Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. GRAMÁTICA E GRAMATICALIZAÇÃO DE CONSTRUÇÕES COMPLETIVAS Gisele Cássia de SOUSA1 RESUMO: Este trabalho focaliza a relação entre gramática e gramaticalização, buscando ressaltar o importante papel que desempenha esse processo na estruturação dos sistemas lingüísticos. Examinam-se, especificamente, orações completivas de verbo, marcadas pelas conjunções que e se do português, para mostrar que o formato das diferentes construções em que elas aparecem reflete graus diversos de gramaticalização das duas orações. As análises fundamentam-se na proposta de Hopper & Traugott (1993) segundo a qual, tratando-se de orações, a gramaticalização caracteriza-se por variação nos graus de dependência e integração entre cláusulas que se articulam em um complexo oracional. Conforme será demonstrado, nos casos em que as completivas com que e com se exibem grau elevado de integração à matriz, o formato das construções em que elas aparecem é significativamente diferente, não apenas por se tratar de tipos distintos de complemento oracional, mas porque é diverso o modo como cada uma das orações se gramaticaliza. PALAVRAS-CHAVE: combinação de orações; orações completivas; gramaticalização. Gramática e gramaticalização A flexibilidade dos sistemas gramaticais tem sido amplamente comprovada e constitui base adotada, em maior ou menor grau, por todos os modelos teóricos funcionalistas. A conhecida proposta de “gramática emergente”, de Hopper (1987), pode ser vista como um corolário da força desse pressuposto. Conforme propõe o autor, a estrutura dos sistemas gramaticais é sempre resultado de negociação dos falantes em situações de interação, de modo que as formas gramaticais, em vez de imutáveis e 1 Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários. Rua Cristóvão Colombo, 2265, CEP 15054000, São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]. 249 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. inflexíveis, são sempre “emergentes”, resultantes de um processo inacabado, sempre em andamento. Nessa mesma linha, Du Bois (1985) defende que gramáticas de língua natural devem ser concebidas como sistemas adaptativos, isto é, parcialmente autônomos (por isso, “sistemas”) e parcialmente sujeitos a pressões externas ao sistema (portanto, “adaptativos”). Gramáticas não são, portanto, de acordo com essa concepção, sistemas impermeáveis, compostos de estruturas pré-fixadas e inertes; são, antes, resultado de constante competição entre forças internas, inerentes ao sistema, e forças externas, tais como fatores cognitivos e interacionais, ligados ao cumprimento de metas comunicativas dos falantes. Conforme demonstra Du Bois (1985), um processo que claramente capta essa competição entre forças internas e externas na formulação dos sistemas gramaticais e, ao mesmo tempo, constitui fator de equilíbrio entre elas, é a gramaticalização. Como processo que opera sobre a gramática, a gramaticalização envolve fatores inerentemente internos ao sistema, mas quase nunca ocorre desvinculada de aspectos externos, fatores comunicativos e cognitivos capazes de impulsioná-la, ou mesmo de restringi-la. 2 É a gramaticalização, portanto, um fator que tanto comprova a flexibilidade, o caráter adaptativo dos sistemas gramaticais, quanto propriamente os constitui, (re)modelandoos conforme o equilíbrio alcançado entre forças internas e externas.3 2 Lembre-se aqui que o próprio Meillet, pioneiro nos estudos de gramaticalização, associou a causa do processo a fatores comunicativos, nomeadamente, à “necessidade que o sujeito falante tem de ser expressivo, de bem expressar seu pensamento e de agir sobre seu interlocutor” (MEILLET, 1948, p. 163). 3 Convém notar que esse papel da gramaticalização na estruturação dos sistemas gramaticais, apontado por Du Bois (1985), não tem recebido a devida atenção nos estudos sobre gramaticalização desenvolvidos no Brasil. Embora fundamentados em abordagens funcionalistas, poucos são os trabalhos que, além de descrever a trajetória de gramaticalização dos fenômenos em estudo, apontam com precisão as forças e efeitos, tanto internos quanto externos ao sistema gramatical, que subjazem a essa gramaticalização. 250 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. Meu propósito, neste trabalho, é endossar a existência dessa estreita relação entre gramática e gramaticalização, a partir da demonstração de um caso ainda pouco explorado nos estudos sobre o português: o da gramaticalização de construções com complemento oracional. Focalizarei, aqui, construções com orações completivas finitas, introduzidas pelas conjunções que e se do português, com o intuito de mostrar que o modo diferente que têm essas orações de se gramaticalizarem, em um processo de integração à oração matriz com que ocorrem, é determinante das formas que cada uma delas adquire no sistema gramatical do português. Além disso, conforme pretendo tornar claro, a diferença na gramaticalização das duas orações deve-se, essencialmente, a uma restrição cognitiva que impede a completiva com se de se integrar à matriz do que mesmo modo que ocorre a uma completiva com que. A gramaticalização dessas duas formas de complemento oracional resulta, portanto, conforme propõe Du Bois (1985), de um equilíbrio entre forças internas, relativas à própria gramaticalização/integração dessas orações, e externas, equivalentes à contraparte cognitiva do processo. Exponho, primeiramente, aspectos mais gerais relativos à gramaticalização de orações e, particularmente, de orações completivas, para, em um segundo momento, me ater à apresentação do modo particular de gramaticalização em que se envolve a completiva iniciada pela conjunção se do português. Passo, em seguida, às considerações finais. 251 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. Gramaticalização de orações A proposta de que orações também podem ser tratadas sob o ponto de vista da gramaticalização é, como se sabe, de Hopper & Traugott (1993). Segundo os autores, o modo como as orações se combinam dentro de um complexo oracional também pode ser alvo de um processo de gramaticalização, que envolve aumento de dependência entre constituintes, nesse caso, entre orações. Eles sugerem que esse processo se inicia em uma combinação frouxa, paratática, na qual se combinam apenas orações que constituem núcleo, e vai até uma combinação tensa em que há total dependência entre as orações combinadas, no sentido de que uma oração margem, dependente, encontra-se totalmente inserida em uma oração nuclear. Conforme se observa a partir do esquema dado em (01), elaborado por Hopper & Traugott, maior e menor graus de integração, tanto semântica quanto sintática, entre as orações combinadas, e presença e ausência de marcadores da ligação existente entre elas são propriedades que sistematicamente acompanham essa gramaticalização. parataxe (independência) núcleo integração mínima ligação maximamente explícita hipotaxe (interdependência) subordinação (dependência) margem integração máxima ligação minimamente explícita Propriedades relevantes ao cline de combinação de oração (HOPPER & TRAUGOTT, 1993, p. 171) No processo de gramaticalização, a explicitação mínima da ligação entre as orações, ou mesmo a total ausência de marcadores de ligação, em tese caracteriza, como 252 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. propõem Hopper & Traugott, os estágios mais avançado do processo, nos quais se verificam máxima integração e dependência semântico-pragmática entre as orações combinadas, além de total encaixamento sintático de uma oração margem a uma oração núcleo. Pode ocorrer, no entanto, que uma oração se desenvolva a partir de um modo de combinação mais frouxo para um modo mais tenso, sem que um conectivo deixe de marcar a ligação entre as orações, mantendo-se explícita, portanto, a marca de ligação entre as orações combinadas. Um exemplo desse tipo, discutido em Hopper & Traugott (1993), é o desenvolvimento de orações completivas introduzidas por that do inglês. Conforme demonstram Hopper & Traugott, as orações introduzidas por that, que, no inglês atual, funcionam como argumento de predicado, na posição de sujeito ou objeto, e, portanto, em uma estrutura de subordinação (+ dependente, + encaixada), se teriam desenvolvido a partir de uma construção mais hipotática (+ dependente, encaixada), em que that, em vez de complementizador, tinha o valor de um pronome demonstrativo, e a oração que that introduzia, em vez de um complemento oracional, correspondia a uma oração relativa. O desenvolvimento da oração com that em inglês, a partir de uma estrutura menos dependente para uma mais dependente é, assim, um caso de gramaticalização no modo de combinação dessa oração, embora o resultado do processo não seja caracterizado pela ausência do marcador de junção entre as orações (that). A presença de um complementizador marcando a ligação entre uma oração completiva e uma oração matriz, como no caso dos complementos oracionais introduzidos por that do inglês, indica, entretanto, conforme observam Hopper & Traugott (1993), que a oração completiva se encontraria em um estágio aquém da gramaticalização máxima que esse tipo de oração pode atingir. Uma construção com 253 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. oração completiva introduzida por conjunção, como em (01a) abaixo, é, desse ponto de vista, um tipo de construção em que a combinação entre as orações se dá com menor grau de encaixamento e incorporação da oração completiva à matriz do que em uma construção como (01b), na qual nenhuma conjunção introduz o complemento oracional. (01) a. Ana viu que João saiu de casa apressado. (+ hipotaxe, - subordinação) b. Ana viu João saindo de casa apressado. (- hipotaxe, + subordinação) A forma de gerúndio no verbo do complemento oracional em (01b) corresponde à única marca de dependência dessa oração com relação à oração matriz. Note-se que, com essa forma verbal, a oração não ocorreria independentemente, na forma de uma oração simples: (01) b’. *João saindo de casa apressado. A integração semântica entre os eventos atua fortemente sobre a forma que o complemento oracional assume em (01b). A visão que Ana tem e a realização da “saída apressada de João” são eventos simultâneos no mundo real. Por isso, conforme propõe Givón (1990), eles são concebidos como eventos mais integrados um ao outro, e sua forma de representação lingüística em (01b) é reflexo direto dessa integração semântico-cognitiva, em especial a ausência da conjunção, elemento que se colocaria como material interveniente na codificação dos dois eventos. Além da ausência da conjunção, a forma de gerúndio no verbo da oração completiva em (01b) torna essa oração menos característica do tipo completivo 254 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. prototípico, como é o caso do complemento em (01a). Em outras palavras, a completiva em (01b) é uma forma mais dessentencializada do que a que se encontra em (01a). A dessentencialização, isto é, a perda gradual de propriedades características de sentenças (LEHMANN, 1988), é, conforme propõem Hopper & Traugott (1993), constantemente observada nos processos de gramaticalização de orações. Para as orações completivas, a dessentencialização tanto pode levar à expressão do verbo da oração em forma não-finita, como em (01b), quanto pode, em um ponto máximo de gramaticalização dessa oração, torná-la um constituinte não-oracional (nominal), como em (02c). (02) a. Os meninos ouviram que a bomba explodiu. (- dessentencialização) b. Os meninos ouviram a bomba explodir. (+ dessentencialização) c. Os meninos ouviram a explosão da bomba. (nominalização) Observe-se que (02c) não mais envolve combinação de orações, isto é, a construção não é composta de duas orações, como são (02a) e (02b).4 A construção em (02c) contém um único núcleo verbal e, assim, equivale a uma (única) oração simples. Uma conseqüência da dessentencialização e, desse modo, da gramaticalização de orações é, portanto, como mostram as construções de (02), a transformação de construções bi-oracionais em construções mono-oracionais, ou, a redução de estruturas complexas a estruturas simples (HOPPER & TRAUGOTT, 1993; LEHMANN, 1988). A construção em (02b) representaria, assim, o ponto intermediário da total gramaticalização da oração completiva e da transformação de uma construção bioracional em mono-oracional. 4 Considero o complemento em (02b) como “oração” ciente de que esse seu estatuto não é consensual. Essa mesma posição com relação a complementos não-finitos, como em (02b), é adotada por Braga (1999b). De qualquer modo, pode-se considerar que há, em (02b), subordinação de um estado-de-coisas a um outro estado-de-coisas, expresso na oração principal, do mesmo modo que em (02a). 255 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. A integração semântica entre os eventos, conforme propõe Givón (1990), novamente pode ser considerada como motivação das diferentes formas de expressão dos complementos em (02). O modo como se dá a integração semântica entre os eventos expressos nas construções de (02) torna-se mais claro a partir da seguinte consideração de Lehmann (1988), a respeito do aspecto semântico-cognitivo da combinação de orações: Em uma abordagem funcional, a ligação de oração pode ser vista como representativa de dois estados de coisas tão intimamente interligados que formam um só estado de coisas complexo, ou, pelo contrário, pode ser analisada como um estado-de-coisas composto de dois. Em ambos os casos a relação cognitiva dos dois estado-de-coisas é refletida no modo como eles são ligados na língua.5 (LEHMANN, 1988, p. 217-8) Nas construções de (02), ocorre, assim, que (02a) é a expressão de um estadode-coisas “composto de dois”, percebidos como estados de coisas menos integrados semanticamente e, portanto, codificados na forma de oração finita e ligados entre si pela conjunção que. Em (02b) e (02c), diferentemente, os dois estado-de-coisas estão mais intimamente ligados e, em termos semântico-cognitivos, formam juntos “um só estadode-coisas complexo”. A relação cognitiva entre os estado-de-coisas é, no entanto, mais frouxa, isto é, eles são pouco menos integrados semanticamente, quando são expressos na forma da construção em (02b), com a oração completiva dessentencializada, do que quando são codificados em uma construção mono-oracional, com complemento na forma de uma nominalização, como em (02c). 5 In a functional framework, clause linkage may be viewed as either representing two states of affairs so tightly interconnected that they form one complex state of affairs, or on the contrary analyzing one state of affairs as composed of two. In either case the cognitive relatedness of the two states of affairs is mirrored in the way they are linked in language (LEHMANN, 1988, p. 217-8). 256 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. A contraparte semântico-cognitiva do processo de gramaticalização de orações, que começa em uma construção bi-oracional, como (02a), e chega a uma construção mono-oracional, como (02b), é, assim, que dois estados-de-coisas antes percebidos como distintos e menos integrados passam a ser concebidos como um estado-de-coisas único, embora complexo (LEHMANN, 1988, GIVÓN, 1990, 1995). 3. Gramaticalização de completivas introduzidas por se Do modo como se apresentam, esses aspectos são, de fato, característicos da gramaticalização de construções que envolvem oração completiva introduzida por que, conforme comprovam, com relação ao português, os trabalhos de Braga (1999), de Cezario (2004) e de Carvalho (2004). Em construções com oração completiva iniciada por se, entretanto, embora envolva os mesmo aspectos, essa gramaticalização não ocorre do mesmo modo. A primeira e mais importante diferença entre as formas de gramaticalização em que se envolvem as duas completivas é que, ao contrário de uma oração marcada pela conjunção que, a completiva com se não se submete à dessentencialização, isto é, mesmo em contextos de alta integração sintático-semântica, a completiva não pode ser expressa alternativamente na forma de uma oração não-finita, conforme se observa a partir da tentativa de paráfrase da construção em (03), em que há alto grau de integração entre oração completiva e matriz, refletida, por exemplo, por fatores como a identidade dos sujeitos e a dependência temporal entre os eventos expressos nas duas orações. 257 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. (03) Vontade de ir a Santos não me falta, mas são tantos os aborrecimentos de maus negócios que não posso pensar em passeios. É trabalhar, trabalhar para ver se me safo do atoleiro. Este mês tenho que entrar com 2 contos para o Banco Agrícola e perco mais 3 de uma letra que endossei e tenho de pagar. É desastre em cima de desastre.6 (03’) ? É trabalhar, trabalhar para ver me safar do atoleiro. Essa impossibilidade de a oração com se reduzir-se a uma oração não-finita deve-se, de um lado, à contraparte semântico-cognitiva da gramaticalização de orações e, de outro, a um traço básico do significado da completiva com se. Como apontado anteriormente, a redução de uma oração completiva a um constituinte da oração matriz, refletida na perda de suas propriedades oracionais, tal como a finitude, representa, em termos semântico-cognitivos, um aumento no grau de integração entre os eventos expressos na matriz e na completiva. Em outras palavras, significa que os dois eventos, antes percebidos como distintos, passam a ser concebidos pelo falante como um só evento complexo. Entretanto, dado que se não instaura uma realidade, em razão de seu significado basicamente hipotético, não há no conteúdo da oração completiva que essa conjunção introduz um evento que possa ser percebido como mais integrado ao evento na oração matriz, ou que possa formar com ele um único evento complexo. A redução de uma oração completiva introduzida por se a uma oração não-finita, ou a um constituinte nominal da oração matriz são, assim, processos barrados, de um lado, pela própria natureza de uma oração completiva marcada pela conjunção se e, de outro, pela contraparte semântico-cognitiva da gramaticalização de orações. 6 As ocorrências de (03) a (06) foram extraídas do “Corpus de Língua Escrita do Brasil”, sediado no “Centro de Estudos Lexicográficos”, da Universidade Estadual Paulista, câmpus de Araraquara. 258 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. O grau elevado de integração entre as orações de (03) é, sim, representativo de gramaticalização da construção, que, no entanto, ocorre, não pela integração total da completiva à matriz, mas pela amalgamento entre para ver e a conjunção se que, juntas, formam a locução conjuntiva para ver se. Como se observa a partir da ocorrência em (03), essa locução indica a intenção (e não apenas a finalidade) com que o referentesujeito realiza/realizará o estado-de-coisas presente na oração antecedente a para ver se. Note-se que favorece essa interpretação a dessemantização do verbo ver que, nesses casos, não expressa nem uma “percepção visual” nem uma “atitude mental” (= “verificar”), como é o caso em construções como a de (04), que envolvem uma completiva com se canônica, menos integrada e menos gramaticalizada em relação à matriz: (04) Vim até cá para ver se não havia cartas à minha espera. Observe-se que, embora seja semelhante à construção de (03), a completiva que aparece no interior da oração introduzida por para em (04) não é um caso de amalgamento da conjunção se à estrutura para ver. O verbo ver, nessa última construção, significa “verificar”, e a conjunção se introduz a oração que contém o objeto da verificação. Em outras palavras, na construção de (04), se funciona como uma conjunção integrante, e não é parte de uma locução conjuntiva como ocorre na construção de (03). O grau de integração da oração introduzida por se reflete essa diferença entre as construções. Na ocorrência de (04), em que não há amalgamento da conjunção com a porção matriz, a oração introduzida por se exibe menor grau de 259 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. integração, o que se verifica, por exemplo, pela não-correferencialidade entre os sujeitos das orações. Na construção de (03), diferentemente daquela de (04), não há, portanto, a expressão de dois estado-de-coisas distintos. A locução conjuntiva, indicativa de intencionalidade, que se forma a partir da reanálise da conjunção se, funciona como um operador sobre o conteúdo daquilo que, sem a reanálise, equivaleria à oração completiva, e que constitui o único estado-de-coisas presente na construção, conforme se esquematiza em (05). (05) É trabalhar, trabalhar [para ver se me safo do atoleiro]. marcador de intencionalidade (EsCo) resultado pretendido As ocorrências em (06), a seguir, ilustram mais um caso de incorporação da conjunção se à matriz, refletida pelo grau elevado de integração entre as orações. (06) a. Seu Sampaio, veja se fala de outra coisa. Não há mais assunto para a conversa senão a sua subdelegacia? b. Quando fores a S. Paulo, vê se paga o imposto do capital do nosso negócio. Nesse caso, a conjunção se compõe com o verbo ver no imperativo (veja, vê) uma espécie de “fórmula” (“veja se”, “vê se”) que atenua a ilocução imperativa da oração, além de indicar o envolvimento do falante com o estado-de-coisas que ele quer o interlocutor realize. Em comparação a um ato de fala imperativo sem a fórmula “veja se” / “vê se”, o que se constrói com essa fórmula indica que o falante será, de algum 260 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. modo, beneficiado pela realização do estado-de-coisas ordenado. Pragmaticamente, um ato de fala imperativo modificado por veja se / vê se permite que, ao expressar a injunção, o falante se mostre mais delicado, porque menos impositivo, frente ao interlocutor, como se pode observar a partir das seguintes paráfrases das construções em (06’). (06’) a. Veja se fala de outra coisa. a'. Fale de outra coisa. b. Vê se paga o imposto do capital do nosso negócio. b’. Pague o imposto do capital do nosso negócio. Da reanálise do complementizador se como parte do predicado matriz resulta, portanto, também nesse caso, um operador gramatical, atuante sobre o estado-de-coisas (único) contido no ato de fala imperativo, em uma construção mono-oracional, como se esquematiza em (07). (07) a. [veja se fala de outra coisa] marcador de atenuação (EsCo) ato impositivo b. [vê se paga o imposto do capital do nosso negócio] marcador de atenuação (EsCo) ato impositivo 3. Considerações finais 261 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. Conforme se buscou demonstrar, embora desempenhem um mesmo tipo de função sintática, a de complemento oracional, oração introduzida por que e por se comportam-se diferentemente no que diz respeito ao modo como se gramaticalizam. Nos casos de integração máxima entre o complemento oracional e a oração matriz, uma completiva introduzida por se não se reduz a um constituinte simples (não-oracional) da oração matriz, como ocorreria se se tratasse de uma oração introduzida por que. Em vez disso, apenas a conjunção se é reanalisada como parte da oração matriz, formando com ela diferentes tipos de marcadores gramaticais, todos com alguma nuança de hipoteticidade/irrealidade, implicada no próprio se. Esse modo particular de gramaticalização, motivado, conforme se demonstrou, por aspectos semânticocognitivos do processo, é o que explica o fato de uma completiva com se, mesmo em contextos de alta integração semântico-sintática, não perder seus traços de oração finita. As formas de gramaticalização tratadas neste trabalho evidenciam, portanto, a forte atuação do processo de gramaticalização sobre a estruturação dos sistemas gramaticais das línguas em dois sentidos. Primeiramente, a impossibilidade de uma completiva com se, ao se integrar a uma oração matriz, perder suas propriedades oracionais predetermina, para as completivas reduzidas do português, o estatuto semântico de eventos, realidades instauradas, que podem ser expressas alternativamente na forma de uma completiva com que, nunca com se. Em segundo lugar, tem-se o fato de que, da forma especial de gramaticalização de construções com completiva introduzida por se, decorre a emergência, no sistema gramatical do português, de operadores gramaticais destinados à expressão de intencionalidade (para ver se) e de polidez (veja se / vê se). De modo mais geral, ambos os resultados evidenciam, portanto, de um lado, o caráter “permeável” dos sistemas gramaticais, sujeitos e abertos 262 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 32 – As interfaces da gramática. a pressões externas, e, de outro, o importante papel que cumpre a gramaticalização na estabilização desses sistemas, harmonizando forças internas e externas a eles. Referências Bibliográficas BRAGA, M. L. Os complementos oracionais no português do Brasil e no português de contato. Anais da Associação Brasileira de Lingüística, Florianópolis, 1999a. (CDROM da ABRALIN). ______. As orações encaixadas no dialeto carioca. Relatório Científico apresentado ao CNPQ, 1999b. Mimeo. CARVALHO, C. 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