A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA ISLÂMICA E SUA RELAÇÃO COM AS REVOLUÇÕES DE PENSAMENTO Uma discussão aberta enfocando o período de ouro da história da ciência árabe Arnaldo Costa de Siqueira Mestrando HCTE-UFRJ [email protected] Resumo: Este trabalho apresenta um apanhado das revoluções de pensamento pelo ótica Ocidental e propõe uma revolução islãmica de língua árabe como revolução científica. Faz-se uma apresentação dos trabalhos dos árabes entre os séculos VIII d.C. e X d.C. na redescoberta, tradução e posterior desenvolvimento de textos hindus, persas e gregos clássicos e sua importância na matemática, lógica e medicina para a Europa no estabelecimento da escolástica medieval e do método científico. Aborda-se em particular a criação e funcionamento da Casa da Sabedoria, um centro de estudos institucionalizado em volta da biblioteca do califado da dinastia abássida na cidade de Bagdá, capital do império islâmico no período. Palavras-chave: história da ciência, ciência medieval, ciência árabe, ciência islâmica, casa da sabedoria. INTRODUÇÃO "Se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes." - Isaac Newton em carta para Robert Hooke em 1676. Existe uma noção popular de que estudar é subir uma escada de conhecimento contínua em que cada degrau representa um tipo de aprendizado a ser absorvido pelo seguidor desse caminho. Se seguirmos essa noção podemos chegar a algumas conclusões, tipo: 1)Existem degraus maiores que os outros; 2) Nem todos conseguem galgar todos os degraus; e 3) As novas e verdadeiras descobertas só são feitas por aqueles que chegam num degrau ainda não demarcado da escada. É claro que quando se estuda a história do conhecimento percebe-se que essa escada nem sempre é linear. Muitas vezes damos voltas e regressamos no mesmo ponto para descobrir um degrau escondido extremamente necessário para atingirmos um patamar mais firme e elevado. Na história da ciência esses patamares são constantemente superados por novas ideias que destroem as anteriores na exatidão dos resultados e aceitação pela comunidade científica. Mas não se pode subestimar os patamares inferiores, pois sem eles a escada não poderia ser escalada. AS REVOLUÇÕES DE PENSAMENTO “A história é escrita pelos vencedores” George Orwell Um degrau que ficou muito tempo esquecido ou ignorado no estudo da história da ciência foi a contribuição árabe-islãmica para a mesma. Quando estudamos história da ciência é sempre pela ótica ocidental onde grandes e importantes revoluções são pontuadas, quase todas elas no Ocidente, na busca humana pelo conhecimento. Mas afinal, o que é conhecimento1? O filósofo e matemático grego Platão (427a.C.-348a.C.) tenta definir isso em sua obra Teeteto, que conta um diálogo entre seu mestre, o velho Sócrates, e o jovem Teeteto sobre a origem e definição de conhecimento. Como acontece quase sempre nos diálogos platônicos envolvendo Sócrates, ele rebate todas as definições mais comuns e simplistas com indagações pertinentes que levam o jovem Teeteto a novos níveis de pensamento. Sócrates estabelece que não se pode confiar mais nos sentidos do que na razão, definindo inicialmente apenas o que não é o conhecimento (PINGUELLI ROSA, 2005). Sua conclusão, entretanto compara conhecimento a uma crença verdadeira e justificada. Surge daí a chamada “definição clássica” de conhecimento. Uma definição tão boa quanto qualquer outra seria: conhecimento é o conjunto de “saberes” que o homem adquire durante a vida. Pensando assim podemos traçar origens para tipos específicos de conhecimento que revolucionaram a humanidade. Segundo Thomas Khun, houveram várias revoluções de pensamento durante a História. Essas revoluções, segundo ele, são as quebras de paradigmas, ou seja, situações onde um modelo de pensamento supera o antigo por se mostrar mais exato, mais útil ou mesmo mais aceito (PINGUELLI ROSA, 2005). 1 Não é pretensão deste trabalho responder definitivamente essa pergunta, e sim dar subsídios históricos ao leitor para que possa pensar na resposta por si mesmo. Pode-se definir então as revoluções de pensamento. A primeira delas foi a revolução agrícola, que acontece por volta de 8000 anos antes de Cristo, onde o homem adquire o conhecimento da agricultura, aprendendo a plantar e colher da terra seus frutos, deixando de ser nômade e passando a poder se fixar num lugar para formar comunidades mais permanentes. Aumentou-se a expectativa de vida, começaram a surgir novas classes de trabalho e novos “saberes” e habilidades foram aprendidos e desenvolvidos. A segunda revolução foi a chamada revolução racional (ou intelectual), cujo auge se deu na Grécia antiga a partir de 600 a.C., onde as pessoas estavam tão bem estabelecidas que tiveram mais tempo para pensar, tanto sobre as questões do dia-a-dia quanto em questões mais abstratas e transcendentais. Essa revolução se caracteriza por fomentar a primeira grande quebra entre magia, religião e ciência. O homem passou a procurar explicações mais concretas para as indagações que tinha desde o início dos tempos. É aqui que se dá a origem de várias áreas do conhecimento atual. Foi onde surgiram os primeiros cientistas, filósofos e matemáticos (PINGUELLI ROSA, 2005). A terceira revolução foi a revolução científica, onde o inglês Isaac Newton, seguindo os passos de Descartes, Kepler e Galileo, estabelece a teoria da gravitação universal e revoluciona as ciências através da criação do cálculo infinitesimal. O pensamento de Newton foi um dos que estabeleceram as bases do que hoje conhecemos como método científico. Mas houve uma revolução antes dessa, essencial para a formação da mesma, porém pouco comentada nos meios acadêmicos ocidentais durante muito anos. A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA ISLÂMICA “Além da Terra e do Infinito Eu procurava o céu e o inferno. Mas uma voz solene disse-me: - „Procura-os dentro de si mesmo‟.” Omar Khayyam Foi apenas a partir do século XIX, com as expedições e escavações arqueológicas (que culminam na criação da Egiptologia), que começou-se a descobrir que a ciência como se fazia poderia ser bem mais antiga do que sabíamos. Foram descobertos gravações em pedra, pergaminhos e livros perdidos em países orientais cheios de resultados quase idênticos, porém de datação anterior, aos obtidos por muitos autores ocidentais. Os países de língua árabe, por exemplo, deixaram muitos resultados que através de várias re-traduções chegaram as mãos de autores ocidentais que revolucionaram o pensamento científico. O chamado período de ouro da ciência árabe-islâmica teve seu auge no século IX d.C. com a institucionalização da Casa da Sabedoria, uma biblioteca montada pelo califa na cidade de Bagdá, responsável por traduzir, popularizar e dar continuidade aos trabalhos clássicos da Índia, Pérsia e Grécia antiga que foram descobertos nos arredores do crescente império islâmico (LYONS, 2011). O pontapé inicial para isso se deu quando os países islâmicos, motivados por um decreto do califa Abdul al-Malik (646 – 705), que estabelecia o árabe como língua comum a todo o crescente império muçulmano, começaram a dialogar melhor em vários campos do conhecimento, inclusive o científico (SCIENCE, 2009). Alguns anos depois, com o império muçulmano abrangendo uma quantidade cada vez maior de culturas, foi fundada a cidade de Bagdá que, planejada como capital, tinha uma localização geográfica estratégica no centro dos caminhos do império. Judeus, cristãos, persas, egípcios e outros povos conviviam e faziam comércio com os muçulmanos sem maiores problemas (LYONS, 2011). O fundador da cidade, e então califa, al-Mansur (714 – 775) já era um entusiasta e profundo conhecedor da lógica e do direito. Facilitado pelo advento e popularização da fabricação de papel, alguns anos antes, ele montou uma biblioteca que ficava maior a cada conquista de novas terras pelo império, insuflando em sua corte de nobres a disposição de aprender novos conhecimentos (LYONS, 2011). Essa biblioteca foi a base para a fundação da Bayt al-Hikmah, a Casa da Sabedoria, o primeiro centro de saber institucionalizado dos árabes. Um dos sucessores de al-Mansur, Harun al-Rashid (763 – 809), continua seu trabalho financiando a expansão da biblioteca com a conquista de novas terras, inclusive colocando seus dois filhos para estudar lá.2 Entretanto, foi somente com seu filho, o califa al-Mamun (786 – 833), que a biblioteca foi aberta a um público mais extenso e se estabeleceu como uma “casa do saber” por assim dizer.3 (KHALILI, 2010) 2 Rashid foi um califa tão emblemático que ele e sua corte de nobres chegaram a ser retratado em várias histórias do clássico árabe “As mil e uma noites”. Foi entre os reinados de al-Malik e al-Mamun, que tem o início o que hoje chama-se de “movimento de tradução”, uma torrente (a princípio) não-organizada de traduções de textos vindos dos quatro cantos do império (SCIENCE, 2009). Essas traduções eram patrocinadas por nobres muçulmanos seguindo o exemplo do califa, que por sua vez absorvia em sua corte as tradições artísticas e culturais dos povos persas usando como justificativa as palavras do profeta Maomé.4 Al-Mamun foi um dos maiores patrocinadores desse movimento de tradução e, dizem as lendas, que ele pagava o peso em ouro de alguém que lhe trouxesse de terras distantes um livro que não tinha (SCIENCE, 2009). Uma grande quantidade de livros remanescentes da Índia, Pérsia e Grécia antiga ressurgiram de bibliotecas obscuras nos confins do vasto e crescente império muçulmano. Foi o renascimento de obras clássicas bem antes do conhecido e exaustivamente estudado Renascimento europeu. Com isso, as obras que durante a Idade Média, foram proibidas, escondidas ou mesmo esquecidas pelos países europeus passaram a circular pelos países de língua árabe de tal forma que deram origem a vários novos resultados que complementavam e desenvolviam os pensamentos clássicos dos gregos, por exemplo. Um exemplo disso na matemática são as tentativas de provas do quinto postulado de Euclides feitas pelo poeta e astrônomo Omar Khayyam (1048-1131) e pelo astrônomo e matemático Nasir al-Din al-Tusi (1201-1274), que eram estudiosos da Casa da Sabedoria e estabeleceram as bases para a descoberta e criação de geometrias não-euclidianas na Europa do século XIX (SIQUEIRA, 2003). Outro grande sábio e frequentador da Casa da Sabedoria foi al-Khwarizmi (780– 850), o homem que popularizou o sistema numérico decimal hindu e os números indo-arábicos no livro “Sobre a arte hindu de calcular” e cujos trabalhos fundaram a Álgebra, revolucionando a matemática como a estudamos hoje (ROQUE, 2012). Foram vários desses resultados que chegaram a Europa, principalmente através da Espanha conquistada pelos muçulmanos (região que ficou conhecida 3 Al-Mamun era um grande entusiasta do saber, em particular da astronomia e é considerado o fundador do primeiro observatório permanente do mundo, que fica em Bagdá. 4 Interessante notar como essa busca de conhecimento dos povos islâmicos está intimamente ligada a religião, já que o profeta Maomé, líder político, fundador e base religiosa do Islã, sempre pregou a importância do conhecimento e da busca dele para seus fiéis discipulos. como al-Andalus), cujos estudiosos também fizeram traduções dos textos clássicos gregos da língua árabe para o latim e, posteriormente, para o espanhol, italiano e inglês (DOMINGUES, 2009). O primeiro contato dos europeus com textos gregos de Platão e Aristóteles, por exemplo, se deram com traduções diretas do árabe. Um dos que começaram essas traduções foi Adelardo de Bath (1080-1152), um monge inglês que estudou e traduziu uma grande quantidade de textos do árabe em diferentes áreas do conhecimento e foi um dos primeiros a relacionar o pensamento aristotélico e a fé católica (LYONS, 2011). Porém, antes de Adelardo, alguns pensadores islâmicos já haviam iniciado essa relação do pensamento aristotélico com sua própria religião. Dois dos que ficaram mais conhecidos no ocidente são Ibn Sina (980 – 1037), ou Avicena, e Ibn Rushd (1126–1198), ou Averróis (SCIENCE, 2009). Seus comentários da obra aristotélica foram responsáveis pelo fortalecimento da escolástica medieval por influenciarem um de seus maiores expoentes, o padre italiano Tomás de Aquino (1225-1274) (DOMINGUES, 2009). Os “comentadores de Aristóteles” como ficaram conhecidos, desenvolveram textos em filosofia que influenciaram gerações. Averróis se destacando no estudo da lógica do direito e da jurisprudência e Avicena na produção de obras em filosofia e metafísica. Eles também são responsáveis por avanços na medicina e pela publicação de obras que reuniam o conhecimento médico, biológico e farmacêutico da época. “O Cânone da Medicina” de Avicena por exemplo, foi texto padrão da formação de médicos europeus por mais de 900 anos. É uma obra em três volumes que fala sobre fisiologia humana e de todo tipo de doenças, propondo tratamentos que ainda hoje são estudados em renomadas faculdades de medicina. Somente no século XIX, com a descoberta dos vírus e das bactérias, é que o “Cânone” deixou de ser utilizado como fonte exclusiva de estudo para a formação do médico (SCIENCE, 2009). A DEMOLIÇÃO DA CASA DA SABEDORIA “Nessa encruzilhada do desejo e da necessidade, não deixes nada: Não voltará lá nunca mais.” Omar Khayyam Curiosamente, foi um dos próprios frequentadores da Casa da Sabedoria que escreveu os textos que podem ter dado origem ao seu fim. Al-Ghazali (1058–1111) foi um filósofo, jurista e teólogo islâmico que escreveu tratados criticando as obras clássicas de Aristóteles e Platão e, principalmente, sua relação com a religião. É o maior discutidor dos trabalhos de Avicena e sua principal obra “A incoerência dos filósofos”, confronta a lógica e metafísica aristotélica, exaltando a Deus como causa única e motivo final de todos os acontecimentos (KHALILI, 2010). Seus escritos começam a ficar famosos entre os adversários do califa e, mesmo duramente criticados por Averróis alguns anos depois, muçulmanos ortodoxos se aproveitam da obra de al-Ghazali para se colocar contra a tolerância do califado com a convivência de culturas tão diferentes dentro do império islâmico. Começam a acontecer as rupturas com o poder central e califados independentes são estabelecidos em Al-Andalus e no Egito. O golpe final é dado com a invasão da Bagdá, que não era mais a capital do império e ficou enfraquecida pelas dissidências. A cidade foi saqueada e quase toda destruída pelo exército mongol comandado por Hulagu, neto de Genghis Khan, em 1258 (LYONS, 2011). Foi o fim do mais famoso centro de saber árabe. Muitas obras produzidas ali se perderam para sempre. Outras demoraram séculos para serem reencontradas. Em compensação, várias outras cidades islâmicas já tinham copiado o modelo de difusão do saber e tinham cópias das muitas das obras produzidas ali, que já começavam a influenciar pensadores europeus. Essas outras “casas da sabedoria” deram origem ao que ficou conhecido como Madrassas, centros de ensino muçulmano. A diferença é que com o fim do califado abássida (dinastia fundadora e patrocinadora da casa da sabedoria) e a ascensão dos muçulmanos ortodoxos, o aprendizado de ciências, filosofia e medicina (apesar de existir) era posto de lado nas Madrassas em função dos estudos das palavras do profetá, do Alcorão e dos textos de al-Ghazali. CONCLUSÃO “A ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega” Albert Einstein Na eterna discussão Ciência X Religião, vimos que no exemplo árabeislâmico um pouco dos dois extremos podem ser encontrados. Entretanto o florescimento de um não pôde acontecer sem o outro. Sem as palavras do profeta, a era de outro da ciência islâmica poderia não ter acontecido. E sem a liberdade de discussão evocada pelas ciências, o crescimento e fortalecimento do Islã poderia não ter acontecido da forma notável como o conhecemos hoje (inclusive com o ortodoxismo radical). Tudo isso porém, haveria de se repetir na Europa numa ordem praticamente inversa, primeiro dando mais importância a religião e depois a ciência propriamente dita, culminando no que alguns consideram a ruptura final entre as duas com o estabelecimento do método científico no século XVII. Referências DOMINGUES, Beatriz Helena. Aristóteles e a Espanha: A Herança da Antiguidade Clássica na Ibéria Muçulmana. In: CONGRESSO SCIENTIARUM HISTÓRIA II: ENCONTRO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA, 2009, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. p. 163-169. KHALILI, Jim al-. Pathfinders: The Golden Age of Arabic Science. Londres: Penguin Books Editora, 2010. 336 p. LYONS, Jonathan. A Casa da Sabedoria: como a valorização do conhecimento pelos árabes transformou a civilização ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2011. 295 p. PINGUELLI ROSA, Luiz. Tecnociências e Humanidades: Novos paradigmas, velhas questões. São Paulo: Paz e Terra Editora, 2005. Volume 1. 450 p. ROQUE, Tatiana. História da Matemática: Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2012. 512 p. SCIENCE and Islam – Episode 1 - The Language of Science. Produzido e Dirigido por Tim Usborne. Apresentação de Jim al-Khalili. Londres: BBC Four, 2009. 59min. SIQUEIRA, Arnaldo Costa de. As Novas Geometrias e a Evolução do Pensamento: Uma História Não-Euclidiana. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2003. 45 p.