Heloisa Helena Gonçalves EFEITO DA BAIXA E ALTA FREQÜÊNCIA DA ESTIMULAÇÃO ELÉTRICA NERVOSA TRANSCUTÂNEA SOBRE A HIPERALGESIA INDUZIDA PELA CARRAGENINA APÓS O DESENVOLVIMENTO DE TOLERÂNCIA À MORFINA Belo Horizonte Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG Departamento de Fisioterapia 2005 1 Heloisa Helena Gonçalves EFEITO DA BAIXA E ALTA FREQÜÊNCIA DA ESTIMULAÇÃO ELÉTRICA NERVOSA TRANSCUTÂNEA SOBRE A HIPERALGESIA INDUZIDA PELA CARRAGENINA APÓS O DESENVOLVIMENTO DE TOLERÂNCIA À MORFINA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências da Reabilitação da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências da Reabilitação. Orientador: Prof. Dr. Marcos Antônio de Resende Co-orientadora: Profª. Dra. Janetti Nogueira de Francischi Belo Horizonte Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG Departamento de Fisioterapia 2005 2 G635e GONÇALVES, Heloisa Helena 2005 Efeito da baixa e alta freqüência da estimulação elétrica nervosa transcutânea sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina após o desenvolvimento de tolerância à morfina. [manuscrito] / Heloisa Helena Gonçalves. – 2005. 73 f., enc.: il. Orientador: Marcos Antônio de Resende. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional. Bibliografia: f. 63-73 1. Eletroterapia. 2. Fisioterapia. 3. Estimulação elétrica nervosa transcutânea – Uso Terapêutico. I. Resende, Marcos Antônio. II.Universidade Federal de Minas Gerais. Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional. III.Título. CDU: 615.84 Ficha catalográfica elaborada por Caroline de Azevedo Serapião – Bibliotecária CRB6 – 2707 3 A todos que se beneficiarem com os conhecimentos contidos neste trabalho. 4 AGRADECIMENTOS A Deus, autor e mantenedor de nossas vidas, presente em todos os momentos capacitando-nos para a concretização de nossos sonhos. Obrigada pelo amor, apoio e orientação. À Wania Silva Nascimento, minha mãe, pelo exemplo de vida e por me ensinar a lutar pelos meus sonhos. Ao Adalberto, pelo companheirismo, compreensão e incentivo durante todo esse período. Ao Prof. Dr. Marcos Antônio de Resende, obrigada por ter me concedido a oportunidade de compartilhar com você este trabalho. Foi um privilégio tê-lo como orientador, pois você foi ao mesmo tempo um grande mestre e também um grande amigo. Obrigada! À Profª. Drª. Janetti Nogueira de Francischi, obrigada pelo exemplo, carinho, conhecimentos compartilhados, por ter possibilitado a utilização do laboratório para a realização de toda parte prática e ter sido minha co-orientadora neste trabalho. Ao George, obrigada pelas dicas, esclarecimentos, opiniões e apoio nos experimentos. Você me ajudou a vencer uma etapa muito importante. Obrigada pela colaboração. 5 A todos os professores do Curso de Mestrado em Ciências da Reabilitação. Obrigada pelo exemplo e ensinamentos, que me inspiram a amar essa profissão e a buscar sua valorização. A todos os colegas dos laboratórios de farmacologia do ICB, funcionários do biotério e ao Webster. A realização deste trabalho não seria possível sem a colaboração de todos vocês. Ao Prof. Dr. Igor Dimitri Gama Duarte e Profª. Drª. Maria Salete Abreu de Castro do Departamento de Fisiologia e Farmacologia do ICB, seus esclarecimentos foram muito importantes para mim. Obrigada pela atenção e ensinamentos. Agradeço também ao Prof. Igor pelo empréstimo da morfina e do laboratório. À Marilane, obrigada pela ajuda durante esse período. Aos colegas do Centro de Reabilitação Leste e do Núcleo de Saúde do Trabalhador da PBH, vocês me ajudaram em momentos difíceis. Obrigada pela compreensão e carinho. Aos colegas de Mestrado em Ciências da Reabilitação, pelo incentivo e por terem compartilhado comigo tantas expectativas, angústias e conhecimentos. 6 RESUMO Estimulação elétrica nervosa transcutânea (TENS) é um método não invasivo utilizado na clínica de fisioterapia para controlar dores aguda ou crônica. O objetivo deste estudo foi investigar o efeito da baixa (10 Hz) e da alta (130 Hz) freqüência da TENS após o desenvolvimento de tolerância à morfina. Depois de 2h e 30 min da administração intraplantar da carragenina (250 µg/0,1 ml), TENS de baixa e alta freqüência foi aplicada por 20 min na pata do rato. O efeito desse procedimento foi medido pelo método de Randall-Selitto. Verificou-se que TENS de baixa e alta freqüência inibiu em 100% a hiperalgesia induzida pela carragenina. Entretanto, a TENS de baixa freqüência apresentou um efeito analgésico mais duradouro quando comparado à TENS de alta freqüência. Observou-se, também, que animais pré-tratados com naltrexona (3,0 mg/Kg/sc) mostraram completa reversão do efeito analgésico obtido pela TENS de baixa freqüência, mas não pela TENS de alta freqüência. Indução da tolerância à morfina foi obtida após administração da morfina (10 mg/Kg/sc), duas vezes ao dia durante sete dias. O tratamento com TENS de baixa e alta freqüência foi realizado no oitavo dia, 2 h e 30 min após injeção da carragenina. Os resultados obtidos com TENS de baixa freqüência indicaram total ausência de atividade analgésica, enquanto a TENS de alta freqüência provocou anti-hiperalgesia. Os dados obtidos confirmam e expandem a hipótese de que o mecanismo de ação analgésica da TENS de baixa freqüência é mediado pela liberação de opióides endógenos, uma vez que seu efeito analgésico foi revertido por um antagonista opióide puro (naltrexona), e o desenvolvimento de tolerância cruzada foi verificado após o tratamento com TENS de baixa freqüência, em 7 animais submetidos a tratamento crônico com morfina. Nossos resultados sugerem que a TENS de alta freqüência é mais eficaz que a TENS de baixa freqüência em indivíduos que fazem uso crônico de morfina. Palavras-chave: TENS, hiperalgesia, morfina, tolerância, carragenina, eletroterapia. 8 ABSTRACT Transcutaneous electrical nerve stimulation (TENS) is a non-invasive method used in Physiotherapy practice for pain acute or chronic relief. The aim of this study was to investigate the effects of low (10 Hz) and high (130 Hz) frequency TENS in morphinetolerant rats. After injection of carrageenan, rats paws were submitted to low and high frequency TENS for 20 min and hyperalgesia measured using the Randall-Selitto method. Both low and high frequency inhibited by 100% carrageenan-induced hyperalgesia. However, low frequency TENS presented a longer-lasting effect when compared with high frequency TENS. Naltrexone-treated animals showed a complete reversion of low but not high frequency TENS. Morphine tolerance was induced by subcutaneous injection twice a day over 7 days. Low and high frequency TENS treatment were used in the 8th day at 2 h and 30 min after carrageenan injection. The results obtained with low frequency TENS indicated complete absence of analgesic activity, whereas high frequency TENS induced anti-hyperalgesia in such animals. Our data confirm and expand the hypothesis that TENS induces endogenous opioid release, since its analgesic-induced effect was antagonized by naltrexone, and its efficacy was abolished in morphine-tolerant animals. Our results suggest that high frequency TENS will be a better indication in patients under chronic use of morphine. Key words: TENS, hyperalgesia, morphine, tolerance, carrageenan, electrotherapy. 9 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AF - Alta Freqüência AMPc - Monofosfato de adenosina cíclica β-FNA - β-funaltrexamine BF - Baixa Freqüência Ca2+ - Cálcio CEBIO - Centro de Bioterismo do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG CETEA - Comitê de ética em pesquisa animal Cg - Carragenina CGRP - Peptídeo relacionado com o gene da calcitonina COX - Ciclooxigenase δ - Delta e.p.m. - Erro padrão da média FR - Formação reticular g - Grama GABA - Ácido gama-aminobutírico GMPc - Monofosfato cíclico de guanosina h - Hora Hz - Hertz IL - Interleucina Ipl - Intraplantar κ - Kappa 10 K+ - Potássio Kg - Quilograma ml - Mililitro µ - Mu µg - Micrograma µl - Microlitro min - Minuto MOR - Morfina MRN - Núcleo magno da rafe NaCl - Cloreto de Sódio NRPG - Núcleo reticular paragigantocelular Nx - Naltrexona PAF - Fator de ativação das plaquetas PAG - Substância cinzenta periaquedutal PG - Prostaglandina PKC - Proteína cinase C PLA2 - Fosfolipase A2 s - Segundo SC - Subcutânea SG - Substância gelatinosa SL - Solução salina fisiológica TENS - Estimulação elétrica nervosa transcutânea TNF-α - Fator de necrose tumoral-α 11 TX - Tromboxano UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais 12 LISTA DE FIGURAS Figura 1- Diagrama esquemático do sistema de controle da comporta espinhal............20 Figura 2 - Sistema de controle descendente da dor........................................................21 Figura 3 - Analgesímetro ................................................................................................40 Figura 4 - Aplicação da estimulação elétrica nervosa transcutânea...............................43 Figura 5 - Curva de desenvolvimento da hiperalgesia, após administração da carragenina na pata do rato.......................................................................46 Figura 6 - Analgesia dose-resposta de morfina sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina na pata do rato.....................................................47 Figura 7 - Efeito da baixa e alta freqüência da TENS sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina na pata do rato....................................................48 Figura 8A – Efeito da TENS de baixa freqüência sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina na pata do rato, após o tratamento com naltrexona...........................................................................49 Figura 8B - Efeito da TENS de alta freqüência sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina na pata do rato, após o tratamento com naltrexona...........................................................................50 Figura 9 - Efeito da morfina sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina na pato do rato, após o tratamento com naltrexona.......................................51 Figura 10A - Efeito da TENS de baixa freqüência em ratos tolerantes à morfina, após indução de hiperalgesia pela carragenina.........................52 13 Figura 10B - Efeito da TENS de alta freqüência em ratos tolerantes à morfina, após indução de hiperalgesia pela carragenina.........................52 14 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................……......................................16 1.1 Dor e Hiperalgesia.....................................................................................................16 1.2 Carragenina...............................................................................................................25 1.3 Morfina.......................................................................................................................27 1.3.1Mecanismo de tolerância à morfina.........................................................................30 1.4 Estimulação elétrica nervosa transcutânea...............................................................33 1.5 Objetivo.....................................................................................................................38 2 MATERIAIS E MÉTODOS...........................................................................................39 2.1 Animais de experimentação.....................................................................…..............39 2.1.1 Ambientalização dos animais.................................................................................39 2.2 Medida da hiperalgesia – teste nociceptivo...............................................................40 2.3 Substâncias utilizadas...............................................................................................41 2.4 Administração das substâncias.................................................................................42 2.5 Procedimento experimental.......................................................................................42 2.6 Análise Estatística.....................................................................................................45 3 RESULTADOS.............................................................................................................46 3.1 Curva de desenvolvimento da hiperalgesia, após administração intraplantar da carragenina.......................................................................................46 15 3.2 Curva dose-resposta da morfina, após administração intraplantar de carragenina..........................................................................................................47 3.3 Efeito da estimulação elétrica nervosa transcutânea de baixa e alta freqüência na hiperalgesia induzida pela carragenina...............................................................48 3.4 Efeito da naltrexona sobre a analgesia produzida pela baixa e alta freqüência da estimulação elétrica nervosa transcutânea.........................................49 3.5 Efeito da naltrexona sobre a analgesia induzida pela morfina..................................50 3.6 Efeito da estimulação elétrica nervosa transcutânea de baixa e alta freqüência sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina, após o desenvolvimento de tolerância à morfina...............................................................51 4 DISCUSSÃO................................................................................................................54 5 CONCLUSÃO..............................................................................................................62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................63 ANEXO............................................................................................................................74 16 1 INTRODUÇÃO 1.1 Dor e Hiperalgesia A palavra inglesa pain e a palavra portuguesa pena têm origem na palavra poiné (do grego antigo), cujo duplo significado é “pagar” e “punir”. Apesar de ser compreendida geralmente como algo desagradável, há situações excepcionais em que a dor é totalmente ignorada pelo indivíduo, como em casos de feridos de guerra ou desportistas que sofrem lesões durante competições. Em alguns casos, a dor pode até ser considerada fonte de prazer, como nos masoquistas1. Dor é uma experiência pessoal e subjetiva, que compreende diversos fatores fisiológicos, psicológicos e ambientais2. A Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP) a define como “uma desagradável experiência sensorial e emocional associada com dano real ou potencial ao tecido, ou descrita com relação a tal dano”3. Apesar dessa sua universalidade, a dor é composta de variados desconfortos humanos e pode ser subjetivamente modificada por experiências e expectativas passadas3. Segundo Melzack e Katz2, uma função vital do sistema nervoso é prover informação sobre a ocorrência ou a ameaça de lesão, sendo a sensação de dor considerada uma importante contribuidora dessa função. Embora tenha um papel protetor, a dor é mais que uma experiência sensorial que evita o perigo e pode ser discriminada em dois tipos: aguda e crônica3,4. A dor aguda geralmente é de curta duração e serve como uma advertência a uma injúria em potencial. A dor crônica, por outro lado, não tem o papel de defesa da 17 vida e pode tornar-se um estado de doença em si própria, capaz de incapacitar totalmente o paciente1,3. Ela é caracterizada pela persistência e causa graves alterações biológicas e de comportamento. Pode ser definida como uma dor que dura por mais tempo do que a lesão tecidual que a desencadeou1. Segundo Lico1, todo estímulo intenso, exceto o vibratório, de qualquer modalidade energética (mecânica, térmica, química ou elétrica), é capaz de produzir dor. Esse agente nocivo é detectado pelas ramificações periféricas das fibras nervosas, conhecidas como nociceptores, também chamadas terminações nervosas livres, que estão presentes em toda a pele, músculos, articulações, vasos sanguíneos e vísceras1,2,4. Muitas das fibras aferentes pequenas que conduzem os estímulos dolorosos são fibras C não-mielinizadas, com baixa velocidade de condução (< 1 m/s), conhecidas como nociceptores polimodais C (PMN, C-polymodal nociceptors)4,5. As outras fibras aferentes são delicadas e mielinizadas, conhecidas como A-delta (Aδ), que conduzem mais rapidamente e respondem a estímulos periféricos semelhantes4. Antes de atingirem o corno dorsal da medula, as fibras aferentes nociceptivas caminham pela divisão lateral da raiz dorsal, bifurcam-se de maneira ascendente e descendente na medula, a fim de atingirem de um a três segmentos medulares, constituindo, dessa forma, parte do trato de Lissauer. Posteriormente, essas fibras quase sempre terminam na região superficial do corno dorsal da medula espinhal4. As fibras C e algumas fibras Aδ inervam os corpos celulares nas lâminas I e II, enquanto outras fibras Aδ penetram até a lâmina V1. Os neurônios aferentes secundários, principalmente os localizados nas lâminas I e V, são conhecidos como neurônios de transmissão (T) e emitem axônios ascendentes que vão conectar-se com 18 o neurônio aferente terciário1,4. Os caminhos de projeção da dor são coletivamente chamados de sistema anterolateral, por ascenderem na porção anterolateral da coluna lateral da medula espinhal4. Geralmente, os neurônios aferentes secundários ascendem para centros mais altos ao longo dos tratos espinotalâmico, espinoreticular e espinomesencefálico e vão terminar em três pontos principais: no tálamo, na formação reticular do bulbo e na formação reticular do mesencéfalo3,6. O trato espinotalâmico é dividido em duas vias: a via neoespinotalâmica, de formação mais recente na filogênese, e a via paleoespinotalâmica, de formação mais antiga1. A via neoespinotalâmica é também conhecida como específica por ser uma via direta, rápida e fidedigna, que permite boa discriminação do local lesado e da intensidade da dor1. A via paleoespinotalâmica, entretanto, é uma via difusa, de condução lenta, que não permite uma discriminação adequada do local de origem do estímulo. Ela é acompanhada de um componente afetivo dominante e invasivo1,6. Sabe-se que tanto as fibras de pequeno diâmetro (A delta e C), transmissoras de informações dolorosas, quanto as fibras periféricas aferentes mielinizadas, de largo diâmetro (A beta), transmissoras de estímulos táteis e de pressão, articulam-se com o neurônio aferente secundário (T) e enviam ramificações colaterais às células da substância gelatinosa do corno dorsal da medula1,5. Essas células de axônio curto estão intercaladas nos aferentes primários e secundários da nocicepção e atuam, segundo a teoria da “comporta espinhal”, proposta por Melzack e Wall7, como um sistema valvular. Ou seja, a transmissão de informações dolorosas pode ser inibida pela ativação dos neurônios inibitórios da substância gelatinosa do corno dorsal da medula que, quando ativados, exercem uma ação bloqueadora da dor1. Dessa forma, a ação dos neurônios inibitórios pode ser comparada à atuação de um 19 porteiro, que, ativado por certos estímulos como aqueles provenientes da ativação das fibras Aβ, consegue fechar o portão, para impedir a passagem de estímulos dolorosos5. Pela teoria da “comporta espinhal”, originalmente foi proposto que a ativação dos neurônios inibitórios poderia ocorrer pelos estímulos táteis vindos das fibras periféricas mielinizadas aferentes de grande diâmetro (Aβ), e a ativação poderia ser diminuída com a atividade das fibras nociceptivas7,8. Em 1969, experimentos aumentaram o interesse pela modulação da dor, pois ocorreu a primeira demonstração experimental da existência de mecanismos auto-analgésicos ativos. Nessa demonstração, foi realizada uma cirurgia abdominal em ratos não anestesiados, na qual, para controle da dor, recorreu-se apenas à estimulação elétrica de uma região da substância cinzenta central do tronco cerebral1. Na década de 70, descobriu-se que receptores ligados à membrana de certos neurônios cerebrais tinham grande afinidade com substâncias analgésicas derivadas do ópio1,9. Isso levou à busca da “morfina endógena”, isto é, substâncias produzidas no organismo que poderiam apresentar afinidade pelos receptores opióides situados nas membranas dos neurônios. Essa busca culminou com a identificação não só das encefalinas no tecido cerebral como também da betaendorfina e dinorfina isoladas da hipófise1,8,10. Novos estudos, portanto, passaram a considerar essas substâncias como envolvidas na ativação dos neurônios inibitórios do corno dorsal da medula (FIG. 1)1,8. 20 FIGURA 1 – Diagrama esquemático do sistema de controle da comporta espinhal. SG: substância gelatinosa. 5 Fonte: RANG et al. , p. 488. Um importante sistema que atua no controle da dor é o sistema descendente inibitório. Ele é, provavelmente, ativado pela liberação de peptídeos opióides endógenos, que se ligam a receptores situados na membrana neuronal do sistema descendente9,11. Estudos verificaram que a aplicação de opióide na substância cinzenta periaquedutal (PAG), no núcleo magno da rafe (MRN) e na medula espinhal de animais tem resultado em analgesia8. Isso parece demonstrar a existência de receptores opióides nessas regiões e a participação de substâncias opióides endógenas no sistema descendente inibitório, do qual a PAG, o MRN e a medula espinhal fazem parte8. Esse sistema pode modular e controlar as informações nociceptivas, com provável ativação de sua atividade pelos próprios estímulos nociceptivos6. Dessa forma, um estímulo neural ascendente, transmitido pelas fibras aferentes A-delta e C, pode ativar o mecanismo descendente inibitório da dor pela estimulação da substância 21 cinzenta periaquedutal3. Essa, então, estimula o núcleo magno da rafe e o locus ceruleus que liberam serotonina e noradrenalina como neurotransmissores, respectivamente, que mandam impulsos, por meio das fibras eferentes, para o trato dorsolateral3,12. A serotonina e a noradrenalina fazem, então, sinapse com os interneurônios inibitórios do corno dorsal da medula espinhal, que liberam encefalina para dentro do corno dorsal, inibindo a transmissão sináptica dos impulsos nociceptivos para os neurônios aferentes de segunda ordem (FIG. 2)8. Os impulsos originados nos centros mais altos do sistema nervoso central podem, assim, fechar a comporta e bloquear a transmissão da mensagem da dor, na sinapse do corno dorsal3,4,8,12. FIGURA 2 – Sistema de controle descendente da dor. Neurônios que contêm serotonina (5-HT), encefalina e noradrenalina dirigem-se para o corno dorsal e exercem influência inibitória sobre a transmissão da dor. PAG: substância cinzenta periaquedutal. NRPG: núcleo reticular paragigantocelular. NRM: núcleo magno da rafe. DLF: funículo dorsolateral. LC: locus ceruleus. 5 Fonte: RANG et al. , p. 489. 22 O aumento da sensibilidade para dor, conhecido como hiperalgesia, após injúria cutânea ou inflamação, decorre do aumento da sensibilidade dos nociceptores presentes nos terminais aferentes primários (sensibilização periférica), associado com o aumento da excitabilidade dos neurônios do corno dorsal da medula espinhal, fenômeno conhecido como sensibilização central5,13. Suas características são diminuição do limiar de dor, aumento da sensibilidade para estímulos supralimiares e dor espontânea14. Se ocorrer o abaixamento do limiar a estímulos térmicos, mecânicos ou químicos na região inflamada, isso é denominado hiperalgesia primária e reflete mudanças nas fibras aferentes primárias. Se, entretanto, acontecer ao redor da área inflamada, fora do local da injúria, tal fenômeno reflete aumento na excitabilidade do neurônio central e recebe o nome de hiperalgesia secundária12,15. A sensibilização dos nociceptores se dá na presença de determinados mediadores químicos liberados durante o processo inflamatório, como bradicinina, histamina, serotonina, produtos do ácido araquidônico, citocinas e neuropeptídeos, tais como a substância P e o peptídeo relacionado com o gene da calcitonina – CGRP5,16-18. A substância P e o CGRP são liberados como mediadores nas terminações centrais ou periféricas e, segundo Rang et al.5, têm um importante papel no desenvolvimento da dor. Citocinas são peptídios liberados por uma grande variedade de células em resposta a um estímulo patogênico, químico ou trauma físico5. As citocinas podem ser pró-inflamatórias e induzir hiperalgesia, ou antinflamatórias, que são capazes de inibir a produção das citocinas pró-inflamatórias19,20. Como citocina pró-inflamatória, pode-se 23 citar a interleucina 1 (IL-1), capaz de induzir a síntese de enzimas que produzem prostaglandinas, com conseqüente diminuição do limiar para a sensação dolorosa18. Outros exemplos de citocinas pró-inflamatórias são a IL-6 e o fator de necrose tumoralα (TNF-α). Parece existir correlação entre os níveis de IL-6 e de TNF-α no tecido e a ocorrência de hiperalgesia em seres humanos e em animais18. A serotonina é um neuromediador do sistema nervoso periférico e central. Ela atua também como um mediador inflamatório, que promove o aumento da permeabilidade vascular e da vasodilatação nas primeiras horas da inflamação, dependendo da espécie considerada. A bradicinina, por sua vez, é uma poderosa substância produtora de dor, que atua, em parte, através da liberação de prostaglandinas. Ela age ao combinar-se com receptores específicos, acoplados à proteína G. A histamina é muito menos ativa e tende a causar mais prurido do que dor verdadeira5. As prostaglandinas são mediadores resultantes do metabolismo do ácido araquidônico pela ação da enzima ciclooxigenase (COX)5. Existem duas formas de COX: a COX-1, uma enzima constitutiva, e a COX-2, que é induzida nas células inflamatórias por estímulos inflamatórios. O ácido araquidônico pode ser liberado a partir de fosfolipídios pela ação da fosfolipase A2 (PLA2)5. As prostaglandinas sozinhas não produzem dor, mas potencializam acentuadamente o efeito de outros agentes na produção da dor, como a serotonina ou a bradicinina, ao sensibilizar as fibras C aferentes5. A infusão subcutânea de prostaglandina em baixas concentrações no ser humano é capaz de produzir hiperalgesia, sendo que a bradicinina e a histamina, isoladamente, não induzem hiperalgesia. Quando estas últimas foram adicionadas à 24 prostaglandina, após infusão subcutânea, houve dor bastante significativa21. Para Ferreira e Nakamura22, a hiperalgesia provocada pelas prostaglandinas é dependente dos níveis de monofosfato de adenosina cíclica (AMPc) e cálcio (Ca2+). Segundo esses autores, o aumento intracelular de AMPc é geralmente associado a um aumento da concentração de Ca2+. Outros estudos têm indicado que a sensibilização dos nociceptores estaria relacionada a um balanço neuronal intracelular de AMPc/Ca2+ e monofosfato cíclico de guanosina (GMPc). Substâncias que estimulam o sistema GMPc, que, possivelmente, possui efeito analgésico, ou diminuem o fluxo de Ca2+, relacionado com possível efeito hiperalgésico, podem aumentar o limiar dos nociceptores em tecidos normais ou restabelecer o limiar baixo induzido por estímulos nocivos ou prostaglandinas. Além disso, a administração intraplantar de análogo estável de AMPc, ativador de adenilciclase ou inibidores de fosfodiesterases, aumentam a hiperalgesia mecânica induzida por prostaglandinas22,23. Dessa forma, há um aumento dos níveis de AMPc/Ca2+ no nociceptor, com conseqüente facilitação na passagem do estímulo nervoso22. Contudo, em outro estudo, verificou-se que a nocicepção induzida por estimulação térmica estaria mais envolvida com GMPc que com AMPc24. Os mediadores químicos que provocam sensibilização dos nociceptores existem, normalmente, na forma de precursores inativos no plasma ou são seqüestrados nas células5. A liberação desses mediadores ocorre através de mecanismos citotóxicos, em que a célula é destruída e seu conteúdo de mediadores liberado, ou mediante mecanismos não-citotóxicos, em que os mediadores são ativamente secretados. No entanto, ambos os processos podem também ocorrer simultaneamente25. Tais mediadores agem sobre as terminações nervosas 25 nociceptivas, principalmente sobre os nociceptores C-polimodais, que são terminações nervosas livres ativadas por estímulos mecânicos, físicos ou químicos26,27. Em estudos com animais, muitas vezes é necessária a utilização de uma substância que provoque a hiperalgesia. Dessa forma, pode verificar-se o efeito analgésico da droga ou do recurso fisioterapêutico utilizado. Uma substância muito utilizada como agente flogogênico, nesses estudos, é a carragenina. 1.2 Carragenina Em busca de maior compreensão dos mecanismos envolvidos na inflamação e da realização de estudos sobre drogas e recursos não farmacológicos com potencial analgésico, são realizados experimentos em que se utilizam substâncias flogogênicas como a carragenina. Carragenina (Cg) é um polissacarídeo sulfatado extraído de algas marinhas (Chondrus crispus) muito utilizado em animais de experimentação como estímulo para provocar reação inflamatória aguda28-30. Vários tipos de Cg são encontrados conforme seu teor de sulfato e configuração estrutural. As formas puras são designadas pelas letras gregas: kappa, lambda e iota. A fração lambda da Cg é composta quase toda de D-galactose sulfatada e parece induzir, mais ativamente, as respostas inflamatórias agudas e crônicas, por isso é considerada a mais eficiente29. Gardner31 verificou que a Cg não possui efeitos sistêmicos quando aplicada de forma intra-articular e que apresenta alto grau de reprodutividade de seus efeitos. Em outro estudo, Winter et al.28 introduziu a utilização da Cg como um agente para 26 induzir formação de edema em pata de rato. Segundo ele, a Cg parece conter distintas vantagens sobre outros agentes flogísticos, utilizados em estudos cuja finalidade é de verificar a ação de drogas antinflamatórias. Uma importante vantagem citada é que doses orais únicas de drogas antinflamatórias específicas, em nível não tóxico, são suficientes para demonstrar efeito sobre o processo desenvolvido pela aplicação da Cg. Além disso, a variabilidade é relativamente baixa e produz uma resposta dosedependente nos resultados com razoável grau de precisão. Parece não haver correlação entre a formação do edema e a sensibilidade dos nociceptores32. O tempo de duração do edema provocado pela aplicação da Cg na pata do rato é de seis horas, segundo Di Rosa29, sendo seu pico de hiperalgesia na terceira hora após sua administração30,33. A liberação de mediadores inflamatórios durante o edema agudo provocado pela Cg pode ser dividido em três fases. Na primeira fase, há a mediação de histamina e serotonina (0 – 1 hora e 30 minutos). Na segunda fase, encontra-se a mediação de cininas (1hora e 30 minutos – 2 horas e 30 minutos) e, na terceira fase, possivelmente a mediação de prostaglandinas (2 horas e 30 minutos - 6 horas)29. A dor na inflamação é considerada como o resultado de estimulação sobre o nociceptor, que ativa o influxo de sódio (Na+), com sua conseqüente ativação34. Podem ocorrer também modificações metabólicas, possivelmente associadas ao aumento na concentração de AMPc/Ca2+, que têm o papel de apenas facilitar a ativação do nociceptor34,35. A injeção de Cg parece provocar hiperalgesia, mediada por metabólitos da ciclooxigenase, principalmente as prostaglandinas, que podem estar sensibilizando os tecidos para a ação de aminas e da bradicinina36-38. 27 Por suas características, desde a década de 60, a Cg tornou-se muito usada em experimentos, apesar de não se conhecerem completamente os mecanismos envolvidos nas reações provocadas por ela. Ainda hoje é freqüentemente escolhida como agente pró-inflamatório em testes de drogas antinflamatórias, já que a escolha de novos compostos depende da habilidade dessas drogas em suprimir o edema provocado pela Cg na pata do rato28. Outros trabalhos científicos vêm utilizando a Cg como agente hiperalgésico, a fim de estudar o efeito analgésico de drogas e de recursos terapêuticos como a estimulação elétrica nervosa transcutânea, por exemplo2830,39-42 . Entre as drogas que inibem o desenvolvimento da hiperalgesia induzida pela Cg, pode-se citar a morfina. 1.3 Morfina A morfina é uma substância alcalóide, derivada do ópio que, por sua vez, é uma droga obtida do exsudato de sementes da planta Papaver somniferum. Os efeitos principais da morfina e de outros analgésicos opióides são observados no sistema nervoso central, sendo os mais importantes a analgesia, euforia, sedação e a depressão respiratória43. Entre esses efeitos, pode-se destacar a analgesia, pois a administração de opióide exógeno, como a morfina, é muito utilizada a fim de reduzir a dor43,44. Para exercerem um efeito analgésico, os opióides podem agir modificando tanto o aspecto sensitivo da experiência da dor quanto o emocional43. Os analgésicos opióides são bem absorvidos a partir da administração local subcutânea ou intramuscular, em sua maioria, e também de superfícies mucosas do 28 nariz e boca. Apesar de ter rápida absorção pelo trato gastrintestinal, alguns opióides administrados por via oral estão sujeitos ao metabolismo de primeira passagem no fígado, e necessitam, nesses casos, de doses muito mais altas para a produção de um efeito terapêutico do que a dose parenteral. Essas drogas se ligam a proteínas plasmáticas, como a albumina e alfa-1glicoproteína ácida, ou aos eritrócitos e se distribuem, inicialmente, para os tecidos altamente vascularizados. A barreira hematoencefálica, entretanto, dificulta a passagem de opióides com alto grau de ionização, como a morfina. A excreção pode ser em forma inalterada ou em compostos polares, na maior parte, e são facilmente excretados pelos rins e eliminados através da urina43.44. O efeito analgésico da morfina é basicamente central, embora tenha sido sugerido o envolvimento de mecanismos periféricos na analgesia induzida por essa substância22. Sua ação ocorre como conseqüência da interação com receptores opióides específicos µ (mu), δ (delta) e κ (kappa)8,43,45. Embora os analgésicos opióides atualmente disponíveis, inclusive a morfina, em geral atuem primariamente nos receptores µ, essa ação pode induzir a liberação de opióides endógenos, que, por sua vez, atuam nos receptores κ e δ43. Os receptores µ, δ e κ estão localizados em diversas regiões do sistema nervoso central e também no sistema nervoso periférico. Participam na transmissão da sensibilidade dolorosa, assim como nos sistemas descendentes inibitórios que modulam e controlam a informação nociceptiva8,45. Os receptores para opióides são encontrados no corno dorsal da medula espinhal (lâminas I e II), núcleo trigêmeo medular, tálamo, hipotálamo, substância 29 periaquedutal cinzenta, núcleos da rafe, na região ventral superior do bulbo e da ponte, locus ceruleus e em terminações periféricas de fibras aferentes43,44,46,47. Segundo Kraychete44, esses receptores também podem ser encontrados nas amígdalas e córtex cerebrais, hipocampo, núcleo caudado e globo pálido, medula supra-renal, plexos nervosos e glândulas exócrinas do estômago e intestino, o que sugere a participação dos opióides na regulação do comportamento motor, afetivo, neurovegetativo e neuroendócrino. Segundo Elliott e Pasternak48, os opióides aliviam a dor por meio de mecanismos periféricos, espinhais e supra-espinhais. Os receptores opióides estão ligados, em nível molecular, à proteína G inibitória, inibindo a adenilciclase e provocando uma diminuição dos níveis de AMPc. São, portanto, capazes de afetar a regulação iônica, a disponibilidade do Ca2+ intracelular e a fosforilação de proteínas. Os opióides podem inibir a passagem do estímulo nervoso, hiperpolarizando as membranas celulares pré ou pós-sinápticas. Isso ocorre pela redução da entrada de Ca2+, ou seja, pelo fechamento do canal de Ca2+, regulado por voltagem nas terminações nervosas pré-sinápticas ou pelo aumento da saída de potássio (K+) do meio intracelular43,44. Segundo Ferreira e Nakamura35, o efeito analgésico periférico da morfina é, provavelmente, causado pela inibição da atividade da adenilciclase. Bonnet e Gusik49 verificaram que concentrações fisiológicas de Ca2+ são necessárias para os opióides inibirem a atividade da adenilciclase. Isso representa, possivelmente, uma função de ligação entre o Ca2+ e os opióides50. Por outro lado, o aumento do nível de Ca2+ pode estar associado com o aumento da sensibilidade dolorosa. O aumento do Ca2+ intracelular tem sido considerado essencial para a percepção da dor, e sua diminuição pode resultar em analgesia50. Em estudo posterior, 30 realizado pelos mesmos autores, essa associação foi demonstrada com a aplicação da injeção intracerebroventricular, de cálcio, em camundongos51. Outra ação neurotransmissores dos opióides excitatórios é como a sua influência acetilcolina, na liberação noradrenalina, de serotonina, substância P e dopamina, contidos nas vesículas pré-sinápticas6. Isso ocorre pela diminuição de Ca2+ nas frações sinápticas provocada pelos opióides, uma vez que Ca2+ é necessário para liberação desses neurotransmissores. Pert e Yaksh52 verificaram, em estudo com macacos, os locais de ação da morfina, quando administrada no cérebro. Foi observada, neste trabalho, resposta analgésica dose-dependente da morfina, quando administrada na substância cinzenta periaquedutal-periventricular, regiões próximas do núcleo reticular lateral do tronco cerebral, acima da substância negra, na região dorsolateral do núcleo rubro e dentro das bordas laterais do núcleo centromediano e parafascicular do tálamo. Os efeitos obtidos durante o estudo foram antagonizados pela naloxona, um antagonista opióide puro. Outros autores, em estudos com ratos, observaram indução da analgesia com a administração da morfina dentro da substância cinzenta periaquedutal, no núcleo magno da rafe, no núcleo reticular gigantocelular e no núcleo reticular paragigantocelular. Nesse caso, também houve reversão dos efeitos obtidos com a aplicação da naloxona53. 1.3.1 Mecanismo de tolerância à morfina Com o uso crônico da morfina, há o desenvolvimento da tolerância que é detectada pela diminuição na duração da ação analgésica e é superada com um 31 aumento da dose utilizada48,54-57. Tolerância é um estado no qual doses cada vez maiores da mesma substância são necessárias para obtenção de um efeito terapêutico desejado44. A tolerância cruzada, por sua vez, acontece quando pacientes que se tornam tolerantes à morfina também apresentam tolerância a outros agonistas opióides. Juntamente com a tolerância, pode-se verificar o desenvolvimento de dependência física, que é definida pela ocorrência de uma síndrome de abstinência característica quando se interrompe a droga ou é administrado um antagonista específico44. Os sintomas da abstinência da morfina se iniciam após 6 a 10 horas de não-uso e atingem o pico em 36 horas após a última administração da droga44. Embora o mecanismo do desenvolvimento da tolerância e da dependência física não estarem totalmente conhecidos, a ativação persistente de receptores µ parece desempenhar um papel importante58-60. Acredita-se, também, que o mecanismo envolva uma resposta celular associada a alterações em sistemas de segundos mensageiros, incluindo, nesse caso, inibição da adenilciclase e, conseqüentemente, a redução da formação de AMPc. A diminuição do AMPc, por sua vez, ativa a proteína cinase C (PKC), que fosforila a G1 glutamil transpeptidase acoplada ao receptor µ43. Como conseqüência da atividade intensificada da adenilciclase, verifica-se aumento da liberação do GABA (ácido gama-aminobutírico) no tronco cerebral e do AMPc, caso haja aumento da PKC43,44. Conforme Kraychete44, pode-se inferir que, no mecanismo intracelular da tolerância, há uma hiperexcitabilidade das células do corno dorsal da medula espinhal, semelhante ao que ocorre para a transmissão do estímulo doloroso. Para se observar a tolerância induzida pela morfina, Siuciak e Advokat61 administraram essa substância de forma crônica na substância cinzenta periaquedutal 32 (PAG) de ratos. Esses animais, além de desenvolverem tolerância à ação da morfina injetada na PAG, apresentaram também uma tolerância à ação da morfina após sua administração aguda por via intraperitoneal61. Em outro experimento, a tolerância à morfina foi desenvolvida por administração crônica, via intraperitoneal. Quando esta foi administrada na substância cinzenta periaquedutal, observou-se tolerância cruzada62. Delander et al.58 verificaram a participação de receptores opióides µ da medula espinhal no desenvolvimento da tolerância induzida pela morfina administrada por via sistêmica. Um antagonista específico do receptor µ (β-funaltrexamine - β-FNA) foi administrado antes da administração sistêmica aguda de morfina, conseguindo antagonizar seu efeito analgésico. Observou-se também que o pré-tratamento com βFNA impediu o desenvolvimento de tolerância induzida pela morfina. No entanto, o prétratamento com β-FNA intratecal não antagonizou a analgesia da morfina na região intracerebroventricular. Verificou-se, em estudo experimental, que a microinjeção de Ca2+ na substância cinzenta periaquedutal de ratos conseguiu diminuir os efeitos analgésicos da morfina, lantânio, β-endorfina e encefalina sintética63. Em outro estudo, a administração aguda de morfina por via subcutânea foi capaz de diminuir os níveis de Ca2+ na fração sinaptosomal das terminações nervosas e nas vesículas sinápticas de cérebro de camundongos e ratos, enquanto a indução da tolerância à morfina aumentou os níveis de Ca2+, na fração sinaptosomal64. Resende33 estudou a participação dos níveis de cálcio na tolerância ao efeito analgésico induzido pela morfina, utilizando um bloqueador de canais de Ca2+, conhecido como verapamil®. Os resultados encontrados sugerem que o cálcio está 33 envolvido no processo de tolerância ao efeito analgésico da morfina, ao lado do AMP-c. Os níveis de Ca2+ e AMP-c seriam diminuídos após uma dose analgésica de morfina e, com a administração das doses subsequentes, seus níveis seriam aumentados. Isso tornaria necessário o aumento da dose utilizada de morfina no tratamento crônico para que a analgesia continue a ser obtida. Segundo o autor, substâncias capazes de controlar os níveis de cálcio intracelular poderiam impedir o desenvolvimento do processo de tolerância aos opióides, constituindo-se, assim, num valioso recurso terapêutico. A naltrexona, naloxona e nalmefeno são antagonistas puros, estruturalmente relacionados à morfina e derivados desta, que exibem afinidade relativamente alta pelos sítios de ligação de opióides µ. Apesar de possuírem menor afinidade pelos outros receptores, também podem atuar em receptores δ e κ43,44. São utilizados com a finalidade de antagonizar os efeitos opióides e não apresentam ocorrência de tolerância nem dependência à ação antagonista43. Além de drogas como a morfina, outros procedimentos terapêuticos não farmacológicos também podem induzir analgesia. Entre esses procedimentos, encontrase a estimulação elétrica nervosa transcutânea. 1.4 Estimulação Elétrica Nervosa Transcutânea A Estimulação Elétrica Nervosa Transcutânea (TENS, do inglês Transcutaneous Electrical Nerve Stimulation) é a aplicação de corrente elétrica na pele 34 para controle da dor, sendo considerada um recurso barato, seguro, não invasivo e de fácil uso, muito utilizado para o controle da dor aguda e crônica12,30. Em torno do ano 46 d.C., uma forma primitiva de estimulação elétrica, com enguias ou peixes que produzem descargas elétricas, era utilizada para o tratamento de determinadas enfermidades10. Há também relatos da utilização da estimulação elétrica desde o século dezenove por médicos e dentistas como recurso analgésico e anestésico12. Apesar disto, a TENS só foi completamente aceita em 1967 após publicação do estudo de Wall e Sweet65, realizado a partir da teoria da comporta espinhal proposta por Melzack e Wall7. Utilizado há mais de 30 anos como agente analgésico, o mecanismo de analgesia provocado pela TENS ainda não está totalmente esclarecido12. Entretanto, a TENS é utilizada na clínica com diferentes freqüências, intensidades e durações de pulso. As freqüências, internacionalmente conhecidas, são a alta freqüência (maior que 50 Hz), a baixa freqüência (menor que 10 Hz) e “burst” que é a modulação em trens de pulso de alta freqüência de estimulação (50 a 160 Hz), aplicados com baixa freqüência (2 Hz)12. Esses parâmetros de aplicação podem afetar a eficiência da TENS quando manipulados66-68. A intensidade da TENS pode ser utilizada no nível sensorial ou motor. No nível sensorial, a intensidade da corrente (amperagem) respeitará sempre a tolerância do indivíduo, que relatará sua percepção do estímulo aplicado10. Ele deverá sentir um formigamento confortável, quando submetido à alta freqüência, ou uma sensação de batimentos leves sem contração muscular, quando submetido à baixa freqüência. No nível motor, entretanto, a intensidade da TENS é aumentada para produzir uma contração muscular. Na clínica fisioterapêutica, utiliza-se muito a TENS convencional 35 (alta freqüência, aplicada em baixa intensidade) e a TENS tipo-acupuntura ou forte (baixa freqüência, aplicada em alta intensidade com contração muscular). A duração do pulso tem sido utilizada na clínica fisioterapêutica de 50 a 100 µs, quando aplicada TENS de alta freqüência, e de 100 a 400 µs, em TENS de baixa freqüência69. Em estudos experimentais, a duração do pulso de 100 a 120 µs tem demonstrado a capacidade de propiciar um máximo acoplamento às fibras A-β e mínimo às fibras C e motoras10. A teoria da comporta espinhal é a mais freqüentemente utilizada para explicar a analgesia induzida pela TENS12. Conforme essa teoria, a estimulação das fibras de largo diâmetro A-beta, pela TENS, provocaria uma inibição da passagem do estímulo doloroso vindo das fibras nociceptivas A-delta e C7,8. Isso ocorreria pela ativação de interneurônios inibitórios na medula espinhal, os quais fechariam o portão para que os estímulos nociceptivos não fossem transmitidos para as regiões supraespinhais12. Essa teoria originalmente sugeriu também a existência de vias descendentes inibitórias, influenciando os interneurônios localizados na medula espinhal8,12. Em estudo realizado por Wall e Sweet65, demonstrou-se que a estimulação elétrica de alta freqüência, utilizada numa intensidade capaz de ativar as fibras aferentes de grande calibre, conseguiu reduzir a dor neuropática em oito pacientes12,66. Alguns estudos verificaram que a estimulação elétrica de determinadas regiões do cérebro de animais pode também provocar analgesia. Um grupo de pesquisadores observou analgesia em gatos por meio da estimulação elétrica da substância cinzenta periaquedutal, a qual foi mais significativa quando estimulada a porção ventral70. Em 36 outro estudo, concluiu-se que a estimulação elétrica da substância cinzenta central do mesencéfalo e da substância periventricular cinzenta resultou na ativação de substâncias endógenas que inibiram a transmissão de informação nociceptiva. Estes dados sugerem, segundo os autores, que estímulos somatosensoriais devem ter influência no sistema de controle da dor71. Inicialmente, a liberação de opióides endógenos foi utilizada para explicar apenas a ação da TENS de baixa freqüência. Dados recentes já dão suporte a essa teoria tanto para a baixa quanto para a alta freqüência da TENS12. Estudos verificaram aumento das concentrações de β-endorfina no fluido cerebroespinhal de sujeitos saudáveis, após administração de baixa ou alta freqüência da TENS72,73. Outro estudo constatou aumento da met-encefalina, um agonista opióide δ, e dinorfina A, um agonista opióide κ, no fluido cerebroespinhal lombar de pacientes tratados com baixa ou alta freqüência da TENS, respectivamente74. Esses dados sugerem que vários opióides endógenos e seus receptores devem estar envolvidos na analgesia induzida pela TENS12. Estudo recente mostrou que a TENS de baixa e alta freqüência é eficaz em reduzir a hiperalgesia primária, mas não o edema induzido pela Carragenina (Cg)30. Em outro estudo, foi verificado que a TENS será mais eficaz em reduzir a hiperalgesia primária se for aplicada em combinação com a administração aguda de morfina ou clonidina39,75. De acordo com Gopalkrishnan e Sluka76, TENS de alta freqüência reduziu a hiperalgesia primária ao estímulo térmico e mecânico, diferentemente da TENS de baixa freqüência que foi ineficaz. 37 A TENS utilizada em alta freqüência reduziu a dor de indivíduos submetidos a cirurgias torácicas e abdominais. A obtenção da analgesia possibilitou maior adesão ao tratamento, fator fundamental para se atingirem os objetivos terapêuticos e funcionais do atendimento fisioterapêutico, o que resulta, portanto, numa facilitação do processo de recuperação do paciente10. Trabalhos publicados recentemente demonstraram que o aumento da atividade dos neurônios do corno dorsal da medula espinhal foi reduzido após o tratamento com TENS de alta e baixa freqüência por 20 minutos77-79. Isso ocorre principalmente nos neurônios de amplo espectro e alto limiar, situados no corno dorsal da medula espinhal77,78. O aumento da atividade dos neurônios nesses trabalhos foi provocado pela sensibilização dos receptores periféricos por kaolin e carragenina, dois modelos-padrão utilizados no estudo da dor inflamatória77,80,81. Segundo Leem et al.79, TENS reduziu a resposta dos neurônios do corno dorsal da medula a estímulos mecânicos nocivos em animais com dor neuropática, ou não. A resposta a estímulos mecânicos não nocivos apenas foi inibida em animais com dor neuropática. Alguns trabalhos têm demonstrado que a analgesia obtida pela TENS de baixa freqüência foi revertida pelos antagonistas opióides naloxona e naltrexona, em seres humanos e animais, o que não ocorreu com a TENS de alta freqüência30,82. Outros trabalhos demonstraram que a TENS de baixa e alta freqüência induziram ação analgésica pela liberação de opióides endógenos mediado por receptores opióides mu e delta respectivamente83-85. Existem estudos também sobre a redução do uso de opióides em pacientes que estão sendo tratados com a TENS. Esse tipo de tratamento reduz os efeitos colaterais como a náusea, a tontura e o prurido que estão associados ao uso da morfina39,86-88. 38 Como morfina e TENS de baixa freqüência induzem analgesia mediada por receptor µ e são muito utilizadas de forma associada na clínica fisioterapêutica, é provável que a TENS de baixa freqüência fique menos efetiva em uma situação de tolerância à morfina. Essas constatações sugerem que se um paciente em uso crônico de morfina desenvolver tolerância a essa droga, os parâmetros para que a TENS seja efetiva podem diferir dos usados em pacientes que não desenvolveram tolerância ao opióide. 1.5 Objetivo O objetivo deste estudo foi detectar e comparar o efeito analgésico da estimulação elétrica nervosa transcutânea de baixa e alta freqüência sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina, após o desenvolvimento de tolerância à morfina. 39 2. MATERIAIS E MÉTODOS 2.1 Animais de experimentação Foram utilizados ratos Holtzman, machos, com peso que variou entre 160 e 180g, fornecidos pelo CEBIO (Centro de Bioterismo do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG). Cada procedimento experimental foi constituído por 3 a 6 grupos de animais. Cada grupo foi composto por 4 a 10 animais, os quais foram agrupados de forma aleatória, perfazendo um total de aproximadamente 140 animais utilizados em todo o trabalho. O estudo experimental iniciou-se somente após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa Animal (CETEA/UFMG, ANEXO 1). 2.1.1 Ambientalização dos animais Os animais permaneceram na sala de experimentação por dois a três dias antes da realização dos experimentos, em caixas contendo 4 animais, com livre acesso à água e ração, ciclo claro-escuro de 12 horas e temperatura controlada (23 a 25° C). Esses animais foram submetidos, diariamente, ao aparelho analgesimétrico para adaptação. 40 2.2 Medida da hiperalgesia – teste nociceptivo Para a medida da hiperalgesia, foi utilizado o teste de compressão da pata do rato, descrito, originalmente, por Randall e Selitto89. Esses autores desenvolveram uma técnica para medir a atividade antinociceptiva, baseada no princípio de que a inflamação aumenta a sensibilidade ao estímulo nociceptivo mecânico e que essa sensibilidade aumentada é susceptível de ser modificada por drogas. O aparelho utilizado para a realização do teste foi o analgesímetro da Ugo Basile® (Italy). Durante o teste, o animal foi mantido na posição horizontal sobre a bancada e com o dorso voltado para o aparelho. Para a realização da medida da hiperalgesia, a superfície plantar da pata posterior do animal foi colocada no aparelho entre uma superfície plana, sobre a qual se apoiava a pata do animal, e um dispositivo cônico, que é o responsável pela aplicação da pressão (FIG. 3). FIGURA 3 – Analgesímetro. Obtenção das medidas de hiperalgesia. 41 Após o acionamento do pedal pelo examinador, pressões crescentes eram aplicadas na superfície plantar da pata do animal a uma taxa constante de 31 g/s, atingindo, no máximo, o peso de 500 g. A retirada reflexa da pata pelo animal indicava o término do teste (limiar nociceptivo para retirada da pata, em gramas), que era precedida, eventualmente, por uma fasciculação no dorso do animal sensível ao tato pelo examinador. Foi necessário treinamento do experimentador para que este conseguisse diferenciar entre as reações de fuga do animal, como enrijecimento do corpo ou movimentos intensos da cabeça, e a reação nociceptiva propriamente dita90. Neste trabalho, todos os testes foram realizados pelo mesmo experimentador. No presente estudo, considerou-se que quanto maior a hiperalgesia apresentada pelo animal, menor foi o peso necessário para provocar que a pata fosse retirada do analgesímetro. O resultado de cada animal foi obtido pela diferença de pressão (em gramas) entre a pata direita (na qual foi injetada a carragenina) e a pata esquerda (na qual se injetou salina fisiológica estéril). Dessas diferenças, obtiveram-se os resultados apresentados como média ± o erro padrão da média (e.p.m.) de cada grupo experimental. Quanto maior o valor negativo no eixo da ordenada, maior a intensidade da resposta hiperalgésica do animal90. 2.3 Substâncias utilizadas As substâncias utilizadas neste estudo foram carragenina (Carrageenan, Sigma®, E.U.A.), morfina (Morphinium chloride powder, Merck®, Germany), naltrexona (Naltrexone hydrochloride, Sigma®, Germany) e solução salina fisiológica (NaCl 0,9%). 42 2.4. Administração das substâncias As substâncias foram diluídas em solução salina fisiológica estéril (NaCl 0,9%). A diluição foi feita de acordo com o peso dos animais, de modo que o volume injetado por via subcutânea fosse próximo de 1,0 ml. O volume das injeções intraplantares de carragenina e salina foi de 0,1ml. 2.5 Procedimento experimental Foram obtidas curvas de hiperalgesia, após administração da Cg nas doses de 100, 250 e 500 µg/0,1 ml/pata para a determinação da concentração ótima da Cg a ser utilizada nos experimentos. O agente flogogênico foi administrado por via intraplantar, na pata posterior direita do rato no tempo zero (Cg 0,1 ml/pata), sendo que na pata contralateral foi administrado o mesmo volume de solução salina. Posteriormente, foi feita a medida da hiperalgesia, utilizando-se o teste de RandallSelitto89. O pico da hiperalgesia inflamatória decorrente da injeção da carragenina ocorreu na 3ª hora após a sua administração30. Entretanto, era importante a comparação da hiperalgesia nos diferentes tempos. Por isso, as medidas foram realizadas no tempo zero e após a administração do agente flogogênico nos tempos 1, 2, 3, 4, 6 e 24 horas. Como não se verificou nenhum efeito da Cg na 24ª hora, as medidas nos demais experimentos foram realizadas até a 6ª hora. A dose de 250 µg/0,1 ml foi a escolhida para ser utilizada nos próximos experimentos. 43 Para a indução da analgesia, um aparelho de TENS – Neurodyn III/Ibramed®, disponível comercialmente, foi utilizado. Os parâmetros da aplicação da TENS foram de baixa (10 Hz) e de alta freqüência (130 Hz), e a intensidade foi aumentada até atingir o nível motor e, em seguida, reduzida para o nível sensorial77. A duração do pulso foi fixada em 130 µs, conforme estudo anterior30. Um par de eletrodos foi especialmente construído para a estimulação elétrica com 1 cm² de tamanho. Um eletrodo foi fixado na face plantar e outro na face dorsal da pata posterior direita do animal, sobre o local da hiperalgesia, que foi estimulada por 20 minutos com TENS . Os parâmetros escolhidos para este estudo experimental são semelhantes aos utilizados na clínica fisioterapêutica. A fim de evitar a destruição dos eletrodos pelos animais, foi necessária a utilização de um chapéu confeccionado em cartolina e colocado ao redor da cabeça desses animais durante a aplicação da TENS. Assim eles podiam se movimentar livremente na caixa (30x20 cm) durante a estimulação elétrica (FIG. 4). FIGURA 4 – Aplicação da estimulação elétrica nervosa transcutânea. 44 Em um primeiro momento, foi realizado um estudo do efeito analgésico da TENS sobre a atividade pró-inflamatória da Cg. Esta foi administrada na pata direita posterior do rato e, 2 horas e 30 minutos após a sua administração, os animais foram tratados com TENS de baixa ou alta freqüência por 20 minutos. Os animais controles receberam Cg, mas não foram tratados com a TENS, para fins de comparação. Em outro experimento, grupos de animais receberam uma substância antagonista de receptor opióide µ (naltrexona), 2 horas após a administração da Cg. Esses mesmos animais, foram submetidos à TENS de baixa e alta freqüência, às 2 horas e 30 minutos, para o estudo do mecanismo da ação analgésica das diferentes freqüências da TENS. Foi realizado também um estudo para determinar a melhor dose de morfina a ser utilizada durante o procedimento experimental. Após a administração de 2,5; 5,0 e 10 mg/Kg de morfina por via subcutânea, a analgesia foi medida com a utilização do teste de Randall-Selitto89. Esse procedimento indicou a dose de escolha de 10 mg/Kg para a indução de tolerância à morfina e a sua associação com TENS de baixa e alta freqüência. O tratamento crônico com a morfina foi realizado através de duas administrações diárias de 10 mg/Kg de morfina, com no mínimo oito horas de intervalo entre uma injeção e outra, durante sete dias, conforme protocolo experimental obtido em estudo anterior33. Para o estudo da tolerância à morfina, os animais tratados com morfina crônica receberam, no 8º dia, a carragenina na dose de 250 µg/0,1 ml. Um grupo de animais foi tratado com TENS de alta freqüência, outro grupo com TENS de baixa freqüência e um terceiro grupo recebeu morfina aguda (10 mg/Kg, sc), 2 h e 30 min 45 após a carragenina. Animais controles receberam morfina na mesma dose, por via subcutânea e, no outro grupo, foi injetado o mesmo volume de salina, pela mesma via, para fins de comparação. 2.6. Análise estatística Primeiramente, foi realizada a análise da distribuição normal das variáveis. Como apresentaram distribuição normal, todos os dados foram expressos como média e erro padrão da média (X±e.p.m.) e foram analisados pelo teste ANOVA (One-Way). Para verificar entre quais variáveis ocorreu a diferença estatisticamente significativa, foi feito um teste post hoc (teste de Bonferroni), sendo estabelecido como nível de significância p<0,05. O programa estatístico utilizado foi o SPSS (Statistical Pakage for Social Sciences), versão 10.0. 46 3. RESULTADOS 3.1 Curva de desenvolvimento da hiperalgesia, após administração intraplantar da carragenina Com o objetivo de verificar o desenvolvimento da hiperalgesia na pata dos ratos, a carragenina foi administrada nas doses de 100, 250 e 500 µg/pata, no tempo zero (índice de hiperalgesia = 0). Os resultados deste estudo mostraram uma hiperalgesia dose-dependente induzida pela carragenina. Como pode ser verificado na FIG. 5, a hiperalgesia atingiu seu pico na 3ª hora após a administração da carragenina, permanecendo até a 6ª hora e retornando às condições basais na 24ª hora. 20 10 T em p o (h ) 0 4 8 12 16 20 24 -1 0 Hiperalgesia (g) -2 0 -3 0 -4 0 -5 0 -6 0 * * * * * * * * * * C * -7 0 * C g 100 C g 250 C g 500 -8 0 -9 0 -1 0 0 * -1 1 0 FIGURA 5 – Curva de desenvolvimento da hiperalgesia após a administração da carragenina (Cg) na pata do rato. Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 5 animais/grupo. C: grupo controle (salina/Ipl). * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. 47 3.2 Curva dose-resposta da morfina, após administração intraplantar de carragenina Para avaliar a analgesia provocada, diferentes doses de morfina (2,5; 5,0 e 10,0 mg/kg) foram administradas por via subcutânea 2 h e 30 minutos após a injeção de 250µg de carragenina. Para fins de comparação, os animais controles receberam solução salina pela mesma via de administração do grupo experimental. Conforme podemos verificar na FIG. 6, morfina nas doses utilizadas induziu analgesia de forma dose-dependente. 10 0 M * * 4 * * Hiperalgesia (g) -1 0 * 8 12 16 20 24 T em p o ( h ) -2 0 -3 0 -4 0 -5 0 -6 0 * * M 10 ,0 M 5 ,0 M 2 ,5 C -7 0 -8 0 FIGURA 6 – Analgesia dose-dependente de morfina (M) sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina (Cg) na pata do rato. Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 5 animais/grupo. C: grupo controle (salina). Cg: 250 µg/Ipl. * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. O efeito analgésico ocorreu meia hora após a administração da morfina, ou seja, na 3ª hora da aplicação da carragenina, e permaneceu até a 6ª hora, retornando às condições basais na 24ª hora após a injeção da carragenina. 48 3.3 Efeito da estimulação elétrica nervosa transcutânea de baixa e alta freqüência na hiperalgesia induzida pela carragenina Este estudo foi realizado a fim de verificar o efeito de duas freqüências distintas da TENS (10 Hz e 130 Hz) sobre a hiperalgesia provocada pela carragenina (250 µg/Ipl). Tanto a baixa como a alta freqüência da TENS reverteram completamente a hiperalgesia na 3ª hora, indicando o efeito analgésico induzido pelas duas freqüências da TENS. Entretanto, em animais tratados com a TENS de baixa freqüência observouse um efeito analgésico mais duradouro, que foi detectado até a 6ª hora após a injeção da carragenina (FIG. 7). T ENS 10 Hiperalgesia (g) 2 -1 5 * * * 4 Tempo (h) 6* -4 0 -6 5 TE NS BF TE NS AF -9 0 C FIGURA 7 – Efeito da baixa (BF) e alta (AF) freqüência da TENS sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina (Cg) na pata do rato. Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 6 a 8 animais/grupo. C: grupo controle. Cg: 250µg/Ipl. * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. 49 3.4 Efeito da naltrexona sobre a analgesia induzida pela baixa e alta freqüência da estimulação elétrica nervosa transcutânea Para observar o efeito de um antagonista opióide sobre a analgesia induzida pela baixa e alta freqüência da TENS, naltrexona foi administrada por via subcutânea na dose de 3,0 mg/Kg, 2 horas após a injeção da carragenina, e a TENS de baixa e alta freqüência, 2 h e 30 min depois da administração da carragenina. Conforme podemos verificar nas FIG. 8A e 8B, o efeito analgésico da TENS de baixa freqüência foi totalmente revertido na 3ª, 4ª e 6ª horas após a carragenina, o que não alterou a analgesia provocada pela TENS de alta freqüência. Dos grupos controle (C), um recebeu salina e TENS de baixa freqüência, outro recebeu salina e TENS de alta freqüência. Ambos apresentaram diferença estatísticamente significativa quando comparados com o grupo experimental. Hiperalgesia (g) Nx T 10 -15 * 2 * 4 Tempo (h) * 6 -40 -65 -90 C Nx e TENS BF Cg FIGURA 8A - Efeito analgésico da TENS (T) de baixa freqüência (BF) sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina (Cg) na pata do rato, após o tratamento com naltrexona (Nx). Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 4 a 10 animais/grupo. C: grupo controle (SAL+TENS BF). Cg: 250 µg/Ipl * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. 50 Nx T Hiperalgesia (g) 10 -15 -40 -65 -90 2 * Tempo (h) 4 6 * C Nx e TENS AF Cg FIGURA 8B – Efeito analgésico da TENS (T) de alta freqüência (AF) sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina (Cg) na pata do rato, após o tratamento com naltrexona (Nx). Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 4 a 10 animais/grupo. C: grupo controle (salina+TENS AF). Cg: 250 µg/Ipl * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. 3.5 Efeito da naltrexona sobre a analgesia induzida pela morfina A fim de verificar o efeito do antagonista opióide naltrexona (3,0 mg/kg) administrado por via subcutânea, sobre a analgesia induzida pela morfina (10 mg/kg/sc), foi proposto o próximo estudo. Conforme mostrado na FIG. 9, o efeito analgésico da morfina foi totalmente revertido em animais pré-tratados com naltrexona. O grupo controle (C1), tratado com solução salina e morfina, quando comparado com os demais grupos apresentou uma analgesia estatisticamente significativa na 3ª e 4ª horas após injeção da Cg. 51 Hiperalgesia (g) Nx M * 10 -15 2 * 4 Tempo (h) 6 -40 -65 -90 C1 C2 Nx e M FIGURA 9 – Efeito da morfina (M) sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina (Cg) na pata do rato, após o tratamento com naltrexona (Nx). Controle 1 (salina e morfina). C2: controle 2 (salina e salina). Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 4 animais/grupo. Nx: 3 mg/kg, M: 10 mg/kg, Cg: 250 µg/Ipl. * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. 3.6 Efeito da estimulação elétrica nervosa transcutânea de baixa e alta freqüência sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina, após o desenvolvimento de tolerância à morfina Este experimento teve como objetivo verificar o efeito da baixa e alta freqüência da TENS (10 Hz e 130 Hz) sobre a hiperalgesia induzida pela carragenina em animais tolerantes à morfina. Após a administração crônica de morfina conforme descrito no item 2.5, os animais foram tratados no 8º dia com TENS de baixa e alta freqüência, 2 h e 30 min após a injeção da carragenina. Conforme podemos observar nas FIG. 10A e 10B, houve total redução da atividade analgésica provocada pela TENS de baixa freqüência, enquanto a TENS de alta freqüência continuou induzindo analgesia. 52 TENS MA Hiperalgesia (g) 10 -15 * 2 * Tempo (h) 4 6 -40 -65 C1 MC e TENS BF -90 MC e MA C2 FIGURA 10A – Efeito da TENS de baixa freqüência (BF) em ratos tolerantes à morfina, após indução de hiperalgesia pela carragenina (Cg). C1: controle 1 (salina crônica e morfina aguda). C2: controle 2 (salina crônica e salina). MC: administração crônica de morfina. MA: administração aguda de morfina. Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 6 a 10 animais/grupo. Cg: 250 µg/Ipl. * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. T EN S MA Hiperalgesia (g) 10 -1 5 -4 0 -6 5 2 * * Tempo (h) 4 6 C1 MC e TE NS A F MC e MA -9 0 C2 FIGURA 10B – Efeito da TENS de alta freqüência (AF) em ratos tolerantes à morfina, após indução de hiperalgesia pela carragenina (Cg). C1: controle1 (salina crônica e morfina aguda). C2: controle 2 (salina crônica e salina). MC: administração crônica de morfina. MA: administração aguda de morfina. Cada ponto representa a média ± e.p.m. de 6 a 10 animais/grupo. Cg: 250 µg/Ipl. * indica diferença estatisticamente significativa para p<0,05. 53 O grupo controle (C1) recebeu, durante 7 dias, salina e, no 8ª dia, injeção de morfina. Os resultados apresentaram uma diferença estatisticamente significativa na 3ª e 4ª horas, quando comparados com os resultados dos animais que receberam morfina crônica e, no dia do experimento, injeção de morfina (MA). 54 4- DISCUSSÃO Em sua prática profissional, o fisioterapeuta tem à sua disposição uma grande variedade de recursos terapêuticos para serem utilizados no controle da dor. Entre os recursos utilizados pelo fisioterapeuta, um dos mais indicados é a estimulação elétrica nervosa transcutânea. Em determinadas condições clínicas, a dor torna-se um obstáculo para a realização de um exame físico adequado ou mesmo para a execução de um programa de exercícios terapêuticos. Nesses casos, o controle da dor com uso da TENS é de fundamental importância para que o paciente possa realizar outras modalidades terapêuticas, com o objetivo de recuperar a função dos segmentos corporais comprometidos e melhorar a sua qualidade de vida12,91. Apesar de a TENS ser utilizada há mais de 30 anos no controle da dor, os mecanismos envolvidos na analgesia obtida com a TENS ainda são pouco conhecidos. A pesquisa na área básica é necessária para superar algumas falhas observadas em pesquisas com seres humanos. É possível nos estudos com animais não só a minimização do efeito placebo, como também um maior controle do tipo e da extensão da lesão induzida, a aplicação constante da TENS entre os animais e ainda o estudo dos mecanismos neurobiológicos envolvidos na analgesia provocada pela TENS12. Os resultados deste estudo demonstraram que a carragenina administrada na pata do rato foi capaz de provocar uma resposta hiperalgésica dose-dependente, sendo que o pico da hiperalgesia foi observado na 3ª hora após a administração dessa substância. Esses resultados estão de acordo com alguns estudos anteriores, que também utilizaram a carragenina como estímulo para induzir reação inflamatória aguda 55 na pata do rato, utilizando o método de Randall-Selitto30,41,92. Além disso, pudemos observar que o aparelho analgesimétrico foi sensível e confiável para detectar a hiperalgesia das diferentes doses utilizadas de carragenina (100 µg, 250 µg e 500 µg). Após a verificação de que a hiperalgesia induzida pela carragenina não foi detectada na 24ª hora após a administração dessa substância, optou-se por realizar os experimentos até a 6ª hora. A dose escolhida para ser utilizada nos próximos experimentos foi a de 250 µg/pata, por ter sido bem detectada pelo pesquisador, sem, contudo, produzir uma hiperalgesia exacerbada30,92. No presente estudo, verificou-se também a melhor dose de morfina, uma substância opióide, a ser utilizada nos estudos subsequentes. Morfina nas doses de 2,5; 5,0 e 10,0 mg/Kg, administradas por via sistêmica, induziram resposta analgésica dose-dependente. Esses resultados também estão de acordo com estudos prévios, que avaliaram o efeito analgésico da morfina após administração da carragenina na pata do rato33,39,92. A dose de 10,0 mg/Kg foi suficiente para antagonizar todo o efeito hiperalgésico da carragenina 250 µg/pata. Dessa forma, a dose de 10,0 mg/Kg foi escolhida para a indução da tolerância à morfina. Para avaliar se a TENS de baixa e alta freqüência seria capaz de alterar a hiperalgesia provocada pela carragenina, os animais foram tratados com a TENS durante 20 min, 2 h e 30 min após injeção da carragenina. Os achados mostraram que tanto a TENS de baixa como a de alta freqüência foram eficientes em reverter a hiperalgesia da carragenina. Desse modo, nossos resultados confirmam os de outros estudos, indicando que tanto a TENS de baixa como a de alta freqüência provocam analgesia quando aplicadas na pata do rato, após injeção de carragenina30,76. 56 Além disso, quando se compararam os resultados da aplicação da TENS de baixa e de alta freqüência, foi observado que a TENS de baixa freqüência induziu uma analgesia mais duradoura, visto que esta permaneceu da 4ª a 6ª hora após a injeção da carragenina. Esses resultados sugerem que a TENS de baixa freqüência age, provavelmente, pela liberação de substâncias endógenas analgésicas74,82,83. A fim de constatar se a analgesia da TENS de baixa e alta freqüência ocorre pela liberação de opióides endógenos que agem nos receptores µ ou por mecanismos diferentes, foi utilizado um antagonista opióide puro conhecido como naltrexona. Esse antagonista exibe afinidade relativamente alta pelos locais de ligação dos receptores opióides µ43. Como verificado nas FIG. 8A e 8B, o efeito analgésico da TENS de baixa freqüência foi totalmente revertido pela ação da naltrexona na 3ª, 4ª e 6ª horas, após a administração da carragenina. Porém, a analgesia provocada pela TENS de alta freqüência não foi alterada com o pré-tratamento com a naltrexona. Esses resultados corroboram os dados de estudos anteriores, sugerindo que a TENS de baixa freqüência atua liberando substâncias opióides que agem em receptores do tipo µ, dentro do sistema nervoso central12,74,82. Por outro lado, TENS de alta freqüência deve agir por mecanismos distintos. Sua ação parece estar mais relacionada com a ativação de fibras nervosas de grande diâmetro na periferia que se projetam para o corno dorsal da medula94,95,97,. Dessa forma, TENS de alta freqüência possivelmente foi capaz de ativar o mecanismo do portão espinhal e bloquear o impulso de dor ascendente7,97,. Além disso, alguns trabalhos demonstraram que a TENS de alta freqüência deve agir pela ativação de receptores opióides δ na medula espinhal e na região do bulbo ventral rostral84,85. 57 Em outro experimento realizado em nosso laboratório, a naltrexona (3 mg/kg) antagonizou a ação analgésica da morfina (10 mg/Kg). A literatura mostra que a ação analgésica da morfina acontece principalmente através da ligação dessa substância aos receptores µ43. Com o uso de antagonistas opióides, estudos têm observado que a morfina pode induzir analgesia por ativação de receptores µ2, localizados na região espinhal, ou pela ativação de receptores µ1, encontrados em regiões supra-espinhais. Entretanto, quando a morfina é administrada sistemicamente, como aconteceu neste trabalho, ela atua, predominantemente, sobre os receptores µ160. A TENS tem sido utilizada na clínica fisioterapêutica de forma combinada em pacientes que são submetidos a tratamento com morfina. Contudo, há poucos estudos que examinem o efeito da TENS, quando ela é administrada em associação com a morfina crônica ou pesquisas sobre a influência que um desenvolvimento de tolerância a este opióide poderia exercer no tratamento com a TENS12. Estes estudos, além de indicarem os melhores parâmetros para o uso clínico da morfina em associação com a TENS, podem permitir, também, melhor compreensão dos mecanismos neurobiológicos analgésicos da estimulação elétrica nervosa transcutânea98. Para avaliar o efeito da TENS de baixa e alta freqüência, em associação com o uso crônico da morfina, ratos foram submetidos à administração crônica de morfina, conforme procedimento descrito no item 2.5. Os resultados mostraram que o procedimento utilizado foi eficiente em induzir tolerância, conforme verificado em trabalho anterior33. Durante o procedimento de indução da tolerância, a morfina foi administrada por via subcutânea. Assim, a tolerância verificada pela administração crônica dessa substância poderia ter ocorrido via receptores opióides localizados nos 58 níveis central ou periférico. Porém, segundo Sluka39, deve ser considerada uma ação central, pois estudo prévio mostra que receptores opióides periféricos não mostram tolerância à morfina em tecidos inflamados99. De acordo com os resultados apresentados, a TENS de baixa freqüência, ao contrário da TENS de alta freqüência, não apresentou efeito analgésico em ratos tolerantes à morfina. Esses resultados corroboram os dados obtidos por Sluka et al.98 e podem ser explicados pelo fato de a TENS de baixa freqüência e a morfina atuarem em receptores opióides do tipo µ74,82,83. Portanto, numa situação de tolerância à morfina, outra droga ou recurso terapêutico que utilize o mesmo receptor para induzir analgesia pode tornar-se menos eficiente. Como a analgesia da TENS de alta freqüência deve ser mediada por outro tipo de receptor, sua ação analgésica não foi afetada após a indução de tolerância à morfina12,94-96,98,100. Outros autores têm demonstrado que repetidas aplicações de TENS de baixa e alta freqüência levam ao desenvolvimento de tolerância a substâncias opióides, com uma correspondente tolerância cruzada à administração de agonistas de receptores opióides µ e δ, respectivamente40. Os resultados desses autores demonstram claramente que o efeito analgésico da TENS de baixa e alta freqüência é mediado por receptor opióide existente dentro do sistema nervoso central. Sabe-se que a tolerância cruzada não ocorre entre agonistas opióides µ e δ, o que sugere uma ação independente desses receptores98,101. Picker59 verificou, também, que animais tolerantes à morfina não apresentaram tolerância cruzada com substâncias opióides que agem no receptor kappa. Dessa forma, um estado de tolerância à morfina poderia causar tolerância cruzada com outros opióides que também agem nos receptores µ. A 59 partir dos nossos resultados, é possível inferir que a menor eficiência analgésica da TENS de baixa freqüência observada em animais tolerantes à morfina ocorreu devido ao fenômeno de tolerância cruzada normalmente observada entre drogas agonistas µopióides43,98.No caso deste estudo, portanto, teria ocorrido uma tolerância aos efeitos da TENS de baixa freqüência semelhante à tolerância cruzada observada entre drogas43,98. Alguns estudos sugerem que a liberação de peptídeos opioides, resultante da aplicação da TENS, é dependente da freqüência que foi utilizada74,102. Possivelmente, vários opióides e seus receptores devem estar envolvidos na analgesia induzida pela TENS de baixa e alta frequência12. Contudo, além de induzir analgesia através dos mecanismos do portão espinhal e da liberação de opióides endógenos, é provável que o mecanismo de analgesia da TENS possa estar relacionado com outras substâncias envolvidas no sistema descendente inibitório da dor82,85. Substâncias endógenas liberadas no sistema nervoso central, tais como serotonina e noradrenalina, podem também mediar a analgesia induzida pela TENS12,103,104. Há também um estudo que envolve a participação da adenosina no mecanismo de analgesia induzida pela TENS10. Sob as condições experimentais utilizadas neste estudo, não foi possível verificar se a TENS de baixa ou alta freqüência, quando associadas à morfina aguda, potenciam o seu efeito analgésico. Sluka39, entretanto, observou aumento da inibição da hiperalgesia térmica com o uso combinado de morfina e TENS de baixa e alta frequência, mas não na hiperalgesia mecânica. Houve, também, potenciação da ação da TENS de alta freqüência, enquanto a TENS de baixa freqüência apresentou um 60 aumento menos efetivo da analgesia, ao ser combinada com a morfina. Isso, segundo a autora, ocorreu pelo fato da TENS de alta freqüência apresentar analgesia por meio de receptores δ e a TENS de baixa freqüência pelos receptores µ. Dessa forma, quando a morfina é associada a um recurso não farmacológico, que atua em outro receptor, ocorre uma resposta anti-hiperalgésica mais acentuada. O stress provocado pela manipulação dos animais poderia ser considerado um fator capaz de liberar substâncias que contribuiriam para a analgesia induzida pela aplicação da TENS de baixa ou alta freqüência neste trabalho. Alguns trabalhos têm considerado o stress como responsável pela indução de mudanças fisiológicas imediatas, como a ativação do sistema opióide endógeno e do eixo hipotálamopituitária-adrenal106,107. Entretanto, estudo recente demonstrou que animais controle manipulados da mesma forma que neste estudo e submetidos à TENS desligada, não apresentaram analgesia quando comparados ao grupo experimental30. Portanto, fica descartada a hipótese de que o efeito do stress foi um fator que contribuiu para os resultados observados. Os dados obtidos por este estudo são importantes para a orientação dos procedimentos com a TENS na clínica fisioterapêutica, uma vez que vários pacientes em uso prolongado de drogas opióides são submetidos ao tratamento com a TENS. Nessas condições, os parâmetros de aplicação da TENS devem ser observados, uma vez que a TENS de baixa freqüência pode ser menos efetiva que a TENS de alta freqüência. A partir desses achados, outros estudos devem ser realizados com humanos, para a confirmação dos nossos resultados. Uma compreensão mais ampla do mecanismo de ação da TENS ajudará a identificar as categorias de pacientes que 61 irão se beneficiar com seu uso. Isso permitirá a utilização terapêutica mais confiável e adequada na clínica e possibilitará uma otimização da eficácia do tratamento. 62 5- CONCLUSÃO Nossos resultados nos permitem concluir que a baixa e a alta freqüência da TENS foram capazes de reduzir completamente a hiperalgesia provocada pela administração da carragenina na pata de ratos. A baixa freqüência da TENS, entretanto, apresentou uma resposta analgésica mais duradoura quando comparada com a alta freqüência. Podemos concluir também que o procedimento utilizado, neste estudo, para induzir tolerância à morfina foi eficiente. Em animais tolerantes à morfina, diferentemente da TENS de baixa freqüência, a TENS de alta freqüência foi capaz de induzir analgesia. Isso ocorreu, provavelmente, pelo fato de a morfina e a TENS de baixa freqüência apresentarem o mesmo mecanismo de ação analgésica, isto é, via receptor µ. O presente trabalho cumpriu o objetivo proposto de verificar o efeito da baixa e da alta freqüência da TENS, após indução de tolerância à morfina. Infere-se, pelos resultados obtidos, que os parâmetros de aplicação da TENS devem ser observados na clínica em pacientes que fazem uso crônico de substâncias opióides, uma vez que a TENS de baixa freqüência pode ser menos efetiva que a TENS de alta freqüência. Os resultados obtidos com este trabalho podem servir como diretrizes para a prática clínica e para futuros estudos em seres humanos. 63 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. LICO, M. C. Modulação da dor. Mecanismos analgésicos endógenos. Ciência Hoje, v. 4, n. 21, p. 67-75, 1985. 2. MELZACK, R.; KATZ, J. Pain measurement in persons in pain. In: WALL, P. D. MELZACK, R.; Textbook of Pain. 4. ed. Churchill Livingstone, 1999. p 409-426. 3. DENEGAR, C. R.; DONLEY, P. B. Mecanismos e tratamento da dor com modalidades fisioterapêuticas. In: Prentice, W. E. 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