1 GRUPO DE TRABALHO 1 GÊNERO, CORPO, SEXUALIDADE E SAÚDE. A COMPLEXIDADE DO PACIENTE POLIQUEIXOSO E DO SEU TRATAMENTO Silvia Jurema Leone Quaresma 2 A COMPLEXIDADE DO PACIENTE POLIQUEIXOSO E DO SEU TRATAMENTO Silvia Jurema Leone Quaresma 1 RESUMO Este artigo se originou de pesquisa, aprovada pelo Comitê de Ética da UFSC, realizada em 2004/2005 cujo objetivo era conhecer e analisar a percepção médica em relação ao transtorno poliqueixoso e os pacientes poliqueixosos que freqüentam o ambulatório do HU da Universidade Federal de Santa Catarina. Utilizamos como fundamentação teórica da pesquisa as categorias Estilo de Pensamento (EP) e Coletivo de Pensamento (CP) do epistemólogo Ludwik Fleck para compreender as falas que foram articuladas pelos médicos e residentes do HU em relação às poliqueixas e os poliqueixosos. A metodologia aplicada na pesquisa apoiou-se em entrevistas estruturadas e semi-estruturadas somente com médicos clínicos e residentes, de ambos os sexos, que estavam trabalhando na instituição hospitalar no momento da pesquisa. Constatamos na pesquisa que os pacientes poliqueixosos têm em média entre 41 e 50 anos e estatisticamente a incidência maior é do sexo feminino. Verificamos que cada um dos entrevistados atende em média 10 pacientes com características poliqueixosas/mês e estes retornam diversas vezes ao ambulatório. As queixas físicas dos pacientes são variadas. No entanto, os entrevistados consideraram que essas queixas são provenientes de problemas psicossociais, sendo a violência doméstica um dos problemas sociais mais citados nas entrevistas. Com os resultados da pesquisa obtivemos dados suficientes para incluirmos a percepção médica sobre o transtorno investigado dentro do Estilo de Pensamento biologicista/organicista. Para finalizar, inferimos que para haver tratamento eficaz deste transtorno é necessário que haja uma triagem desses pacientes no HU e que eles sejam atendidos por uma equipe multidisciplinar nos seus mais variados problemas. Dessa forma, avaliamos que a complexidade do processo saúde/doença, não permite que os médicos se baseiem em um único EP para o tratamento das mais variadas formas de adoecer. Palavras Chaves: médico clínico, transtorno poliqueixoso, Estilo de Pensamento biologicista/organicista. Introdução O transtorno2 poliqueixoso é muito confundido com o transtorno hipocondríaco por esse motivo iniciamos o artigo fazendo algumas considerações sobre ambos partindo de suas características principais. O transtorno hipocondríaco já é bem conhecido na área médica e se encontra descrito no “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” (DSM-IV) como um dos vários transtornos somatoformes e estes são considerados como todos aqueles que têm em comum a presença de uma ou mais queixas físicas, para as quais não se consegue encontrar uma explicação orgânica adequada e os achados nos exames físicos ou laboratoriais são insignificantes se comparados com as queixas apresentadas. A característica principal do paciente hipocondríaco é a 1 Socióloga, doutoranda em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina. Adotamos o termo transtorno uma vez que este denota desordem e perturbação podendo estar inserida tanto em termos físicos, quanto psíquicos ou sociais. 2 3 “preocupação com o medo de ter, ou a idéia de que a pessoa tem uma doença grave, com base na interpretação errônea de um ou mais sinais ou sintomas somáticos” (ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, 1995). Já o transtorno poliqueixoso é utilizado para definir o comportamento de indivíduos que percorrem várias especialidades médicas apresentando múltiplos sintomas, mas cujos exames não revelam nenhuma anormalidade que justifique as queixas. A principal diferença entre os dois é de que o hipocondríaco acredita que tem uma doença grave como um câncer, por exemplo, e essa doença na maioria das vezes assume um significado dramático para o hipocondríaco; enquanto que o poliqueixoso não está preocupado como uma única doença, mas está apreensivo com os sintomas que em geral são bastante difusos (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO, 2004). Tanto o paciente hipocondríaco quanto o poliqueixoso são muitas vezes submetidos a exames invasivos que acabam ocasionando muitos sofrimentos e gastos públicos. Por um lado, a necessidade dos exames se impõe devido à crença que esses pacientes têm na Medicina tecnocientífica que tem exames específicos para todos os males. Por outro lado, os médicos também passaram a solicitar mais exames complementares como forma de se proteger de futuras acusações de omissão ou negligência em relação aos seus pacientes. E é aí que as despesas decorrentes da utilização abusiva da tecnologia na área médica vêm a acarretar uma contínua elevação dos custos da assistência médica tanto privada quanto pública. Além disso, esses pacientes estão muito mais propensos a se envolver com a automedicação e autoprescrição que continua sendo um problema grave no Brasil, principalmente, com o advento da internet e as informações que esta contém sobre os mais variados tipos de doenças e tratamentos. Lembrando que essas informações podem ser determinantes para que muitos pacientes passem a exigir de seus médicos a solicitação de exames e a prescrição de drogas que são julgadas por eles como benéficas no tratamento de uma certa doença ou um certo sintoma. Ressaltamos também que ambos pacientes, poliqueixoso e hipocondríaco, costumam ser estigmatizados pela família e pelos amigos porque eles se sentem doentes. Sentir-se doente é também um estado psicológico, pois, muitas vezes, o indivíduo encontra-se hígido perante a Medicina oficial, mas, de alguma forma ele se sente interiormente debilitado (GRISOTTI, 2003). Assim sendo, experienciar um estado doentio não é somente uma manifestação de um problema orgânico ou biológico, mas pode ser também um sentimento aflorado a partir de um estado psicológico que pode estar sendo determinado/condicionado pelo social. Em se tratando dos pacientes hipocondríacos e poliqueixosos deve-se destacar que, geralmente, o médico clínico é o primeiro profissional a ser procurado por estes (LEAL, 2004). Entretanto, esses pacientes estão sempre trocando de profissional na tentativa de encontrar um 4 diagnóstico para seu sofrimento o que acaba alimentando um ciclo vicioso. Além disso, essa mudança constante de médicos dificulta, muitas vezes, o diagnóstico de ambos transtornos. Transtorno poliqueixoso: fenômeno ainda sem definição O transtorno poliqueixoso é um fenômeno de visibilidade recente na área médica que o torna pouco conhecido pelos profissionais da saúde (ATTA, 2004), principalmente os recém-formados, pois, a grande maioria das faculdades de Medicina ainda não contemplam este tipo de paciente nas disciplinas que fazem parte da grade curricular: A gente fala sobre patologias e isso não é visto como uma patologia no currículo, então... Tu aprende subjetivamente. Tu aprende nos trancos e barrancos, vendo como os outros tomam como condutas e vai elaborando a sua própria baseada em nada. Simplesmente naquilo que tu está disposto a fazer (...) A exclusão deste tipo de transtorno e de paciente na grande maioria dos cursos na área da saúde no Brasil é conseqüência, ainda, do relatório Flexner3 que indica que as disciplinas devem ser ministradas de forma independente, o que consolidou ainda mais as especialidades médicas e com isso também acabou desconectando o médico da arte de curar o paciente na sua totalidade. Por meio deste relatório foi sendo cada vez mais solidificado o Estilo de Pensamento4 (EP) biologicista/organicista que fragmenta o indivíduo e tenta explicar que todas as doenças têm uma causa orgânica/biológica, desconsiderando o social na causação das doenças. Esse EP dificulta o diagnóstico de problemas do tipo do transtorno poliqueixoso, pelo simples fato de que ele não se traduz num problema orgânico que possa ser verificado através de exames. Por outro lado, mesmo os profissionais mais experientes encontram dificuldade no diagnóstico do transtorno poliqueixoso, isso porque, esse tipo de paciente não recebe atendimento fixo, pois, ele está sempre trocando de médico na tentativa de diminuir seu sofrimento. 3 O relatório Flexner foi elaborado no início do século XX por Abraham Flexner (1866-1959), secretário da Fundação Rockfeller, encarregado de realizar uma reforma na educação médica americana que visava à padronização dos currículos das escolas médicas. O relatório baseava-se no modelo mecanicista, isto é, o corpo humano deveria ser estudado por partes e a doença deveria ser vista como o mau funcionamento dos mecanismos biológicos, estudados sob o ponto de vista da biologia molecular e celular (CUTOLO, 2001). 4 A ciência, na visão do epistemólogo Ludwik Fleck (1896-1961) é realizada cooperativamente por grupos de cientistas com convicções empíricas e especulativas mais ou menos semelhantes, seriam os chamados Coletivos de Pensamento (CPs). Esses grupos não devem ser entendidos como uma classe social ou um grupo fixo, ele existe sempre que duas ou mais pessoas trocam idéias (FLECK, 1986). A forma como cada grupo vê a ciência em determinado contexto histórico, social e cultural, se constitui no Estilo de Pensamento de um determinado grupo. Os CPs na visão fleckiniana não são estáticos, mas interagem entre si estabelecendo outras novas conexões que vão dar origem a outros EPs. Explicando um pouco melhor, podemos dizer que os grupos e seus diferentes enfoques se influenciam mutuamente e se entrelaçam tornando o conhecimento em constante transformação. É claro que isso nem sempre se dá de forma harmônica, há conflitos entre os CPs. Mas de qualquer forma, CP e EP são interdependentes e inseparáveis, onde os EPs nunca devem ser tomados como verdades absolutas. Na ciência médica os principais EPs são: o biologicista/organicista, o higienista/preventista e o social. 5 Em âmbito acadêmico são poucas as pesquisas que tratam do paciente poliqueixoso. Um dos autores pioneiros no tema foi Chammé (1992) que estudou 58 pacientes e verificou que o processo de poliqueixas ocorre de forma inconsciente. Entretanto, os poliqueixosos deixam transparecer na narrativa metaforizada dos sintomas o seu problema, que na maioria das vezes está ligado ao emocional, ao psicossocial. O autor observou que mesmo aqueles poliqueixosos mais desprovidos de erudição no seu vocabulário coloquial, constrói metáforas adequando imaginação e fantasia como um recurso para promover a passagem compreensiva do significante ao significado que estão contidos na sua narrativa. Dessa forma, através da narrativa metaforizada o poliqueixoso deixa transparecer para o seu ouvinte os significados que estão acobertados. Alguns especialistas consideram que o comportamento poliqueixoso é muito comum e muitas vezes esses pacientes repetem sua queixa em mais de um local no mesmo dia. Em pesquisa realizada no começo dos anos 90 na Universidade Federal do Estado de São Paulo (UNIFESP, 2004), observou-se que o paciente poliqueixoso pode ser encontrado num hospital público, mais tarde na fila de algum posto de saúde e depois ainda ser encontrado em atendimentos de emergência, tudo num só dia. Essa procura incessante por um médico mostra a insatisfação do paciente poliqueixoso com a negativa do diagnóstico, já que os exames não apontam nenhuma doença. Ou seja, a falta de consciência do problema psicossocial faz com que esses pacientes tenham necessidade de procurar por uma doença em seus corpos que na realidade não existe na forma como eles esperam. Dessa forma, esses pacientes têm sintomas e estes são reais para ele, mas a doença orgânica esperada é irreal. Apesar de ser considerado um transtorno comum na área médica, há ainda muita controvérsia na definição do transtorno poliqueixoso e na classificação dos pacientes poliqueixosos. Leal (2004), por exemplo, considera que os pacientes poliqueixosos são aqueles que apresentam queixas ou sofrimentos difusos. Entretanto, essas queixas não se enquandram nas categorias nosológicas (classificação das doenças) dos manuais de medicina interna ou nos livros-texto de psiquiatria. Este autor aponta que cerca de 30% dos pacientes que procuram ajuda médica são poliqueixosos. Bombana (2004), considera que por trás dos pacientes poliqueixosos estaria o diagnóstico de um transtorno multisomatoforme, no qual o indivíduo sofre de múltiplas somatizações. Além disso, alguns profissionais da saúde tentam a enquadrar o paciente poliqueixoso como sendo portador do transtorno de somatização da forma como este é apresentado no CID-105 e acabam encaminhando estes pacientes para os profissionais da saúde mental, os psiquiatras. No entanto, estes também não dispõem de recursos técnicos e até mesmo teóricos suficientes que os 5 10ª revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 6 habilitem a tratar sozinhos estes pacientes. Isso ocorre, pois, o perfil psicopatológico dos poliqueixosos não se amolda nas descrições ou classificações das doenças tradicionais da psicanálise ou da psiquiatria, isto é, na psiquiatria são encontrados vários transtornos onde caberia o paciente poliqueixoso, mas as classificações dos tais transtornos são geralmente descritivas e não etiológicas (que explicam as causas das doenças), o que dificulta o enquadramento desse tipo de paciente em um dos transtornos ou doença psiquiátrica e com isso torna-se difícil operacionalizar um plano terapêutico para esses pacientes. Além disso, esse tipo de paciente não aceita facilmente o seu encaminhamento para o profissional de saúde mental porque ele não reconhece que o seu problema é de ordem psicossocial (LEAL, 2004). Assim sendo, podemos considerar que o transtorno poliqueixoso encontra-se ainda em período de definição dentro da ciência médica. Por ser considerado um problema recente na área médica não há estatísticas sobre o paciente poliqueixoso na rede do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Contudo, ele já é considerado um problema sério que tem um custo muito alto, além de congestionar o atendimento nos ambulatórios e prontos-socorros, devido às idas e vindas dos pacientes. Apesar dos dados serem escassos nos serviços de saúde há algumas estimativas por parte de alguns profissionais: Queiroz (1994) em pesquisa realizada na década de 90, que tinha como enfoque principal a prestação de serviços na rede pública da cidade de Paulínea (no interior do estado de São Paulo), cita que os médicos estimam que 80% dos casos clínicos que chegam até eles são problemas de ordem social somatizados em dores ou indisposições não passíveis de serem tratadas com medicamento ou cirurgia. Segundo este autor, o problema é mundial, por exemplo: na Inglaterra existem alguns estudos que indicam que 60% dos casos que chegam até os médicos são problemas de ordem psicológica ou social que excedem a competência dos serviços de saúde público dos ingleses. Aliás, este é um problema que acomete não só os sistemas de saúde públicos, mas também extrapolam para os consultórios particulares, o que de certa forma não restringe esses pacientes a uma certa classe social. Nesse caso, é interessante citar que algumas empresas de saúde privada, como a UNIMED (União dos Médicos), por exemplo, para evitar prejuízos chegaram até a desenvolver alguns programas preventivos e de acompanhamento dos poliqueixosos6. Outro dado bastante interessante sobre os pacientes poliqueixosos é que num primeiro momento as queixas desses pacientes se apresentam gerais e pouco precisas, mas à medida que se especializam nessa atividade vão aprimorando seu discurso e se tornam cada vez mais exigentes. 6 Temos informações que a UNIMED, que é uma cooperativa de planos de saúde fundada em 1967, criou em 2002 um personagem inspirado na pessimista hiena Hardy, de Hanna-Barbera (dona do bordão "oh dia, oh céus, oh vida, oh azar"), para que o usuário poliqueixoso se identificasse com suas lamentações. As cenas típicas da rotina do poliqueixoso foram reproduzidas em uma palestra-teatro organizada em empresas. A intenção da Unimed era desenvolver uma conscientização entre os funcionários das empresas para que eles utilizassem melhor o serviço médico, revertendo o uso excessivo. Essas palestras foram assistidas por 80 funcionários de duas empresas. Em uma delas, a Unimed conseguiu reduzir a utilização do plano em 23% (UNIFESP, 2004). 7 Eles passam a solicitar aos médicos a realização de exames específicos e não saem do consultório sem uma receita. Ou seja, com o passar do tempo se não for realizado um diagnóstico que se enquadre nas queixas ou nas dores sentidas pelo paciente e que os tranqüilize, esses pacientes podem passar a acreditar que eles realmente têm uma doença que ninguém consegue descobrir (GOMES, 2004). Neste caso podemos até mencionar que esses pacientes podem vir a se tornar hipocondríacos, e se assim for, podemos considerar a poliqueixa como um estado anterior à hipocondria7. Tentativa de definição do transtorno poliqueixoso Considerando a pluralidade de definições encontradas para o transtorno poliqueixoso sugerimos, com base nos resultados da pesquisa, uma teoria que viesse esclarecê-lo um pouco mais e chegamos a seguinte proposição de definição: o transtorno poliqueixoso pode ser considerado como resultante das dificuldades de alguns indivíduos se relacionarem com o mundo externo fazendo com que eles reproduzam no seu corpo as dores sociais. Ou seja, diante de uma realidade difícil8, adversa e, até mesmo, dolorosa alguns indivíduos adotam uma atitude de defesa. Dessa atitude de defesa faz parte deslocar a angústia das emoções para o próprio físico por meio de sintomas que se traduzem em queixas, sem fundamento científico, e são essas queixas que acabam estabelecendo o transtorno poliqueixoso9. Portanto, nesse caso, o transtorno poliqueixoso pode ser avaliado como uma forma de reação, de enfrentamento e até mesmo de adaptação a certos fatores estressores que estão incomodando um indivíduo e pode durar pouco tempo ou até mesmo se tornar crônico. No entanto, esses indivíduos não têm consciência do que está acontecendo, isto é, eles não conseguem estabelecer um vínculo entre seus problemas sociais e suas queixas corporais (BALINT, 1975; BOMBANA, 2004; CHAMMÉ, 1992; ATTA, 2004). E por não terem consciência disso os poliqueixosos procuram o médico para a resolução do seu problema que para ele é um problema orgânico. 7 Mas para afirmarmos essa teoria teríamos que realizar uma outra pesquisa que fosse longitudinal, ou seja, seria necessário que pesquisássemos alguns pacientes por um certo período de tempo para saber se o paciente poliqueixoso que não obteve nenhum tipo de tratamento apropriado se tornou um paciente hipocondríaco. 8 Essa realidade difícil a que o indivíduo está exposto é considerada, na linguagem médica, um fator estressor psicossocial. A variedade desses fatores estressores são muito amplas, por exemplo, podemos considerar como fatores estressores: luto, divórcio, desemprego, dificuldades financeiras, tensões em casa ou no trabalho, etc. 9 Deve-se esclarecer que não estamos generalizando a forma dos indivíduos vivenciarem certos fatos de suas vidas, pois, temos consciência que os indivíduos reagem de forma diferente aos vários fatores estressores, o que torna impossível que todos os indivíduos se tornem poliqueixosos quando estão frente a uma realidade difícil. Sintetizando nosso pensamento, entendemos que essa tal realidade difícil ou esse tal fator estressor psicossocial, seja ele qual for, são estes que levam alguns indivíduos a se tornarem poliqueixosos. 8 O médico por ser considerado na nossa cultura como o detentor do saber sobre a vida e a morte e, muitas vezes, também é considerado como detentor do saber sobre a cura para todos os sofrimentos humanos, além de também compartilhar de certa intimidade com o paciente, é eleito inconscientemente pelos pacientes poliqueixosos como uma espécie de confessor dos seus problemas sociais: O médico é tua válvula de sentar, conversar, de falar que está com dor, receber atenção do médico, o médico te dá esse contato físico que é o exame. Então de repente, tem paciente acho que precisa disso (...). O nosso toque para eles é uma forma de carinho. Os poliqueixosos que freqüentam o ambulatório do HU Neste estudo constatou-se que no ambulatório do HU os residentes e médicos com especialização em clínica geral atendem em média 2300 pacientes por mês, dentre estes, 160 (7%) são considerados pacientes poliqueixosos. Estes pacientes costumam retornar diversas vezes ao ambulatório a procura dos médicos na tentativa de resolução dos seus problemas. Esses pacientes têm em média entre 41 e 50 anos e a incidência maior são de mulheres, ou seja, estatisticamente são as mulheres que procuram mais pelos médicos no ambulatório do HU. No entanto, isso não quer dizer que as mulheres sejam mais poliqueixosas que os homens, mas, demonstra uma visibilidade maior das mulheres nos serviços de saúde. As queixas corporais mais freqüentes dos poliqueixosos relatadas pelos entrevistados, são: angústia, ansiedade, cefaléia, desânimo, dores abdominais, dores articulares, dores generalizadas, dores ósseo musculares, formigamento pelo corpo, fraqueza, insônia, medo, palpitações, perda de apetite, tontura e tremores. Destacamos que esses sintomas encontram-se presentes em várias doenças que têm a mesma conotação dolorosa do transtorno poliqueixoso como, por exemplo, a fibromialgia que é uma forma de reumatismo associada à sensibilidade do indivíduo frente a um estímulo doloroso e de difícil detecção, pois, não existem ainda exames laboratoriais que confirmem o diagnóstico desta doença. Dessa forma, são doenças como esta que podem levar os médicos a dar um diagnóstico impreciso e, nesse caso, o paciente fibromiálgico pode ser considerado um paciente com transtorno poliqueixoso porque não houve a detecção da doença fibromialgia, e em contrapartida, muitos pacientes que foram considerados pelos médicos como poliqueixosos podem ser portadores de fibromialgia. Na pesquisa foi relatado, por grande parte dos entrevistados, que o fator social mais relevante na causa das poliqueixas, pelo menos entre os pacientes do HU, são os problemas relacionados com a violência doméstica contra a mulher que está intimamente relacionada com o 9 consumo excessivo de álcool10. Aliás, a violência doméstica contra a mulher é considerado um problema de saúde pública que afeta o mundo todo. A OMS (2003) constatou no "Relatório Mundial sobre Violência e Saúde", publicado em 2002, que esse tipo de violência causa aproximadamente 7% dos problemas de saúde nas mulheres entre 15 e 44 anos. Nos países mais pobres e em desenvolvimento chega a 70% o número de mulheres vítimas de agressões físicas e 47% das mulheres vitimas de iniciação sexual forçada. Além disso, grande parte das mulheres que morrem por homicídio no mundo são assassinadas por seus maridos ou ex-parceiros. No Brasil, a Escola Nacional de Saúde Pública (Fiocruz) estima que 35% das idas das mulheres ao serviço de saúde estão relacionados à violência doméstica (MINAYO, 2004) e geralmente ela adquire visibilidade através das lesões provocadas pelas agressões físicas que, por vezes, se constituem de lesões graves. Entretanto, na maior parte das vezes, os médicos acabam desconsiderando o problema que deu origem a essas lesões11. Mas, além das lesões aparentes muitas mulheres que sofrem os mais variados tipos de violência12 procuram o médico levando queixas que se resumem em sintomas vagos e difusos que não apresentam correlação nos exames realizados e, sendo assim, não são diagnosticados pelos médicos como patologia porque não apresentam alteração nos exames. No HU a situação não é diferente, ou seja, na maioria das vezes, os médicos percebem os problemas psicossociais que os poliqueixosos levam para seus consultórios, principalmente, o problema relacionado com a violência doméstica. Esses problemas, muitas vezes, são verbalizados diretamente, entretanto, o médico encontra-se impotente para resolvê-lo sozinho: A gente vai vendo que existe alguma coisa por trás ou é o marido que... Tenho uma paciente, meu Deus coitada, que o marido bebe e bate nela e na filha e ela não pode sair de casa porque se ela sair ele diz que vai matar ela. Então aquilo tudo gera, sabe... Ela vive, coitada, com dor aqui, dor ali, dor lá e tu sabe que no fundo tudo é a cabeça. Essa impotência faz com que o problema social da violência doméstica acabe sendo desconsiderado pelo médico que, por sua vez, acaba solicitando vários exames, muitas vezes até exames sofisticados, como uma tentativa de explicação para as queixas desses pacientes. Quando 10 O consumo de drogas ilícitas e lícitas, como o álcool, são apontados como fatores geradores de violência na maioria das sociedades ocidentais e encontra-se presente nos diversos níveis sócio-econômicos. Esse consumo é visto como desencadeante de atos violentos pela ação desinibidora da censura, onde o agressor assume conduta socialmente reprovável (DAY, 2003). 11 Nesse caso devemos lembrar que no Brasil a Lei 10.778, de 24 de novembro de 2003, estabelece que deve haver a notificação compulsória, no território nacional, dos casos de violência doméstica contra as mulheres que são atendidas em serviços de saúde públicos ou privados. 12 Os atos violentos contra as mulheres não se resumem a agressões físicas, mas também agressões verbais, psicológicas e sexuais que são cometidas, geralmente, pelo próprio parceiro. São considerados atos de violência física: os tapas, as mordidas, queimaduras, tentativas de homicídio, etc. As agressões verbais são de modo geral os xingamentos, mas também estão muito ligadas à violência psicológica, e esta consiste em: humilhações, privação da liberdade, ameaças de agressão, inclui também danos propositais a animais de estimação ou pessoas queridas. São considerados atos de violência sexual: toques físicos não desejados, estupro, prostituição forçada, voyerismo, etc. 10 não há uma explicação orgânica ou biológica para as queixas, mas como forma de continuar tratando o paciente poliquiexoso observamos que os médicos acabam, muitas vezes, diagnosticando os pacientes como depressivos e medicando-os como tal: Tem muita depressão misturada com o poliqueixoso. No fundo é um depressivo, não aquele depressivo grave, sabe, mas ele é um depressivo leve a moderado, ele é do tipo que a gente diz que ele somatiza, ele não chega a fazer a doença em si. Ou seja, o paciente não tem nenhuma doença que justifique suas dores, mas, apresenta na percepção médica um estado depressivo. Em relação a isso enfatizamos que essa ação médica acaba corroborando com o Estilo de Pensamento biologicista/organicista que desconsidera o social e procura uma causa orgânica para todas as doenças: (...) porque ou tu atribui ao paciente uma causa, como uma fibromialgia que daí é uma forma de tu se escorar para começar um tratamento com antidepressivo, por exemplo; ou tu acha uma depressão menor; ou um transtorno de ansiedade; ou um TOC13; ou tu rotula o paciente, então tu alhana poliqueixoso, hipocondríaco não tem nada, não encaixa ele em nenhum lugar. Avaliamos que esta forma de tratamento está contida na própria formação dos médicos, pois, ao longo dos séculos os médicos foram socializados para tratar todos seus pacientes através de uma medicação farmacológica. Mas será que esta forma de medicar com antidepressivo é a mais eficaz para este tipo de paciente, já que os próprios médicos indicaram que os pacientes poliqueixosos, em sua maioria, estão somatizando no seu corpo dores sociais que com certeza não serão sanadas somente com a utilização do antidepressivo? Nesse caso, consideramos que esse tipo de diagnóstico pode acabar colaborando na medicalização de problemas sociais que os indivíduos poliqueixosos possuem e que levam para os médicos na tentativa de ser ouvido. Já que os médicos, segundo citamos anteriormente, são eleitos inconscientemente por esses pacientes como um confessor desses seus problemas sociais como forma de pedirem socorro, ou algum tipo de ajuda para a resolução do seu problema. Além disso, levando em consideração o diagnóstico de depressão para poliqueixosos vislumbramos que a situação pode se tornar mais grave, pois, sabemos que muitos pacientes depois de medicados não voltam ao médico, mas continuam tomando o remédio por conta própria e por tempo indeterminado e o antidepressivo necessita de um acompanhamento médico mais acirrado, ou seja, deve-se levar em conta que o uso do antidepressivo implica certos riscos e, portanto, o médico deve avaliar muito bem o custo benefício para esses pacientes. Quanto a isso os especialistas da Unifesp argumentam que o tratamento para o paciente depressivo não deve ser 13 Transtorno Obsessivo-Compulsivo é um transtorno caracterizado por idéias obsessivas e /ou por comportamentos compulsivos que o indivíduo é incapaz de evitar, a despeito de suas tentativas. 11 exclusivamente medicamentoso, ou seja, eles consideram fundamental trabalhar os aspectos psicológicos do depressivo e somente se o quadro do paciente se mostrar muito intenso é aconselhado então a terapia com medicamentos. Esses especialistas consideram também que se a depressão for leve, na maioria das vezes somente a orientação psicológica é suficiente (VIANA, 2004). É importante esclarecer que sendo ou não indivíduos depressivos não cabe a nós cientistas sociais responder, agora o que nos cabe é questionar: se são considerados depressivos, tomam medicamento e mesmo assim retornam com as mesmas queixas ou com outras, é sinal de que somente a medicação com antidepressivo não é eficaz para este tipo de paciente, ou seja, o uso do antidepressivo isoladamente não tem eficácia para as “dores” (sintomas) dos poliqueixosos. Dessa forma, entendemos que a cura da depressão deve passar pela normalização do funcionamento biológico, caso seja necessário, mas paralelamente deveria se dar à integração satisfatória do indivíduo com o seu contexto social, ou seja, deveria haver no mínimo uma outra abordagem complementar, principalmente no caso dos pacientes poliqueixosos apontados como depressivos. Então a pergunta que fica é: o que fazer para minimizar o sofrimento dos pacientes poliqueixosos no ambulatório do HU? A tentativa de solução do problema nos serviços de saúde públicos No estudo ora realizado detectamos que tanto os médicos mais experientes quanto os residentes estão priorizando, sempre que possível, um atendimento dos pacientes de forma global, isto é, buscando enxergar o homem através de suas várias dimensões (a biológica, a psicológica, a social, a afetiva e a racional) que o tornam um ser complexo. Contudo, é essa complexidade que geralmente se manifesta como um empecilho para os médicos, pois, na maioria das vezes, eles não estão capacitados para atender o paciente dessa forma globalizada. Estando conscientes disso os entrevistados acreditam que a melhor forma para tratar os pacientes poliqueixosos dentro do ambulatório do HU seria através do estabelecimento de equipes multidisciplinares. Essas equipes, segundo eles, deveriam ser formadas por profissionais especializados em várias áreas, como: na área médica, na psicológica, na área do serviço social, na área jurídica, etc: Então, até às vezes para tirar um pouco do ombro do próprio médico, não que eu ache que a gente não seja parte... Mas é que às vezes tu não consegue dar para esse paciente o que ele merece. Tu não consegue por incompetência tua, tu não consegue porque tu já perdeu tua paciência ou tu não consegue porque não está enxergando direito. A proposta dos médicos de trabalhar com os poliqueixosos através de uma equipe multidisciplinar não têm como objetivo a transferência deste paciente para outros especialistas e 12 nem tampouco a pulverização dos poliqueixosos entre vários outros profissionais da saúde. Pelo contrário, a proposta é de realizar um trabalho cooperativo e consciente da equipe em relação a este tipo de paciente, tendo como objetivos principais: acolher esses pacientes em sua multiplicidade de queixas buscando interpretações adequadas dos sintomas oferecidos por eles e, principalmente, resgatar esses indivíduos adoecidos psicossocialmente levando-os a reconquistar sua saúde global. Por outro lado, essa nova hipótese de trabalho não pode ser de modo nenhum implantada como um sistema de ações cooperativas sem que a própria instituição hospitalar e também a Universidade estejam presentes, pois, são elas que dispõem de recursos humanos para isso. Ambas instituições devem ser coadjuvantes na formação da equipe multidisciplinar para que esta se mobilize em prol da promoção da saúde e também da retomada da cidadania de vários indivíduos, (re)inserindo-os a um novo caminho, no mínimo, de forma mais consciente. Considerando que o êxito dessas equipes deverá estar atrelado, inicialmente, num grande esforço da própria instituição hospitalar implantar algum tipo de triagem dos pacientes poliquiexosos no seu ambulatório. Considerações finais Diante do exposto, consideramos que os vários EPs que constituíram a ciência médica, ao longo de sua história, foram e ainda são muito importantes. Porém nos parece que um deles predominou no que diz respeito à percepção médica sobre as formas do adoecer humano. Estamos nos referindo ao EP biologicista/organicista que propaga a idéia de que todas as doenças têm uma causa orgânica. Não há dúvidas que por meio deste EP, o homem descobriu e conheceu muitas doenças e aprendeu a tratá-las, entretanto, este EP tem como prioridade somente o biológico se esquecendo que o ser humano tem outras dimensões como: a histórica, a social e a psicológica e estas podem influenciar o biológico. Portanto, a nosso ver, este EP trouxe para a ciência médica um reducionismo que desconsidera toda a complexidade do ser humano para assisti-lo somente como um ser biológico. Neste estudo também pudemos observar que o EP biologicista/organicista está intimamente ligado ao EP tecnocientífico com toda uma nova forma de diagnosticar doenças através de exames sofisticados onde o paciente é visualizado somente na objetividade da doença. Não temos dúvida que os avanços tecnológicos na área médica são importantes, mas, eles por si só não dão conta de compreender o sofrimento do paciente, suas dificuldades, os seus temores e as suas angústias. As dificuldades e sentimentos estão longe de serem compreendidos por máquinas e só poderão ser compreendidos pelo médico e dentro de uma situação de empatia, onde por um lado, o paciente tenha possibilidade de os expor, e por outro lado, o médico possa compreender o que realmente está se passando fisicamente e emocionalmente com o paciente, uma vez que todo ser humano é produto 13 de um complexo que envolve o biológico, o psicológico e o social. Mas infelizmente, a maioria dos currículos médicos dedicam ainda pouca importância a essa formação humanística do médico. Eles continuam privilegiando o lado organicista e tecnicista da Medicina em detrimento de uma formação mais abrangente. Isso acaba propiciando o surgimento de profissionais despreparados para lidar com o sofrimento e as dores alheias. Entretanto, há indícios de que os médicos e residentes, especializados em clínica médica e que trabalham no ambulatório do HU, estejam se organizando em um novo Coletivo de Pensamento que tenta buscar soluções para os pacientes que vão ao seu encontro no ambulatório à procura de ajuda para tentar aliviar as tensões que são provocadas por problemas de ordem social. Com a formação deste CP está em vias de ser configurar um novo Estilo de Pensamento no ambulatório do HU que com certeza ganhará espaço também no curso de Medicina da UFSC. Esse novo EP foi denominado neste estudo de Estilo de Pensamento da Complexidade. Mas é muito importante que esse novo EP venha se configurar como um EP aglutinador, ou seja, que una as forças dos mais variados CPs e transcenda a elas. Aliás, a participação da instituição hospitalar , assim como, a participação da própria universidade federal são imprescindíveis para a consolidação deste novo EP. Finalmente, enfatizamos que a complexidade do processo saúde/doença não permite que os médicos se baseiem em um único EP em se tratando do adoecer humano. Mas para que os médicos venham a ter essa visão mais complexa de saúde/doença, onde se encaixam o biológico, o psicológico e o social, é necessário que já durante a formação médica haja uma maior integração interdisciplinar, ou seja, haja diálogo dos estudantes de Medicina com outras disciplinas, como por exemplo: a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia, etc. Só assim poderemos mudar essa visão estereotipada, que inclusive muitos de nós ainda temos, de que doença é somente um problema orgânico. 14 Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Transtornos somatoformes. In: DSM-IV Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. 4a edição. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. p. 425-447. ATTA, José Antonio. Oh! Vida, oh dor. Unifesp na Imprensa, 3 de agosto de 2003. 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