contributos de geografia física para a gestão integrada do litoral da

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CONTRIBUTOS DE GEOGRAFIA FÍSICA PARA A GESTÃO
INTEGRADA DO LITORAL DA ILHA DA BOAVISTA
Fernando L. COSTA
PhD, Investigador Auxiliar, Instituto de Investigação Científica Tropical, DCN-GeoDes, Lisboa, Portugal, +351.213616340,
[email protected]
António ALVES-DA-SILVA
PhD, Investigador Auxiliar, Instituto Geográfico Português (IGP), Lisboa, Portugal, +351.213819600, antalvsilmail.com
José E. VENTURA
Professor Auxiliar c/ Agregação, Centro de Estudos de Geografia e Planeamento Regional (e-GEO), FCSH, UNL, Lisboa,
Portugal, +351.217908300, [email protected]
Resumo: A gestão integrada do litoral (GIZC), por definição, deve sempre considerar não só os
condicionamentos impostos pelos sistemas litorais mas, também, os que advêm dos sistemas
continentais e marinhos adjacentes, sobretudo em pequenas ilhas como a da Boavista, onde as
características biofísicas de todo o território insular têm repercussões na dinâmica litoral.
A Ilha da Boavista apresenta singularidades relacionadas com a dinâmica marinha e eólica,
materializadas em extensas praias de areias brancas, depressões salinas, dunas e barreiras arenosas
que condicionam a drenagem, entre outras, num espaço onde, de entre os processos morfogenéticos,
o transporte e a acreção parecem assumir um papel mais determinante que a erosão. A compreensão
da dinâmica desta multiplicidade de formas obriga ao conhecimento dos diferentes elementos do relevo
da ilha e da plataforma submersa bem como das características morfoclimáticas e hidrológicas que a
influenciam. O reconhecimento de campo, a análise da cartografia disponível e as imagens de satélite,
revelam claramente que essa dinâmica é particularmente activa e tem implicações evidentes no litoral.
Neste contexto, no presente trabalho abordam-se os aspectos relacionados com a Geografia
Física desta ilha, explicativos dessa dinâmica e determinantes para a GIZC, com recurso a informação
geográfica de domínio público.
Palavras-Chave: Ilha da Boavista, Geografia Física, Formas litorais, Dinâmica eólica, Gestão
Integrada do Litoral
1
1 - INTRODUÇÃO
O arquipélago de Cabo Verde situa-se no sector oriental do Atlântico Norte (entre as latitudes de
14 º e 18º N), próximo da costa ocidental africana. A Ilha da Boavista, a mais oriental, localiza-se a
455Km de África, a 16º Norte de latitude média. É a terceira maior ilha do arquipélago de Cabo Verde,
com 620 km2, e também a mais extensa do conjunto das três ilhas rasas do sector oriental. Tem uma
forma quase circular, com 28,9km de largura e 30,8km de comprimento máximos.
A Ilha da Boavista, apresenta um clima do tipo saheliano e, dada a sua posição geográfica no
contexto global e regional, pode-se considerar um território ultraperiférico, sendo por isso susceptível
aos problemas inerentes a esta situação: longe dos centros de decisão globais e nacionais, que em
muitas situações põem em causa o desenvolvimento sustentado destes territórios insulares, onde as
actividades socio-económicas se concentram no litoral. Por outro lado, a expansão turística que
evidencia, deve ter em conta a melhoria das infraestruturas locais e a escassez de recursos,
nomeadamente da água, o perigo de poluição das águas costeiras, a preservação de ecossistemas, a
degradação paisagística, a qualidade das águas costeiras e a manutenção do actual equilíbrio
dinâmico do litoral, de modo a que se convirja para uma gestão equilibrada do seu território,
particularmente do seu litoral, promovendo a conciliação entre a sustentação económica e ambiental.
Para que tal seja possível, é necessário possuir diagnósticos tão aperfeiçoados quanto possível,
para que toda a complexidade de interacções ambientais seja correctamente inventariada e
monitorizada. Este trabalho pretende mostrar alguma da investigação feita para esse contexto, no
âmbito da Geografia Física desta pequena ilha Atlântica.
2 - QUADRO GEOMORFOLÓGICO
Na Boavista os relevos mais elevados encontram-se no centro-leste da ilha, dispostos
sensivelmente no sentido norte-sul, entre Abrolhal, com 288m de altitude, e Pico Estância, o mais
elevado da ilha, com 387m (Figura 1). Relacionam-se com afloramentos de escoadas lávicas, com
tufos e ignimbritos para a base, de várias séries de fonólitos (Formações de Pico Forcado e Monte
Caçador e do Complexo de Monte Passarão, segundo SERRALHEIRO et al., 1974). Estes relevos
dominam duas áreas planas que se estendem a leste e oeste. A oriental, mais estreita, com cerca de
18km de comprimento e 6km de largura máxima, tem altitudes inferiores a 80m. É talhada em
escoadas basálticas (Formação de Chão da Calheta) e piroclastos que alternam com escoadas
basálticas (Formação de Fundo de Figueira). A ocidental é a mais extensa e as altitudes e a morfologia
são um pouco mais variadas, com três níveis planos entre 100-130m, 60-80m e um mais baixo a 2030m. Nela afloram sobretudo um complexo formado por conglomerados, fonólitos e rochas granulares
(Complexo Antigo) e escoadas de basalto (Formação de Chão da Calheta). Esta superfície é dominada
por relevos de dureza isolados, com comando superior a 200m, relacionados sobretudo com
afloramentos fonolíticos e de rochas granulares.
As rochas vulcânicas são as que ocupam a maior parte do substracto da ilha, de entre as quais
se salientam as rochas granulares e os basaltos, sob a forma de piroclastos (tufos e brechas
vulcânicas). As rochas sedimentares constituem os materiais de cobertura que se estendem por cerca
de 2/3 da área e estão representadas por areias, calcarenitos e crostas calcárias.
As areias brancas relacionam-se com as extensas praias ou com as acumulações de origem
eólica, como as que cobrem uma vasta superfície da ilha, sobretudo no sector ocidental
Os calcarenitos dunares e as crostas calcárias, por vezes compactas, formam cornijas nos topos
dos níveis planos mais elevados, do sector ocidental, como na região de Rabil e Estância de Baixo, ou
nos topos do sector vestibular do vale da Ribeira do Calhau, a nordeste de Fundo de Figueira, que
2
foram aproveitadas para o fabrico de cal 1 . O alinhamento dos topos dos relevos culminantes, de
disposição aproximada NNO-SSE, constitui a linha divisória de águas de duas bacias hidrográficas
principais, que drenam 51% da superfície da ilha, as das ribeiras do Calhau (Norte e Renca), a leste, e
a do Rabil (Figura 1), que se estende por grande parte da área plana ocidental.
© FONTE
VICENTE
Figura 1 - Esboço geomorfológico da Ilha da Boavista (adaptado de COSTA, 1996).
1-Costa alta rochosa; 2-Costa baixa arenosa; 3-Base de vertente; 4-Topo de vertente; 5-Cornija
calcária; 6- Cutelo; 7-Fundo plano; 8-Rebordo de terraço aluvial; 9-Areia eólica; 10-Laguna litoral.
A bacia da Ribeira do Rabil, com 199Km2, a maior da Boavista, drena o sector centro-ocidental
da ilha. É praticamente circular e o curso de água principal tem um traçado geral sudeste-noroeste. Os
vales têm um encaixe bem marcado, como na região de Rabil e Estância de Baixo, e fundos planos. No
sector terminal a saída da ribeira para o mar está fechada por um cordão litoral e por acumulações
arenosas eólicas, de origem continental, sendo responsáveis pelo desenvolvimento de uma laguna no
sector da foz. Trata-se de uma bacia com características que favorecem o escoamento lento e a
infiltração.
Por outro lado, a bacia da Ribeira do Calhau, com 121km2, tem uma forma irregular e os vales
têm estrangulamentos e alargamentos de natureza estrutural. A bacia é estreita e alongada a
Testemunham esta actividade, que decorreu sobretudo no século XIX e primeira metade do século XX, os inúmeros
fornos, a maioria dos quais em ruínas (KASPER, 1987).
1
3
montante, no sentido norte-sul, onde a Ribeira do Norte, a afluente mais extensa (19km de
comprimento), que drena o seu sector setentrional, converge para a Ribeira de Renca (sul-norte), que
drena o sector meridional. Na confluência destas duas ribeiras, na região a leste de Fundo de Figueira,
os vales são abertos e largos com cerca de 1km. Mais a jusante o canal principal (SSO-NNE) sofre um
estrangulamento, passando o fundo a ter apenas 300m de largura, e um encaixe, geralmente superior
a 40 m. No seu sector terminal desenvolveu-se uma laguna (NO-SE) por barramento da foz por um
cordão litoral. Mostra oscilações entre a preponderância dos domínios éolico e marinho e do domínio
fluvial no processo de morfogénese do sistema lagunar da Praia da Cruz do Morto, obrigando mesmo a
ribeira a inflectir para sueste. Esta bacia, pela sua configuração e dimensão poderá comportar caudais
importantes no seu sector terminal.
A fachada costeira é pouco recortada, por vezes, com baías amplas como as da Costa da Boa
Esperança, a norte, e a da Costa do Estoril, a oeste (Figura 1). O litoral é, de um modo geral, baixo,
com praias de areia branca extensas e arribas no geral, inferiores a 10 m de altura. As praias mais
largas encontram-se próximo das fozes dos principais aparelhos fluviais. As mais extensas ocorrem em
sectores com grande deposição de areias em situações de abrigo dos ventos de nordeste onde há
transporte e deposição de sedimentos pela deriva litoral. Assim, estas praias surgem na costa
ocidental, a sul de Sal-Rei: praias de Chave e Cascalho (com cerca de 12km), e na costa meridional:
de Sta. Mónica, Lacacão, Curral Velho e João Barrosa, com cerca de 15 a 20km.
A costa oriental é constituída, sobretudo, por arribas mas dispõe de duas praias de maior
dimensão: Cruz do Morto e Mosquito, com uma extensão aproximada de 6 e 2km respectivamente. A
costa setentrional é igualmente formada por arribas da mesma ordem de grandeza, apresentando
pequenas praias no sector oeste da baía da Costa da Boa Esperança e outras no fundo de pequenas
baías, em pequenos recortes rochosos na parte mais oriental deste sector.
A plataforma insular submarina é dissimétrica, sendo mais estreita no sector nordeste da ilha e
mais larga a sudoeste. Acima dos 100m de profundidade, é ampla, em particular a norte, oeste e
sudoeste, e chega a atingir mais de 15km, com numerosos baixios e ilhéus, sobretudo no sector mais
próximo da costa.
No geral, a morfologia litoral traduz uma costa estável e regularizada por praias e sistemas
lagunares fechados, num estado de colmatação relativamente avançado, mercê da acção
preponderante de processos de deposição marinha e eólica. Os processos eólicos, com reflexos
evidentes em toda a Ilha e com particular importância na morfogénese do litoral da metade norte da
ilha. Têm como principal testemunho o grande corredor de deflacção NE-SO, que domina o sector
norte-ocidental da Ilha, sob a acção dos ventos de nordeste.
2 - ENQUADRAMENTO CLIMÁTICO
A posição do arquipélago de Cabo Verde no sector oriental do Atlântico, em frente à costa
africana, confere-lhe singularidades resultantes, de entre outras, da influência da corrente fria das
Canárias, da região saheliana do Norte de África, do anticiclone subtropical do Atlântico e da
aproximação/permanência da Convergência Intertropical a que se junta a influência, durante o Inverno
boreal, das invasões de ar polar que neste sector chegam a ultrapassar a latitude do trópico e a atingir
as ilhas de Cabo Verde. Também em anos excepcionais, a monção de Inverno pode alcançar o
arquipélago.
Do ponto de vista térmico, a posição oceânica, não obstante a latitude próxima do trópico,
assegura uma forte regularidade térmica com amplitudes térmicas diurnas e anuais reduzidas e
temperaturas médias anuais próximas dos 25ºC. A precipitação, escassa e irregular em todo o
arquipélago, acantona-se no período mais quente do ano, após o solstício de Verão do Hemisfério
Norte e é fortemente dependente da posição, nesta época do ano, da Convergência Intertropical e das
“células de instabilidade” que a caracterizam. Os totais anuais, geralmente modestos, são reforçados,
4
nas ilhas montanhosas, nos sectores de maior altitude e de exposição mais favorável aos fluxos
húmidos e instáveis. O regime dos ventos mostra uma larga dominância dos ventos de nordeste
(ventos alísios ou ventos gerais) resultantes da posição do arquipélago em relação às grandes faixas
de pressão, neste caso entre a alta pressão subtropical do Atlântico Oriental e as baixas pressões
equatoriais.
O regime térmico da Ilha da Boavista define duas estações: uma mais quente de Julho a
Novembro e, outra menos quente, nos restantes meses. Por exemplo, em Sal-Rei a temperatura média
anual foi de 24.2ºC; Setembro o mês mais quente (27.2ºC) e Fevereiro o menos quente (21.8ºC)2.
A precipitação média anual é reduzida e com forte variabilidade interanual. Em Sal-Rei foi
registada uma média anual de 289mm em 1931/60, mas, de apenas 120mm em 1950-96 e 106mm em
1977/97, valores que mostram a diminuição das chuvas que nas últimas décadas do século XX se
verificou em todo o arquipélago. Tal como os totais anuais também a duração do período das chuvas é
variável, podendo o seu início ser mais ou menos precoce, acontecendo o mesmo com o seu fim. Não
obstante, em média, a estação chuvosa dura de Agosto a Outubro, sendo Julho e Novembro e por
vezes também Dezembro os meses de transição (Figura 2).
P (mm)
50
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
SAL REI
POVOAÇÃO VELHA
FONTE VICENTE
FUNDO DAS FIGUEIRAS
JAN FEV MAR ABR MAI JUN
JUL AGO SET OUT NOV DEZ
Figura 2 - Precipitação média mensal na Ilha da Boavista 1950-1996.
O número de dias de chuva pode ser bastante reduzido, correspondendo a apenas um ou dois
episódios chuvosos com quase toda a precipitação anual a registar-se num ou dois dias de chuva
intensa. A propósito da intensidade das chuvas, DAVEAU (1988:290), refere que o autor da introdução
ao Anuário Hidrológico de Cabo Verde “diz admitir-se que são as chuvas superiores a 30mm/dia que
desencadeiam normalmente escoamento superficial”. A análise dos dados da precipitação diária de
Sal-Rei, em 58 anos de registos durante o período de 1931 a 1996, mostra que, em média, totais
diários superiores a 30mm ocorreram em mais de metade dos anos; superiores a 50mm em mais de
40% dos anos e valores superiores a 100mm marcaram presença a partir de finais da década de
sessenta com, pelo menos 5 ocorrências entre 1969 e 19863.
A evapotranspiração potencial, avaliada em mais de 1100mm anuais 4 , é assim, muito superior à
precipitação o que traduz uma crónica escassez de água, só interrompida após os episódios de
Valores referentes a 1931/60.
Este valor pode estar estimado por defeito pois, na dácada de setenta do século passado, não há registos em 1974, 1975,
1976 e 1977.
4 Valores referentes a 1931/60.
2
3
5
precipitação mais abundante, por vezes de carácter torrencial5, que podem ocorrer durante a curta
estação das chuvas. Há assim um balanço hídrico extremamente deficitário.
Como em todo arquipélago, a Ilha da Boavista regista ventos predominantes de nordeste, em
função da forte influência dos ventos alísios ou gerais que dominam na região oriental do Atlântico
tropical. Tratando-se de uma ilha “rasa”, com elevações pouco significativas mas com alguma
concordância relativamente à direcção dos alíseos, a influência deste regime de ventos estende-se a
todo o território insular, não obstante as situações de abrigo proporcionadas pelas modestas
montanhas da ilha. As situações de calma são raras (apenas uma média anual de 1.5% registadas na
estação de Sal-Rei) e o quadrante nordeste predomina largamente, com cerca de 70% dos registos a
nível anual e valores superiores a 50% em todos os meses (Figura 3). Seguem-se os de leste, com
22% e os de norte com 8%, apresentando os restantes quadrantes valores diminutos6. São, também,
os ventos de nordeste que registam a maior velocidade, ou seja, são os ventos dominantes os que
sopram com maior velocidade.
Figura 3 - Regime anual e rosa de ventos, Sal-Rei (Boavista), 1931-60 (adaptado de COSTA, 1996).
O clima da ilha é, em suma, permanentemente quente e ventoso, com precipitação anual
irregular e escassa, concentrada em poucos dias e de carácter torrencial, em que a aridez é um dos
traços mais marcantes e que condiciona o desenvolvimento da vegetação afectada pela crónica
escassez de água ao nível do solo. Em consequência, o coberto vegetal é esparso, adaptado à secura
e proporciona uma fraca protecção às formações superficiais, quer em relação à acção do vento quer
aquando dos episódios de precipitação intensa que ocorrem e podem proporcionar totais diários muito
superiores à precipitação média anual7.
Deste modo, a constância e velocidade do alísio, a topografia pouco vigorosa, o fraco coberto
vegetal, a secura da superfície e o litoral baixo, com extensas praias de areia branca, proporciona um
quadro singular e favorável aos processos eólicos. No sector ocidental da ilha há extensas áreas
cobertas de areia, provenientes do litoral norte e transportadas pelo vento de nordeste de que são
testemunho as dunas móveis, mostrando as dunas estabilizadas (nomeadamente dunas em crescente
ou barcanes, os locais de perda de energia e deposição).
5 Assinale-se que para o período de 1931/60, se exceptuarmos Maio em que não se registou precipitação, em todos os
outros meses o máximo diário registado é sempre superior à precipitação média mensal e os máximos diários
correspondentes aos meses mais chuvosos superam o total médio anual.
6 Valores médios para 1931/60.
7 De acordo com os valores publicados no período de 1931/60 foi registado um total diário superior a 1000mm. O recorde
mundial é de 1825mm (Reunião, 1966, mas em situação de ciclone tropical)
6
3 - DINÂMICA ACTUAL
Num quadro de escassez de precipitação e de inactividade vulcânica, a dinâmica actual é
marcada pela forte influência das areias eólicas que, de nordeste para sudeste, cobrem uma vasta
superfície da ilha, estendendo-se a noroeste as mais importantes faixas de deflação, desde a Costa da
Boa Esperança (a norte) até à costa ocidental. Neste sector da Ilha as areias depositam-se ao longo de
uma faixa NE-SO, e também na Costa do Estoril e da Praia da Chave contribuindo para a formação de
um litoral essencialmente acrecivo.
As areias progridem ao longo dos vales abertos a nordeste e formando taludes ascendentes ao
longo das vertentes a sotavento, ou nas áreas mais baixas ocidentais (Figura 1), a partir do litoral norte,
no sentido NE-SO, sob a acção dos ventos predominantes (Figura 3), podendo formar dunas móveis
nas áreas de maior deflacção, e dunas em forma de crescente, como as que se desenvolvem na região
da Praia de Chave ou no litoral sudoeste.
As areias resultam da fragmentação dos recifes de corais existentes na plataforma insular, e
ainda da erosão dos calcarenitos e crostas calcárias que cobrem áreas extensas na ilha e podem ser
transportados até ao litoral pela dinâmica eólica e fluvial. Os sedimentos assim formados vão-se
acumular no litoral ou na plataforma submarina e, mesmo num regime de micro-maré, são mobilizados
pelo mar e depois retomados pela corrente de deriva, originando cordões litorais, e pelo vento de
nordeste, formando corredores de deflação e dunas no interior da ilha.
Na costa norte-oriental, as areias eólicas são travadas pelos maciços montanhosos do sector
centro-oriental da Ilha, concentrando-se nos litorais norte, nordeste (Praia da Cruz do Morto) e leste
(Praia do Mosquito). A sul (praias de Lacacão e Curral Velho), sudeste (Praia de João Barrosa) e
sudoeste (Praia de Santa Mónica), em geral, a sotavento, os litorais são de barreira com sistemas
lagunares mais ou menos colmatados, por vezes apresentado salinas que comprovam a forte
evaporação. Estas lagunas ocupam depressões para onde converge um grande número de linhas de
água, sendo, por isso, sujeitas a inundações em período de chuva.
Os sistemas lagunares com barreiras que se encontram fechados devem-se à forte acção da
deriva litoral, que os fez evoluir dificultando ou impedindo que as raras descargas fluviais desagúem no
mar e que assim contribuem para o assoreamento das lagoas litorais. Por outro lado, essas derivas
parecem ser de direcções opostas no extremo sul, originando um tômbolo entre as praias de Lacacão e
Curral Velho. A existência de ilhéus e baixios em praticamente toda a costa, como testemunho de uma
acção erosiva do mar mais importante que a actual, favorece a formação de tômbolos e encastres em
vários sectores do litoral. A erosão costeira parece fraca e localizada nas poucas saliências rochosas e
litorais de arribas baixas constituídas por pequenos rebordos em rocha dura.
4 - OBJECTIVOS E METODOLOGIAS
Este trabalho constitui uma primeira abordagem metodológica de investigação em curso,
desenvolvida em parceria entre os participantes e as instituições que representam, sobre Geografia
Física, ambiente litoral e utilização de informação geográfica. Visa a análise espacial e o
desenvolvimento de modelos de diagnóstico biofísico, para obter um conhecimento detalhado sobre o
território, como base para a elaboração de planos de ordenamento.
Dada a importância fulcral da dinâmica eólica na morfogénese e, como tal, um aspecto essencial
para a Gestão Integrada do Território, orientou-se este estudo para a obtenção de um modelo
geográfico de susceptibilidade de acumulação de areias eólicas, para a Ilha da Boavista, em função de
condicionantes geomorfológicas e climáticas. Para o efeito recorreu-se à cartografia disponível e aos
resultados de trabalhos de reconhecimento de campo anteriormente efectuados
7
Neste contexto, propõe-se um modelo que prevê a identificação das áreas mais favoráveis à
acumulação eólica considerando a integração dos factores exposição, hipsometria e declives, tendo em
conta os sectores de deflacção e acumulação litorais e o regime da direcção e velocidade dos ventos,
Os mapas de exposições, de declives e hipsométrico, processados em ambiente SIG, foram
produzidos a partir do Modelo Digital de Terreno (MDT), com base na altimetria da cartografia à escala
1/25000 (SCE, 1972).
Para cada mapa foram definidas três classes de um a três, consoante o seu grau crescente de
susceptibilidade à acumulação de areias eólicas. Os limites das classes de exposições, hipsométricas e
de declives (Quadro 1) foram estabelecidos em função do grau de susceptibilidade. Para a exposição
consideraram-se mais susceptíveis os sectores expostos a nordeste e a sudoeste, em função dos
ventos predominantes. As áreas de barlavento, voltadas para nordeste, são consideradas como os
locais de deflação por excelência e as de sotavento, voltadas para sudoeste, as de perda de energia e
deposição.
Foram também definidos graus de susceptibilidade decrescentes com a altitude e com os
declives. Consideraram-se como mais favoráveis as áreas com altitude inferior a 50m e as com
declives inferiores a 10º. O Quadro 1 mostra a classificação hierárquica qualitativa atribuída aos
diferentes factores considerados no modelo de susceptibilidade.
Quadro 1 - Hierarquia dos componentes integrantes do modelo de susceptibilidade à acumulação de
areias eólicas.
Factores geomorfológicos
Hierarquia
Exposição (º)
Hipsometria (m)
Declive (º)
3 (Elevado)
Sudoeste (191,25º a 281,25º)
0 a 50
0 a 10
2 (Médio)
Nordeste (11,25º a 101,25º)
50 a 100
10 a 20
1 (Baixo)
Outros quadrantes (281,25º a
11,25º e 101,25º a 191,25º)
> 100
> 20
Como resultado do somatório em ordem hierárquica dos mapas reclassificados relativos à
exposição, à hipsometria e aos declives foi obtido um mapa de susceptibilidade à acumulação de
areias eólicas em função de factores geomorfológicos (Figura 4), com três classes de susceptibilidade
(baixa, média e elevada).
O modelo prevê, assim, que a combinação destes factores conduza ao zonamento de áreas mais
favoráveis à deposição
Validaram-se os resultados obtidos neste mapa por comparação com os da distribuição de areias
nas imagens Google Earth (2005). Definiram-se as áreas de expansão das areias no período 19722005 recorrendo àquelas imagens e à distribuição de areias constante do mapa topográfico na escala
1/25.000 (SCE, 1972).
8
Mapa topográfico 1/25.000 (1972)
Google Earth (2005)
Modelo Digital de Terreno
(DTM)
Mapa
hipsométrico
Mapa de
exposições
Mapa de
declives
Mapa de cobertura de
areias eólicas em 1972
SOMATÓRIO
Modelo de
susceptibilidade de
acumulação de areias
EVOLUÇÃO
VALIDAÇÃO
Mapa de cobertura de
areias eólicas em 2005
Figura 4 – Metodologia de elaboração e validação do modelo de susceptibilidade à acumulação
de areias eólicas, em função de factores geomorfológicos.
5 - RESULTADOS
No mapa de susceptibilidade à acumulação de areias em função da hipsometria, cerca de 54%
da área tem susceptibilidade elevada e 34% média (Figura 5A). As áreas de maior susceptibilidade são
as do sector ocidental onde se encontram maiores extensões de altitudes abaixo de 100m.
No mapa de susceptibilidade à acumulação de areias em função da exposição, verifica-se que
aproximadamente 25% da área tem susceptibilidade elevada e 23% média (Figura 5B). As áreas de
maior susceptibilidade são as do sector ocidental, onde se encontram as maiores superfícies expostas
aos quadrantes nordeste e sudoeste e mais próximas do litoral.
No mapa de susceptibilidade à acumulação de areias em função do declive (Figura 5C),
constata-se que cerca 85% da área tem susceptibilidade elevada e 10% média. A grande maioria da
superfície da ilha inclui-se nas áreas de maior susceptibilidade.
No mapa final de susceptibilidade à acumulação de areias (Figura 6), verifica-se que 32% da
área da área da ilha tem susceptibilidade elevada e 56% média. As áreas mais amplas, de maior
susceptibilidade, são efectivamente as do sector ocidental com grandes extensões de baixa altitude, de
declives suaves, de exposição aos quadrantes nordeste e sudoeste e mais próximas do litoral.
Da validação dos resultados obtidos neste mapa de susceptibilidade, por comparação com os da
distribuição de areias nas imagens Google Earth (2005), conclui-se que a maioria das acumulações
existentes (93%) se encontra em áreas indicadas no modelo como de susceptibilidade moderada (57%)
e elevada (36%), o que vem validar os seus resultados (Figura 7). No entanto, de acordo com as
imagens referidas, só 20% da área da Ilha se encontra coberta por uma camada importante de areias
eólicas.
As áreas de expansão das areias no período 1972-2005 vêm corroborar, em boa parte, a
validação do modelo (Figura 8). Conclui-se que a maioria das áreas de expansão das acumulações
arenosas (93%) se encontra em áreas indicadas no modelo como de susceptibilidade moderada (58%)
e elevada (35%).
9
A - Hipsometria
(%)
60
50
40
30
20
10
0
0 a 50
50 a 100
> 100
Classes hipsométricas (m)
B – Exposição
(%)
60
50
40
30
20
10
0
Sudoeste
Nordeste
Outros
Exposição
C - Declive
(%)
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
0 a 10
10 a 20
> 20
Declives (º)
Figura 5 – Condicionantes morfológicas das acumulações arenosas eólicas.
10
(%)
60
50
40
30
20
10
0
Elevada
M édia
B aixa
Susceptibilidade
Figura 6 – Susceptibilidade a acumulações arenosas eólicas.
Figura 7 – Validação de mapa do modelo de susceptibilidade a acumulações arenosas eólicas,
em função da distribuição das areias em, 2005.
11
Figura 8 – Validação de mapa do modelo de susceptibilidade a acumulações arenosas eólicas,
em função das áreas de expansão 1972-2005.
6 - DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Acumulações arenosas eólicas existem praticamente em todas as ilhas do arquipélago de Cabo
Verde, no entanto na Ilha da Boavista atingem uma maior extensão.
A dinâmica eólica é por natureza uma constante do longo período seco, quando as areias se
encontram mais soltas, sem a presença de água intersticial. Neste período esta dinâmica é reforçada
pelo facto dos ventos soprarem de forma mais constante dos quadrantes nordeste e leste e registarem
uma maior velocidade que na época húmida. Nesta época, a intensidade da precipitação pode
determinar uma forte erosão hídrica e fluvial, com remoção de areias e seu transporte para o litoral. A
ocorrência de caudais torrenciais de grande competência nas principais ribeiras, pode inclusivamente
pôr em causa a estabilidade do litoral, com alterações súbitas e significativas nos cordões litorais.
As areias resultantes da fragmentação de recifes de corais da plataforma insular e da erosão dos
calcarenitos e crostas calcárias da ilha, afluem ao litoral mobilizados pelo mar, pelo vento de nordeste e
pela dinâmica fluvial. Progridem depois pela ilha, por onde não há barreiras orográficas suficientemente
importantes para as travarem formando corredores de deflação e dunas.
No modelo de susceptibilidade à acumulação de areias eólicas, as componentes hipsometria e
declive revelam que a maioria da área da ilha dispõe de condições favoráveis à ocupação por areias
(Figura 5), dada a sua platitude. As áreas de exposição mais favoráveis a sotavento e a barlavento,
representam 48% da superfície da ilha. No conjunto destas três componentes a maioria da ilha
apresenta condições de susceptibilidade à acumulação de areias eólicas (Figura 6). Contudo os
relevos, apesar de modestos em altitude e volumetria, condicionam pela sua disposição a distribuição e
progressão das areias. Por este motivo as areias encontram-se limitadas ao sector litoral a nordeste,
como consequência do efeito de barreira dos relevos do centro leste da ilha, e progridem facilmente
para o interior ocidental a noroeste, na ausência destes.
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A distribuição actual das areias (2005) e as áreas da sua expansão (1972-2005) validam em
mais de 90% dos casos o modelo final (Figuras 7 e 8). Pode-se, no entanto, afinar o modelo
introduzindo outras varáveis, tendo por base observações e registo de campo mais detalhados.
Este modelo permite prever uma área de expansão de areias muito superior à actual (Figura 8), o
que deve ser tido em conta nos planos de ordenamento do território.
Para a Gestão Integrada do Litoral, este modelo poderá também servir como elemento
componente de uma estrutura de análise de risco relacionado com processos de acreção no litoral,
onde a pressão humana se tem tornado uma constante, em particular nas últimas décadas. Por
exemplo as ZDTI’s (Zonas de Desenvolvimento Turístico Integral), de Chave Morro de Areia e Santa
Mónica, prevêem a ocupação da quase totalidade da área dos litorais ocidental e meridional, onde a
dinâmica de acumulação de areias continentais é particularmente activa. Nestas zonas a deriva litoral
tem desenvolvido cordões litorais que dão origem às praias mais extensas, cuja dinâmica urge
preservar, para que estas se possam manter com as características que actualmente dispõem.
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