A fragmentação do eu e a noção de eu

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SECRETARIA DE ESTADO DA SAUDE
COORDENADORIA DE RECURSOS HUMANOS
FUNDAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO – FUNDAP
PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL
MICHELLE BITTENCOURT BRAGA
A fragmentação do eu e a noção de eu-pele: o corpo e a clínica de
queimados
São Paulo
2010
1
SECRETARIA DE ESTADO DA SAUDE
COORDENADORIA DE RECURSOS HUMANOS
FUNDAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO ADMINISTRATIVO – FUNDAP
PROGRAMA DE APRIMORAMENTO PROFISSIONAL
MICHELLE BITTENCOURT BRAGA
A fragmentação do eu e a noção de eu-pele: o corpo e a clínica de
queimados
Monografia apresentada ao Programa de
Aprimoramento Profissional/SES, elaborada
no Hospital do Servidor Público Estadual –
Francisco Moratto de Oliveira.
Área: Psicologia Hospitalar
SÃO PAULO
2010
2
Ao meu pai, em memória,
por sua força, honra e coragem.
Aos meus pacientes,
pelos exemplos de dignidade e perseverança.
3
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Mariangela Bento, por seu trabalho essencial para a construção desse
trabalho, com seus conhecimentos, atenção, flexibilidade e gentil compreensão.
À Eva Wongtschowski, Kátia Wanderley, Milene Shimabuku e Maria Tereza Montserrat, por
compartilharem seus conhecimentos, por permitirem troca de experiências nas orientações dos
casos e possibilitarem o aprendizado.
Às minhas colegas de profissão, especialmente Bruna Lyra, Daniela Higa e Gabriela
Vendramini, pelo acolhimento, incentivo e pelos diálogos derivados de nossa atuação
profissional que foram extremamente enriquecedores.
À minha mãe, por sua luta e por todo apoio, por sempre ser meu motivo de orgulho.
À minha família, meu porto seguro.
As minhas amigas Aline Freitas e Mariana Mac Dowell, pelo apoio, pelo companheirismo e
interesse em discutir esse assunto, mesmo não sendo de suas áreas de conhecimento, e pela
contribuição fundamental para elaboração desse trabalho.
Também a todas as pessoas que de alguma forma se envolveram no processo de
desenvolvimento desse trabalho, em um período difícil de perda.
4
O DESPEDAÇADO AO ESPELHO
Até a alma ensanguentadamente desnudo,
Sem poder ver o mundo.
O despedaçado se olha ao espelho
e inveja o que nele é inteiro.
E, a um primeiro olhar, o espelho parece partido, mesmo estando inteiro,
Pois reflete os fragmentos do seu parceiro.
Mas a imagem refletida dentro de sua água
é um reflexo seco que nem toca o espelho
nem pela água especular é tocada.
Assim, é pela pura suavidade de alguém vê-lo partido,
Que a imagem incorpórea se parte
sem fazer tocar a matéria dura de sua partitura.
O espelho inteiro, vendo-se olhado,
Fita o homem por meio dos olhos de caco
que lhe dão a imagem do despedaçado:
O espelho vê tudo pelos olhos alheios.
Olhos que, apesar de quererem ver apenas a si mesmos,
Por curto tempo lhe foram doados e surpresos.
O espelho inteiro o olha,
Por meio do corpo esfacelado
que lhe foi emprestado,
E, em troca, empresta ao homem mais do que lhe foi dado:
Devolve-lhe a própria imagem do corpo
despedaçado,
Rodeada da imagem do mundo ao lado.
Os cacos, sendo muitos,
São mil olhos fitando todo o mundo,
E cada olho crucifica-se e é crucificado
pela imagem sem carne e pelo fado
do humano homem despedaçado
Oscar Gama Filho
5
RESUMO
BRAGA, M. B. A fragmentação do eu e a noção de eu-pele: o corpo e a clínica de
queimados. 2011. 50f. Trabalho de Conclusão de Curso. Programa de Aprimoramento em
Psicologia Hospitalar do Servidor Público Estadual – Francisco Moratto de Oliveira (HSPEFMO), São Paulo, 2011.
O objetivo deste trabalho é o de observar a dor psíquica experimentada por meio da
queimadura, com importante embasamento na concepção do eu-pele e na idéia de
fragmentação do eu. Para tanto, o trabalho foi estruturado em introdução, referencial teórico,
objetivo, metodologia, casos clínicos discutidos e considerações finais. No referencial teórico
destaca-se a constituição do eu sob o prisma do Ego-corporal e o narcisismo, pois se observa
que o ego é, antes de tudo, um ego corporal e que com o narcisismo há a construção de uma
imagem integrada e perfeita que possibilita a identificação e o reconhecimento, permitindo a
construção tanto da imagem corporal, quanto da realidade. Estuda-se que a imagem que se faz
do corpo é de um corpo em que se insere o desejo. Analisados tais aspectos, a noção de Eupele torna-se fundamental, na medida em que a sua instauração responde a necessidade de um
envelope narcísico e assegura ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um bem-estar
de base. Isto exposto, a queimadura é relacionada com o sofrimento da dor psíquica, mental,
devido à abertura repentina e violenta nos limites da pele. Constatou-se que quando o apoio
corporal é privado, o Eu-pele apresenta falhas em algumas de suas funções, gerando
precariedade nas funções de contenção psíquica. Após foi possível realizar a descrição de
casos clínicos de crianças queimadas que estiveram internadas na “Enfermaria de Queimados
do Hospital do Servidor Público Estadual Francisco Morato de Oliveira” e que passaram por
consulta com psicólogo e analisá-los tomando-se por base a teoria psicanalítica. A conclusão
é de que o intenso impacto das modificações orgânicas decorrentes da queimadura altera a
noção de imagem corporal do sujeito. Diante dessa extrema fragilidade narcísica o não
reconhecimento do corpo queimado como seu vai de encontro com o sentimento de um eu
fragmentado e despedaçado, situação que precisa ser elaborada.
Palavras-chave: Fragmentação do eu. Eu-pele. Queimadura. Dor psíquica. Psicanálise.
6
ABSTRACT
BRAGA, M. B. The fragmentation of the self and the skin-ego´s concept: the body and
the burnt clinics. 2011. 50f. Trabalho de Conclusão de Curso - Programa de Aprimoramento
em Psicologia Hospitalar do Servidor Público Estadual – Francisco Moratto de Oliveira
(HSPE-FMO), São Paulo, 2011.
The purpose of this thesis is to observe the psychic pain experienced by burn, with important
foundation on the conception of the skin-ego and on the idea of the fragmentation of the self.
The work was structured in introduction, theoretical referential, objective, methodology,
discussion of clinical cases and final considerations. The theoretical referential emphasizes
the constitution of the self through the prism of the body-ego and narcissism, since it is
observed that the ego is, first and foremost a bodily ego, and that with the narcissism there is a
construction of a built and perfect image that enables the identification and recognition,
allowing the construction of both, the body image and the reality. The study encompasses the
idea that the image that it makes with is a body that fits the desire. Having examined all these
aspects, the idea of skin-ego becomes crucial as your construction answers the necessity of a
narcissistic envelope and ensures to the psychic apparatus the certainty and constancy of a
welfare. Given that, the burn is related with the suffering of a psychic and mental pain, due to
the sudden and violent opening of the limits of the skin. It was established that when the
corporal support is deprived, the skin-ego presents failures in some of its functions, creating
precariousness in the psychic´s contention functions Then, it was possible to make the
description of clinical cases of burned children that were interned into the “Enfermaria de
Queimados do Hospital do Servidor Público Estadual Francisco Morato de Oliveira” and that
were submitted to psychologist consult and were analyzed using the psychoanalytic theory as
basis. The conclusion is that the intense impact of organic changes resulted from burns alters
the concept of the body image of the fellow. In face of this extremely fragile narcissistic, the
non-recognition of the burned body as yours, meets with the feeling of a shattered and
fragmented self, situation that needs to be elaborated.
Keywords: Fragmentation of the self. Skin-ego. Burn. Psychic pain. Psychoanalytic theory.
7
SUMÁRIO
08
1
INTRODUÇÃO..................................................................................................
2
REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................. 10
2.1
Constituição do Eu.......................................................................................... 10
2.1.1
O Ego-corporal................................................................................................................
10
2.1.2
Narcisismo.......................................................................................................................
12
2.2
O corpo..............................................................................................................
15
2.2.1
A imagem corporal..........................................................................................................
15
2.2.2
O corpo na Psicanálise.....................................................................................................
16
2.3
A idéia de eu-pele............................................................................................ 18
2.4
A queimadura............................................................................................
21
2.4.1
Conceito e classificação. O paciente queimado...............................................................
21
2.4.2
A dor física......................................................................................................................
23
2.4.3
Considerações sobre a hospitalização de crianças queimadas.........................................
25
3
OBJETIVO.........................................................................................................
26
4
METODOLOGIA..............................................................................................
29
5
OS CASOS CLÍNICOS:....................................................................................
31
5.1
Discussão
dos
casos:
uma
queimadura,
três
experiências.......................................................................................................... 31
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................
44
REFERÊNCIAS.................................................................................................
46
ANEXO: DICIONÁRIO MÉDICO PARA O PÚBLICO – DIVISÃO DE
QUEIMADOS...................................................................................................
51
8
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho se constitui na monografia de conclusão do Programa de
Aprimoramento em Psicologia Hospitalar do Servidor Público Estadual – Francisco Moratto
de Oliveira (HSPE-FMO) e possui como tema a interrelação entre teorias relacionadas ao
corpo e a importância da pele na constituição do “eu” e casos de pessoas que sofreram
queimaduras.
O interesse pelo tema se desenvolveu a partir de atendimentos psicológicos realizados
com pacientes na Enfermaria da Clínica de Queimados do Hospital do Servidor Público acima
indicado. O discurso das crianças que apresentavam seus corpos marcados por queimaduras
graves foram os mais decisivos para o corte epistemológico que foi efetuado.
Observa-se que a duração de internação de um paciente queimado quase sempre é
longa e o atendido é submetido a procedimentos que são, apesar de necessários, invasivos e
dolorosos. Mesmo antes do tratamento deve ser ressaltado que o paciente com trauma térmico
sofre uma dor psíquica, mental, devido à abertura repentina, violenta nos limites da pele
(ANZIEU, 1989), sendo este o aspecto de grande relevância para a presente monografia.
Tomando a dor como uma reação afetiva a uma perda, Nasio (2006), define a dor
como sendo sempre o resultado da perda violenta de uma unidade, seja na dor física, ou na
dor psíquica.
Como será analisado, o narcisismo é entendido como uma fase do desenvolvimento
em que no inicio o eu é corporal, ou seja, o corpo se confunde com o eu, passando a se tornar
objeto de investimento libidinal do próprio sujeito (FREUD, 1924).
Com relação à doença orgânica, Freud a descreve como um estado de intensificação
do narcisismo em que o sujeito retira os seus investimentos libidinais dos objetos, havendo
uma falta de interesse pelo mundo externo, e a investe de volta em seu próprio ego,
direcionando seu interesse para o seu próprio sofrimento.
Diante de tais aspectos como entender a sensação do paciente queimado de não
reconhecer o corpo como seu? Qual é o impacto do corpo na fragmentação do eu? Quais as
fantasias diante da superfície corporal? Como a psicanálise poderia auxiliar no alívio dessa
dor?
Assim está desenhado o propósito desse trabalho, que é observar a dor psíquica
experimentada por meio da queimadura relacionando com eu-pele, levando em consideração a
fragmentação do eu.
9
Para tanto, no desenvolvimento do trabalho, será realizada uma revisão teórica dos
principais conceitos referentes ao tema proposto. Em seguida, será apresentado o material por
fragmentos clínicos e realizada uma discussão sobre o tema.
10
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 CONSTITUIÇÃO DO EU
Alguns autores dedicaram seus estudos para tentar compreender como a noção de
“Eu” se constitui dentro das suas respectivas teorias. Aqui, em função do tema proposto,
importa avaliar um dos aspectos desta composição do eu, qual seja, o surgimento e a
formação do Ego, a partir dos conceitos desenvolvidos por Sigmund Freud (1856-1939), que
supõe que as sensações internas e externas são produzidas pela projeção do Ego na superfície
corporal.1 Além disso, cumpre observar que com o narcisismo há construção de uma imagem
integrada e perfeita e, a partir de então, ocorre a identificação e o reconhecimento, permitindo
a construção tanto da imagem corporal, quanto da realidade.
2.1.1 O Ego-corporal
Segundo Freud, o ego é formado a partir da diferenciação dos estímulos endógenos e
exógenos para atender o princípio da realidade. Surge como uma barreira, um filtro para os
referidos estímulos. Em seu artigo O ego e o Id (1996b/1923), Freud descreve o Ego como
uma parte do Id que foi modificada e que estaria formado por experiências resultantes da
influência direta do mundo externo. Para Andrade (2003), o ego-corporal é, pode-se observar,
a projeção do ego na superfície corporal na qual são produzidas as sensações externas e
internas.
1
Importa diferenciar id, ego e superego, conforme consta no Dicionário de Psicanálise, de Roudinesco e Plon
(1998): O conceito de Id absorve os atributos antes relativos ao sistema inconsciente (Ics.) na primeira tópica,
formando um reservatório de conteúdos de natureza pulsional. Este reservatório pulsional caracteriza-se pela
desorganização e pelo caos. Em 1923, na 2 ª tópica, Freud formulou ser o Ego uma parte diferenciada do Id.
Através da influência direta do mundo externo, por intermédio do sistema percepção-consciência (Pcpt-Cs), uma
parte do Id se modifica, formando o Ego. Por incluir o sistema perceptivo, torna-se o lugar de recepção mnêmica
deixada pelas palavras e do contato vital da primeira infância. O conceito de Superego foi sugerido inicialmente
no artigo “Sobre o narcisismo: uma introdução de 1914”. Neste artigo, Freud (1914) formulou a noção de ideal
do ego – sendo o instrumento utilizado pelo Eu para observar a si mesmo. O Superego seria portador e sinônimo
do ideal do ego e o resultado é Complexo de Édipo. É em parte inconsciente e suas funções estão ligadas ao
ideal, à proibição e ordem, e à função de repressão.
11
Quando do início da constituição do eu, o aparelho psíquico do bebê não está
completamente formado, não havendo um ego que consiga se diferenciar e se reconhecer
como um sujeito separado do mundo externo. O bebê apenas reconhece as sensações e
percebe como sendo prazerosas ou não (FREUD, 1996b/1923). A percepção desempenha para
o ego o papel que cabe às pulsões no id.
Neste contexto, a sensorialidade é importante para a constituição do sujeito, já que é
uma das primeiras formas de comunicar-se com o mundo. Para o bebê, será a relação
sensorial com o outro que permitirá a simbolização, através, do estabelecimento de um
diálogo afetivo corporal. O vínculo da mãe com o bebê é, por exemplo, estabelecida durante
os primeiros cuidados (NOVAES, 2005). A participação dessas sensações corporais
caracterizadas por uma alternância de prazer e desprazer no corpo erógeno é fundamental. As
experiências de prazer enriquecem e favorecem a construção de tais estruturas afetivas,
enquanto as experiências de desprazer podem ser empobrecedoras e tender para um
enrijecimento do psiquismo.
Ainda sobre a formação do ego e sua diferenciação do id, Freud (1996b/1923), afirma
que o próprio corpo, e, acima de tudo, sua superfície, como um lugar que pode originar as
sensações internas e externas, equivalente a uma percepção do sujeito, que vai se constituindo
uma idéia de corpo. A pele seria a membrana decodificadora destas marcas, viabilizando as
percepções sensoriais táteis que posteriormente serão inscritas no registro simbólico. Essa
superfície corporal pode ser pensada como um intercâmbio entre o mundo e o bebê (NAVES;
FÉRES-CARNEIRO, 2007).
Com a formulação da sexualidade infantil e com a postulação do “corpo erógeno”,
que se constitui a partir desse corpo representado, ou seja, o corpo investido de libido, o corpo
da fantasia, - há a necessidade de articular o corpo representado com o corpo biológico, sendo
que a pulsão colocada como um limite entre o psíquico e o somático.
Nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1996d/1905), Freud caracteriza a
vida sexual infantil e descreve como sendo auto-erótica, ou seja, o objeto de satisfação
encontra-se no próprio corpo. As pulsões são inteiramente independentes entre si, são as
pulsões parciais. A pulsão é uma medida de exigência de trabalho feita à vida psíquica e o que
as diferencia entre si é as relações com as fontes somáticas e seus alvos.
Através dos investimentos da pulsão que o ser humano conhece o mundo, mas também
se descobre como corpo no mundo (FREUD, 1996c/1914). E essa experiência vai subjetivar
também o corpo biológico e que o torna suporte de uma aparelhagem psíquica diante do
desejo.
12
O bebê, como corpo biológico, é antecipado como realidade psíquica ao ser
inventado pelos pais, mas herda dessa invenção, que é também uma
invenção da cultura nele, a possibilidade de inventar na corporalidade. Tal
corporalidade lhe permite transbordar para um mundo que será, doravante,
como um dia lhe teria sido o seu corpo biológico originalmente. É nesse
mundo, e não mais em si, que ele poderá reencontrar as sensações primitivas
importantes fornecidas por seus alicerces. (Naves & Féres-Carneiro; 2007).
Segundo Reus (2007), o eu é o elemento que “gerencia” estes conflitos, o que exerce
uma espécie de proteção ao sujeito das agressões do mundo externo e das excitações
pulsionais vindas do inconsciente. É o que se poderia chamar de razão e de bom-senso.
A constituição do eu é formada, deste modo, por um complexo sistema de
acomodações para se constituir como instância, montada e identificada como eu. Este
processo acontece de maneira paulatina durante a vida (TEIXEIRA, 2006). A imagem
proporciona unidade, garantindo a corporeidade. O reconhecimento de si como corpo é
possível a partir do momento que se reconhece o outro como tendo um corpo; em que a pele,
como a superfície deste, tem, conforme apontado, importante papel.
Para Reus (2007), é o olhar da mãe que funda a imagem definitiva que a criança tem
de seu corpo, com o conseqüente reconhecimento de sua imagem no espelho, inaugurando,
assim, o narcisismo.
2.1.2 Narcisismo
Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1996d/1914), Freud detalha a questão da
constituição do eu que fica submetida a um investimento da libido, ou seja, leva a sexualidade
ao centro do eu. Dessa forma, seria entendida como a localização da libido no ego do sujeito,
tendo a sua satisfação no próprio corpo. Narcisismo é um termo proveniente da mitologia
grega segundo a qual um homem jovem contemplava sua própria imagem de maneira
exagerada, o que o levou à morte. Alguns autores chegam a identificá-lo, com base nisto,
como ego-erótico (REBER; REBER; 2001).
O narcisismo pode ser compreendido, neste contexto, como um elemento inerente ao
desenvolvimento libidinal, sendo um complemento da pulsão de auto-preservação. Vale
observar que para Freud (1996d/1914) o ego tem que ser desenvolvido, de modo que não
pode existir – e não existe – no sujeito desde o começo de sua vida.
13
Antes do momento estrutural do narcisismo há o predomínio da parcialidade das zonas
erógenas, ou seja, a satisfação das pulsões ocorre de modo não organizado (como a sucção do
polegar). O narcisismo é o organizador pulsional. “O eu é a nova ação psíquica que deve
acrescentar-se ao auto-erotismo para formar o narcisismo” (MIGUELEZ, 2007).
O narcisismo primário é uma posição preparada pelo desejo e pelo ideal dos pais, e é
esse desejo que constitui o sujeito e forma um eu, pois o narcisismo é uma operação que se
organiza em torno dele e possibilita a primeira unificação das pulsões sexuais em torno do eu
(FREUD, 1996d/1914). Para que o narcisismo aconteça é necessário investimento externo,
aliás, tanto o investimento no eu do bebe quanto o seu corpo erógeno devem ser investidos
pelos pais. A criança vai passar não só a ser alimentada por uma imagem ao mesmo tempo
integrada e de perfeição, mas também vai poder, a partir daí, definir-se, identificar-se e
reconhecer-se. Essa imagem de completude é reconhecido como o „eu ideal‟.
O conceito de narcisismo surge dentro de uma dialética intersubjetiva (eu/outro); é do
encontro com o olhar da mãe que um “eu” pode ser estruturado (Miguelez, 2007).
Inicialmente os objetos de satisfação pulsional estão relacionados com a própria necessidade
de sobrevivência do bebê para depois dirigirem a outra pessoa. É somente a partir da
constituição de uma imagem de si mesmo, que é possível pensar a questão da relação com
objetos e da escolha objetal. O abandono desse estado narcísico é necessário para que o ego
possa se desenvolver e investir sua libido nos objetos externos. O eu ideal é a imagem da qual
o sujeito vai se servir para se constitua tanto sua imagem corporal quanto a realidade (Novaes,
2005).
O narcisismo do sujeito surge deslocado em direção a esse novo ego ideal, que está
repleto de toda perfeição de valor. O sujeito ao crescer projeta diante de si como sendo seu
ideal o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal
(FREUD, 1996c/1914). Pode-se afirmar que o ideal do eu poderá se constituir o sucessor, que
segundo Freud, é o herdeiro do eu ideal.
A passagem do narcisismo primário ao secundário faz com que o eu não seja mais o
objeto privilegiado de investimento. Exceto em alguns momentos em que o sujeito adoece. O
eu é a representação que o sujeito faz de si com imagens vindas de impressões externas e o
seu conjunto seria a imagem unificada do corpo.
Em outras palavras, a idéia de narcisismo revela a importância do sujeito se
reconhecer como um ser único, formado com base em elementos de seu desenvolvimento
pessoal, influenciado por algumas referências externas.
14
Lacan (1985) relacionou o primeiro momento da formação do ego com a experiência
narcísica que designou de “fase do espelho” e atribuiu muita importância à presença do outro,
que participa por meio do investimento nessa imagem da criança como eu ideal (conforme
definição de FREUD – 1996c/1914) depositário das expectativas dos pais.
A fase do espelho foi descrita por Lacan (1998/1949), trata-se de uma experiência de
identificação fundamental, durante a qual a criança faz a conquista da imagem que promoverá
a estrutura do eu. Essa imagem é estruturante, pois o eu é antes de tudo um eu corporal, na
medida em que organiza um corpo a partir de uma idéia de unidade do eu. Essa imagem
unificada no espelho não corresponde a identidade fragmentada que o sujeito possui naquele
momento. O importante desse momento é o bebê olhar para quem o cerca e identificá-lo como
semelhante, sentindo-se da mesma espécie. Tudo isso ocorre antes que a linguagem lhe
institua a função de sujeito. A origem das identificações secundárias que tem a função de
normalização libidinal é o que situa a instância eu antes de sua determinação social. O adulto
é aquele que introduz o princípio de alteridade, pois o semelhante é ao mesmo tempo outro,
assim como o ego também é outro. A partir desse momento é possível pensar na construção
de uma identificação.
Para Porto (2001), é importante ressaltar a incorporação do corpo erotizado ao eu que
ora pode ser investido, ora não. Didier Anzieu (1989) elaborou conceito de Eu-pele a partir
dessa compreensão. "A instauração do Eu-pele responde a necessidade de um envelope
narcísico e assegura ao aparelho psíquico a certeza e a constância de um bem-estar de base".
O conceito de Eu-Pele ajuda a pensar em um limite e o fechamento deste em si, consiste
o narcisismo que apresenta função de proteção diante dos ataques de que o eu em formação é
objeto: “ataques externos, conseqüência do desamparo do bebê, e ataques internos pelos
representantes da pulsão “(PORTO, 2001).
Com relação à doença orgânica, Freud a descreve como um estado de intensificação
do narcisismo em que o sujeito retira suas catexias libidinais dos objetos, havendo uma falta
de interesse pelo mundo externo, e a investe de volta em seu próprio ego, direcionando seu
interesse para o seu próprio sofrimento.
15
2.2 O CORPO
2.2.1 A imagem corporal
As primeiras experiências do bebê com o meio externo são realizadas com o mundo
que a mãe apresenta, inicialmente satisfazendo as necessidades à medida que elas surgem. A
superfície do corpo da mãe em contato com o bebê proporciona experiências muito
importantes. As referências sensoriais trazidas pela presença da mãe possibilitam, dessa
forma, a constituição da imagem corporal (DOLTO, 1996).
Nesse sentido, a criança aprende a se reconhecer através do outro, isso implica em
pensar em seu desejo, tal como seu corpo que não é inicialmente vivido como seu, mas
projetado e alienado no outro (CUKIERT; PRISZKUNLNIK, 2002).
Para Barroso (2006), as imagens têm importância para o ser humano mesmo antes de
ele começar a falar e que o sentido do termo “imagem”, em psicanálise, remete ao sujeito com
as identificações formadoras do eu. A identificação é a transformação produzida no sujeito ao
assumir uma imagem.
Ocorre que para ter acesso a uma imagem, ou seja, para decodificá-la, é necessário que
o sujeito venha a reconhecer sua própria forma e, assim, assimilar o que reconhece. Deste
modo, há a relevância de construção de uma auto-imagem.
Um bom desenvolvimento da auto-estima permite uma boa auto-imagem, já que o eu
interior estaria de acordo com o eu que transparece ao mundo. Segundo Silva (2004), a autoimagem está relacionada com a percepção do próprio corpo, sua aparência e suas
potencialidades. O corpo se destaca pela imposição social do ideal de corpo, dessa forma o
corpo é alvo de grande investimento assim como fonte de grande frustração e sofrimento. Na
atualidade, o corpo constitui o parâmetro central para as concepções de saúde, doença,
normal, patológico, vida e morte, bem como modelo normativo de beleza e de boa forma
física (COSTA, 2010). Tais qualidades tornam-se referenciais de conduta, viabilizando todo
um mercado da estética. Tal indústria contribui para o que Costa (2010), chama de cultura
somática e personalidade somática.
Modificações orgânicas decorrentes de doenças ou acidentes podem mudar a autoimagem, e as conseqüências estão relacionadas com a natureza da mudança e o significado
que o paciente dá para ela. (SILVA, 2004)
A imagem de um rosto emoldurado por poucos cabelos, decorrente de tratamento
quimioterápico, pode, por exemplo, ensejar repugnância ou ser bem recebida, compreendida
16
como fase de uma intervenção medicamentosa necessária para uma possível cura. Outro
exemplo, importante para esta pesquisa, é o significado que o paciente que sofreu
queimaduras dará para a condição de sua pele.
Nestes casos, aos quais poderiam ser somados muitos outros, as pessoas,
especialmente os profissionais da saúde, com as quais o paciente se relaciona podem ajudá-lo
a aceitar sua imagem modificada. Segundo Silva (2004, p. 208) “a elevação da auto-estima
não depende da beleza que é refletida no espelho, mas da forma como ela é vista neste mesmo
espelho”.
2.2.2 O corpo na Psicanálise
Como já foi estudado nos tópicos anteriores, a formação da criança começa antes
mesmo de ela nascer biologicamente. Antes de vir ao mundo, já é marcada pelo desejo
inconsciente dos pais e ocupa um lugar no imaginário desses pais, já pertence a uma família,
cultura, religião.
A criança, segundo a teoria freudiana, nasce com o corpo-organismo que passará pelas
etapas de desenvolvimento e de maturação estudadas pela Biologia (PRISZKULNIK, 2004).
Para Mendes (2009), com base nas observações de pulsão como conceito que exige a
consideração do corpo biológico como fonte de estimulação, da constituição do Eu sobre uma
base corporal e da noção de complacência somática, vê-se como o corpo, no discurso
freudiano, é bem mais do que apenas fruto da representação, pois supõe outra ordem além do
simbólico: a existência de um “corpo primeiro”, o corpo material, orgânico e biológico.
Dessa forma, a noção de corpo para a psicanálise é diferente da noção de corpo para a
biologia (PRISZKULNIK, 2004). O corpo biológico é um corpo objetivado, um organismo
que apresenta um funcionamento específico dos vários órgãos e tecidos. A noção de corpo
suposta em Freud além de ser um corpo-objeto particularizado em um corpo-organismo, é
também sujeito (BIRMAN, 2005), e isso não significa que o corpo esteja excluído como um
fator determinante dos processos psíquicos. A psicanálise fala de um corpo onde se insere o
desejo, onde na relação com o outro é que estabelece uma relação intersubjetiva; o corpo da
sexualidade (NIGRO 2004).
Freud (1996a/1926) propõe uma nova leitura da corporeidade, que conseqüentemente
apresenta uma nova leitura da construção do sujeito humano. A Psicanálise freudiana enfatiza
17
a palavra e o poder da palavra: a palavra nomeia, ordena, alivia, consola cura
(PRISZKULNIK, 2004).
Lacan (1985), também se refere ao corpo como um corpo marcado pela linguagem, o
corpo que pode ser “tocado” por meio da palavra.
De acordo com Anzieu (1989), o registro tátil no corpo possui um registro sensorial
que está situado tanto na origem do psiquismo quanto fornece permanentemente para o
psíquico uma espécie de tela de fundo sobre a qual os conteúdos psíquicos se inscrevem como
figuras ou, ainda, constitui o envoltório-continente que permite ao aparelho psíquico abrigar
conteúdos. O autor explica que a percepção simultânea que o tato oferece de um externo e de
um interno prepara o desdobramento reflexivo do Eu consciente apoiado sobre a experiência
tátil.
18
2.3 A IDÉIA DE EU-PELE
Anzieu (1989) introduz a noção de Eu-pele colocando em relevo fantasias de pacientes
relativas à superfície corporal que indicam momentos de extrema fragilidade narcísica. Essas
fantasias apontam para uma importância da superfície corporal na constituição do Eu que, de
certa forma, remetem a formas primitivas de ligação da excitação pulsional.
O Eu-pele é uma realidade do tipo fantasmático: figurada ao mesmo tempo
nas fantasias, nos sonhos, na linguagem corrente, nas atitudes corporais, nas
perturbações de pensamento; e fornecedora do espaço imaginário que é o
componente da fantasia, do sonho, da reflexão, de cada organização
psicopatológica. (Anzieu, 1988)
Assim se compreende a idéia do Eu-pele que se relaciona com a configuração inicial
do Eu, na fase precoce do processo de estruturação e nas sensações corporais, e, de forma
particular, com funções da pele. Para esse processo, Anzieu (1989) destaca a função envelope
que assegura constância de um bem-estar de base; “há necessidade do aparelho psíquico se
construir num envelope que o contenha e que o dê limite, que o proteja, e que permita trocas
com o exterior” (ANZIEU, 1993).
Anzieu (1989) enfatiza a importância dos vários envelopes que se constituem na
relação com o outro: os envelopes de sofrimento, térmicos, olfativo, entre outros. Isso inclui o
caráter libidinal do investimento do outro no corpo da criança, relacionado ao narcisismo,
conforme exposto.
Na relação inicial mãe e bebê, a etapa seguinte é o reconhecimento de que cada um
tem sua própria pele e seu próprio eu. Tal reconhecimento não acontece de forma pacífica,
pelo contrário, com resistência e dor, como se a pele que lhes era única tivesse sido arrancada,
“roubada”. De qualquer forma, a partir daí, considerada a criança em seu processo de
desenvolvimento, existe agora um sujeito que tem uma história interior e que pode passar da
relação narcísica a uma relação objetal.
Anzieu tem como base, para construção de suas idéias sobre o Eu-pele, a afirmação de
Freud (1996b/1923), segundo o qual “O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal;
não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma
superfície”. Para Anzieu (1989), o Eu é uma superfície (aparelho psíquico) e a projeção de
uma superfície (do corpo). O Eu tem o funcionamento primeiramente de acordo com uma
estruturação em Eu-pele e passa de um sistema de funcionamento para outro renunciando à
prioridade dos prazeres da pele, transformando em experiência tátil concreta.
19
Anzieu (1989) compara o fato de que a pele tem a maior superfície do copo e o maior
peso de todos os órgãos à pretensão do Eu de envolver a totalidade do aparelho psíquico e de
ter maior peso sobre o seu funcionamento. Da mesma maneira, a tendência ao encaixe dos
folhetos externo e interno do Eu-pele e dos envelopes psíquicos só aparece em relação ao
emaranhado das camadas que compõem a epiderme, a derme, e hipoderme. Assim, “a
Complexidade do Eu e na multiplicidade de suas funções poderiam igualmente ser
correlacionadas à existência de numerosas e importantes diferenças de estrutura e de função
de um ponto da pele a outro” (ANZIEU, 1989).
Tais afirmações sobre o fornecimento da pele ao aparelho psíquico de representações
na constituição do Eu levam a pensar na situação específica de pessoas que sofreram
queimaduras, tópico abordado de maneira mais profunda adiante. Por ora é relevante chamar a
atenção para o fato de que no caso de pacientes queimados, é como se a função exercida pela
pele estivesse abalada. A queimadura torna-se real e quando isso acontece a subjetividade
também é prejudicada.
Retomando as idéias de Anzieu (1989), este definiu algumas funções para o Eu-pele,
pois compreende que a pele é um dos meios que o psiquismo utiliza para constituir o Eu no
decorrer do desenvolvimento. Em outras palavras, as diversas funções da pele servem de
suporte para o Eu-pele ser o envelope psíquico que demarca o mundo interior e o mundo
exterior, cuja origem estaria apoiada no envelope corporal (ANZIEU, 1989).
Anzieu (1989) classifica essas funções em nove: 1- Função de manutenção do
psiquismo; 2- Função continente; 3- Função de estrutura virtual; 4- Função de individuação
do Self; 5- Função de intersensorialidade; 6- Função de sustentação da excitação sexual; 7Função de recarga libidinal; 8- Função de inscrição de traços sensoriais táteis; 9- Função
tóxica/ autodestruição.
Entre essas funções, para a discussão do objeto da pesquisa em desenvolvimento,
sobressaem três, quais sejam: Função de manutenção do psiquismo, Função continente e
Função de intersensoriedade.
Na Função de manutenção do psiquismo a mãe exerce uma função continente que
envolve e sustenta o bebê. O Eu-pele se torna uma parte dessa mãe, uma vez que foi
interiorizado. Desta forma, fornece unidade e solidez ao aparelho psíquico.
Já segundo a Função continente, o Eu-pele funciona como uma casca necessária para
conter as pulsões e o Id pulsional.
Por fim, de acordo com a Função de intersensoriedade, Anzieu (1989) destaca que o
Eu-pele é uma superfície psíquica que liga todas as sensações originadas no envelope tátil.
20
Essa ligação faz com que não ocorra uma fragmentação do corpo e abre um espaço para
serem simbolizadas no Eu-pele.
Pode-se, em suma, compreender que o Eu-pele encontra seu apoio nas diversas
funções da pele. A primeira função destacada é a de bolsa que contém e retém em seu interior
“o bom e pleno”, ali armazenados com os cuidados, as experiências de ser segurado nos
braços, apertado contra o corpo da mãe, da qual sente calor, o cheiro, os movimentos e por
quem é carregado, manipulado, esfregado, tudo isso acompanhado por um banho de palavras,
muitas vezes também por um cantarolar. A segunda função é a interface que marca o limite
com o de fora e o mantém no exterior. A terceira é um meio primário de comunicação com os
outros é uma superfície de inscrição de traços deixados por tais relações.
21
2.4 A QUEIMADURA
2.4.1 Conceito e classificação. O paciente queimado
As queimaduras são lesões dos tecidos orgânicos em decorrência de trauma de origem
térmica resultante da exposição a chamas, líquidos quentes, superfícies quentes, frio,
substâncias químicas, radiação, atrito ou fricção, ou seja, “alterações produzidas por traumas
térmicos que vão alterar mais ou menos gravemente a integridade cutânea e a função da pele e
das mucosas” (MIMOSO, 1988 apud por MENESES, 2007, p.162). Tais lesões são
determinadas não apenas pelo tipo de agente, mas também pela temperatura a que estiveram
expostos os tecidos e o tempo de contacto do tecido com o agente.
A agressão celular produzida pelas queimaduras gera eventos que vão desde produção
de toxinas até alterações circulatórias originam, dessa forma, uma disfunção orgânica grave
que pode até levar à morte. Ao mesmo tempo, ocorre a instalação e a proliferação de
microorganismos na ferida aberta como bactérias e fungos. As alterações circulatórias podem
levar à insuficiência renal, enquanto que a proliferação dos microorganismos pode levar a um
quadro de infecção generalizada (sepse), sendo esta a responsável atualmente por 75% dos
óbitos nos pacientes queimados (PELON, 2010).
As queimaduras são classificadas, segundo Thelan et. al (1996), pela profundidade da
destruição das camadas da pele, em:
- Queimadura de primeiro grau: é a mais superficial, pois compromete só a epiderme, e a
área queimada apresenta-se avermelhada e dolorida (por exemplo, queimaduras solares);
- Queimadura de segundo grau: é de média profundidade, comprometendo a epiderme e
parte da derme e se caracteriza pela presença de bolhas na área queimada (por exemplo,
queimadura por água ou óleo quente);
- Queimadura de terceiro grau: é a mais profunda e mais grave, compromete a epiderme e
toda a derme, podendo apresentar diversos aspectos quanto à coloração, que pode ir da lesão
esbranquiçada ao amarelo, marrom ou preto (por exemplo, queimaduras elétricas ou por
chamas).
2
MIMOSO, Rui Manuel M. (1988). O Grande Queimado. In Nursing, ano 5. Nº 11, Dezembro, pp.16-22.
22
Em relação a classificação das queimaduras as lesões de primeiro grau correspondem
2% de superfície corporal na criança ou mais de 5% de superfície corporal no adulto; lesão de
segundo grau atingindo área superior a 10% na criança ou superior a 15% no adulto;
queimaduras envolvendo face, pés, mãos ou pescoço; queimaduras de região perineal ou na
região genital. A internação na UTI está indicada em pacientes na fase aguda com áreas
queimadas acima de 30% da superfície corporal no adulto e acima de 20% na criança menor
de 12 anos (SOUZA A.A. et al., 2009).
O tratamento das queimaduras sempre foi um desafio não só pela gravidade das lesões
apresentadas por estes pacientes, como também pelas muitas complicações (COUTINHO,
B.B.A. et al., 2010). O procedimento gera bastante angustia não só para o paciente como para
os familiares porque a grande maioria das pessoas não conhece a evolução das grandes
queimaduras, ignora a necessidade de curativos diários e nega a possibilidade de
desestabilizar o organismo como um todo. Os familiares que já sentiram a dor de uma
pequena queimadura e usam do imaginário para se identificar com o paciente queimado
(Leonarde, 2008). Curativos diários, enxertos e tudo isso leva tempo que pode variar de dias a
meses de internação para melhora do quadro e anos de tratamento, inclusive com
reinternações, para cirurgias restauradoras.
Dentro do tratamento cirúrgico das queimaduras existe o tratamento agudo baseado no
desbridamento e enxerto3. O Enxerto é a utilização de pele saudável que deverá servir de
cobertura da área queimada mediante auto-enxertos na mesma intervenção do desbridamento.
O processo de desbridamento consiste na limpeza dos tecidos desvitalizados e deve ser
realizado precocemente a fim de acelerar o processo de cicatrização, diminuindo as seqüelas
funcionais e estéticas. As zonas de onde se obtém a pele são designadas por zonas doadoras.
O tratamento das queimaduras é muito longo e extremamente doloroso envolvendo por vezes
muitas cirurgias. É importante salientar que a maior parte das queimaduras sejam elas
moderadas ou graves tem alterações que podem levar a falência de órgãos nobres.
Nos procedimentos, como o banho e curativo, as ataduras devem ser retiradas e é
nesse momento que o paciente se depara com os ferimentos do seu corpo e com a dor.
A pele é um órgão que tem a importante função de interagir com o meio externo,
mantendo a temperatura afastando do perigo através das sensações transmitidas rede de
3
Vide o anexo: Dicionário Médico para o Público – Divisão de Queimaduras.
23
sensores nervosos. Além disso, funciona como revestimento natural, que mantém o universo
líquido isolado do mundo exterior (PELON, 2010).
As agressões impostas pelas queimaduras são, portanto, muito preocupantes, ainda
mais quando se considera que a pele reveste o corpo. Fato é que as queimaduras geram
traumas físicos e psicológicos, em grande parte, irreversíveis. Promovem alterações locais
como cicatrizes, contraturas e até mesmo distorção da própria imagem, que apesar da
sobrevivência física, resultam com certa freqüência na “morte social” (MACHADO, T.H.S. et
al., 2009). Para Anzieu (1989), a profundidade da alteração da pele é proporcional à
profundidade do dano psíquico.
As queimaduras ocorridas em residência, tanto em crianças como em adultos, podem
gerar um sentimento de culpa da própria vitima e dos familiares. A criança queimada, ao
perceber esse conflito, pode se sentir culpada pelo desentendimento dos pais ou pode
manipular a situação freqüentemente simulando sintomas para obter maior atenção
(COUTINHO, B.B.A. et al., 2010). A pele, que demarca o eu-pele, é posta a prova diante
dessa enorme frustração em relação ao sentimento de culpa.
A fase de reabilitação, segundo Thelan et. al (1996, p. 889) “é uma fase de
recuperação e cicatrização, tanto física como emocional”. Segundo Klein, citado por Meneses
(2007) esta fase tem início quando o doente é capaz de assumir uma parte dos cuidados. O
objetivo é evitar a rigidez na articulação, recuperar a funcionalidade, evitar deformações
anatômicas e estéticas e permitir o retorno das atividades.
2.4.2 A dor física
Em Projeto para uma psicologia científica (1996c/1985), Freud dá uma explicação
econômica para a dor, afirmando que este fenômeno diz respeito a um excesso de excitação
que invade o aparelho psíquico, provocando um aumento repentino de tensão e,
conseqüentemente, uma descarga, no interior do corpo.
Esse investimento exagerado esclarece o mecanismo do sofrimento corporal para dar
conta dos fenômenos psíquicos em termos fisiológicos e para isso Freud faz a comparação de
um sistema de funcionamento nervoso similar ao do computador: ambos são destinados à
recepção, armazenamento, processamento e entrega de informações. A percepção de uma
excitação dolorosa localizada na superfície da pele (uma queimadura) imprime imediatamente
24
no eu a imagem do local lesado do corpo. Sem lesão não haveria dor, mas a dor não está na
lesão, está no eu, condensada em uma imagem interior ao eu, na imagem do local lesado.
Freud (1996c/1985) concebe essa teoria segundo a qual o eu é composto de dois
elementos essenciais: uma energia que nele circula, tendendo para a descarga e por neurônios
que a veiculam. O eu guardará na memória a “foto” de um detalhe da agressão associada à
experiência dolorosa. Entretanto, o neurônio que conserva esta imagem fica sensibilizado,
pronto a reagir a uma eventual excitação de menor intensidade e que poderão ser externas ou
internas.
A dor obriga então a recorrer às fontes das experiências de satisfação,
buscando nos registros de sua descarga reflexa as imagens próprias de
movimento, para encontrar - por meio da percepção e dos investimentos
laterais - alternativas atuais à ação específica de outrora: é este o
pensamento ou a ação do pensar que amplia e expande a experiência, dando
estofo ao eu nascente de cujos contornos notifica a dor (DELOYA, 1999, in
BERLINCK, 19994).
Desse ponto de vista, Nasio (2008) afirma que toda dor atual é a repetição de uma dor
passada. A imagem do corpo lesado resulta de vestígios deixados no inconsciente por essas
dores antigas e acontecimentos passados. Assim, a representação da zona dolorida que vem de
impressões passadas e atuais é a imagem imprecisa de um fragmento do corpo no centro de
uma cena fantasiada. Para Nasio (1997), esse movimento defensivo não age no próprio
ferimento, mas em sua representação psíquica o que resulta em um desequilíbrio enorme do
sistema.
O mecanismo da dor é desencadeado pela via da repetição, isto é, quando
uma experiência angustiante, traumática e excessivamente carregada de afeto
é reativada por uma lembrança que se repete. Está aberto, então, pelo
caminho de facilitação, o trilhamento para a dor. A dor expressa, no corpo, o
excesso pulsional que se instaurou no aparelho psíquico. Ela é uma
possibilidade de apresentação da angústia, ou o resultado desta, como
afirmou Freud (MENDONÇA, 2006).
Para Leonarde (2008), a dor que deixou marca foi provocada por uma percepção
externa, enquanto a dor subseqüente é despertada por uma percepção interna. A esta
percepção interna podemos denominar de angústia. A angústia segundo Nasio (1997) é a
antecipação, a ameaça da situação dolorosa e, tem como meta, lidar com o perigo oriundo do
real, do mundo externo e do isso.
A dor carrega as fantasias e o fantasma de cada sujeito, por isso, a dor pode ser
originada por estímulos físicos, mas nunca é somente física. Para Leonarde (2008), seu limiar
4
DELOYA; D. A dor entre o corpo, seu anseio e a concepção de seu objeto. In BERLINCK (Org.). Dor. São
Paulo: Escuta, 1999.
25
difere de sujeito para sujeito de acordo com sua elaboração narcísica. Segundo Leonarde,
(2008), a dor é um elo de passagem entre o psiquismo e seu corpo. O corpo da criança afetado
pela ausência do outro dói, fragmenta-se. Dói por não ser mais apenas um corpo biológico.
Dói formando o si-mesmo, o próprio corpo individualmente.
Observa-se que para a psicanálise não existe uma diferença fundamental entre a dor
física e a dor psíquica, na medida em que ambas, indistintamente, geram um afeto doloroso
(NASIO, 2008). De qualquer modo, existem dores cuja origem é uma lesão clara e
concretamente sofrida pelo corpo. A dor, afinal, é sempre um fenômeno de limite. Ela emerge
sempre no nível de um limite: o limite entre o corpo e a psique, entre o eu e o outro ou, ainda,
entre um funcionamento regulado.
2.4.3 Considerações sobre a hospitalização de crianças queimadas
O hospital é um lugar de cura, mas também é de desamparo e de urgência (NIGRO,
2004). Considerando tais aspectos, a situação hospitalar e a doença podem remeter o sujeito a
uma situação capaz de produzir uma cisão narcísica, que abala o sentimento de unidade de si,
que transforma o corpo em algo desconhecido e hostil. A doença na criança pode funcionar
como uma espécie de espelho que antecipa a imagem de um corpo deteriorado e que remete a
ameaça de uma ruptura narcísica.
As alterações no corpo são também alterações no eu e a conseqüência é a alteração na
distribuição da libido. A pessoa doente retira sua libido dos objetos e retroage no eu
(MIGUELEZ, 2007). Dessa forma, a doença rompe o equilíbrio vital dando lugar a
sentimentos angustiantes (NIGRO, 2004).
As crianças normalmente reagem negativamente à hospitalização, chorando,
demonstrando medo, desespero e ansiedade e durante a internação sofrem uma série de
transformações psicológicas. Elas chegam ao hospital com uma visão de si e do mundo, a qual
é modificada a partir das experiências vividas nesse contexto (SOUSA, E. S., et. al, 2008). Na
maioria das vezes essas crianças passam por um processo de despersonalização, elas são
obrigadas a cumprir a rotina hospitalar, que as padroniza, vestindo-as iguais, estipulando
rigorosos horários de visitas, banho, alimentação, a partir disso, a fragmentação do eu é
intensificada (CHIATTONE, 1984).
26
Além de deixarem sua casa, seus amigos e também sua família, permanecendo em um
ambiente totalmente estranho. Tal situação pode provocar na criança uma grande sensação de
que foi abandonada e a retirada de seus pertences pode agravar ainda mais esse sentimento
(BOWLBY, 1984; CHIATTONE, 1984).
Nas crianças a hospitalização costuma ser extremamente assustadora, pois remetem a
situações de perda, solidão e abandono, podendo transformar-se em experiências traumáticas
à medida que os recursos defensivos do ego infantil surgem separados pela intensidade dos
acontecimentos (NIGRO, 2004).
A privação materna, ou de uma pessoa que desempenhe esse papel, interfere na saúde
mental da criança. Sousa E. S. et. al (2008) destaca que crianças que não têm essa relação
apresentam retardo físico, social, intelectual e desenvolveram uma personalidade instável.
As fantasias apavorantes e persecutórias do ego infantil são intensificadas na
internação, já que a criança é separada dos seus objetos de amor, seus pais e irmãos, assim
com os procedimentos da clínica (NIGRO, 2004).
Além de desenvolver insegurança em relação ao ambiente, se a criança apresentar ou
sofrer alguma desfiguração física, esse quadro tende a se agravar, pois ela também pode
desenvolver uma insegurança em relação à família, ao tratamento e à equipe hospitalar
(SOUSA E. S., et. al, 2008).
Os sintomas mais frequentes das crianças que sofreram queimaduras podem resumirse a medos, pesadelos, stress, ansiedade, tristeza e depressão. Em adolescentes, surge a autoexclusão dos grupos, a agressividade, e por vezes comportamento anti-sociais (Sousa, E. S.,
et. al, 2008).
A presença de uma queimadura, principalmente se for grave, constitui
sempre um choque psicológico numa criança. Suscita sentimentos de
estranheza perante o novo corpo, interfere com os problemas de
identificação do eu, pode reativar conflitos familiares pré-existentes e
culpabilidade em relação ao acidente (MENESES, 2007, p. 81).
Para Hurren (1995) citado por Meneses (2007)5, os efeitos da lesão original podem ter
um impacto psicológico muito depois do acidente e têm consequências psicológicas
profundas de deformação e inaptidão, havendo, atualmente, muitas conseqüências sociais
motivadas por este tipo de alteração da imagem corporal, provoca na criança modificações na
vivencia corporal (LIMA, 2004).
5
HURREN, J. (1995). Rehabilitation of the burned patient: James LaingMemorial Essay for 1993. In Burns,
Vol 21, Nº 2, Great Britain, 2007, pp. 116 - 126.
27
As crianças reagem de diferentes maneiras à hospitalização dependendo da faixa
etária. Quanto mais próximo dos três anos, podem expressar verbalmente com mais facilidade
esse conflito e às vezes elegem algum membro da equipe como substituto de sua mãe.
Segundo Trinca (1987) a criança pequena (6 anos) tem uma vida intensa de fantasias, sendo a
forma pela qual ela interpreta os acontecimentos externos. Lima (2004) destaca que a criança
ainda está em desenvolvimento físico, metal e social, portanto apresenta um aparato ainda
imaturo para lidar com as adversidades vividas no contexto hospitalar.
A partir dos 12 anos, as crianças têm maiores condições de enfrentar e compreender a
situação de hospitalização, quando apoiadas tanto pela equipe de saúde como pela sua família,
tornando a situação de sofrimento menos assustadora (BOWLBY, 1984).
De qualquer forma, em todos os casos, o adoecimento e a hospitalização fazem surgir
na vida da criança um novo contexto, que exige mobilização de recursos internos para a
adaptação necessária para a situação imposta pela condição de adoecer, Ajuriaguerra (1976)
conforme citado por Lima 2004, afirma que novas relações são estabelecidas, o médico assim
como o hospital fazem parte dessa situação.
Sentimentos de insegurança diante do futuro da criança resultam em aumento de
estresse, pois conviver com a possibilidade de morte é doloroso. A raiva e a doença são
reações muito comuns em face da doença e da finitude.
É importante ressaltar a abordagem da família como parte integrante do tratamento do
paciente. A doença e a hospitalização são percebidas como ameaçadoras do sistema familiar,
o paciente incapacitado é equivalente à família incapacitada, mesmo que os indivíduos
possuam recursos internos para reorganizar-se e adaptar-se (ROMANO, 1999). Diante disso,
é importante que o psicólogo tenha o enfoque sobre as necessidades emocionais do paciente e
dos familiares, assim podendo identificar o tipo de contribuição que pode prestar, devendo
compreender a situação dentro de um critério de estresse, adaptação e resolução.
28
3 OBJETIVO
Com base na teoria psicanalítica e a partir de vinhetas clínicas, este trabalho tem por
objetivo desenvolver uma reflexão acerca dos aspectos psíquicos relacionados com pacientes,
especialmente crianças, que sofreram queimaduras. Pretende-se observar a dor psíquica
experimentada por tais pacientes, relacionando-a com a idéia de Eu-pele e levando em
consideração a fragmentação do eu, com a pretensão de, por fim, verificar em que medida a
psicanálise poderia contribuir para compreensão e o tratamento dessa dor. Algumas perguntas
orientam o objetivo proposto: a) qual a sensação do paciente queimado diante de não
reconhecer o corpo como seu?; b) qual é o impacto do corpo na fragmentação do eu?; c) como
a psicanálise poderia auxiliar no alívio dessa dor?
29
4 METODOLOGIA
Por se tratar de uma pesquisa que investiga os aspectos subjetivos de suas vivências,
ao lado de pesquisa bibliográfica, a metodologia qualitativa é a adequada para compreender
os aspectos psíquicos. Os dados dos pacientes que possam identificá-los serão ora suprimidos,
ora fictícios, visando à privacidade de identidade e respeitando o código de ética do
psicólogo, resolução CFP Nº 003/2000. Serão relatados apenas aspectos da história
necessários para a compreensão do aspecto clínico que se irá discutir. O material clínico será,
conforme Safra (1993), um recorte limitado por um ponto de vista e é esse limite que se
mantém na objetividade na investigação.
O material clínico que será utilizado neste trabalho, ou seja, as transcrições das sessões
realizadas com os pacientes se encontram arquivadas na Seção de Psicologia do Hospital do
Servidor Público Estadual. Os relatos apresentados de situações clínicas não vão constituir
expressões precisas do que se passou na sessão, mas descrições que são construídas a partir da
memória da psicóloga (Safra, 1993). Os dados também são retirados do estudo do prontuário
do paciente.
O numero de sessões realizadas com os pacientes variou, pois dependiam do tempo de
internação dos mesmos.
Para a realização deste trabalho, são descritos os atendimentos psicológicos realizados
com três pacientes de seis, nove e treze anos, que estiveram internados na enfermaria de
Queimados do Hospital do Servidor Público Estadual – HSPE.
Sobre o Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE),
importa destacar, que se trata de um convênio médico de grande porte, que se destina ao
atendimento de funcionários públicos do Estado de São Paulo e de seus dependentes. A
enfermaria de Queimados além de atender os convênios do serviço atende também casos
enviados de outros hospitais do Estado, da rede SUS, por ser considerada referência no
tratamento.
É uma enfermaria com três quartos, distribuídos em quarto masculino, feminino e
infantil; três unidades semi-extensivas; uma unidade de terapia intensiva; sala cirúrgica;
pronto-socorro e ambulatório.
Nesse espaço os pacientes recebem atendimento dos diversos profissionais:
fisioterapeutas, fonoaudiólogos, nutricionistas, médicos e enfermagem. A seção de psicologia
30
atende aos pedidos de Interconsulta de todas as clínicas do Hospital do Servidor Público do
Estado de São Paulo, que na maioria das vezes, é realizada a pedido médico.
A enfermaria de Queimados localiza-se no quinto andar do hospital. O horário de
visita é restrito, por se tratar de uma enfermaria onde os pacientes correm um grande risco de
infecção. Não é permitida a presença de acompanhante.
31
5 OS CASOS CLÍNICOS
O acidente com queimaduras pode ocorrer das mais variadas formas, no entanto o
resultado final, em todos os que passam por esta situação, é em parte semelhante: devastador.
A queimadura, independentemente da forma, da profundidade, do mecanismo causador vai
levar a uma situação de crise pessoal e familiar, medo, incerteza, insegurança e instabilidade.
A partir das idéias expostas nos capítulos deste trabalho, serão explicitados neste
tópico três casos atendimentos pela psicologia na Enfermaria de Queimados no Hospital
público estadual “Francisco Morato de Oliveira”.
A solicitação para atendimento é feita por interconsulta e encaminhada a Seção de
Psicologia, na maioria das vezes, realizada a pedido médico.
Os casos abaixo não serão usados em sua íntegra, mas com as falas dos pacientes que
possam ilustrar o exposto até então.
5.1 Discussão dos casos: uma queimadura, três experiências.
A queimadura em uma criança é sempre vista como uma situação grave, havendo a
preocupação, independentemente da área atingida, de encaminhar a vítima para um hospital, a
fim de ser observada e serem prestados os cuidados adequados. Dessa forma é extremamente
importante que seja estabelecido uma relação de confiança com as crianças e pais ou
responsáveis.
Os primeiros cuidados com o paciente queimado, assim que ele entra no hospital, são
fundamentais para a sobrevivência do mesmo e para a minimização das possíveis seqüelas.
Posteriormente, os pacientes são encaminhados para a enfermaria para darem continuidade ao
tratamento. A psicologia é chamada, quando a equipe compreende que o paciente não é
colaborativo diante do quadro ou apresenta comportamento depressivo. Os pedidos de
Interconsultas são realizados após alguns dias do período de internação do paciente.
O contato inicial com paciente queimado é realizado com resistência e desconfiança.
Há sempre um relato inicial de muita dor e desconforto físico. Por enquanto, cabe notar que
as sensações dolorosas têm papel fundamental naquilo que Freud apresenta como
32
conhecimento sobre si, mesmo em uma etapa muito primitiva do desenvolvimento; nesse
momento, através da dor, o sujeito consegue ter alguma noção de si mesmo.
Levando em consideração os casos atendidos, Lima (2004) destaca que a criança ainda
está em desenvolvimento físico, metal e social, portanto apresenta um aparato ainda imaturo
para lidar com as adversidades vividas no contexto hospitalar. A hospitalização para elas
costuma ser extremamente assustadora, pois remete a situações de perda, solidão, culpa e
abandono, podendo transformar-se em experiências traumáticas à medida que os recursos
defensivos do ego infantil surgem separados pela intensidade dos acontecimentos (NIGRO,
2004).
W: “Estou muito triste... é muito difícil estar aqui”
Terapeuta (T): “O que você está sentindo?”
W: “Estou com vontade de ir para casa. Estou me sentido triste... Estou sentindo culpa”.
T: “Por que está se sentindo assim?”
W: “Por que desobedeci minha mãe”
W. chegou à enfermaria de Queimados encaminhado por outro hospital, com 47% do
corpo queimado, apresentando queimaduras de 2º e 3 º graus. As partes mais atingidas foram
os membros superiores e membros inferiores. A queimadura aconteceu por contato com
carvão.
O paciente estava brincando com seus amigos com estilingue para acertar os
passarinhos e de pega-pega com uns amigos, quando, então, caiu em um buraco de mina de
carvão.
W. tem 13 anos, sexo masculino, mora com seus pais e sua irmã de 15 anos. Somente
estuda e descreveu uma vida ativa.
G, outro paciente atendido, tem 6 anos, tem 3 irmãos e sua mãe acabou de ganhar uma
menina. Mora com seus irmãos, sua mãe e seu padrasto. Vê seu pai biológico com freqüência.
G: “Não gosto de ter outros irmãos.”
O paciente foi atendido devido ao comportamento agressivo frequente com a equipe,
que no pedido de interconsulta foi confirmado ter tido uma intensidade maior depois que
soube que sua mãe teria que ir para outro hospital para dar a luz. G estava com 40% do corpo
33
queimado decorrente combustão com álcool. As partes mais atingidas foram os membros
inferiores com queimadura de terceiro grau.
O acidente aconteceu em sua casa, quando sua mãe estava matando os carrapatos do
cachorro num recipiente com fogo, até que a garrafa de álcool caiu e G pegou fogo.
T: “por que você está aqui?”
G: “Por que eu peguei fogo. Minha mãe colocou fogo no carrapato e daí a garrafa de álcool
caiu. Daí ela virou as costas... minha mãe me pegou pela cueca e daí a barriga dela pegou
fogo e minha mãe me jogou no chão, mas eu cai em pé. Depois ela ligou pro meu pai e
viemos pra cá”.
R. tinha 9 anos. Morava com a mãe no mesmo quintal que os avôs. Os pais são
separados e R. não via o pai com freqüência. O pedido de interconsulta foi para acompanhar a
família, já que R. apresentava 80% do corpo com queimaduras de 3º grau, considerada uma
queimadura de grande extensão, portanto, um caso grave.
O paciente estava brincando de figurinha com um vizinho quando decidiram colocar
fogo nas mesmas, mas a garrafa de álcool virou, o fogo se alastrou e os dois pegaram fogo. R.
estava com uniforme sintético da escola que entra em combustão muito rapidamente. A
criança foi socorrida de imediato.
R: “Não queria estar aqui.... queria estar em casa com a minha mãe. Eu não devia ter feito
isso.”
As queimaduras ocorridas em residência, tanto em crianças como em adultos, podem
gerar um sentimento de culpa da própria vitima e dos familiares. A criança queimada, ao
perceber esse conflito, pode se sentir culpada pelo desentendimento dos pais ou pode
manipular a situação, freqüentemente simulando sintomas para obter maior atenção
(COUTINHO, B.B.A. et al., 2010). A pele, que demarca o eu-pele, é posta a prova diante
dessa enorme frustração.
Assim se compreende a idéia do Eu-pele como um “envelope narcísico” que apresenta
a função de proteção diante dos ataques de que o eu em formação é objeto. Trata-se, dessa
forma das fantasias que a criança teria de si mesma nas fases precoces do desenvolvimento,
como um eu contendo conteúdos psíquicos a partir de sua experiência da superfície do corpo.
O envelope psíquico originar-se-ia apoiado no envelope corporal.
34
A queimadura altera certas funções da pele assim como existe uma alteração
correspondente sobre certas funções psíquicas (ANZIEU, 1989). Quando o apoio corporal é
privado o Eu-pele apresenta um número de falhas em algumas de suas funções que o faz
exercerem precariamente suas funções de contenção psíquica.
Durante a internação W. verbalizou sua agressividade diante da hospitalização, da sua
condição física, da dor e da necessidade de ser contido. O destaque para essa afirmação é a
que umas das falhas causadas no Eu-pele corresponde à função continente, onde o Eu-pele
funciona como uma casca necessária para conter as pulsões e o Id pulsional.
W: “eu estou muito bravo, muito bravo mesmo. Todo dia é a mesma coisa e eu não aguento
mais eu quero ir embora pra casa. A TV funciona mal, fico olhando o dia todo pra parede, as
enfermeiras me acordam cedo pra tomar remédio, tem que fazer curativo e sempre que eu
faço fico pensando no outro e no outro e no outro e fico esperando o próximo por que dói
muito. É muito sofrimento... por que a vida é tão injusta... não é justo eu passar por tudo
isso... é muita dor, é muito sofrimento”
W: “eu tenho vontade de levantar dessa cama com a perna assim mesmo e sair correndo e ir
embora... eu não aguento mais”
Uma vez que a ausência da mãe de G., por causa da gravidez, assim como a
hospitalização, mobilizou uma regressão no comportamento como falar e chorar como um
bebê pode-se falar que G. apresentou-se identificado com a sua mãe.
T: “e a sua mãe?”
G:“ela também não pode, ela esta de repouso e não pode andar. Ela está como eu. Tem que
tomar todos os remédios para ficar boa”.
G: “e só depois que ela vai ficar bem (gravidez). Eu também quero ficar bom daqui uns dias”
A falha na Função de manutenção do psiquismo no qual a mãe exerce uma função
continente que envolve e sustenta o bebê, deixa de fornecer unidade e solidez ao aparelho
psíquico. Dessa forma não há retenção dos cuidados e do banho de palavras.
T: “e como é dividir essa mãe com os irmãos?”
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G: “Ah isso eu não gosto. Quando eu for pra casa eu vou ficar sozinho por que minha mãe
vai ficar ocupada e não vai cuidar de mim”
T: “por que acha que vai ficar sozinho?”
G: “sozinho não, mas a minha mãe está dando minha mamadeira para a minha irmã”
R. por apresentar 80% do corpo queimado necessitava de ajuda para tudo e ficava a
maior parte do tempo deitado e enfaixado. Depois de alguns atendimentos R. pediu para
passar a mão na sua cabeça e fazer carinho:
W: “faz carinho?... que mão leve!”
T: “ah é? Tem alguém que não tem a mão pesada?
W: “sim a da minha mãe, mas não posso falar pra ela por que ela fica triste”
O registro tátil no corpo possui um registro sensorial que está situado tanto na origem
do psiquismo, quanto fornece permanentemente para o psíquico uma espécie de tela de fundo
sobre a qual os conteúdos psíquicos se inscrevem como figuras ou, ainda, constitui o
envoltório-continente que permite ao aparelho psíquico abrigar conteúdos.
De acordo com a Função de intersensoriedade o Eu-pele é uma superfície psíquica que
liga todas as sensações originadas no envelope tátil. Quando há falha nessa função ocorre uma
fragmentação do corpo que não abre espaço para serem simbolizadas no Eu-pele.
Assim, a representação da zona dolorida que vem de impressões passadas e atuais é a
imagem imprecisa de um fragmento do corpo no centro de uma cena fantasiada. Para Nasio
(1997), esse movimento defensivo não age no próprio ferimento, mas em sua representação
psíquica o que resulta em um desequilíbrio enorme do sistema.
A tentativa de manter esse equilíbrio é a busca de outras áreas que podem servir de
contato, já que a fragmentação do corpo, nesse caso, desorganiza o sujeito. Levando em
consideração que o eu é antes de tudo um eu corporal, na medida em que organiza um corpo a
partir de uma idéia de unidade do eu, é possível referir-se que também há uma fragmentação
do eu. Onde existe uma cisão no eu na medida em que o sujeito se depara com seu corpo
despedaçado.
G. estava no quarto comendo Danone com os dedos e disse:
T: “O que você está comendo?”
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G: “estou comendo Danone, olha eu estou despedaçando. Mas eu como e fica gostoso... eu
estou me comendo”
T: “ah é? E o que acontece?”
G: “daí junta tudo de novo lá dentro”
Assim, é possível pensar que esses pacientes que sofreram queimaduras graves tenham
um sentimento de Eu ameaçado. A ameaça de invasão é constante onde não há bordas que
delimitem o dentro e o fora, já que o objeto de investimento é a superfície corporal, ali onde
está o representante concreto de uma noção psíquica, que parece ter sido abalada. Esta noção
relaciona-se às fronteiras do eu e ao continente, que é representada pelas falhas nas funções
do eu-pele.
Com relação à doença orgânica, Freud a descreve como um estado de intensificação
do narcisismo em que o sujeito retira os seus investimentos libidinais dos objetos, havendo
uma falta de interesse pelo mundo externo, e a investe de volta em seu próprio ego,
direcionando seu interesse para o seu próprio sofrimento. A castração se impõe como um
fantasma e um corpo cortado em pedaços que pode reaparecer toda vez que falha a
sustentação narcísica do eu (Nigro, 2004).
W: “eu imagino que a minha pele vai ficar toda remendada e cheia de casco, mas o que
incomodar eu tiro como fiz no braço... acho que vou ficar mais sensível”
W: ”eu pareço que estou todo remendado...”
G. Chorando diz:
G: ”eu to descascando... eu to descascando... olha! Olha!”
Foi estudado que o paciente queimado sofre uma dor psíquica, mental, devido à
abertura repentina, violenta nos limites da pele (ANZIEU, 1989). Tomando a dor como uma
reação afetiva a uma perda, Nasio (2006), define a dor como sendo sempre o resultado da
perda violenta de uma unidade, seja na dor física, ou na dor psíquica. As frases acima
demonstram claramente isto.
O limiar da dor difere de sujeito para sujeito de acordo com sua elaboração narcísica.
Segundo Leonarde, (2008), a dor é um elo de passagem entre o psiquismo e seu corpo. O
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corpo da criança afetado pela ausência do outro dói, fragmenta-se. Dói por não ser mais
apenas um corpo biológico. Dói formando o si-mesmo, o próprio corpo individualmente.
A dor é um investimento exagerado no eu, condensada há uma imagem interior do eu,
na imagem do local lesado. Esse investimento exagerado esclarece o mecanismo do
sofrimento corporal para dar conta dos fenômenos psíquicos em termos fisiológicos.
As crianças queimadas sentem dores de uma forma constante, principalmente no
momento em que são realizados os procedimentos. No banho e no curativo, as ataduras
devem ser retiradas e é nesse momento que o paciente se depara com os ferimentos do seu
corpo e com a dor.
Curativo:
W: “tomei morfina de manha e fiquei doidão”
T “como assim?”
W: “ah eu tive que tomar por causa da dor e nem parecia que eu estava aqui parecia que eu
estava na lua”
W: “trocar esses curativos são a pior coisa; dói muito, to sofrendo muito... sinto uma dor
muito grande no coração”
R: “hoje é dia de trocar o curativo, dói muito. Eles começam pelo braço, mas ai eu já estou
com muita dor. Daí eles me dão um remedinho e a dor passa e depois eu durmo e não vejo
mais nada”
Banho:
G. conta que não toma banho há alguns dias:
T:“não toma banho?”
G:“você acha que não dói? Dói muito”
G: “dói muito tomar banho por que a pele que não está boa é arrancada às vezes sai outras
coisas também”.
G:“quando eu tomo banho parece que a água vai entrar dentro de mim”
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Enfermeira : “ você vai tomar banho daqui a pouco, viu?”
R :“Eba! Eu vou dormir!”
T: “Ah é?”
R : “quando eles mexem no meu corpo eu durmo. Por que dói muito”
E existe a dor psíquica ao ser olhado:
W: “É muito duro ficar aqui... é duro ficar queimado e parece que não melhoro nunca, Olha
a minha pele... amanhã vou fazer outro curativo... faço dia sim e dia não, mas não adianta
nunca”
W: “eu não consigo ver uma melhora. Olha a minha mão ela vai ficar assim pra sempre...
nunca vai ser como antes”
G: “hoje eu tomei banho e coloquei a tala. A minha perna está sem pele... olha. Eu vou ficar
assim pra sempre... a tia daqui disse que eu vou ficar assim pra sempre.”
Além do processo de despersonalização as crianças são obrigadas a cumprir a rotina
hospitalar, que as padroniza, vestindo-as iguais, estipulando rigorosos horários de visitas,
banho, alimentação, a partir disso, a fragmentação do eu é intensificada (CHIATTONE,
1984). Desenvolve também insegurança em relação ao ambiente, em relação à família, ao
tratamento e à equipe hospitalar (SOUSA E. S., et. al, 2008).
W: “Aqui é muito ruim... fico com esse avental o dia todo. Eu queria por minha roupa”
Considerando tais aspectos, a situação hospitalar e a doença podem remeter o sujeito a
uma situação capaz de produzir uma cisão narcísica, que abala o sentimento de unidade de si,
que transforma o corpo em algo desconhecido e hostil. A doença na criança pode funcionar
como uma espécie de espelho que antecipa a imagem de um corpo deteriorado e que remete a
ameaça de uma ruptura narcísica.
As modificações orgânicas decorrentes de doenças ou acidentes podem mudar a autoimagem, e as conseqüências estão relacionadas com a natureza da mudança e o significado
que o paciente dá para ela (SILVA, 2004)
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As referências sensoriais trazidas pela presença da mãe possibilitam, dessa forma, a
constituição de uma imagem corporal (DOLTO, 1996). É por isso que crianças que sofrem de
doenças orgânicas, e mesmo aquelas que são vítimas de mutilações, são capazes de criar uma
imagem do corpo sã quando a mãe é capaz de investir o corpo da criança. Por exemplo, uma
criança queimada pode criar uma imagem do corpo sadia, se ele puder verbalizar suas
impossibilidades corporais, o que lhe possibilitará criar uma representação psíquica de seu
corpo simbolizado pela palavra.
As histórias de W, G e R ilustram bem as relações entre os processos identificatórios e
suas relações com o inconsciente dos pais e a construção da representação psíquica do corpo.
As dificuldades das mães em falar sobre o corpo e de olhar para seus filhos com o corpo
desfigurado as fazem falar do corpo sadio, e do quanto eles podem ficar bons, tais aspectos
tiveram repercussão na representação psíquica que eles construíram de seus corpos.
Mãe de R: “o quadro é grave, mas se Deus quiser ele ficará bom”
Mãe de R :“Ele é meu Davi.”
Mãe de R :“mesmo sabendo que é grave, meu filho é forte e vai sair dessa”
Mãe de R :“dá até pra ver a pele melhorando, não é filho?”
R: “Minha mãe me ajuda a tirar a pele das mãos, mas ela arranca forte e dói”
A experiência de identificação que a criança faz na conquista da imagem promove a
estrutura do eu. Essa imagem é estruturante, pois o eu é antes de tudo um eu corporal, na
medida em que organiza um corpo a partir de uma idéia de unidade do eu.
A ausência de espelhos na clínica de queimados evita que o paciente possa identificar
uma fragmentação da identidade, pois a conseqüência provável seria odiar a sua imagem
causando, dessa forma, um grande impacto.
O fato é que para ter acesso a uma imagem é necessário que o paciente reconheça a
sua forma e, assim, assimilar o que reconhece. Deste modo, há relevância de construção de
uma auto-imagem que é realizada com o desenvolvimento da auto-estima, já que o eu interior
estaria de acordo com o eu que transparece ao mundo. A auto-imagem está relacionada com a
percepção do próprio corpo, sua aparência e suas potencialidades, segundo Silva (2004, p.
208) “a elevação da auto-estima não depende da beleza que é refletida no espelho, mas da
forma como ela é vista neste mesmo espelho”.
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É possível observar que diante da necessidade de intensificação os pacientes utilizam a
fantasia. R, por exemplo, mesmo enfaixado, fantasia um corpo sadio ao falar sobre jogo de
futebol:
T: “você gosta de ver jogo?”
R: “eu gosto é de jogar. Assim como eu estou acerto a bola e ela faz uma curva muito
grande”. (R. realiza, com muita dificuldade, o movimento de acertar a bola no ar)
Anzieu (1989) coloca em relevo fantasias de pacientes relativas à superfície corporal
que indicam momentos de extrema fragilidade narcísica. Essas fantasias apontam para uma
importância da superfície corporal na constituição do Eu que, de certa forma, remetem a
formas primitivas de ligação da excitação pulsional.
Outro dado importante é que próximo a alta as crianças fazem uma comparação com
os outros pacientes que estão internados. G. ouve um grito que vinha da sala cirúrgica olha
assustado e depois diz:
G: “É um homem que queimou a barriga e está fazendo curativo, eu grito, mas grito mais
baixo por que sou criança... ele não pode gritar assim por que é um adulto.”
Neste caso G. também está se referindo ao seu acidente, no qual conta que a barriga de
sua mãe pegou fogo, sendo que ela estava grávida. O trabalho psicológico focou-se na
circulação desses conteúdos que G. falou mais abertamente quase próximo a sua alta e ao ver
uma criança em recuperação de 4 anos andando pela clinica.
G:“ele queimou a cabeça e usa aquele negócio, ele usa aquele negócio no pescoço por que
ele arranca o enxerto e eu nem precisei”
T:“ah é?”
G“ É por que eu não arranco. Mas eu coço”
T: “como vai ser voltar pra casa?”
G:” vai ser bom ir pra casa por que eu vou ver minha mãe todos os dias”
T: “e vai ver sua irmã também?”
G: “vou... e vou brincar com ela também. E meu irmão também. Tchau”
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O trabalho analítico pôde funcionar como um reorganizador da libidinização do corpo,
pois permite que o corpo emerja como objeto psíquico, pela escuta. É possível realizar esse
trabalho com as crianças de forma lúdica.
No início dos atendimentos com R. e G. jogaram jogo da velha. De alguma forma esse
jogo remete a idéia das peças que devem ser colocadas no lugar até formar uma imagem
completa. Demonstra uma elaboração importante para uma necessidade interna de
organização diante da fragilidade e impotência do quadro clínico. Segundo Trinca (1987),
como já analisado, a criança pequena (6 anos) tem uma vida intensa de fantasias é a forma
que ela interpreta os acontecimentos externos.
G. pôde elaborar de uma forma ativa sua condição clínica nos últimos dias de
internação quando propôs uma brincadeira com lego. Mostrou um objeto e referiu ser uma
arma de fogo e atirou na direção da terapeuta:
T: “ai ai ai estou queimada. O que eu faço doutor?”
G: “corre para o hospital”
T: “o que eu faço?”
G:“tem que jogar isso aqui”
T: “e não vai doer?”
G: “não só dói quando tem que tomar banho, mas você grita por que vai doer, mas depois
passa”
W. mostrou seus desenhos que havia feito durante a internação. Inicialmente utilizava
poucas cores, mas com o tempo de internação produziu desenhos mais coloridos retratando
coisas de que gosta como carros, futebol e etc.
A fase de reabilitação, segundo Thelan et. al (1996, p. 889) “é uma fase de
recuperação e cicatrização, tanto física como emocional”. Segundo Klein, citado por Meneses
(2007) esta fase tem início quando o doente é capaz de assumir uma parte dos cuidados. O
objetivo é evitar a rigidez na articulação, recuperar a funcionalidade, evitar deformações
anatômicas e estéticas e permitir o retorno das atividades.
G: “eu já sei fazer o curativo, sabia?”
W: “Nossa eu to louco pra ir embora. Já aprendi a fazer tudo que tem que fazer. Fico tirando
a pele e já sei que ela nasce de novo”
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T: “o que você está fazendo?”
R: “tirando essas peles aqui do dedo. Elas ficam penduradas. Eu queria cortar a unha ela ta
muito grande”
A experiência na relação que o sujeito constitui com o outro, parte da flexibilidade do
ego, a possibilidade de convívio com diferentes imagens de si, algo que a existência pode
provocar, depende das primeiras identificações, além de uma mínima coerência entre suas
próprias percepções e da imagem identificatória que recebe da mãe.
A relação transferencial permite o sujeito viver agora um desenvolvimento emocional
suficiente para começar a reunir os fragmentos de afetos expulsos, senti-los e explorar seus
prolongamentos. Isso abre caminho à vivência do impacto traumático vivido na pequena
infância que é atualizada. A problemática do paciente se descentra, e se trata mais de localizar
os conteúdos pulsionais e construir um continente para eles, com a ajuda do psicólogo.
O psiquismo do analista é o instrumento de continente dos conteúdos afetivos,
representacionais circulantes na relação terapêutica. Esta possibilidade de ser continente, ou
seja, de funcionar como um dispositivo diferencial em relação à história do sujeito servirá
como material a ser introjetado na relação transferencial, trazendo modificações efetivas e
funcionando como expansão e alargamento da esfera do Eu.
Dessa forma, o trabalho analítico com a transferência poderia fornecer novas
representações ao sujeito que ampliaria e flexibilizaria a sua imagem, possibilitando a
reorganização da psique e a tolerância ao desamparo provocado pela hospitalização. Já que a
transferência é um fenômeno que ocorre na relação entre o paciente e o terapeuta, quando o
desejo do paciente irá se apresentar atualizado, com uma repetição dos modelos infantis, as
figuras parentais e seus substitutos serão transpostas para o analista e assim sentimentos,
desejos, impressões dos primeiros vínculos afetivos serão vivenciados e sentidos na
atualidade.
No hospital, o sujeito internado sente uma forte angustia de aniquilamento, devido à
confrontação com a possibilidade de morte. Justamente por isso, torna-se necessário, na
medida do possível, que o ambiente hospitalar ofereça um espaço continente. A presença
deste espaço não contribuiria no desenvolvimento de uma experiência de descontinuidade de
existência, mas sim na promoção de um acolhimento às demandas fisiológicas e psíquicas, se
é que é possível separá-las.
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A psicanálise também oferece os recursos e a possibilidade de iluminar a reflexão
sobre o atendimento especializado que fragmenta o paciente e sobre o impacto da doença dos
diversos profissionais (Nigro, 2004).
Diante dos casos é possível observar que o encontro subjetivo proporciona elaboração
psíquica considerando a imagem do corpo como a representação daquilo que é sentido, da
maneira que isso decorre, da maneira que cada um leva a imagem para o seu inconsciente, as
marcas tornam uma forma de pensar no sofrimento do paciente e na dificuldade de lidar com
o seu novo corpo, baseados na constituição do eu e dos primeiros vínculos. Dessa forma, por
meio da fala e da possibilidade de recontarem sua história e de se apropriarem dos seus
próprios cuidados, os pacientes encontram uma maneira de abordar das suas marcas físicas e
psicológicas, tornando mais suportável diante do espaço proporcionado pelo psicólogo.
R. iniciou o tratamento com prognóstico ruim devido ao grau da queimadura, embora
o quadro clínico estivesse estável, permaneceu internado por três meses. Não realizou enxerto
por impossibilidade de área de coleta própria, mas os foi submetido a todos os procedimentos
necessários à manutenção a área queimada: enxerto, desbridação.
Apresentou uma evolução estável e permaneceu falante e educado com toda a equipe,
mostrou uma condição psíquica saudável. A equipe investiu desde o início e intensificou o
investimento ao notificarem uma melhora do quadro orgânico; durante todo esse tempo não
apresentou infecção e seu corpo começara a produzir algo como um tecido fino em algumas
partes do corpo, embora ainda tivessem que cauterizar por causa de sangramentos.
R. quase todos os dias era submetido a procedimentos que implicavam
necessariamente no toque e assim pode-se compreender que o investimento corporal foi
importante para preservação do seu próprio eu. Entretanto, R. teve uma parada cardíaca
seguida de convulsão na mesa cirúrgica quando estava sedado para realizar outro
desbridamento. Voltou para UTI e foi a óbito depois de um dia.
G. e W. tiveram alta sem maiores intercorrências.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reflexão sobre os aspectos psíquicos relacionados aos pacientes queimados,
especialmente crianças, teve como ponto de partida algumas questões. Qual a sensação do
paciente queimado diante de não reconhecer o corpo como seu? Qual é o impacto do corpo na
fragmentação do eu? Como a psicanálise poderia auxiliar no alívio dessa dor?
Tais questões levaram à investigação de construções teóricas sobre a constituição do
eu, destacando sua importância, não só nos processos psíquicos, mas também nos processos
físicos. As experiências sensoriais, assim como o toque, sempre se fazem acompanhadas com
o discurso. Essa linguagem sensorial provoca experiências sensoriais vitais nesta organização
psíquica que envolve e marca este corpo erógeno.
Assim, o impacto das modificações orgânicas decorrentes da queimadura altera a
noção de imagem corporal do sujeito. Diante dessa extrema fragilidade narcísica o não
reconhecimento do corpo queimado como seu vai de encontro com o sentimento de um eu
fragmentado e despedaçado, situação que precisa ser elaborada.
O paciente queimado se vê pressionado tanto pela exigência externa da beleza física
ou pela forma dita “normal” e pela própria exigência interna, inconformado com a cicatriz em
sua pele que dói no seu eu e no seu narcisismo (Dolto, 1996). Sente como se fosse uma pessoa
diferente, agora que seu corpo também está diferente do que era e se não tiver uma boa
condição psíquica, poderá intensificar a rejeição, pois o corpo material, lugar consciente, a
todo instante o espacializa e o temporaliza.
A compreensão do sofrimento que sujeito tem diante da dor de uma queimadura está
relacionada a uma subjetividade e que difere de sujeito para sujeito de acordo com a sua
elaboração narcísica. A dor sentida pelo paciente é sempre o resultado da perda violenta de
uma unidade, seja na dor física, ou na dor psíquica (Nasio, 2006).
A queimadura altera certas funções da pele assim como existe uma alteração
correspondente sobre certas funções psíquicas (ANZIEU, 1989). Quando o apoio corporal é
privado o Eu-pele apresenta um número de falhas em algumas de suas funções que o faz
exercerem precariamente suas funções de contenção psíquica.
Portanto, para articular o impacto das modificações orgânicas com a perda de unidade
diante da dor, faz-se necessário reparar as falhas do Eu-pele devidas as carências que são
inevitáveis numa hospitalização. A verbalização do paciente é necessária para que perceba a
45
sua pele como uma superfície continua, e desta forma, registrar as estimulações recebidas do
exterior e reintegrá-las. A partir de então o seu envelope torna continuo de seu Eu-pele, assim
lhe garante o sentimento de continuidade do eu fazendo com que não ocorra uma
fragmentação do corpo e abre um espaço para serem simbolizadas no eu-pele. A noção de
continuidade através da fala, a noção de integridade de quem se é, apesar das diferenças
induzidas pela queimadura, minimiza a despersonalização.
Nessas condições, o trabalho analítico pode funcionar como um reorganizador da
libidinizacão do corpo. Trata-se de acolher e de nomear (Birman, 2003). A transformação da
dor em palavras ajuda o sujeito a se recuperar do excesso da fragmentação, que o
descentraliza e o despedaça. Faz-se necessário escutar o que o paciente tem a dizer em relação
à dor e a sua condição, para que ele lhe dê um sentido e o represente, seja por meios corporais
ou psíquicos.
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51
ANEXO: DICIONÁRIO MÉDICO PARA O PÚBLICO – DIVISÃO DE QUEIMADOS
Queimadura: Lesão causada pelo calor.
Queimadura de 1º grau: Lesão da camada mais superficial da pele, a epiderme. Cura
espontaneamente.
Queimadura de 2º grau: Lesão de cerca da metade da espessura da pele. Há formação
de bolhas. Cura espontaneamente.
Queimadura de 3º grau: Lesão de toda a espessura da pele levando a formação de
feridas (úlceras). A cura deve ser feita por enxertia de pele.
Bolha: Deslocamento da camada superficial de pele. Contém líquido originado do
plasma.
Escara: Pele morta aderida ao corpo do doente queimado.
Enxertia de pele: Retirar uma lâmina fina de pele da área doadora para transplantar
numa ferida.
Enxerto de pele de espessura total: O enxerto tem todas as camadas da pele (1 a 2
milímetros).
Enxerto de pele de espessura parcial: O enxerto tem só as camadas superficiais da pele
(menos de 1 milímetro).
Enxerto autógeno: Enxerto originado do próprio receptor.
Enxerto homógeno: Enxerto que origina-se de outra pessoa.
Enxerto heterogeno: Enxerto que origina-se de animal de outra espécie.
Banco de pele: Local onde se conservam enxertos de pele por refrigeração.
Sequela de queimadura: Cicatrizes deformantes ou não, alterações da cor, perda de
segmentos corporeos e outras conseqüências das queimaduras.
Dermatomo: Aparelho usado para retirar os enxertos da área doadora.
Pele Sintética: Não é pele; é um material usado para cobrir provisoriamente as feridas.
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