INTERFACE ENTRE ESTRUTURA ARGUMENTAL E MORFOLOGIA

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AS FORMAS DE PARTICÍPIO EM PORTUGUÊS:
INTERFACE ENTRE ESTRUTURA ARGUMENTAL E MORFOLOGIA
Larissa Ciríaco (UFMG)
INTRODUÇÃO
A formação de construções passivas é um fenômeno recorrente em morfologia, pois
exemplifica as questões e as interfaces com as quais essa disciplina lida (SPENCER, 1991). Em
algum nível, é preciso relacionar as construções ativa e passiva, sendo a semântica e a estrutura
argumental, especificamente, muito importantes na determinação dessa alternância, e também
de outras, em suas características sintáticas e morfológicas (SADLER & SPENCER, 1998). Da
mesma maneira, estabelecer a relação existente entre os verbos e suas respectivas formas de
particípio também envolve não apenas um estudo de natureza morfológica, mas também de
natureza semântica. A estrutura argumental e os papéis temáticos atribuídos pelo verbo podem
ajudar a formular generalizações sobre a semântica dos particípios e das construções sintáticas
em que eles aparecem e a elaborar as regras morfológicas responsáveis por sua formação.
É sabido que os particípios passados possuem propriedades híbridas, podendo se
comportar ora como verbo ora como adjetivo. Assim, sua formação esbarra na distinção entre
processo flexional ou derivacional. Possuindo características de verbo, atestadas em alguns
contextos, a formação do particípio pode ser vista como flexional. A construção passiva verbal é
um desses contextos em que a forma participial se comporta como flexão verbal:
(1) A janela foi quebrada por Paulo.
Por outro lado, no contexto da construção passiva adjetival a forma participial exibe
características de adjetivo:
(2) A janela está quebrada.
Assim, a formação do particípio adjetival em particular se configura uma questão para os
estudos morfológicos, pois envolveria uma mudança categorial, que é uma propriedade
derivacional. Faz-se necessário postular uma regra de formação de construções passivas
adjetivais que fosse capaz de relacionar esse adjetivo paticipial à sua contraparte verbal. A fim
de formular essa regra, muitos autores desenvolveram o que hoje se conhece como a “análise do
tema”, conforme relatam Levin e Rappaport (1986). Nessa análise, tenta-se incluir as
generalizações relativas ao tipo de papel temático atribuído pelo adjetivo a seu argumento
externo na regra que deriva passivas adjetivais. Segundo essa regra, o argumento externo de
uma passiva adjetival deve receber a interpretação de tema do verbo base correlacionado ao
particípio. Para Levin e Rappaport (1986), não é necessário incluir essa generalização na regra
de formação de passivas adjetivais, e elas propõem uma análise que lança mão apenas de
princípios gerais da gramática. Segundo as autoras, embora a distinção categorial entre os
particípios verbais e adjetivais seja atestada em contextos sintáticos e semânticos, eles são
morfologicamente idênticos em inglês e a diferença semântica entre eles é sutil. Assim, as
diferenças entre construção passiva verbal e adjetival são conseqüências da distinção categorial
dos particípios. E a diferença entre a formação de passiva verbal e passiva adjetival reside
apenas na mudança categorial que ocorre no particípio de verbo para adjetivo, sendo tudo o
mais decorrente de princípios gerais, do mesmo modo que a formação de passivas verbais.
Entretanto, para o português, as diferenças de sentido não parecem tão sutis ao se
comparar o particípio de uma construção passiva verbal e o de uma construção passiva adjetival.
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Além disso, nem sempre o particípio encontrado na construção passiva adjetival corresponde ao
particípio encontrado na construção passiva verbal. A formação de particípios em português
pode ocorrer de duas maneiras para o mesmo verbo. Isso porque em português existem dois
processos independentes de formação de particípios, conforme hipótese de Lobato (1999) e
outros autores: o regular e o irregular. Ainda, Lobato (1999) aponta diferenças de sentido
marcantes no uso dos particípios regular e irregular. Segundo ela, os particípios duplos não são
sinônimos, possuindo diferentes usos, escolha de auxiliar, diferenças categoriais (não são
usados apenas como adjetivos e verbos, mas também como nomes), aspectuais e argumentais
(LOBATO, 1999). Motivado por essas observações, se fará, neste trabalho, uma investigação
das propriedades semânticas acarretadas pelos particípios de construções passivas verbais e
adjetivais
Assim, esse trabalho visa comparar a estrutura argumental dos verbos com a estrutura
argumental de seus particípios nas construções passivas verbais e adjetivais. A hipótese é a de
que existem importantes generalizações semânticas na formação de particípios adjetivais.
Assume-se que, para o português, uma regra específica, que incorpora informações semânticolexicais dos verbos de base, para a formação de particípios adjetivais. Através da proposta de
Cançado (2005), serão investigadas as propriedades semânticas acarretadas por verbos e
respectivos particípios. Segundo essa proposta, os papéis temáticos são noções derivadas, e não
primitivas. O papel temático de um argumento é dado pelo conjunto de propriedades semânticas
acarretadas a ele pelo item lexical predicador, seguindo a noção de acarretamento lexical, que é
tudo o que pode ser inferido necessariamente de um item lexical, elaborada por Dowty (1989).
Essas propriedades semânticas são gramaticalmente relevantes e importantes para a
manifestação de muitos fenômenos sintáticos, como as alternâncias verbais.
Este trabalho conta com um estudo inicial, tendo sido analisados apenas 21 verbos
causativos do português. Entretanto, apesar de uma pequena amostra de verbos, puderam-se
extrair importantes generalizações sobre os aspectos semânticos da formação de particípios.
Esses resultados preliminares indicaram, assim, direções a se tomar em um futuro estudo mais
extenso. Na próxima seção, apresentar-se-á a análise dos verbos e seus particípios nos contextos
das construções passivas verbais e adjetivais. A última seção trará algumas considerações finais
sobre essa pequena pesquisa.
1 AS PROPRIEDADES SEMÂNTICAS DOS PARTICÍPIOS
Conforme o comportamento dos 21 verbos causativos do português brasileiro analisados
em relação às construções passivas verbais e adjetivais, pôde-se distribuí-los em duas classes.
Para a primeira classe, começando com 7 verbos, tem-se como exemplo o verbo quebrar.
Seguindo a atribuição de papéis temáticos proposta por Cançado (2005), tem-se que quebrar
acarreta dois argumentos, apresentando a forma x V y. Para x, no conjunto de propriedades
lexicalmente acarretadas a ele, tem-se a propriedade de ser o desencadeador como uma das
propriedades componentes de seu papel temático, que nomearemos como D. Essa propriedade
não está associada a nenhuma subespecificação, ou seja, o verbo quebrar aceita como
desencadeador expressões que denotem seres animados, instrumentos, forças naturais e até
outro evento como desencadeador do evento de quebrar, destacados abaixo em negrito:
(3) João/ a pedra/ o vento/ o empurrão que João levou quebrou a vidraça.
Para o argumento y, o verbo quebrar acarreta, no conjunto de propriedades acarretadas a y, a
propriedade de ser o afetado no evento, ou, em outros termos, de mudar de estado, como uma
das propriedades componentes de seu papel temático, que nomearemos como A. Assim, em y,
destacado abaixo em negrito, é possível ter expressões que compatíveis com o papel temático
que contém a propriedade de ser o afetado1:
(4) João quebrou a vidraça/ a porta/ o vaso.
1
Está-se tratando aqui do sentido físico de quebrar, não se lidará com as polissemias desse verbo.
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Em resumo, a primeira classe de verbos causativos analisada possui a rede temática {D,
A} e inclui, além de quebrar, os verbos: molhar, consertar, queimar, derreter, aquecer e entupir,
todos com a mesma rede temática de quebrar. O comportamento desses verbos em relação às
construções passivas verbais, em (a), e adjetivais, em (b), é o que se segue:
(5) a. A janela foi quebrada.
b. A janela está/ficou quebrada.
(6) a. O jardim foi molhado pelo jardineiro.
b. O jardim está/ficou molhado.
(7) a. O carro foi consertado pelo mecânico.
b. O carro está/ficou consertado.
(8) a. A casa foi queimada no desastre.
b. A casa está/ficou queimada.
(9) a. O gelo foi derretido pelo calor.
b. O gelo está/ficou derretido.
(10) a. A casa foi aquecida pelo sol.
b. A casa está/ficou aquecida.
(11) a. A casa foi entupida de mobília antiga.
b. A casa está/ficou entupida de mobília antiga.
O particípio adjetival, mostrado nas construções passivas adjetivais, também acarreta a
seu argumento a propriedade de mudar de estado, ou seja, ser ou ter sido afetado por um
processo. Até aqui, ambas as formas de particípio parecem não apresentar diferenças em sua
formação, podendo apresentar uma análise tradicional: em relação ao verbo base, os particípios
absorvem o papel temático externo, atribuindo apenas o papel com a propriedade de Afetado.
O exemplo representativo da classe 2 será o verbo carregar. Assim, como os verbos da
classe 1, os verbos da classe apresentam a forma x V y. Para o argumento externo, x, no
conjunto de propriedades lexicalmente acarretadas a ele, também tem-se a propriedade de ser o
desencadeador como uma das propriedades componentes de seu papel temático. Entretanto,
carregar também acarreta uma subespecificação para o desencadeador (CIRÍACO, 2007). Além
de acarretar a x a propriedade de ser o desencadeador, carregar e os outros verbos da classe 2
também acarretam que esse desencadeador esteja diretamente envolvido na causação, um
refinamento da propriedade que compõe o papel temático atribuído a x, que vamos nomear
como D direto. Isso significa que o verbo carregar só aceita em x expressões que denotem
desencadeadores diretamente envolvidos no desencadeamento do processo de carregar,
podendo ser expressões que denotem seres animados, forças naturais ou instrumentos,
destacados abaixo:
(11) João/ a chuva/ o caminhão carregou as folhas.
Porém, ao contrário dos verbos da classe 1, expressões que denotem acontecimentos ou
interpretações eventivas para o argumento com a propriedade de ser o desencadeador não são
possíveis para os verbos da classe 2:
(12) *A chegada da tempestade carregou as folhas.
Para o argumento interno, y, os verbos da classe 2 acarretam a propriedade de ser o afetado.
Entretanto, essa afetação não é entendida como mudança de estado e sim como mudança de
posição. Os verbos da classe 2 acarretam também que y seja deslocado. Assim, nomearemos o
papel temático atribuído ao argumento y dos verbos da classe 2 como A deslocado. Em síntese,
os verbos da classe 2 possuem a seguinte rede temática: {D direto, A deslocado}. Além do
verbo carregar, tem-se também: empurrar, arrastar, chutar, remover, arrancar, conduzir. O
comportamento desses verbos em relação às construções passivas verbais, em (a), e adjetivais,
em (b), é o que se segue:
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(13) a. A mala foi carregada por João.
b. A mala está/ficou carregada.
(14) a. O carro foi empurrado pelo mecânico.
b. * O carro está/ficou empurrado.
(15) a. O sofá foi arrastado por Mariana.
b. * O sofá está/ficou arrastado.
(16) a. A bola foi chutada pelo artilheiro.
b. * A bola está/ficou chutada.
(17) a. A carga foi removida pelos funcionários.
b. * A carga está/ficou removida.
(18) a. A árvore foi arrancada pela tempestade.
b. * A árvore está/ficou arrancada.
(19) a. O cliente foi conduzido pelo gerente.
b. * O cliente está/ficou conduzido.
Observe que esses verbos não permitem particípios adjetivais. A presença da propriedade
A deslocado parece funcionar como uma restrição à ocorrência desses particípios e,
consequentemente, para a construção passiva adjetival. Em outras palavras, quando um verbo
causativo, como carregar acarreta a seu argumento interno, y, a propriedade de ser o Afetado
deslocado, a formação de seu particípio adjetival não é possível.
Entretanto, observando outros verbos causativos, percebeu-se que existe ainda uma outra
restrição, mais geral, para explicar o comportamento dos verbos em relação aos
particípios.Observe o verbo entornar:
(20) João/ o vento/ o empurrão que João levou entornou o vinho (no sofá).
Entornar também possui a forma x V y. Acarreta a x, no conjunto de propriedades
acarretadas a x, a propriedade de ser o desencadeador. Não existe, pelo sentido do verbo,
nenhuma subespecificação ou refinamento para essa propriedade. Ao argumento y, entornar
acarreta a propriedade de ser o afetado e ser deslocado no evento. Assim, o verbo acarreta uma
subespecificação para a propriedade de ser o afetado. A rede temática de entornar é {D, A
deslocado}. Em um primeiro momento, o conjunto de verbos que possui a mesma rede temática
de entornar foi classificado como classe 3, entretanto, seu comportamento diante das
construções passivas fez com que eles fossem classificados também como classe 1:
(21) a. O vinho foi entornado.
b. O vinho está/ficou entornado.
(22) a. A água foi derramada.
b. A água está/ficou derramada.
(23) a. O sofá foi arredado.
b. O sofá está/ficou arredado.
(24) a. A porta foi aberta2.
b. A porta está/ficou aberta.
(25) a. A porta foi fechada.
b. A porta está/ficou fechada.
(26) a. Os livros foram esparramados.
b. Os livros estão/ficaram esparramados.
(27) a. As folhas foram espalhadas.
b. As folhas estão/ficaram espalhadas.
2
Este particípio, irregular, não oferece nenhum prejuízo à análise, pois é a única forma de particípio
existente para esse verbo, ao menos por enquanto.
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Portanto, assume-se que a restrição que licencia os particípios adjetivais dos verbos aqui
analisados refere-se à propriedade de ser o desencadeador. Se o verbo acarretar a seu argumento
x a subespecificação ‘direto’ para a propriedade de ser o desencadeador, então a forma de
particípio adjetival não é possível. Assim, os verbos acima são re-analisados dentro da classe 1,
que engloba os verbos dos exemplos (5) a (11) e (21) a (27) e que apresenta a rede temática {D,
A (deslocado)}, em que a subespecificação ‘deslocado’ para a propriedade de ser o afetado
aparece como compatível, para certos verbos. A classe 2 engloba os verbos dos exemplos de
(13) a (19), que apresentam a rede temática {D, A deslocado} e que, por isso, não apresentam
formas adjetivas de particípio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo apresentou uma análise semântica das formas de particípio de alguns verbos
causativos do português brasileiro em relação às construções passivas verbais e adjetivais.
Como resultado, obteve-se que a forma de particípio adjetival é licenciada quando o verbo
causativo tem a seguinte rede temática: {D, A (deslocado)}. Se a propriedade de ser o
desencadeador estiver associada à subespecificação ‘direto’, a formação do particípio adjetival
não é permitida. Assim, a regra de formação do particípio adjetival parece envolver essa
restrição semântica. Por questões de tempo e espaço, não foi possível propor, ainda, uma
formulação adequada para essa regra. Entretanto, a investigação das propriedades semânticas
apresentada permite conhecer uma importante generalização sobre as formas de particípio,
indicando uma direção para um estudo posterior. Além disso, ofereceu-se também uma pequena
descrição sobre o comportamento dos verbos causativos analisados em relação às construções
passivas.
REFERÊNCIAS
CANÇADO, Márcia. Posições Argumentais e Propriedades Semânticas. DELTA, v. 21, n.1, p.
23-56, 2005.
CIRÍACO, Larissa. A alternância causativo-ergativa no PB: restrições e propriedades
semânticas.
Dissertação
de
mestrado.
UFMG.
2007.
<disponível
em
www.letras.ufmg.br/marciacancado>
DOWTY, David. On the Semantic Content of the Notion of Thematic Role. IN: Chierquia,
Partee e Turner (eds) Properties, Types and Meaning. Studies in Linguistic and Philosophy, 2:
Semantic Issues. Daordrecht: Kluver, 1989, p. 69-124.
LEVIN, Beth; RAPPAPORT, Malka. The formation of adjectival passives. Lingusitic Inquiry,
v. 17, n. 4, 1986, p. 623-661.
LOBATO, Lucia. Sobre a forma do particípio do português e o estatuto dos traços formais.
DELTA,
São
Paulo, v.15, n.
1, Feb. 1999.
Disponível
em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244501999000100005&lng=en&
nrm=iso> Acesso em: 21 de dezembro de 2008.
SPENCER, Andrew. Morphological Theory. Oxford: Blackwell. 1991.
SADLER, Louisa; SPENCER, Andrew. Morphology and Argument Structure. In: SPENCER,
Andrew; ZWICKY, Arnold M. Handbook of Morphology. Blackwell Publishers.1998.
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