Família e Participação Popular

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Família e Participação Popular: antinomias do desenho da política de assistência
social na América Latina1
Beatriz Augusto Paiva2
[email protected]
Mirella Farias Rocha3
[email protected]
Dilceane Carraro4
[email protected]
Josiane Biondo5
[email protected]
Larissa Cechinel da Silva
[email protected]
Lidiane Ramos Leal
[email protected]
Aline da Rocha Koehler
[email protected]
Modalidade de trabalho:
Eixo temático:
Palavras-Chave:
Resultados de investigação
Políticas Sociais e desenvolvimento no contexto neoliberal e os
desafios para o Serviço Social
América Latina; Política de Assistência Social, Participação Popular;
Família.
1. Introdução, Objetivos e Metodologia
Essa comunicação trata de um recorte analítico do projeto “Família e participação popular:
antinomias dos modelos de proteção social na América Latina”, desenvolvido no âmbito do Instituto de
Estudos Latino-Americanos (IELA) da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, durante o
período 2007-2009, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
– CNPq.
O objetivo do projeto, que atualmente encontra-se em fase de conclusão, é propor um novo
horizonte categorial para as matrizes conceituais de família e protagonismo popular que orientam a
conformação das políticas de proteção social na América Latina, a partir da latinoamericanização do
debate e da pesquisa empírica como critério teórico metodológico, tendo em vista reconstrução dos
modelos explicativos, dessa vez assentados na realidade concreta do continente.
1
Ponencia presentada en el XIX Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo Social en la
coyuntura latinoamericana: desafíos para su formación, articulación y acción profesional. Universidad Católica
Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 4-8 de octubre 2009. Estudantes de Graduação em Serviço Social pela
UFSC/Brasil. Equipe de Pesquisa integrante do Instituto de Estudos Latino-Americanos IELA/UFSC/BRASIL.
2
Professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC/Brasil.
3
Mestre em Serviço Social pela UFSC/Brasil.
4
Estudante do Mestrado em Serviço Social pela UFSC/Brasil.
5
Estudante de graduação em Serviço Social pela UFSC, bolsista pesquisadora pelo Programa de Iniciação Científica –
PIBIC/UFSC/Brasil.
1
A pesquisa em tela propõe um estudo comparativo das experiências latino-americanas, cujo
universo empírico corresponde a três grupos de países, quais sejam; i) países que ainda esboçam a
definição de modelos de proteção social transitórios ao paradigma focalista-residual, com forte ênfase
na dilatação da esfera privada, no caso: Brasil e Chile; ii) país que, em resposta ao intenso processo
mobilizatório e de luta popular, vem construindo decisivamente um modelo democrático radical de
proteção social, no qual o ângulo do protagonismo popular se coloca como organizador das políticas
sociais, no caso: Venezuela; iii) país que possui experiência mais consolidada para as matrizes de
família e participação popular para organização da proteção social, no caso: Cuba.
A metodologia do estudo combinou dois planos de análise distintos e complementares.
No primeiro plano realizamos um estudo das formulações oficiais que subsidiam as políticas
sociais em cada país selecionado, especificamente relativo as políticas de saúde e assistência social,
na perspectiva de mapeamento das bases políticas nas quais se processam os direitos sociais em
cada contexto estudado. O referencial principal constituiu-se na base de dados da Comissão
Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL e legislação socioassistencial de cada país.
No segundo plano nos dedicamos a um minucioso estudo teórico-bibliográfico acerca das
políticas sociais na América Latina em geral. Esse estudo objetivou a construção preliminar das bases
conceituais para subsidiar a nova cartografia de categorias referentes ao debate sobre família e
participação popular, de modo que, tal plano constituiu-se fundamental tendo em vista a necessidade
de decifrar os parâmetros histórico-políticos e econômicos das políticas sociais na América Latina,
essencial para o reconhecimento das especificidades e potencialidades em curso.
Assim, essa comunicação trata da sistematização dos dados analíticos, notadamente afetos ao
campo socioassistencial nos quatro países estudados. Desse modo, processamos nesse espaço a
sistematização das conclusões acerca das determinações econômicas e sociais das políticas sociais
na América Latina, tendo em vista subsidiar as discussões teórico-acadêmicas e políticas no escopo
da singularidade das políticas sociais no continente latino-americano e, ainda, apresentamos
sumariamente o debate sobre a matricialidade sócio-familiar e do lugar da participação popular no
âmbito da política de assistência social nos países estudados, como recorte empírico para
problematização da proteção social no continente.
2 Desenvolvimento e Conclusões
2.1 Trabalho e Política Social: O Prisma Latino-Americano
Considerando a necessidade de pensar horizontes categoriais de análise assentados na
realidade concreta do continente, este estudo versa sobre uma perspectiva crítico-dialética, tendo em
2
vista atentar à necessária latinoamericanização do debate no âmbito das ciências sociais
desenvolvidas desde nuestra América.
Portanto, o prisma latino-americano reporta à tentativa de contribuir ao desenvolvimento de uma
mirada autônoma e crítica do modo de perceber o mundo, ou seja, especialmente partindo da
concreticidade do espaço/tempo que nos pertence e que, portanto, encerra determinadas
contradições devidas às peculiaridades históricas que devem ser resgatadas, defendidas e
analisadas.
Sem perder o horizonte da crítica radical eminentemente latino-americana, esta advertência
teórico-metodológica inicial deve ser enriquecida do ponto de vista histórico, por isso entendemos ser
imprescindível considerar a dependência como um dos grandes pilares nos quais se assentam as
relações sociais de nossas nações, haja vista que a processualidade capitalista em âmbito mundial
determina este caráter peculiar de organização da produção na América Latina.
A dependência, de acordo com a análise de Marini (2000), pode ser entendida como uma
relação de subordinação entre nações formalmente independentes, onde a produção dos países
subordinados é conduzida de tal maneira que garanta a perpetuação dessa condição, o que sustenta
a dominação a partir de dentro, tendo em vista a reformulação constante das relações sociais de
produção. Nos termos de Marini (2000):
[...] Ainda quando realmente se trate de um desenvolvimento insuficiente das
relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por
sua estrutura global e seu funcionamento, não poderá nunca se desenvolver da
mesma forma como se desenvolveram as economias capitalistas consideradas
avançadas. É por isso que, mais que um capitalismo, o que temos é um capitalismo
sui generis, que só ganha sentido se o contemplamos tanto a nível nacional como,
principalmente, a nível internacional. (MARINI, 2000, p. 106).
É assim que Marini (2000) principia seu ensaio Dialética da Dependência, no qual apresenta os
mecanismos que determinam a produção e a reprodução de capital em escala ampliada, partindo das
relações estabelecidas entre países centrais e países periféricos, apontando ainda suas
conseqüências sob a organização das sociedades dependentes. Segundo o autor, são estabelecidas
relações comerciais que se baseiam em um sistema de trocas assimétricas e desfavoráveis,
reatualizando permanentemente os termos do intercâmbio desigual.
Através desse mecanismo, os condicionantes da dependência empreendem uma maciça
transferência de valor produzido na periferia, que é então apropriado no centro da acumulação
mundial, de modo que tal dinâmica capitalista, nos termos de Marini (2000), é garantida através de
uma maior exploração da força de trabalho na periferia, através da intensificação dos processos de
extração de mais-valia.
3
Trata-se de uma perspectiva que parte do entendimento da acumulação em escala global
através da estruturação da dependência enquanto mecanismo essencial de apropriação do capital. A
exploração do trabalho na América Latina, portanto, desempenha uma funcionalidade dual: (a)
transformando as relações sociais no interior dos países centrais, haja vista que os produtos
alimentícios são fornecidos pelos países periféricos e permitem manter determinado nível de salários
aos trabalhadores daqueles países; (b) compensando as perdas, próprias do intercambio desigual na
relação com as economias centrais, a partir da superexploração da força de trabalho caracterizada
principalmente pelo pagamento de um salário que sequer repõe as forças gastas pelo trabalhador no
ambiente de trabalho.
Assim, do ponto de vista genuinamente latino-americano, à medida em que, através de uma
maior exploração do trabalhador, a forte e contraditória relação de subordinação com o mercado
externo ajusta as relações de produção internas para a acumulação do capital em escala global, o
capitalismo dependente institui - de modo sempre crescente - o pauperismo das massas, produzindo
e reproduzindo, desta forma, uma intensa e crescente exploração do trabalhador, determinando,
peculiarmente, os traços da chamada questão social no continente latino-americano.
Nessa conjuntura em que a realidade concreta veste ainda sua mais dura pele cabe ressaltar a
dupla dimensão das políticas sociais públicas: a) sua refuncionalização para, num mesmo movimento,
amortizar o conflito social próprio da luta operária em dado momento do processo de acumulação e,
também, atender as demandas decorrentes da reprodução social tipicamente capitalista; b) seu
potencial político-emancipatório, cuja processualidade histórica está inserida no lastro da disputa
política pelo excedente econômico expropriado das massas.
O mecanismo de absorção do excedente pela administração pública permanece refratado, em
decorrência da lógica a qual estão submetidos os países dependentes, ou seja, a combinação entre o
sistema de endividamento público, a matriz primário-exportadora e a debilidade tecnológica. Esta
combinação de determinações afeta também o ciclo de produção e reprodução do capital
internamente, sabemos, pois, em conseqüência, a dinâmica dependente impossibilita a reprodução
dos mecanismos de proteção social, para além dos absolutamente necessários à conservação deste
padrão de acumulação, que comporta o abandono das classes subalternas ao constrangimento
daquilo que Marx e Engels (2007) chamaram de meras condições materiais de existência.
Constata-se, a partir da singularidade de abrangência continental, o grau de contraditoriedade
estrutural da política social do Estado capitalista dependente, particularmente subordinada aos
condicionantes econômicos externos que causam condições cada vez mais precárias de trabalho aos
4
povos, fragmentando suas lutas e abandonando-os as múltiplas faces da miséria e da
superexploração,de acordo coma seguinte assertiva:
De partida, os países ingressaram no circuito capitalista internacional em condições
de inferioridade competitiva evidentes, e até hoje insuperáveis, não somente pela
tardia modernização, com reduzido alcance no desenvolvimento das forças
produtivas (a partir da década de 1930), mas pela conseqüentemente atrasada
participação no mercado mundial. A alternativa adotada pelas classes dominantes
latino-americanas para compensar esse déficit tem sido a superexploração do
trabalho, com a intensificação dos processos de extração de mais-valia (em sua
forma absoluta e relativa combinadas e o fundo de acumulação), possíveis,
sobretudo, pelo rebaixamento salarial e pelo elevado índice de desemprego e
subemprego. (PAIVA e OURIQUES, 2006, p. 169).
Esse modelo econômico – periférico e dependente – revela a situação do país e da região: a
classe trabalhadora na América Latina (que seria o sujeito de direitos num país central) é composta
por um expressivo contingente de trabalhadores informais e de desempregados, para os quais não há
sequer vínculo salarial formal, muito menos acesso à proteção social, decorrentes da sociedade
salarial.
Tem-se que, principalmente na América Latina, as alternativas estratégicas para expansão das
garantias e direitos sociais somente responderam à intensa e demorada luta política dos
trabalhadores, ou seja, a concreta intervenção estatal por meio de políticas sociais - diferente da idéia
da concessão populista - se deu apenas quando se evidenciaram inevitáveis e imprescindíveis,
produto direto da luta de classes.
Apesar do vínculo genético existente entre a política social capitalista e os processos de
legitimação da ordem que o Estado periférico e as classes dominantes internas/externas delineiam
para as massas, a dimensão histórico-política da luta de classes constitui, pois, um vínculo igualmente
importante, principalmente na América Latina onde o capitalismo foi erigido sobre a agudização de
suas contradições. O papel do Estado dependente, de criar condições internas para a valorização do
capital externo, não esvazia o potencial político fundamental que assume nestas economias.
Na disputa com a alocação autoritária fruto de decisões do governo e das agências
multilaterais, as políticas sociais devem almejar o horizonte da ação coletiva que realmente concretize
direitos sociais, em busca da satisfação das necessidades humanas. Por esse motivo segue como
decisiva a organização política das massas subalternas, na resistência e combate aos processos
destrutivos de reprodução do grande capital, que cada vez mais comandam a dinâmica interna de
produção e reprodução da vida material na América Latina.
Assim, nossa hipótese é verificar em que medida, para além da sua configuração como mera
acomodação de conflitos, o campo das políticas sociais pode ser convertido também em território
5
privilegiado para o tensionamento e disputa dos mecanismos que produzem a desigualdade e a
exploração, tendo em vista sua transformação.
Sendo assim, nossa premissa é que as políticas sociais devem se subordinar à organização do
protagonismo popular e às suas soberanas decisões quanto à utilização dos recursos públicos,
consagrando assim uma nova dinâmica revolucionária, por meio da luta social pela radicalização da
democracia. Daí, pois, a importância de empreendermos a análise acerca da matricialidade sóciofamiliar, bem como do lugar da participação popular no desenho da política social na América Latina.
Desde Latinoamérica é nossa original mirada, dada a importância de pensar política social na
superação do seu papel coadjuvante à acumulação capitalista. Para tanto, propomos a pesquisa em
tela, especificamente nessa comunicação, apresentando dados comparativos parciais da análise do
desenho da política de assistência social no Brasil, Chile, Venezuela e Cuba.
2.2 Família e Participação Popular: Antinomias do Desenho da Política de Assistência
Social no Brasil, Chile, Venezuela e Cuba.
Na América Latina, as ações de proteção social ganham notoriedade quando referidas a
família, que adquire inédita amplitude e centralidade, não sem contradições, decerto. Se a família
inquestionavelmente contraiu a condição de sujeito central das políticas sociais, ou como princípio
matricial para a estruturação dos benefícios e dos serviços na saúde e na assistência social, cabe
indagar sobre o lugar do verdadeiro protagonismo - o popular, pois ao que parece, está abandonado
de vez da agenda de construção pública, dos modelos considerados exemplares pelas agências
especializadas.
Assim, a primeira ilação que apontamos na pesquisa refere-se ao dimensionamento crítico
sobre preponderância da família como referência fundamental nos diferentes desenhos da política de
assistência social analisados. Nos limites deste trabalho, porém, abordaremos aspectos sumários da
estruturação do direito socioassistencial nos quatro países pesquisados.
No Chile, ao analisarmos as diretrizes do principal programa socioassistencial, o Programa
Puente, percebe-se que este se traduz em um compromisso governamental com o fortalecimento dos
laços familiares e o sentimento de comunidade, fundamentando-se em uma ordem moral coletiva
fundada em valores tradicionais. O Programa Puente é um programa de transferência de renda
condicionada em que se propõe a transformação de certas condutas familiares mediante o
cumprimento de metas que correspondem a sete dimensões ou categorias, quais sejam:
identificação, saúde, educação, dinâmica familiar, habitação, trabalho e renda. Para cada categoria ou
dimensão existem requisitos necessários para a família alcançar, os quais mantêm a continuidade no
programa. Nestes termos, são ofertados incentivos para as famílias em termos de apoio psicossocial,
6
preparação para o mercado de trabalho e transferência direta de valores em escala regressiva por um
período de três anos, quando se espera que os usuários tenham protagonizado as mudanças
significativas no seu comportamento e de sua família, que refletem, sobretudo, o compromisso
individual do beneficiado, e que possa refletir na sua vida e com isso fazê-los capazes de superar sua
condição de pobreza. (GOBIERNO DE CHILE, 2004).
Assim, as condicionalidades exigidas para o acesso ao direito estabelecidas por este programa
supervalorizam a provisão social, alinhando-se com o princípio do mercado, onde todos os bens são
mercadorias intercambiáveis, cujos equivalentes são de um lado regras de comportamento das
famílias pobres, denominadas responsabilidades e, de outro, parcos apoios governamentais,
profetizados de direitos.
Tal orientação possui estreita vinculação com o modelo de intervenção do Estado dirigidos
pelos organismos multilaterais para os países periféricos, com auge em meados dos anos 1980, que
preconizava a desresponsabilização do Estado no provimento de políticas sociais, em favor de
medidas focalistas e residuais. O argumento é conhecido: não acentuar a dependência do
beneficiário, mas sim, impulsioná-lo para o disciplinamento, tendo em vista o usufruto de uma
cidadania que, ao fim da domesticação, poderá ser acessada, tanto quanto qualquer mercadoria. Os
governos democráticos do Chile, ao não empreenderem as rupturas contundentes com a tradição
autoritária do período Pinochet, transformaram o país “en la principal sociedad neoliberal de la región
latinoamericana.” (LEYTON, 2008, p. 60).
Ao inquirirmos sobre o tema da participação popular, os documentos e legislações chilenos
apontam dois conteúdos aparentemente equivalentes: a) relativo ao eixo “empoderamento para a
cidadania, o pluralismo e o fortalecimento do capital social”; b) relativo ao eixo “diálogo social” para
intervenção em políticas públicas. Ambos são voltados para harmonizar interesses e aspirações
conflitantes dos sujeitos sociais no alcance da democracia, da governabilidade e da paz social, através
dos propósitos da inclusão e da participação. Tais referências não comportam qualquer ambigüidade
na sua orientação: são aberta e claramente conservadoras.
A experiência brasileira é a que mais se assemelha com a chilena, pois aqui a matricialidade
sóciofamiliar da política de assistência social também invoca a família como sujeito privilegiado da
ação, bem como não se verifica qualquer arranjo institucional que se dedique a
organização/mobilização popular, como escopo próprio do processo de fortalecimento do
protagonismo popular. Nesses termos, embora sem o enfoque abertamente controlador, quase
coercitivo com relação aos prazos e medidas de ativação, em nome do empenho para que o usuário
“supere” sua condição subalterna e desligue-se da política (caso do Chile), no Brasil a matricialidade
7
sóciofamiliar está formulada de maneira mais contundente - quase mágica - na nova Política Nacional
de Assistência Social - PNAS/2004, que estrutura o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, e
no Programa Bolsa Família, principal programa de transferência de renda condicionada no país.
Com relação ao Programa Bolsa Família, o benefício está condicionado a algumas
responsabilidades dos beneficiários e de sua família, reforçando a mesma matriz da política. Inseridos
no Programa, os beneficiários, para garantirem sua permanência e o benefício mensal, devem
atender as algumas condicionalidades, quais sejam: matrícula e freqüência escolar dos filhos, bem
como o acompanhamento da família em relação à aprendizagem do filho junto à escola, vacinação
em dia, pesagem e exame médico periódico no caso das crianças e pré-natal, consultas periódicas e
participação nas atividades educativas desenvolvidas pelas equipes de saúde no caso das gestantes.
(BRASIL, 2006).
Nossas considerações indicam que retrair ingressos e inserir mecanismos de mercado na
relação socioassistencial, desfigurando o princípio da gratuidade e da universalidade desse direito
social, constitui-se parte da lógica de contratualização propugnada pelos esquemas neoliberais,
peculiarizada pelos conhecidos mecanismos de ativação, que passam a compor a agenda técnicopolítica das principais estratégias de transferência de renda. Na versão euro-ianque também se
constituem em eixo organizador do workfare, assim denominado devido à ruptura do compromisso
público do Welfare. Portanto, a pesquisa revela que devemos indagar se o binômio contratualização x
ativação, ditados para os programas latino-americanos pelos organismos multilaterais, por meio de
sutis eufemismos como fomento do capital humano, não correspondem a mais uma deletéria
tendência importada pelos esquemas neocolonizadores, vez que são eixo da remodelagem das
medidas de políticas sociais nos EUA e Europa.
Observamos ainda que os novos códigos fronteiriços têm sido obrigatória e permanentemente
adaptados. Se nos países centrais a compulsoriedade do novo contrato para a assistência social para
recebimento dos benefícios exige a aptidão e disponibilidade para trabalho, em geral precário e
degradante, nos países periféricos, os esquemas estigmatizantes pretendem ensinar, ‘empoderar’,
capacitar as famílias pobres a cuidarem dos seus, aproveitando as sempre abertas oportunidades
(Sic!) para saírem da pobreza, no que elas são estimuladas a usufruir corretamente as aquisições
ofertadas, também pelas demais políticas sociais, como educação e saúde. Da mesma forma,
podemos reafirmar que as contrapartidas e as ativações (ação dos técnicos) dos programas latinoamericanos possuem forte conotação controladora das condutas e relações privadas, o que é muito
preocupante, pois a novidade é somente a reapresentação do conservadorismo de sempre.
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Em relação à PNAS/2004, a matricialidade sócio-familiar aparece como eixo de organização
política socioassistencial, repondo algumas contradições, sem responder as ambigüidades que
encerra. A razão para escolha da atenção às famílias como foco prioritário para as ações, serviços,
benefícios, programas e projetos socioassistenciais no âmbito do SUAS, é “o reconhecimento do
grupo familiar como referência afetiva e moral” (BRASIL, 2004, p. 37) e, também, as “fortes pressões
que os processos de exclusão sociocultural geram sobre as famílias brasileiras, acentuando suas
fragilidades e contradições” (BRASIL, 2004, p. 41), o que, nos termos do documento, torna imperativa
sua centralidade. As tarefas cotidianas de cuidado e valorização da convivência familiar e comunitária
aparecem como alvo da política de assistência social, que deve ser desenvolvida prioritariamente em
rede socioassistencial nos territórios de alta vulnerabilidade social, considerando a potencialização da
família como unidade de referência e o fortalecimento de seus vínculos internos e externos de
solidariedade.
Essa visão moralista extrai as relações sociais do contexto histórico, contraditório e dialético no
qual se inscrevem os sujeitos e resulta em um delineamento conservador e tutelador da política social,
a qual deve servir para endireitar as condutas familiares.
Em outro diapasão, e este é um importante veio de produção de dados da pesquisa, se abre
uma nova perspectiva para a proteção social na América Latina. Vivemos um desafiador momento de
construção coletiva para que a proteção social seja efetivamente universal e possa assim conduzir a
ruptura com a sua condição de mecanismo periférico ou residual, reprodutor de estratégias usuais de
mistificação das desigualdades e de ocultamento das suas causas, que reduz suas respostas a
programas pontuais, pretensamente reformadoras das condutas individuais e grupais, sem qualquer
conteúdo ou potência transformadora da realidade dos sujeitos, ainda que imediata.
Nossa investigação busca inquirir em que medida o desenho teórico-político das medidas de
proteção social podem ser fecundados de conteúdos e estratégias que deflagrem a autonomia crítica
dos sujeitos, e seu despertar para a organização e luta coletivas, como princípio fundamental para
avançar na contramarcha dos processos de subalternização política, de exploração econômica e de
exclusão sócio-cultural. Assim, o fomento a participação popular, como instrumento de politização e de
desenvolvimento endógeno, é parte da experiência venezuelana a revelar veredas inéditas nesta
construção. Na Venezuela a Constituição Federal direciona o direito universal a seguridade social a
todos os cidadãos, não elegendo a família como núcleo de intervenção específico:
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Artículo 86. Toda persona tiene derecho a la seguridad social como servicio público
de carácter no lucrativo, que garantice la salud y asegure protección en
contingencias de maternidad, paternidad, enfermedad, invalidez, enfermedades
catastróficas, discapacidad, necesidades especiales, riesgos laborales, pérdida de
empleo, desempleo, vejez, viudedad, orfandad, vivienda, cargas derivadas de la vida
familiar y cualquier otra circunstancia de previsión social. (REPÚBLICA
BOLIVARIANA DE VENEZUELA, 2000, p. 90-91).
A prerrogativa de participação popular protagoniza as reformas políticas, sociais e econômicas
que iniciaram no país através da reforma constitucional a partir da vitória do atual presidente Hugo
Chávez em 1998. Com a aprovação da nova Constituição Bolivariana define-se o Estado como
federal, descentralizado e democrático, com apego a valores como a justiça, a participação, a
equidade e a responsabilidade social que devem orientar a atuação do mesmo.
Desta forma, os principais destaques no Estado bolivariano referem-se ao impacto positivo das
misiones na transformação das condições de vida da população e aos processos político-sociais de
caráter genuinamente democrático e protagônico-participativo, marca decisiva das políticas sociais na
Venezuela.
Em caminho distinto, cabe especular o sentido subjacente ao contido na Constituição da
República de Cuba, ao distinguir a família como célula fundamental da sociedade e como dever do
Estado, no que reserva uma forte proteção estatal a esta.
Desta maneira, distintamente do Brasil ou do Chile, nos quais esse dever apenas adorna a
Carta Magna ou o transfere para o âmbito privado das relações, em Cuba as políticas públicas
materializam tal concepção no que tange à educação, saúde e habitação, ao passo que garante
espaços democráticos e de participação popular. A proteção social do Estado na área da assistência
social considera a necessidade do núcleo familiar, levando em consideração a família para a
prestação de serviços ou auxílios monetários. Temos, pois, que o Estado se responsabiliza pela
proteção social da família, apoiando as distintas situações que pode se encontrar a pessoa ou o
núcleo familiar. Em nenhuma legislação vigente desloca a responsabilidade do Estado para a família e
inflama as políticas sociais com o apelo a sociedade.
A assistência social, a partir da Revolução Cubana, vale ressaltar, ganha grande conotação na
agenda pública do país, a fim de abarcar toda a população que dela necessitar. Para tanto, entre 1967
e 1976 são criadas as Comissões do Plano Assistencial em todo país e que com o apoio das
Organizaciones de Masas conseguiram levar a assistência a 100% da população. (REPÚBLICA DE
CUBA, 2007). A política integra o Sistema Nacional de Seguridade Social regulada pela Lei n°24 De
Seguridad Social e prevê a proteção do Estado diante da necessidade do núcleo familiar, ou seja,
quando esse não possui condições de prover as necessidades dos seus membros.
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As famílias também aparecem como sujeitos centrais na política pública cubana, por meio da
participação popular de modo efetivo, que pode ser observado pelas Assembléias Populares do
Poder Popular. A participação popular também se observa nos Conselhos de Saúde e nas
assembléias semestrais de prestação de conta dos representantes políticos aos eleitores. É neste
último que a população tem um espaço privilegiado para expressar seu grau de satisfação e
insatisfação com os serviços sociais. (CEPAL, 2004).
2. 3 Considerações Finais
Face o exposto, é importante ressaltar que vivemos na América Latina uma trajetória paradoxal,
mas decisiva em termos da ultrapassagem do legado da precarização e do improviso, da omissão e
da transferência de responsabilidades no campo das políticas sociais, não obstante as
dessemelhanças e falta de sincronia nos processos políticos que as impulsionam. Tais traços foram
marcantes nas formulações contra-reformistas das últimas décadas do século xx, onde era quase
exclusiva a preocupação com a contenção do gasto social, geradora de uma grave omissão estatal,
especialmente quando as políticas sociais eram destinadas às maiorias mais necessitadas. Neste
caso, a proteção socioassistencial, ao invés de distendida, em razão proporcional à pobreza e às
amplas necessidades coletivas, era confinada ao gueto da focalização extremada, reprodutora,
portanto, de medidas débeis e impotentes.
Se preferirmos examinar mais de perto as experiências organizadas diretamente no campo
das políticas sociais, um dado precioso precisa ser aferido. Trata-se da experiência de organização do
protagonismo popular, na perspectiva de socialização das estruturas de poder político, capazes de
afetar, em favor das maiorias, as decisões vitais no espaço dos direitos sociais, para muito além do
que se tem pleiteado como participação social. Estas estratégias estão em curso em países como
Venezuela, Equador, e Bolívia, além de iluminarem o processo revolucionário do povo cubano neste
quase meio século de regime socialista.
Desse modo, radicalizar a democracia significa não somente permitir que as massas alcancem
o poder político, implica também em priorizar o acesso a cultura e ao conhecimento em caráter
universal, mas principalmente possibilitar o acesso e usufruto às riquezas coletivamente produzidas
pelo conjunto da classe trabalhadora. Por isso, é mais uma vez inspirador lembrar a utopia de Marx
por uma ordem social na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição necessária para o
livre desenvolvimento de todos.
Finalmente, a pesquisa tem demonstrado que juntamente com o exame das particularidades
da política social em cada contexto nacional segue a tarefa da ciência crítica de é desvendar os vieses
da luta política cotidiana dos indivíduos, grupos sociais e movimentos organizados no acesso aos
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bens e direitos sociais, no âmbito também da combinação entre a regência das necessidades
humanas - do corpo ou do espírito - ou como diz Marx - do estômago ou da fantasia - com a
satisfação ética, coletiva e justa destas necessidades. Há que se propor e debater uma nova práxis de
luta, na qual a política social deixe de ser instrumento exclusivo ou mecanicamente subordinado ao
capital, no sentido de preservar a acumulação, para - referenciada no processo de disputa política pelo
excedente econômico real pelas massas historicamente expropriadas - operacionalizar mecanismos
de realização da participação e da liberdade.
Para além do desafio de concretizar direitos numa sociedade globalizada e desigual a tarefa em
tela remete a retomada de um projeto efetivamente crítico, vincado no projeto sócio-histórico das
classes trabalhadoras pela emancipação e liberdade, rumo a uma sociedade sem classes e livre de
opressão, ou seja, que materialize o empenho de transformação dos povos latino-americanos nas
trilhas da superação da ordem capitalista vigente, da revolução, da liberdade e da felicidade.
12
3 Referências
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Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social PNAS; Norma Operacional Básica
NOB/SUAS. Brasília, novembro de 2004.
_______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Bolsa Família: agenda de
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