O ORIENTE NO OCIDENTE: O ISLÃ TRADICIONAL JAVANÊS NO SURINAME1 John da Silva Araújo Universidade Federal do Pará Resumo: O presente trabalho trata do islã surinamês de tradição javanesa. O Suriname, país sul-americano e caribenho, abriga considerável comunidade muçulmana, a maior em termos percentuais fora da Ásia, África e Europa Oriental. Lá encontra-se em pleno curso a dinâmica que opõe uma tendência mais puritana e reformadora e outra mais tradicional que preza pela manutenção dos ritos trazidos do islã de Java, na Indonésia. No Suriname são praticados rituais islâmicos com semelhanças aos descritos por Clifford Geertz em suas pesquisas realizadas em Java, na década de 50. Uma dessas cerimônias, o slametan, é um rito de passagem que expressa o momento de transição do falecido entre o mundo dos vivos e dos mortos. Palavras-chave: islã, Suriname, Java. O presente trabalho trata de uma forma particular da tradição islâmica javanesa no Suriname, o que Clifford Geertz chamaria de uma “miniatura” do islã. Segundo ele, somente atravessando a “densa mata de particularidades” é que se pode chegar ao conhecimento geral sobre determinados assuntos2. É justamente esse caminho que intentamos trilhar doravante. Não pretendemos definir os contornos da expressão religiosa do islã no Suriname a partir da análise do micro, ou cair na incongruência de tratar o islã como um bloco monolítico, como se apresentasse as mesmas características em qualquer tempo e espaço. Procuramos entender o funcionamento das comunidades locais, em nosso caso, o islã surinamês de feição oriental, e suas contribuições (se é que existem) para a compreensão das comunidades globais. 1999 foi o ano de minha primeira viagem ao Suriname, que naquele momento compartilhava com alguns países da América Latina a experiência de ter saído recentemente de um período de regime autoritário. O primeiro percurso no país, o trajeto para a capital, Paramaribo, já enunciava o que mais atrairia a minha atenção naquele país: a diversidade étnica e cultural. No caminho para a capital se apresentavam igrejas cristãs (católicas e evangélicas), porém também me deparava diante de templos hindus e mesquitas islâmicas. A 1 Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil. 2 GEERTZ, Clifford. Observando o islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonésia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 35. 1 multiculturalidade podia ser observada nas construções, assim com nos vestuários e nos rostos das pessoas. O ambiente multicultural do colonialismo holandês, em que a tolerância às diferenças étnicas chegou a compor a plataforma política colonial (desde que não interferisse nos interesses da metrópole)3, estava diametralmente afastado do ambiente gerado pelo ideal do colonialismo assimilacionista português, que menosprezava as culturas nativas em prol de uma cultura portuguesa superior idealizada, a qual, com o auxílio português, os nativos deveriam atingir4. Outros sobressaltos ainda estariam por vir. Os dados demográficos indicam que 19,6% da população do Suriname é muçulmana5, o que representa o maior percentual de islâmicos em país fora da Ásia, África e Europa Oriental. Afinal, por que esse país chegou a concentrar tantos muçulmanos? Para adentrarmos nas particularidades do islã no Suriname iremos inicialmente apresentar alguns aspectos do processo de formação histórica do país; da constituição da comunidade islâmica; das peculiaridades do islã na ilha de Java e de seu reflexo no islã surinamês da atualidade. O Suriname localiza-se no norte da América do Sul, possui área de 163.820 km² e aproximadamente 439 mil habitantes (é o menor país e tem a menor população da América do Sul). Faz fronteira ao norte com o Mar do Caribe, ao sul com o Brasil, a oeste com a Guiana e ao leste com a Guiana Francesa. Praticamente todo o país é coberto pela floresta amazônica, exceto uma pequena faixa litorânea onde vive a maioria da população. A região onde se localiza o Suriname era habitada originalmente por aruaques, tupis e caraíbas, quando os europeus chegam no séc. XVI e a partir de então foi alvo de disputa entre ingleses e holandeses. Em 1667, a Holanda recebeu a posse do território em troca da cidade holandesa de Nova Amsterdã – hoje Nova York, nos Estados Unidos. Após novas e longas disputas, em 1815, a Holanda consolidou definitivamente o domínio sobre a região. 3 Para maiores informações sobre o colonialismo holandês no Suriname, v. RIBEIRO, Fernando Rosa. A construção da Nação (pós-) colonial: África do Sul e Suriname, 1933-1948. Estudos afro-asiáticos, 2002, vol.24, n.3, p. 483-512. 4 O colonialismo português viu no islã um empecilho para que o nativo deixasse a condição de “indígena” e se tornasse um “assimilado”, incorporando definitivamente a “cultura portuguesa”. A partir de 1965, em Moçambique, a administração colonial mudou essa postura devido à iminência dos movimentos de libertação nacional, e experimentou uma aproximação com as lideranças muçulmanas do norte do país, a fim de garantir a lealdade deles à Portugal. Para maiores detalhes sobre o islã no colonialismo português, v. MACAGNO, Lourenzo. Outros muçulmanos: Islão e narrativas coloniais. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2006. 5 THE WORLD FACTBOOK . Disponível em: <https://www.cia.gov/cia/publications/factbook/geos/ns. html>. Atualizado em 19 set. 2006. Acesso em: 28 set. 2006. 2 Os holandeses utilizaram mão-de-obra escrava africana nas monoculturas até 1863, quando a escravidão foi abolida. Em substituição aos escravos foram importados trabalhadores asiáticos da Índia Britânica6, da ilha de Java7 e da China. A imigração de asiáticos no Suriname teve como marco a chegada do navio, Lalla Rookh, em 1873, com os primeiros 399 imigrantes oriundos da Índia Britânica, com contratos assinados que os obrigava a trabalhar por cinco anos8. A idéia original era que ao final dos contratos, os trabalhadores e suas famílias retornassem à sua terra natal, porém essa expectativa não foi concretizada. Ao final dos contratos a maioria permaneceu nas colônias. Esse modelo de colonização conferiu ao Suriname e às colônias inglesas da Guiana e de Trinidad e Tobago certa feição oriental, considerável população de origem asiática e as maiores concentrações percentual de muçulmanos do continente americano. Guiana e Suriname são os únicos países da América do Sul que não foram colonizados por países latinos. Assim hoje estão muito mais próximos da cultura caribenha que da latino-americana. Ambos integram a Comunidade do Caribe (Caricom), bloco de cooperação econômica e política dos países caribenhos; e a Organização da Conferência Islâmica, entidade que congrega os países de maioria ou com significativas minorias muçulmanas. Do ponto de vista étnico, a população do Suriname é constituída por: 37% hindustânis9, 31 % afro-descendentes, 15% javaneses10, 10% boschnegers11, 2% ameríndios, 2% chineses, 1% brancos12 e 2% outros. Do ponto de vista religioso, 27,4% são hindus, 25,2% protestantes, 22,8% católicos, 19,6% muçulmanos, e 5% seguidores de religiões tradicionais13. Em 1975, o Suriname obteve a independência da Holanda, de quem herdou seu idioma oficial. Outras duas línguas também são amplamente utilizadas no país: o inglês e o 6 Colônia inglesa até 1947. Deu origem a três países: Índia, Paquistão e Bangladesh. Ilha mais populosa das Índias Orientais Holandesas (hoje Indonésia). 8 HOEFTE, Rosemarijn. In place of slavery: a social history of British Indian and Javanese laborers in Suriname. Gainesville, FL: University Press of Florida, 1998, p. 1. 9 Termo que designa os descendentes dos imigrantes da Índia Britânica, utilizado como auto-identificação comunitária (os hindustânis do Suriname também se auto-identificam como cooli). Optei pelo termo hindustâni, e não indiano ou hindu, pois o primeiro confunde-se com o indivíduo que possui nacionalidade da Índia, e o segundo refere-se ao seguidor da religião hinduísta. 10 Neste trabalho utilizamos o termo javanês em referência ao grupo étnico constituído pelos descendentes dos imigrantes oriundos das Índias Orientais Holandesas. 11 Africanos que fugiram para as florestas no período escravagista e estabeleceram sistemas africanos isolados com cultura e línguas próprias, com certa similaridade à dinâmica da formação dos quilombos no Brasil na época do regime escravagista. 12 Grupo constituído principalmente por descendentes de holandeses, conhecidos localmente como buru, vocábulo do sranang tongo, que teria origem no termo bôer (de boer, em holandês, que se refere a aldeão, lavrador, camponês). Também na África do Sul o termo bôer designa o indivíduo ou o grupo de descendente de holandeses. 13 THE WORLD FACTBOOK, op. cit. 7 3 sranang tongo (também chamado taki-taki, falado inicialmente pela população negra, se tornou atualmente a língua franca das áreas urbanas). Outras línguas são usadas pelas respectivas comunidades, como: o hindustâni caribenho (dialeto do hindi), o javanês, o mandarim, o marrontaal (dialetos com forte influência africana falados pelos boschnegers, com três principais variações: saramaccan, aucan, paramaccan) e línguas indígenas (aruaque e caraíba)14. Os primeiros muçulmanos a chegar ao Suriname foram alguns africanos trazidos como escravos15 (assim como ocorreu no Brasil e em outras colônias americanas). Hoje, porém, não há no país comunidade muçulmana remanescente desses grupos. Atualmente as comunidades islâmicas no Suriname são formadas basicamente por hindustânis e javaneses, com presenças esparsas de negros e árabes. Cerca de 1/5 dos imigrantes da Índia Britânica eram muçulmanos e 4/5, hindus16. Entre os javaneses, os muçulmanos constituíam a maioria. Neste trabalho voltaremos a nossa atenção para essa última comunidade, especialmente a que segue o ritual tradicionalista, para tal adiante olharemos de relance algumas características do islã na ilha de Java. Algumas similaridades podem ser percebidas entre práticas do islã javanês no Suriname e a descrição que Geertz17 faz sobre o islã na ilha de Java. Segundo ele os muçulmanos javaneses apresentavam noções pré-islâmicas e estavam envoltos em tradições do budismo, do hinduísmo e do animismo. A massa dos camponeses muçulmanos continuava devota de espíritos, de rituais domésticos e de encantamentos. Somente uma minoria (santri) procurava seguir um credo muçulmano ortodoxo. No Suriname as práticas que prezam pela manutenção da tradição e cultura javanesas foram preservadas no rito islâmico-javanês das comunidades tradicionalistas. O arquipélago indonésio, até então sob a influência hindu, começou a ser islamizado entre os séculos XII e XIV por mercadores gujarati, da Índia, que por sua vez haviam sido islamizados pelos persas e estes últimos pelos árabes. As particularidades do islamismo do subcontinente indiano exerceram sérias influências, nesse período, no processo de conversão nas ilhas indonésias. O processo de islamização também foi bastante particular. Não se tratou de uma dominação política seguida da conversão da população, como ocorreu 14 Id. e ALGEMEEN BUREAU VOOR DE STATISTIEK. The seventh population and housing census, 2004. Disponível em <http://www.statistics-suriname.org/publicaties/census7-vol1-4.pdf>. Acesso em 30 mar. 2007. 15 CHICKRIE, Raymond. The Lalla Rookh: arrival of the first Hindustani Muslims to Suriname 1873. 2002. Disponível em: <http://www.guyana.org/features/LallaRukh.pdf#search=%22islam%20suriname% 22>. Acesso em 30 set. 2006. 16 HOEFTE, op. cit., p. 163. 17 GEERTZ, op. cit., p. 76-77. 4 na Índia, por exemplo. No arquipélago indonésio a islamização se deu de forma gradual, levada pelo contato da atividade comercial dos navegadores18, assim a conversão ao islã seguiu o fluxo das rotas do comércio: se deu do litoral para o interior e do oeste para o leste. A propagação do islã não se encerrou no século XIV (talvez esse processo se estenda até hoje). A pregação muçulmana difundiu-se concomitantemente ao domínio holandês, concorrendo com as missões protestantes e católicas. Frente a uma civilização hindu-budista, especialmente na ilha de Java, o islã parece muito mais ter se “modelado”, se “acomodado”, que suplantado a religião anterior. Como asseverou Geertz19: “na Indonésia, o islã não construiu uma civilização, ele se apropriou dela”. O pensamento e o modelo da organização social e política javanesa-hinduísta influenciou tanto o islamismo indonésio quanto a organização do Estado nacional formado após a independência20. Os muçulmanos hindustânis e javaneses imigrantes no Suriname apresentavam distinções que paulatinamente demarcaram a separação institucional entre as duas comunidades. Os hindustânis interpretavam o Alcorão pela tradição da escola hanafista, seu idioma ritual era o urdu e adaptaram a direção das suas orações à nova posição geográfica em relação à Meca, na Arábia Saudita, ou seja, para o leste. Os muçulmanos javaneses seguiam a escola de lei shafiísta, como nas Índias Orientais Holandesas. Eles utilizavam o idioma javanês em suas reuniões e mantiveram suas orações direcionadas para o oeste, tal qual faziam em Java, a despeito de Meca ficar a leste do Suriname. Outro fator que distanciaria as comunidades muçulmanas hindustânis e javanesas foi a chegada ao Suriname do movimento reformista Ahmadiyya, em 1930. O movimento, surgido na Índia Britânica por volta de 1880, procurava interpretar o Alcorão adaptando-o à vida moderna e purgar o islã de rudimentos religiosos oriundos do hinduísmo. No Suriname, o movimento Ahmadiyya influenciou mais as comunidades muçulmanas hindustânis que as comunidades javanesas, pois as primeiras se defrontavam com dificuldades similares às enfrentados pelo islã no subcontinente indiano. A doutrina do Ahmadiyya causou forte impacto na Associação Islâmica do Suriname, a primeira organização muçulmana do país, fundada em 191921. A distinção entre muçulmanos hindustanis e javaneses fomentou o desenvolvimento de uma consciência islâmico-javanesa, e a manifestação do desejo de 18 DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004, p. 70-73, 135. GEERTZ, op. cit., p. 25. 20 A influência do javanismo hindu-místico pôde ser percebida na ideologia da pancasila, fórmula elaborada pelos nacionalistas indonésios para nortear o novo país, e pelos estímulos recebidos pelos governos de Sukarno e Suharto até o final dos anos 90. 21 HOEFTE, op. cit., p. 167. 19 5 constituir suas próprias instituições religiosas. A secessão culminou com a abertura, em 1932, da primeira mesquita javanesa. Após essa data, inúmeras outras mesquitas menores (mejit) foram construídas no país22. No início da década de 80, o panorama do islã javanês no Suriname sofreu alterações, após a chegada de estudantes muçulmanos javaneses de uma temporada de estudos na Arábia Saudita, berço do islã. Eles voltaram profundamente impactados pelos ideais purificadores irradiados pelos movimentos puritanos, como o dos wahabitas23, e ansiavam por reformas nas práticas do islã javanês, que consistiam na separação clara entre a religião (o islã puro) e a cultura (a tradição javanesa), por isso reivindicavam a retirada de elementos considerados alheios ao islã, como nos ritos tradicionais javaneses praticados no nascimento, na circuncisão, no casamento e na morte. O retorno ao Suriname desses jovens imãs24 causou uma fissura permanente entre os muçulmanos javaneses. A direção das orações tornou-se o eixo emblemático da adesão (ou não) aos ideais reformistas. Algumas comunidades islâmico-javanesas paulatinamente aceitaram as reformas, purgaram alguns ritos considerados estranhos ao islã e redirecionaram orações, apontando diretamente para Meca, ou seja, para o leste. Outras comunidades resistiram a qualquer mudança, mantendo tanto suas orações direcionadas para o oeste – tal qual faziam seus ancestrais em Java –, quanto as demais tradições herdadas do islamismo javanês. As comunidades que foram aderindo ao movimento de reforma criaram uma entidade para agregá-las e melhor propagar os ideais reformadores, assim foi criada a SIS (Fundação Islâmica do Suriname). Frente à perda de espaço para os reformistas e às investidas que procuravam confrontar as convicções religiosas dos muçulmanos tradicionalistas, as comunidades tradicionais também criaram sua própria entidade, a FIGS (Federação de Comunidades Islâmicas no Suriname), para congregar as mesquitas resistentes às mudanças, hoje a maior organização muçulmana tradicionalista javanesa do país. A chegada do movimento reformista e a própria cisão no islã javanês parece ter motivado, nos tradicionalistas, a busca por fundamentos que justificassem suas práticas religiosas. O imã presidente da FIGS explicou, por exemplo, a opção pela manutenção das orações em direção ao oeste, justificando que se a terra é redonda, então a direção oeste também aponta para Meca, e que mais importante que orar para leste ou oeste, é orar para Deus. 22 Ibid., p. 169. Movimento islâmico ultrapuritano formado pelos seguidores do pregador Muhammad ibn Abd al-Wahhab, que viveu na Península Arábica entre 1703 e 1792. 24 Aquele que dirige as orações ou um líder da comunidade muçulmana. 23 6 A reação das comunidades tradicionais, após o impacto inicial da onda reformista, produziu certo revigoramento dessa tendência. Numa abordagem de Georg Simmel25, podemos dizer que o conflito foi importante fator para a coesão do grupo, produzida na relação concorrente e desafiadora com os reformistas. Talvez a resistência em abandonar os rituais tradicionais no islã javanês esteja relacionado com o que Geertz chamou de “o mito do centro exemplar”26. O mito fundante da civilização balinesa cita a vitória do reino javanês oriental de Majapahit sobre o rei da ilha de Bali. A colonização e a povoação de Bali por javaneses está na história das origens da ilha, tornando os balineses descendentes dos invasores, assim a ilha de Java passou a ser o modelo e o centro de inspiração para Bali. Para os javaneses do Suriname, a distante Java continuaria irradiando o modelo de espiritualidade, de um negara27 autêntico, já que lá também o islã tradicionalista javanês persevera. As cerimônias no islã javanês, como os slametans que abordaremos adiante, também exprimem uma visão da natureza fundamental da realidade do mundo pós-morte, assim como, à sua maneira, as cerimônias no Estado balinês clássico representavam um teatro metafísico, além de moldar as condições de vida e reforçar a estrutura social28. Entre os muçulmanos javaneses da Indonésia também já havia ocorrido um processo reformista com certas características semelhantes ao ocorrido no Suriname. Ainda no século XIX, paradoxalmente, a expansão européia resultou num reforço do islã. O aperfeiçoamento tecnológico facilitou o transporte marítimo e permitiu a mais muçulmanos javaneses fazer a peregrinação à Meca (hajj, um dos pilares do islã)29. De lá voltavam influenciados pelos ares ortodoxos do berço do islã e mais determinados a combater as tradições religiosas clássicas presentes no islã de Java. No Suriname, há ainda, um terceiro pólo de influência na religião praticada por javaneses: o javanismo. Nas regiões rurais do Suriname, principalmente, foi mantida a essência dos costumes na religião tradicional javanesa (wong agami jawi), centrada nos rituais religiosos denominados slametans30. Os rituais que se seguem à morte são constituídos por sete slametans, que são realizados no primeiro, no terceiro, no quadragésimo e no centésimo dia após a morte; ao completar um e dois anos; e finalmente, o mais importante dos rituais, 25 SIMMEL, Georg. Formalismo sociológico e a teoria do conflito. In: MORAES FILHO, Evaristo de (org.). Georg Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. 26 GEERTZ, Clifford. Negara: O Estado teatral no século XIX. Lisboa: Difel/Rio de Janeiro: Bertrand, 1991. 27 Negara, no seu sentido mais amplo, é a palavra que designa civilização (clássica), remetendo assim para o mundo da cidade tradicional, para a alta cultura que essa cidade sustentava e para o sistema de autoridade política superior nela concentrado. O seu oposto é desa, que no sentido mais amplo é a palavra que define o mundo, do camponês, do rendeiro, do súdito político, do povo. V. ibid., p. 14. 28 Ibid., p. 134. 29 DEMANT, op. cit., p. 135-141. 30 GEERTZ, Clifford. Religion of Java. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1976. 7 quando se completa mil dias do falecimento. Rituais com essas características também estão presentes atualmente no islamismo que segue a tradição javanesa no Suriname. Os slametans e as cerimônias tradicionais são mantidos pelas mesquitas associadas à FIGS. Na tradição islâmico-javanesa do Suriname, Deus (Allah) parece ser uma figura distante e abstrata, enquanto os espíritos são muito mais próximos e exercem influência sobre a vida cotidiana, garantindo benesses ou ocasionando infortúnios. De acordo com essa tradição, após a morte, o indivíduo continua a circular nos espaços que freqüentava em vida e está sujeito a algumas das mesmas sensações físicas dos vivos. Em função dessas concepções é que são oferecidas comidas e bebidas ao morto. Em 2007, acompanhei o slametan do milésimo dia, em uma comunidade islâmica que segue a tradição javanesa. O ritual foi realizado na própria casa onde residiu o falecido, em um bairro da periferia de Paramaribo. Nessa localidade residem principalmente pessoas de origem javanesa, ainda que também se verifique a presença de negros (alguns dos quais imigrantes da Guiana) e hindustanis. Na área há uma mesquita muçulmana que segue a tradição javanesa e também uma igreja cristã evangélica, freqüentada pela comunidade guianesa. A disposição em que estavam reunidos os participantes mostrava o nível de importância e respeito. Distinguiam-se quatro grupos com diferentes funções desempenhadas e diferentes graus de importância no ritual. A sala, onde estavam os líderes muçulmanos, era o centro de onde a cerimônia “emanava”. No ritual, os líderes religiosos (todos do sexo masculino) ficaram sentados sobre uma esteira de palha colocada no assoalho da sala da casa formando um círculo. O segundo grupo, formado por familiares e alguns amigos convidados (também somente do sexo masculino, inclusive crianças), ficou sentado no pátio do imóvel. O grupo ouvia e acompanhava em silêncio o que ocorria na parte central (a sala). Um terceiro grupo estava na cozinha. Eram as mulheres da família (e esporadicamente alguns homens) garantiam o suporte necessário para a realização do ritual, que incluía os alimentos, sucos, refrigerantes e os materiais solicitados pelo grupo da sala. Na área mais externa (na rua e na área lateral ao imóvel) estava o quarto grupo, constituído por vizinhos e alguns parentes (homens e mulheres), que conversavam de forma mais descontraída, mas também se mostravam atentos aos procedimentos do ritual que ocorriam na sala da residência. O ritual foi constituído por dois momentos distintos. No primeiro momento o dirigente das orações recitou trechos do Alcorão, em árabe, o que foi atentamente ouvido por todos os participantes. A recitação tem um ritmo próprio que se situa entre uma leitura e um 8 canto (como nas ladainhas católicas em latim). Após cada trecho da recitação, os participantes, respondiam em coro, formando um conjunto harmônico. No segundo momento foram trazidos para a sala alimentos e bebidas típicas da culinária javanesa, preparados especialmente para essa ocasião. Também foram trazidos objetos e materiais de uso pessoal do morto e que lembram seus hábitos e preferências, como roupas, travesseiro, cigarros e etc. Durante o ritual, uma pedra (espécie de mirra) foi queimada, produzindo uma fumaça perfumada que se difundiu no ambiente da sala. Os objetos pessoais e os rituais descritos têm por objetivo proporcionar um ambiente familiar para o morto, a fim de que ele também participe do ritual. Em seguida os líderes da comunidade muçulmana dividiram os alimentos em porções individuais, para em seguida serem distribuídas. Os alimentos foram distribuídos somente para os participantes do sexo masculino (inclusive para as crianças), primeiramente para os líderes religiosos (o grupo da sala), depois para parentes e amigos (os grupos do pátio e cozinha), e finalmente para o grupo da área externa. O alimento foi embalado em folhas e depois colocado em sacola plástica, a fim de facilitar o transporte. Após a distribuição do alimento e do encerramento do ritual, os participantes se despediram e retornaram para suas residências. Somente ao chegar às suas casas é que o alimento seria dividido com os familiares e comido. Acredita-se que ao participar da cerimônia e alimentar-se com a comida partilhada no ritual, também se divide um pouco do pesar que a família sente pela morte e contribui na transição do morto ao mundo pós-morte. Os slametans podem ser reputados como ritos de passagem, um estado de ‘suspensão’ ritual em que o indivíduo é apresentado às normas sociais. Para Van Gennep31 esses ritos (entre os quais os funerais) são construções sociais sobre o biológico, o geográfico e o psicológico. Durante todo o período em que ocorrem os sete slametans, tanto a família quanto o morto estão em um estágio de transição, ao que Van Gennep denomina de “período de margem”32. Na margem, entre o mundo dos vivos e dos mortos, os indivíduos se encontram em suspensão, já separados da situação anterior, mas ainda não incorporado à nova condição, dessa forma os rituais slametans são momentos de interação da comunidade religiosa e familiares com o morto. 31 32 GENNEP, Van Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1977. Ibid., p, 126-140. 9 A família oferece materiais que proporcione conforto e o aconchego ao morto, como: comida, bebida, e objetos de uso pessoal. Por outro lado, o morto continua a circular no ambiente doméstico e pelos locais que freqüentava em vida, até o fim do período que se estende ao milésimo dia de sua morte. Decorrido esse período a separação entre os vivos e o morto torna-se mais consolidada. De certa forma, ambas as correntes do islamismo javanês no Suriname seguem linhas tradicionais. A diferença entre as duas vertentes é norteada pelos marcos históricos referenciais aos quais a comunidade encontra-se vinculada. A corrente reformista, orientada pela ortodoxia religiosa, busca seus laços espirituais e seu conjunto de valores morais no Alcorão, nas hadith33 e na comunidade muçulmana constituída na península Arábica do século VII, à época do profeta Maomé. A prática religiosa da corrente tradicionalista, baseado num islamismo heterodoxo, encontra seus referenciais na tradição e costumes trazidos de Java por seus ancestrais, além da observância do Alcorão. A auto-afirmação e o sentimento de pertencimento étnico reforçam a resistência às mudanças nas tradições da comunidade. Haveria de fato, em última análise, um conflito entre duas diferentes tradições e uma contestação da legitimidade da tradição javanesa em prol da árabe. Nesta análise cabe citar a explicação do presidente da FIGS reforçando sua posição tradicionalista, de que sua comunidade é formada por muçulmanos javaneses e não muçulmanos árabes. A oposição entre reformistas e tradicionalistas é um dilema recorrente no islamismo em geral. O tradicionalismo preza pelas particularidades identitárias da comunidade local, enquanto o reformismo modela-se no caráter universalista do islã. Em minha análise, a FIGS e a SIS defendem posições (ou modelos) reformistas e tradicionalistas, o que, em termos weberianos, representariam apenas dois tipos ideais. Entre as duas posições há um espectro de práticas que preservam ou excluem mais ou menos as tradições. De fato, a adesão aos ideais reformistas não foi um processo cabal. Embora algumas comunidades tenham trocado o sentido de suas orações (de oeste para leste), as tradições e crenças não foram alteradas plenamente, passando a compor um quadro de comunidades mais ou menos reformadas, dessa forma não seria adequado falar hoje de um islã reformista e ortodoxo e outro tradicional e heterodoxo no Suriname. Talvez o mais apropriado seria falar em tendências mais reformistas ou mais tradicionalistas. O Suriname, moderno e tradicional, amazônico e caribenho, ocidental e oriental, cristão e muçulmano, pequeno, no entanto comportando um pouco do mundo, foi 33 Escrituras sancionadas pela tradição que relatam atos e falas do profeta Maomé. 10 nosso ponto de partida em busca de um islã, apenas um, das várias facetas que lá se apresentam. Buscamos aqui retratar um “islã observado”, parafraseando o título da obra de Geertz34. O panorama religioso do Suriname parece enunciar o sinal de uma sentença sobre as asas purificadoras, universalistas e uniformizadoras no islã, de que ele está fadado à diversidade. O ideal purificador parece ser cíclico e permanente no islã, contudo o germe da diversidade prenuncia-se entranhado nessa própria dinâmica, como se sem um lado tradicionalista, o outro, reformista perdesse completamente o sentido de existir. 34 Do título original do livro: GEERTZ, Clifford. Islam observed (religious development in Morocco and Indonesia). New Haven: Yale University press, 1968. 11