom promove inúmeras problemáticas: como compor, como realizar uma notação, quem irá executar, como irá executar e até como se apreciar. Compositores como Charles Ives (1874-1954) optaram por execuções com dois instrumentos defasados de um quarto de tom. Isso se verifica nas Three Quarter Tone Pieces (1923) para dois pianos. György Ligeti (1923-) escreveu Ramifications (1968-1969) para dois quartetos de cordas defasados de um quarto de tom. Esse pensamento pode ser estendido para dois violões, duas flautas e até duas vozes. A grafia para tal música pode ser adaptada à notação tradicional com os seguintes sinais: Figura 1 – Grafia de quartos de tom.8 Com a atual popularização dos computadores, ferramentas tecnológicas, como Csound, MIDI e Sampler, estão mais acessíveis para a exploração de afinações microtonais, fornecendo um feedback com uma maior exatidão. O compositor que deseja escrever para quartos de tom pode desfrutar de inúmeros softwares. Existem vários aspectos em que os softwares podem ajudar o compositor a escrever música microtonal: gerar instrumentos para o ato de compor, ferramentas para notação e timbres para a execução. Assim como o piano é hoje um instrumento muito utilizado por compositores e arranjadores, do mesmo modo é requerido um instrumento capacitado de recursos microtonais para a prática desta música. Alguns softwares como o Scala9 (http://www.xs4all.nl/~huygensf/scala), o GigaStudio10 (www.tascamgiga.com) e o Reason11 6 GRIFFITHS, Paul. Enciclopédia da Música do Século XX. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p.139. Segundo Flo Menezes, em seu livro A acústica musical em palavras e sons, considera-se a oitava na proporção de 2 para 1 (por exemplo, 440Hz para 220Hz), tira-se a raiz vigésima quarta de dois (2/1): 21/24 = 1,029302237. Este número multiplicado por uma determinada freqüência resultará num terceiro que por sua vez deverá ser multiplicado pelo mesmo número (assim por diante) até que se construa a escala completa com as 24 subdivisões da oitava. 8 MED, Bohumil. Teoria da Música. 4. ed. Brasília: MusiMed, 1996. p. 388. 9 Para MAC, Windows e Linux. 10 Para MAC, Windows. 11 Para MAC, Windows. 7 165 (www.propellerheads.se) podem ser utilizados como instrumentos de teste, ou seja, ferramentas para o compositor ter condições de experimentar as alturas da escala adotada. O Scala, desenvolvido por Manuel Op de Coul é um dos softwares mais completos para música microtonal. Ele permite ao usuário criar, a partir de um banco de dados, escalas com até 311 subdivisões da oitava, ou ainda, 100 subdivisões do semitom, sendo cada parte chamada de cent.12 Este software apresenta um teclado virtual em que cada tecla preta é subdividida em intervalos de acordo com a afinação escolhida. No caso de quartos de tom, cada tecla é subdividida em três partes, cada uma com cada quarto de tom. Este teclado virtual pode ser usado com o mouse clicando em cada gráfico de tecla ou utilizando o teclado do computador, com notação cifrada (A, B, C, D, E, F, G). As teclas com setas (esquerda-direita) podem ser utilizadas para caminhar entre os quartos de tom. Figura 2 – Scala: janela about e chromatic clavier. Para o uso com um instrumento físico, o Scala aceita controladores MIDI (Musical Instrument Digital Interface). Assim, um teclado com um conector do tipo MIDI OUT pode controlar as notas deste software. O único inconveniente é que cada semitom do teclado passa a ser, por exemplo, um quarto de tom, no caso de uma escala com 24 subdivisões da escala. A ferramenta que possibilita esta conexão, no Scala, entre software e teclado controlador chama-se Microtuning MIDI Relay:13 12 Cent: divisão de um semitom em cem partes. Cent é uma unidade desta divisão, sendo 50 cents o valor correspondente a um intervalo de quartos de tom. 13 Existe um software chamado MIDI Yoke, que possibilita o intercâmbio do Scala para o Cubase. Assim, pode-se gravar microtons no Cubase, sem ter que passar para o Sibelius. http://www.midiox.com/myoke.htm. 166 Figura 3 – Scala: janela “Microtuning MIDI Relay”. Outra possibilidade para ouvir e experimentar quartos de tom são os softwares chamados de sampler.14 Dois deles, o GigaStudio e o Reason, possibilitam ao usuário a configuração de cada tecla. Assim, cada tecla pode receber comandos para apresentar um determinado ataque, decaimento, sustentação e, no caso da música microtonal, qualquer freqüência de nota. O Reason trabalha com refills, pequenos pacotes de dados com configurações para o programa central. Um deles, chamado Nekulturniy Microtonal Refill apresenta configurações para música microtonal (escalas com 19 e 24 subdivisões da oitava). Já o GigaStudio apresenta uma tela (Instrument Editor) para configurar manualmente o instrumento. Uma vantagem que os samplers apresentam é a possibilidade de manipular timbres. Além de se ouvir microtons, podese escolher ou fabricar um timbre com características personalizadas. Figura 4 – Reason e GigaStudio 14 Amostra. São softwares que trabalham com amostras de sons. O mercado oferece samplers em versão hardware. 167 Esses dois softwares permitem uma comunicação MIDI, possibilitando o controle por meio de um teclado. Outro aspecto tecnológico que envolve quartos de tom é o da notação. Dois fabricantes de softwares para notação musical apresentam ferramentas para a música microtonal. O Finale15 e o Sibelius16 apresentam habilidades diversas com respeito à música microtonal. O primeiro apresenta melhor layout, enquanto o segundo apresenta a possibilidade de playback em quartos de tom. Esses softwares de notação trabalham com playback baseado em MIDI, ou seja, o software reconhece o gráfico de cada nota e apresenta para tal uma mensagem MIDI que será executado pela placa de som. O Finale apresenta função MIDI habilitada para doze sons. Já o Sibelius apresenta a função MIDI com pitch bend.17 Todos os parâmetros MIDI, como volume, expressão, pitch bend, apresentam uma graduação de valores que vai do 0 ao 127, ou seja, 128 unidades. A função pitch bend permite ao usuário pressionar uma nota e atingir um tom acima ou um tom abaixo, via um dispositivo chamado de Wheel.18 Em valores MIDI, um tom significa um valor de 64. Assim, um semitom corresponde a 32 e um quarto de tom a 16. Essa função de playback fiel pode ser aproveitada como uma ferramenta para exportar a música do Sibelius como arquivo MIDI (.mid) para um seqüenciador. Lembrando que um semitom equivale a 100 cents; então um quarto de tom equivale a 50 cents, que por sua vez representa 16 na graduação MIDI. Um arquivo mid pode ser carregado em qualquer seqüenciador midi, como por exemplo, o Cubase ou o Nuendo. Figura 5 – Finale e Sibelius Seqüenciadores são softwares que tem como finalidade a edição e o playback de arquivos MIDI. O Cubase e o Nuendo, ambos da Steinberg,19 possibilitam importar arquivos .mid previamente escrito no Sibelius, e trabalhar aspectos como volume, pan 15 Para MAC, Windows. www.finalemusic.com Para MAC, Windows. www.sibelius.com 17 Pitch Bend: altura/nota dobrar/curvar, respectivamente. 18 Wheel: roda, utilizada em teclados musicais. 16 168 e expressão. Outros softwares que possuem seqüenciadores: Pro Tools,20 n-Track21 e Sonar.22 Uma opção para notação microtonal e sequenciamento é o Rosegarden23 para sistema operacional Linux. É um software livre que apresenta possibilidades de trabalho com música microtonal. Abaixo está uma imagem do Cubase com quatro canais MIDI. Figura 6 – Cubase. Existe também uma tecnologia capacitada para reproduzir o instrumento de teste, a notação e o instrumento executante: Csound.24 Esta tecnologia não pode ser classificada como um simples software, pois na verdade o Csound é uma ferramenta de programação. Via um simples editor de texto (como o bloco de notas do Windows), escreve-se ordens para o computador gerar um som. O Csound tem a capacidade de executar qualquer timbre, qualquer freqüência e em qualquer andamento. Pode executá-lo com efeitos, como reverb, eco, distorção, ou simplesmente montar uma orquestra que simule inúmeros instrumentos com quartos de tom. No caso da música microtonal, basta escrever diretamente as freqüências no editor de texto e programar o Csound para gerar. O Csound funciona com dois arquivos, o SCORE e o ORCHESTRA. O primeiro é a partitura, e o segundo o(s) instrumento(s). Lembrar que o Csound não é um instrumento de programação com uma interface gráfica. Ele é similar à linguagem HTML, em que tudo pode ser feito no bloco de notas. Existem alguns softwares que controlam o Csound via uma interface gráfica, como o Csound Editor. 19 O Cubase e o Nuendo trabalham com áudio e MIDI. Funcionam para MAC e Windows. www.steinberg.com 20 Para MAC, Windows. www.digidesign.com 21 Para Windows. www.fasoft.com 22 Para Windows. www.cakewalk.com 23 www.rosegardenmusic.com 24 www.csound.com 169 Figura 7 – Csound: score e janela principal. Uma metodologia de se escrever música com quartos de tom seria compor no Scala, ou num Sampler, editar as notas no Sibelius, que apresenta função de pitch bend, salvar como arquivo MIDI e carregá-lo num seqüenciador. Porém, o seqüenciador funciona apenas para editar volume, tempo, expressão, e não timbre. Entretanto, a grande maioria dos softwares de sequenciamento apresenta timbres terceirizados, sejam da placa de som ou de softwares externos (plug-ins). É o caso dos VST Instruments, tecnologia da Steinberg. Esses softwares são bancos de dados que contém timbres diversos. Exemplo disto são o Native Instruments FM7, Garritan Personal Orchestra e o Moog. Frisar que estes softwares não são desenvolvidos pela Steinberg, mas apresentam uma função de compatibilidade com os softwares da empresa (Cubase e Nuendo). Figura 8 – FM7 - Garritan e MOOG. Esses instrumentos VST lêem os dados MIDI e executam com seus próprios timbres. Basta configurar o canal do Cubase, que está com a informação MIDI, para habilitar sua saída para um desses instrumentos. 170 Atualmente, o mercado musical não produz equipamentos específicos para música microtonal. Pesquisadores envolvidos em composição microtonal desenvolvem softwares ou instrumentos próprios oferecendo alternativas para sanar essas deficiências. A grande vantagem de se compor música com quartos de tom via softwares é a possibilidade de se ter perfeito controle sobre cada um dos aspectos da música: duração, dinâmica, e principalmente, timbre e freqüência. Além dessa precisão, o fundamental é que os softwares abrem possibilidades de criação não permitidas na música acústica. REFERÊNCIAS LIVROS GRIFFITHS, Paul. Enciclopédia da Música do século XX. São Paulo: Martins Fontes, 1995. MENEZES, Flo. A Acústica Musical em Palavras e Sons. São Paulo: Ateliê Editorial; FAPESP, 2004. MED, Bohumil. Teoria da Música. Brasília: MusiMed, 1996. ROEDERER, Juan G. Introdução à Física e Psicofísica da Música. São Paulo: Edusp, 2002. SITES CSOUND. Disponível em: <www.csound.com>. Acesso em 20 jul. 2005. Cubase. Disponível em: <www.steinberg.com>. Acesso em 20 jul. 2005. Finale. Disponível em: <www.finalemusic.com>. Acesso em 19 ago. 2005. GigaStudio. Disponível em: <www.tascamgiga.com>. Acesso em 13 set. 2005. MIDI YOKE. Disponível em: <http://www.midiox.com/myoke.htm>. Acesso em 13 set. 2005. Reason. Disponível em: <www.propellerheads.se>. Acesso em 13 set. 2005. Rosegarden. Disponível em: <www.rosegardenmusic.com/>. Acesso em 13 set. 2005. Scala. Disponível em: <http://www.xs4all.nl/~huygensf/scala>. Acesso em 20 jul. 2005. Sibelius. Disponível em: <www.sibelius.com>. Acesso em 19 ago. 2005. SOFTWARES CSOUND. Disponível em: <www.csound.com>. Cubase. Disponível em: <www.steinberg.com>. Finale. Disponível em: <www.finalemusic.com>. GigaStudio. Disponível em: <www.tascamgiga.com>. Native Instruments. Disponível em: <www.native.com>. n-Track. Disponível em: <www.fasoft.com>. Nuendo. Disponível em: <www.steinberg.com>. 171 Pro Tools. Disponível em: <www.digidesign.com>. Reason. Disponível em: <www.propellerheads.se>. Rosegarden. Disponível em: <www.rosegardenmusic.com/>. Scala. Disponível em: <http://www.xs4all.nl/~huygensf/scala>. Sibelius. Disponível em: <www.sibelius.com>. Sonar. Disponível em: <www.cakewalk.com>.