o processo de emergência musical: um estudo sobre as

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O PROCESSO DE EMERGÊNCIA MUSICAL: UM ESTUDO SOBRE
AS PERSPECTIVAS NATURAIS E SOCIAIS DO
COMPORTAMENTO MUSICAL
Felipe Pacheco
[email protected]
Graduando em música pela UFPR
Resumo: Este artigo tem por objetivo situar a música como um fenômeno que pertence ao âmbito
natural intríseco do ser humano, bem como ao âmbito social. Portanto busca-se reduzir a
dualidade natural-social, entendendo-se a emêrgencia do comportamento musical como um
processo contínuo entre os fatores naturais e sociais da música. Nessa perspectiva, entende-se a
linguagem musical como o ponto principal desse processo, pois seria através dela que se daria a
construção das características e funções musicais, em uma cultura específica. O trabalho está
dividido em três momentos: do fator natural, do fator social, e da junção de ambos, isso é, da
síntese natural-social pela analogia da linguagem.
Palavras – chave: musicalidade natural, fatores sociais culturais, emêrgencia do comportamento
musical.
INTRODUÇÃO
Segundo Hauser E Mcdermott, 2003, e Gray e colaboradores (2001) apud
Rodrigues (2009), a música é uma arte e forma de expressão humana presente em
todo mundo, independentemente de classe social, língua, idade ou gênero. Dito
isso, sob uma perspectiva de análise superficial, poderíamos dizer que a música é
um elemento essencial para o ser humano. No entanto, o pesquisador Steven
Pinker (2001), em seu livro Como a mente funciona, defende outra opinião, ao
tratar a música como um elemento inútil do ponto de vista evolutivo e adaptativo
do homem:
No que se refere à causa e efeito biológicos, a música é inútil. Ela não
aponta para um caminho que garanta objetivos como uma vida longa, a
existência de netos, ou uma percepção e previsão exatas do mundo. Se
comparada à Linguagem, visão, pensamento social, e conhecimento físico,
a música poderia desaparecer de nossa espécie deixando o resto de nosso
estilo de vida praticamente inalterado. (PINKER, 2001, p. 528).
Ao assumir tal posição, o autor lança inevitavelmente o questionamento
sobre as funções da música, sua origem e principalmente sobre como sobreviveu
tanto tempo entre todas as sociedades humanas que se tem notícia. A resposta de
Pinker a esse questionamento consiste em reduzir a música a um coquetel de
prazer que “ingerimos” através do ouvido, e que não comunica nada. Para o autor,
a inutilidade da música está diretamente relacionada à linguagem e seu potencial
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de comunicabilidade. Nesse caso, segundo o autor, apesar de ter alguns aspectos
em comum com a linguagem, a música seria realmente inútil, pois não comunica
nada, enquanto que a linguagem seria um elemento essencial para o
desenvolvimento humano justamente devido a seu poder de comunicação.
Obviamente esses questionamentos sobre a essencialidade e características
evolutivas da música levantaram argumentações contrárias. Daniel Levitin
(2011) contrapõe-se a Pinker no sentido de tentar provar que a música é na
verdade um elemento essencial ao ser humano, pois pode ter sido anterior a
própria linguagem. Ilari (2006) também destaca que, ao sugerir que a música é
inútil do ponto de vista biológico e que se não existisse, nada se alteraria em
nosso estilo de vida, Pinker realmente desconsidera a inegável importância da
música enquanto elemento social e cultural, muito embora não negue que a
música possa vir a ser um elemento evolutivo indireto (um subproduto).
Considerando essa relevância social/cultural da música, bem como suas possíveis
origens evolutivas e biológicas fundamentais ou parciais, verdadeiras, emerge o
questionamento inicial de qual seria a importância de cada uma das duas
premissas (natural e social) e qual o papel de cada uma delas no comportamento
musical resultante em cada indivíduo.
Assim, distanciando-se um pouco da questão da essencialidade ou não
essencialidade evolutiva da música e se aproximando da questão do processo do
comportamento musical, o presente trabalho busca, através de revisões
bibliográficas, situar a música como um elemento natural pertencente à espécie
humana, e ao mesmo tempo, um elemento cultural pertencente à sociedade em
que existe. A hipótese levantada será detalhada dialeticamente em três
momentos: do fator natural, do fator social e da junção de ambos, isto é, da
síntese natural-social pela analogia da linguagem.
O primeiro consistirá em uma abordagem mais biológica, que tenta
explicar o comportamento humano através de um viés evolutivo. Essa abordagem
propõe que as estruturas mentais psicológicas e as características sociais básicas
do ser humano (relacionadas à música) são inatas e universalmente
compartilhadas, provindas da seleção natural. Assim, nesse primeiro momento se
busca afirmar a naturalidade musical, bem como investigar qual o seu papel na
evolução do ser humano.
O segundo terá o foco mais voltado para a cultura, sociedade e instituições
sociais. Essa abordagem considera que os padrões do comportamento musical são
aprendidos através do contato e interação com a cultura, através das instituições
sociais, sendo assim específicos de cada cultura em particular. Assim, nesse
segundo momento, busca-se afirmar que a música é um elemento essencialmente
cultural e que, portanto, suas características e funções dependem do contexto
cultural e social.
Finalmente, no terceiro momento, se buscará explicar o processo de
emergência do comportamento musical, através da junção complementar dos
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fatores natural e social. Nesse sentido, tentar-se-á definir de que forma a música,
que seria um fenômeno natural, se estrutura a partir da linguagem musical da
cultura onde está inserido.
A MUSICALIDADE NATURAL
O problema apresentado na introdução sobre a importância evolutiva da
música pode ser bastante pertinente para analisar a questão da musicalidade
natural. Ora, se o comportamento musical é comum a todos por ter origem na
adaptação evolutiva, poder-se-ia sustentar, de maneira consistente, que a
musicalidade é realmente biologicamente inata ao ser humano.
Daniel Levitin (2011) baseia sua argumentação na biologia evolutiva,
sustentando que o comportamento musical teria sido um elemento importante
para a evolução humana por conta de vários aspectos que ele distribui em quatro
possíveis argumentos:
1. Reprodução e linguagem: Primeiramente o autor cita Darwin, ao afirmar
que a linguagem se desenvolveu a partir dos sistemas de comunicação dos
animais baseados em chamados sonoros e que o comportamento musical foi
determinante na seleção reprodutiva. A capacidade musical, de cantar e dançar
(atividades que eram inseparáveis em sociedades primitivas), que exige
complexas habilidades, indicaria uma boa saúde física e mental e uma riqueza de
recursos materiais, pois se houve tempo disponível para o desenvolvimento da
musicalidade, a necessidade de recursos básicos já estava suprida.
Além disso, segundo Levitin (2011, p. 284), “Darwin considerava que a
música antecedia a fala como ferramenta para fazer a corte, equiparando-se à
cauda do pavão”. Um dos fatores que comprovariam isso é o fato de que a música
está há muito tempo em nossa história. De acordo com o autor, existem
instrumentos musicais datados de 50 mil anos e que provavelmente o canto já era
praticado antes do advento de qualquer instrumento, assim a música seria
anterior à agricultura e provavelmente anterior à linguagem. Para Levitin, uma
atividade de pouco valor adaptativo não tem muitas chances de ser praticada
durante tanto tempo na história da espécie, ocupando uma parte tão significativa
desse tempo e energia.
2. Coesão social: A segunda possibilidade levantada sobre a importância
evolutiva da música é a da utilização da música para a vinculação e coesão social.
O fazer musical coletivo poderia estimular a coesão e sincronia grupal,
fortalecendo os laços sociais. Sobre a influência da música na interação social e
interpessoal, Ilari (2006) afirma que a música exerce alguma função em todas as
culturas e sociedades, e uma das principais funções, no mundo ocidental, é a
interferência nas relações interpessoais em atividade como: “ninar crianças,
dançar, contar histórias, comemorar eventos especiais, vender produtos, entreter,
curar e rezar”. Segundo Huron (1999) apud Ilari (2006), a música exerce,
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portanto, um papel importante para a evolução da espécie criando cenários para
os relacionamentos humanos.
Em uma pesquisa com um grupo de indivíduos diagnosticados com a
síndrome de Williams (SW) e outro grupo diagnosticado com transtornos do
espectro autista (TEA), Levitin e Bellugi obtiveram alguns resultados que podem
reforçar a teoria da relação entre música e coesão social. Nessa pesquisa foi
observado que indivíduos acometidos de TEA, que costumam ter grande
incapacidade de empatia social e de entender emoções, apresentaram em sua
maioria total incapacidade de apreciação de qualidade estética e emocional da
arte e música. Segundo Levitin, os poucos indivíduos com TEA que se tornam
músicos relatam não entender emocionalmente a música, mas a apreciam pela
complexa estrutura que ela pode apresentar. Por outro lado, Indivíduos
acometidos da síndrome de Williams, que normalmente são extremamente
sociáveis, apresentam-se particularmente musicais. Essa dupla dissociação
reforçaria a teoria de que possivelmente um mesmo agrupamento de genes
influenciaria ao mesmo tempo a sociabilidade e a musicalidade. De fato, de
acordo com o autor, os comprometimentos cerebrais de ambas as disfunções são
complementares. O neocerebelo é maior que o normal em indivíduos com SW, e
menor em indivíduos com TEA. Levitin conclui esse argumento afirmando que
essa região cerebral (cerebelo) já é muito relacionada à música por estudos de
cognição musical.
3. Cognição: O terceiro argumento levantado é de que a música teria
promovido o desenvolvimento cognitivo humano. Para o autor, as habilidades
musicais teriam ajudado a espécie humana a desenvolver habilidades motoras
precisas, que seriam necessárias para o desenvolvimento da fala vocal ou gestual.
Como apresenta semelhantes características com a linguagem, nessa
argumentação a música poderia ser também um fator importante para o
desenvolvimento de estruturas mentais necessárias para a prosódia linguística e
interação social. A música funcionaria como um jogo que ajuda a desenvolver a
capacidade exploratória e generativa, desenvolvendo competências necessárias à
linguagem falada antes mesmo que o cérebro esteja pronto para processar
elementos fonéticos.
4. Comportamento musical em animais: O quarto e último argumento para
a importância evolutiva da música é baseado em comportamentos musicais de
outros animais. Segundo Levitin (2011, p. 297), “[...] se pudermos comprovar que
outras espécies usam a música com finalidades semelhantes, teremos aí um forte
argumento evolutivo”. De acordo com o autor, animais como os pássaros, as
baleias, os gibões, os sapos e outras espécies fazem vocalizações e as usam para
diferentes fins. Os chipanzés, por exemplo, fazem chamados de alerta diferentes e
específicos para cada tipo de predador. Esses chamados são diferenciados por
uma questão de proteção, pois o grupo deve tomar atitudes diferentes conforme o
tipo de predador. Algumas espécies de pássaros machos utilizam vocalizações
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para marcar território e também alertar a aproximação de um predador. Outras
espécies de pássaros fazem vocalizações relacionadas à corte, aproximando-se
mais da teoria de Darwin quanto à origem da música. Segundo Levitin, para
alguns pássaros, o tamanho do repertório do macho representa a sua capacidade
intelectual e de bons genes, atraindo assim mais fêmeas. Para o autor, a
capacidade generativa musical não é exclusivamente humana, estando presente
também nos pássaros. Supostamente várias espécies vão além da imitação e
geram seus cantos a partir de sons básicos, criando novas melodias e variações. O
macho que apresenta cantos mais elaborados é o mais bem sucedido em
acasalamentos.
Concluindo, Levitin afirma:
As origens evolutivas da música estão estabelecidas porque ela está
presente em todos os seres humanos (atendendo, assim, ao critério de
disseminação numa espécie adotado pelos biólogos); envolve estruturas
cerebrais especializadas, entre elas sistemas mnemônicos específicos que
podem continuar funcionando quando outros falham (quando um sistema
cerebral físico se desenvolve em todos os seres humanos, presumimos que
ele tem uma base evolutiva); é análoga ao fazer musical em outras
espécies. Em condições ideais, as sequências rítmicas estimulam redes
neurais recorrentes no cérebro dos mamíferos, entre elas circuitos de
“feedback” entre o córtex motor, o cerebelo e as regiões frontais. Os
sistemas tonais, as transições entre alturas e os acordes desenvolvem-se
segundo certas propriedades do sistema auditivo que, por sua vez, são
produtos do mundo físico, da natureza intrínseca dos objetos vibrantes.
Nosso sistema auditivo desenvolve-se de formas que jogam com a relação
entre as escalas e as séries harmônicas. Em música, a novidade atrai a
atenção e neutraliza o tédio, aumentando a memorabilidade. (LEVITIN,
2011, p. 299).
Por outro lado, utilizando da perspectiva pertencente à psicologia
cognitiva, Sloboda (2008) concluiu, através de estudos neurais, que a música
utiliza várias regiões cerebrais: “[...] a música não é uma capacidade única e
monolítica, que existe ou não existe em um indivíduo.” (Sloboda, 2008, p. 346).
Com essa afirmação o autor pretendeu explicitar que existem várias subhabilidades musicais independentes e que, portanto, também são
anatomicamente independentes. O cérebro especializou diferentes regiões para a
concepção da música. Portanto, além da estrutura do sistema auditivo para
simplesmente ouvir os sons, há a diferenciação das características musicais por
distintas regiões cerebrais, resultando em relações musicais muito mais
complexas. De acordo com Sloboda, as emoções e significados atribuídos a essas
relações são um dos principais elementos que explicam a universalização da
música: “Não se explicaria que a música tenha penetrado até a base de tantas
culturas diferentes, se não existisse alguma atração fundamental pelo som
organizado que transcende as barreiras culturais” (Sloboda, 2008, p. 3).
Ao discorrer sobre as origens e funções da música, Sloboda (2008) difere
em parte à argumentação de Levitin, afirmando que a teoria proposta por Darwin
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para explicar o papel da música na seleção sexual está longe de ser convincente.
Em sua explicação, Sloboda considera relevante a observância do comportamento
“musical” de macacos, que são os animais mais próximos ao ancestral humano,
afirmando que as vocalizações dos macacos servem somente para chamados de
perigo ou coisas análogas, não se baseando em qualquer padrão de escala ou
ritmo e estão longe da qualidade organizacional da música humana. Portanto,
segundo o autor, apesar das semelhanças, há uma grande “lacuna qualitativa”
nessa comparação, além de que não há nessa relação um indício claro de como o
comportamento musical teria proporcionado melhores condições de sobrevivência,
para ser caracterizado como uma adaptação evolutiva, diferentemente da
linguagem ou outras habilidades, cuja vantagem adaptativa é muito mais óbvia.
Assim o autor levanta inevitavelmente uma questão parecida com a que foi
apontada inicialmente por Pinker. Segundo Sloboda:
O homem precisa da música? Se ele precisa, então sua privação deveria
ser de alguma maneira prejudicial. Sabemos, por exemplo, que o sono é
necessário aos seres humanos, já que a privação contínua do sono tem
efeitos prejudiciais, físicos e psicológicos. Nesse sentido, a música é bem
diferente do sono. As pessoas podem ficar sem música por períodos muito
longos sem sofrerem quaisquer danos notáveis. Pode ser, contudo, que
essa seja uma abordagem demasiado ingênua. Há diversas atividades
que são vitais para a continuação da espécie (como o sexo), das quais os
indivíduos podem se abster sem sofrer qualquer prejuízo aparente. A
música pode ser assim, necessária à espécie e não a um indivíduo em
particular. (SLOBODA, 2008, ps. 351 e 352).
Logo para que pudesse se experimentar essa abstinência musical, ela
deveria ser aplicada a toda uma cultura. Assim, possivelmente a música ocupa
um papel fundamental, pois segundo Sloboda, culturas sem música não existem.
No entanto é difícil imaginar quais seriam as consequências negativas reais que
seriam causadas pela abstinência da música. Para o autor, isso se explica se
considerarmos que a música exerceu maior valor, em termos de sobrevivência,
para as sociedades primitivas, e que as sociedades modernas desenvolveram um
tipo de necessidade de música. Assim o autor sugere que a importância da música
está mais propriamente situada no seu poder de coesão social, um dos
argumentos apresentados por Levitin. Esse poder mnemônico da música poderia
ter sido fundamental em sociedades primitivas não letradas que dispunham de
poucos artefatos que ajudam na organização social. Segundo Sloboda:
Para sobreviver, toda sociedade exige organização. Em nossa sociedade,
dispomos de muitos artefatos complexos que nos ajudam a exteriorizar e
objetivar as organizações de que precisamos e que valorizamos. As
culturas primitivas têm poucos artefatos desse tipo, e a organização da
sociedade precisa ser expressa, em maior grau, através de ações
transitórias e através da maneira como as pessoas interagem umas com
as outras. Talvez a música propicie um quadro mnemônico singular,
através do qual os humanos podem expressar, através da organização
temporal do som e do gesto, a estrutura de seu conhecimento e de suas
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relações sociais. Canções, poemas ritmicamente organizados e dizeres
formam o principal repositório do conhecimento humano nas culturas não
letradas. Isso parece ocorrer porque tais sequências organizadas são mais
fáceis de lembrar do que o tipo de prosa que as sociedades letradas usam
nos livros. Seria provavelmente um exagero dizer que não havia
alternativa lógica para a música, enquanto recuso mnemônico. Contudo,
parece-me que há pouquíssimas coisas que as pessoas ‘naturais’
poderiam fazer de modo solidário com a fala, sem ir em direção àquilo
que entendemos por música. Elas podem mover seus corpos e modular o
tempo de sua fala. Quando isso acontece de forma organizada, cria-se o
ritmo. Elas podem modular a altura da voz. Quando isso acontece de
maneira organizada cria-se a melodia e alguma forma de estrutura
tonal.(SLOBODA, 2008, p. 352).
Sloboda ainda sugere que, na falta de métodos científicos empíricos, as
sociedades primitivas já sabiam dominar seu ambiente com sucesso através de
comportamentos que pareciam atraentes, não necessariamente lógicos racionais,
mas instintivos. Ou seja, comportamentos adaptativos. A música seria um deles
por apresentar esse forte apelo mnemônico: “[...] a evolução [...] proporcionou à
música uma motivação, de modo que entregar-se a ela tornou-se agradável e
“natural” para as pessoas.”. (Sloboda, 2008, p. 353). Para o autor, as sociedades
modernas, mesmo dispondo de muitos recursos mnemônicos mais poderosos do
que a música, ainda a apreciam e a fazem porque existem em nós instintos e
motivações de um passado primitivo. Com a diferença que hoje a música pode ser
separada de sua origem, servindo a propósitos estéticos e transcendentes. No
entanto, segundo Sloboda (2008, p. 353), “Como os nossos instintos para a música
têm raiz nas condições que vigoravam na infância da humanidade, as formas que
estavam disponíveis aos primeiros homens (homem primitivo) são de influência
primordial e inescapável.”. O autor explica que essas formas são a voz e o corpo
humano em movimentos rítmicos, por serem componentes constituintes
elementares da música. Assim, segundo o autor, quanto mais a música se
distancia dessas características, mais ela perderá seu poder e seu sentido. De
acordo com Sloboda (2008, p. 354), “Os instrumentos eletrônicos precisam ser
sempre limitados pelos parâmetros do fazer musical “humano”, realçando e
enriquecendo esses parâmetros ao invés de dar tiros em direções arbitrárias.”.
Concluindo sua argumentação, o autor sugere que em uma situação
hipotética, na qual os nossos complexos arranjos sociais fossem desestruturados
pela destruição dos delicados equilíbrios que os preservam, a música poderia
voltar a ser um poderoso artefato mnemônico. Segundo Sloboda:
Em tal situação, aqueles de nós que sobrevivessem encontrar-se-iam num
mundo em que os artefatos de nossa sociedade atual teriam desaparecido
por completo. Os recursos que carregaríamos em nossas cabeças seriam,
novamente, uma forma de manter nossas tentativas de sobrevivência.
Canções e poemas seriam transformados em armas coesivas e
mnemônicas vitais para a construção de uma nova sociedade, e a
habilidade musical seria, de fato, uma habilidade para a sobrevivência.
Portanto, alcançar uma compreensão melhor da habilidade musical não é
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simplesmente uma tarefa de curiosidade desinteressada. A música é um
recurso humano fundamental que já desempenhou, e pode vir a exercer
novamente, um papel fundamental na sobrevivência e no
desenvolvimento da humanidade. (SLOBODA, 2008, p. 354).
Outra justificativa importante apresentada para afirmar a teoria da
musicalidade natural do ser humano se baseia no fato de que a música é uma
constante em todas as culturas de que se tem notícia. Essa justificativa se
completa com os argumentos apresentados por Sloboda sobre a coesão social, pois
o autor sugere que foi um artefato fundamental por esse motivo. Nesse sentido,
além da música ser comum a todas as culturas, há também indícios de que haja
algumas constantes universais musicais. Ou seja, existem elementos e
características musicais que se repetem em várias culturas diferentes. De fato,
essas semelhanças podem ser um forte argumento para sustentar a hipótese da
musicalidade natural. Sloboda (2008) discorre sobre essas características e
explica algumas delas como sendo justificadas na maneira como nosso cérebro
ouve a música. Dentre essas características, Sloboda (2008) destaca a referência
fixa, divisão da escala em intervalos alternados, divisão e organização
hierárquica do tempo.
Assim pode-se considerar possível ideia de que de fato haja uma
musicalidade natural, pois a música possui uma origem biológica evolutiva e é
um forte artefato mnemônico e de coesão social, sendo assim, um elemento
fundamental para a espécie humana. Por esses motivos a música é presente em
todas as sociedades, sendo que, entre a maioria delas, existem aspectos musicais
em comum. No entanto, apesar do aspecto natural apontar para semelhanças,
como citado por Ilari (2006), obviamente os conceitos, definições e valores sobre
música são muito variados em diferentes sociedades. Portanto é óbvio que há
uma influência social muito forte em relação ao comportamento musical dos
indivíduos. Nesse sentido, esse aspecto da importância social também deve ser
analisado.
FATOR SOCIAL CULTURAL
Como analisado anteriormente, um dos prováveis argumentos sobre a
essencialidade e naturalidade da música é o seu poder mnemônico e de coesão
social. Portanto fica claro que a música também é essencialmente um fenômeno
cultural, sendo muito mais fundamental para a sociedade do que para o
indivíduo. Nesse sentido, busca-se a reafirmação do teor cultural da música e,
portanto, sua diversidade.
Ridley (2008) afirma que a música está presente em todos os aspectos de
nossa vida, ocupando uma posição central e, portanto, fazendo parte dela:
Segundo Ridley (2008, p. 10) “Bem vindos, ou não, a música e os sons musicais
são onipresentes [...]”. O autor ainda afirma de forma categórica que, sendo parte
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da vida, a música é “inteiramente histórica”. Ridley justifica que as concepções,
funções e importância dadas à música são muito distintas em diferentes
sociedades, de diferentes períodos históricos:
Os papéis musicais mudam: o lugar da música na dança tribal é diferente
do seu lugar no ritual cristão, e tampouco é o mesmo que seu lugar no
Albert Hall, no Groucho’s ou no Yanke Stadium. As concepções de música
mudam: tivemos a metafísica pitagórica, a harmonia das esferas, a
música devocional, a música como ornamento, a música como arte
elevada, a música volkisch, a música de protesto, a música mercadoria. O
propósito da música, o que foi considerado música e a maneira como foi
ouvida e como se pesou nela – todas essas coisas mudaram, o que
significa que, para compreendermos a música e as experiências musicais
que agora temos, elas terão de ser compreendidas historicamente, pelo
menos em parte – como produtos complexos de acréscimo, assimilação,
atrofia e decadência. Sua historicidade relaciona-se com outro dos traços
da música que são semelhantes à vida: sua inserção. Em comum com
todas as outras coisas, a música ocupa um espaço conceitual, não em um
vácuo, mas nos interstícios de um conjunto indefinidamente maior e
mutável de outros interesses, cada um dos quais ela condiciona e pelos
quais é condicionada. Assim, por meio da dança, a música une-se
reciprocamente ao sexo e à sociabilidade, por meio dos hinos e cânticos
religiosos à saúde da alma, por meio das canções de ninar à brincadeira,
por meio de marchas ao exército, por meio dos hinos à solidariedade, por
meio da proporção à matemática, por meio do chantier ao trabalho, por
meio de lamentos fúnebres à morte etc. É essa inserção que confere à
música boa parte da sua riqueza, assim como sua importância, por meio
da composição flutuante do seu ambiente conceitual, toda a sua história.
“Estou convencido de que qualquer tentativa de compreender a música
que tente suprimir isto a respeito dela – o fato de que ela é inserida e
histórica – será, na melhor das hipóteses, débil e insatisfatória, e quase
certamente pior que isto [...]. (RIDLEY, 2008, ps. 10 e11).
Esse aspecto histórico citado por Ridley pode ser entendido como o
pertencimento social, pois o conceito entendido de sociedade é aqui entendido não
somente espacialmente, mas também temporalmente. Uma sociedade atual de
um determinado local pode não ser a mesma, e nem possuir os mesmos valores
que tinha há algumas décadas, portanto pode-se considerar que, nesse caso,
seriam sociedades diferentes.
Nesse entendimento, pode-se afirmar, de acordo com Ridley (2008), que a
música carrega uma carga social e cultural inseparável. Para o autor, é inviável
investigar o fenômeno musical de forma pura, isto é, livre, desvinculado e não
inserido em qualquer contexto, pois o nosso envolvimento com a música é baseado
no contexto. De acordo com o autor, a investigação científica que busca excluir o
elemento humano para investigar o objeto de forma não inserida não deve ser
usada para compreender um elemento essencialmente humano e histórico como a
música, pois apresentaria resultados falsos. Como exemplo, em analogia à
música, o autor utiliza a culinária e o sexo, que, se investigados de forma
puramente cientifica, não passam de química e instintos reprodutivos, mas que
efetivamente são muito mais do que isso, por serem também parcialmente
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constituídos da cultura. Indo mais além em sua argumentação, Ridley destaca o
conceito romântico da suposta autonomia da música instrumental (que
supostamente não faz referência a nada, além de si mesma – “música pura”) e o
critica pela razão de que a existência de associação a elementos extramusicais
(como as emoções que podem ser suscitadas através da música) é inegável e
inevitável. De forma conclusiva, Ridley (2008, ps. 29 e 30) afirma: “Devemos [...]
pensar em peças musicais não como padrões autônomos de som, mas, talvez,
como padrões de som que estão (em um ou em outro grau, mas sempre em algum
grau) inseridos no resto do mundo, impregnados de história [...]”.
Paralelamente a Ridley, que sustenta a ideia da música como um fenômeno
essencialmente social, Piana (2001) afirma que a música se constitui em uma
“praxis social” totalmente integrada à cultura que pertence, sendo um objeto
cultural carregado de uma tradição que determina a modalidade da prática e
escuta musical Segundo Piana:
“Um trecho musical é eminentemente um “objeto cultural” – a música é
antes de mais nada uma práxis social que deve ser considerada na sua
integração com a cultura a que ela pertence. Isso significa que a música
traz consigo o peso de uma tradição que determina não só as modalidades
da ação musical, mas obviamente também as modalidades da escuta”.
(PIANA, 2001, p. 19).
Assim Piana (2001) também defende que a música só pode ser considerada
em integração com a cultura a que pertence, assim como poder determinista que
a cultura exerce. Segundo o autor, as repetições dessas práticas musicais
determinadas vão se impondo cada vez mais com o passar do tempo e acabam
gerando um hábito de escuta sistemático que se estrutura na expectativa de
sucessões de eventos em um trecho musical. Por reiteração e repetição, essa
práxis vai se tornando tão estável, que assume um caráter legítimo de regra. De
acordo com Piana (2001, p. 19), “Uma práxis que de início certamente podia ser
instável, tende progressivamente a se estabilizar assumindo a dignidade de uma
regra [...]”.
Frente à conclusão de que a música é essencialmente um fenômeno
social/cultural e adquire diversas funções e formas em culturas específicas, e que
a prática e a escuta musical é determinada pela cultura musical vigente, entendese que não há como compreendê-la de forma pura e dissociada da carga cultural e
histórica de que ela está impregnada. Logo se conclui que a música, sendo um
elemento essencialmente social e histórico (como foi concluído anteriormente),
também é provavelmente construída de acordo com as características impostas
pelas instituições sociais especificas de onde está inserida.
O PROCESSO DE EMERGÊNCIA DO COMPORTAMENTO MUSICAL
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Apesar da argumentação do fator social parecer contraditória em relação à
do fato natural, por conta da dualidade entre natural e social, elas podem ser
complementares se pensadas em um fluxo. Daí surge o conceito de “processo de
emergência do comportamento musical”, pois se supõe a existência de um
contínuo que flui do âmbito natural intrínseco para o âmbito social, sendo o
comportamento musical o resultado desse fluxo.
Assim, a música seria um produto natural e social ao mesmo tempo.
Natural, quando se entende que ela seja um elemento de origem evolutiva
importante, para qual cada indivíduo possui uma estrutura biológica que permite
a capacidade musical; e social, por se manifestar de acordo com as regras da
sociedade onde existe. Esse conceito parece entender o ser humano de duas
maneiras: por um lado como indivíduo único e por outro como coletivo em
sociedade. No entanto, não há sentido em pensar no ser humano como indivíduo
único, pois ele é essencialmente social. Segundo Bussab e Ribeiro (2004), o ser
humano é biologicamente cultural, pois à medida que começou a depender da
vida cultural, a seleção natural favoreceu os genes desse comportamento. Para o
autor, o desenvolvimento biológico favoreceu o desenvolvimento cultural, como
também o contrário, em aspectos anatômicos e também psicológicos. Bussab e
Ribeiro (2004), sobre o desenvolvimento e especialização cerebral:
Pode-se dizer que uma coisa puxou a outra: um cérebro maior permitia
novos desenvolvimentos culturais; um contexto cultural mais
desenvolvido promovia a seleção de nova especialização cerebral. Não
indefinidamente, nem ponto a ponto, convém dizer. Há uma relação de
custos e benefícios
a ser considerada. Há limites para o crescimento da cauda do pavão. Há
ainda descompassos. Todavia, tomados alguns cuidados para não
simplificar indevidamente o processo, pode-se dizer que biologia e cultura
caminharam juntas. (BUSSAB e RIBEIRO, 2004, p.183).
Bussab e Ribeiro (2004) também afirmam que a linguagem é uma
característica biológica que se relaciona intimamente com a vida cultural. Para os
autores, essa característica evolutiva se deu por conta da vida cultural, pois a
comunicação pela linguagem é um comportamento vantajoso para este modo de
vida. Segundo (Bussab e Ribeiro (2004):
Se de um lado ela [linguagem] pode ser entendida como essencial à
cultura, como fruto desta, por outro, está fortemente enraizada em
propriedades biológicas ligadas à estrutura cerebral, à anatomia do
sistema fonador e à herança da capacidade linguística. A aquisição da
linguagem pelo recém-nascido não é a imposição de um sistema
arbitrário ou convencional de códigos por parte dos adultos a um
aprendiz inteligente. Não se trata de um processo de ensaio-e-erro com
reforçamento dos acertos. O talento do recém-nascido humano para
adquirir a linguagem é uma habilidade específica dotada de motivação
própria. O ser humano é biologicamente linguístico; nasce com os
recursos cognitivos, motivacionais, fisiológicos e anatômicos para
entender e usar a linguagem humana que se estiver falando em seu
279
ambiente. Por sua vez, as línguas humanas são construídas, mantidas e
transformadas por esses mesmos seres humanos que as adquirem a cada
geração. E todos os seus aspectos - sonoros, rítmicos, melódicos, léxicos,
sintáticos, etc. - decorrem das características dos indivíduos que as
produzem. Para entender as línguas - suas características e evolução - é
preciso entender o ser psicobiológico que as inventou. A diversidade
linguística - o fato de milhares delas terem sido criadas - não nos deve
confundir. Não apenas o que é comum a todas elas, mas também a
própria variedade constituem indicadores importantes sobre o curso da
evolução biológica da habilidade linguística. (BUSSAB e RIBEIRO, 2004,
p.184).
Assim, segundo os autores, a relação entre o natural e o social é muito
próxima, visto que o comportamento cultural é fruto da seleção natural e, por
outro lado, a seleção natural posteriormente se deu em acordo com os meios
sociais. A música pode então compartilhar de forma análoga dessa mesma
situação híbrida entre biológico e social, exemplificada pelo autor pelo fenômeno
da linguagem, entre bilógico e cultural. Pode ser realizada então uma analogia
entre música e linguagem, na qual se tentará entender melhor a maneira como se
estrutura o comportamento musical a partir da influência social cultural.
Como citado anteriormente, Pinker (2001), em seu questionamento sobre
as funções da música, afirma que ela é um “subproduto” acidental criado pelo
prazer proporcionado por atividades de maior relevância evolutiva, sendo a
linguagem uma delas. Levitin (2011), no entanto, baseado em Darwin, afirma que
a música é anterior à linguagem, pois a última se desenvolveu a partir dos
sistemas de comunicação dos animais baseados em chamados sonoros para a
reprodução da espécie, sendo o comportamento musical um fator determinante
nesse processo. Independentemente dessa relação evolutiva, os estudos de
Sloboda (2009) sobre psicologia cognitiva da música revelam que há certo grau de
independência neural entre as sub-habilidades musicais, ou seja, a música não é
processada em uma única parte ou hemisfério do cérebro, e que há uma
sobreposição parcial entre as áreas utilizadas para a música e para a linguagem,
porém essa sobreposição é bastante incompleta, sendo que um indivíduo pode
apresentar lesões cerebrais que danifiquem significativamente a capacidade
linguística, deixando intactas as capacidades musicais. Sloboda: “A música, se
não faz uso de uma função neural totalmente distinta, quase certamente faz uso
de uma configuração diferenciada dos recursos neurais” (Sloboda, p. 349).
Percebe-se que essas argumentações tem em comum uma relação entre
música e linguagem. Essa analogia já é longa data e apresenta grande
diversidade de estudos. Sobre isso, Medeiros (2009) discorre sobre a atribuição
linguística que eventualmente pode ser dada à música, fazendo uma divisão da
linguagem em dois sentidos distintos, sendo um mais abrangente e outro mais
restrito. O sentido mais amplo seria o sentido de linguagem como comunicação
independente de sua estrutura, cabendo ao campo de estudo da semiótica,
podendo ser representada por costumes vestuários, como a utilização de roupas
280
pretas para representar luto, e o sentido mais restrito se refere à estruturação a
partir de segmentação e combinação, se referindo à nossa capacidade de combinar
de forma hierárquica unidades cognitivas e fonológicas sem sentido formando
palavras com sentindo.
Medeiros apud Borges (2009) afirma que, no sentido restrito de linguagem,
a música não possui unidades equivalentes a combinações de morfemas ou
mesmo a palavras, sendo impossível se fazer uma análise semântica musical,
visto que não é possível fazer referência direta a coisas do mundo através de
música. Para Cerqueira (2009, p.1), “[...] a Música por si só não oferece elementos
semânticos, porém, os elementos de seu discurso podem possuir significados sob
uma perspectiva histórica, sendo o ouvinte capaz de identificar tais elementos
caso possua conhecimento para decifra-lo.”. Portanto, tomando essa perspectiva,
essa análise se apoiará nas relações mais prováveis entre música e linguagem: as
que se dão no âmbito desse sentido mais amplo apontado por Medeiros.
Piana (2001) utiliza a analogia entre música e linguagem, a partir dessa
perspectiva semiológica, para explicar sua argumentação sobre a influência
cultural sobre a musicalidade. Sua argumentação se apoia na ideia de que a
música não seria dotada de valor intrínseco, mas sim, acrescida do valor cultural
de onde está inserida, assim como ocorre na linguagem. Segundo o autor, o
significado de uma suposta linguagem musical está atrelado às próprias relações
entre os elementos dessa linguagem. O autor considera a tonalidade como uma
linguagem musical aprendida e significada por convenção. Assim, no âmbito da
linguagem tonal, ao contrário das justificativas de que as consonâncias e
dissonâncias sejam percebidas de forma circular, por representarem
naturalmente uma sensação intrínseca de tensão (dissonância) e relaxamento
(consonância), Piana defende a ideia de que essas supostas circularidades
internas são na verdade constituintes da linguagem musical. Essa sensação seria
apenas uma relação de contiguidade entre dois eventos sonoros que, segundo o
autor, pode ser chamada de hábito auditivo. Para o autor, um conjunto desses
hábitos auditivos criaria o “sentimento de tonalidade” que confere a essas
relações caráter de regra.
Essa analogia entre música e linguagem feita por Piana parece ser
esclarecedora, quando este conceitua linguagem como uma unidade conceitual à
qual se subordinam as espécies, como a linguagem verbal ou a linguagem
musical. É ainda mais apropriada a ideia de múltiplas linguagens musicais que
estabelecem suas regras e relações de contiguidade, como a tonalidade. A partir
dessa abordagem pode-se fazer uma analogia mais profunda entre música e
linguagem enquanto instituição social, pois os seus conjuntos de regras, relações
de contiguidade e relações extramusicais afetam diretamente a escuta musical
dos indivíduos da sociedade detentora dessa linguagem. Valendo-se das
características que Berger e Berger (In Foracchi, 1997) atribuem às instituições
sociais (exterioridade, objetividade, coercitividade, autoridade moral e
281
historicidade), pode-se analisar até que ponto é válida a analogia proposta acima.
E se, de fato a tonalidade é uma linguagem musical, pode-se toma-la como
exemplo:
A exterioridade é primeira característica das instituições sociais, na qual
se argumenta que a Instituição social é algo imediatamente externo, não
intrínseco. Portanto está além da vontade, não representando os pensamentos e
sentimentos exatos do indivíduo, sendo ele obrigado a adequar esses
pensamentos e sentimentos à instituição. Desta forma, a tonalidade compartilha
desta característica, pois, segundo Piana, suas relações e regras são apreendidas
por aculturação, definindo os hábitos de escuta e o sentimento de tonalidade,
sendo que é através deste sentimento que o indivíduo se expressa musicalmente.
A objetividade é característica na qual se entende que a instituição é
comum à maioria dos membros da sociedade em questão e que, por esse motivo,
mesmo que um indivíduo não concorde com suas regras, ela permanecerá
inalterada, pois já é determinada e objetiva. Nesse aspecto, se a argumentação de
Piana estiver correta, pode-se dizer que a tonalidade também apresenta esta
característica, pois o sentimento de tonalidade que se cria na maioria dos
indivíduos de uma sociedade não se modificará se um indivíduo não concordar
com alguma regra. A relação de contiguidade entre dissonância (tensão) e
consonância (relaxamento), por exemplo, irá permanecer como um consenso geral,
mesmo que um indivíduo não concorde com ela.
A coercitividade e a autoridade moral são características bastante claras
na linguagem verbal, pois visivelmente há uma forte repreensão ao indivíduo que
difere das regras, levando-o a situação vexatória. Na linguagem musical (no caso,
a tonalidade), a história, de modo geral, pode trazer exemplos mais claros de
coercitividade e autoridade moral, pois toda mudança em relação à linguagem
musical vigente é recebida com preconceitos auditivos. Neste sentido pode-se
falar do “sentimento de tonalidade”, pois este conceito entende o preconceito
auditivo como a não capacidade de apreciação de algo que fuja à regra da
linguagem. Portanto, a linguagem tonal apresenta certa autoridade moral, pois
quando os indivíduos se opõem as regras impostas sofrem alguma forma de
repreensão por conta da existência de um preconceito auditivo.
Como historicidade se entende as características atuais de uma instituição
que se devem às relações e práticas realizadas no passado. Como citado
anteriormente, a música não pode ser plenamente observada e entendida senão à
luz de sua carga histórica. Da mesma forma, de maneira mais específica, uma
práxis musical é fruto de reiterações de relações de contiguidade assimiladas no
decorrer da história. Portanto, a linguagem musical apresenta caráter histórico.
Diante dessas argumentações, pode-se entender que é possível fazer uma
analogia interessante entre música e linguagem, enquanto instituição social.
Obviamente essa analogia metafórica não é profunda ao ponto de permitir
afirmar com certeza que a linguagem musical é de fato uma instituição social,
282
mas também é inconcebível a ideia de que o fenômeno musical não seja em nada
caracterizado e definido, em teor e função, pela cultura musical da sociedade em
que acontece. Também parece bastante razoável que essa cultura musical possa
ser conceituada como “linguagem musical” (de acordo com a conceituação de
Piana), e que esta se manifesta como a maneira que os indivíduos se expressam
musicalmente, seja passivamente através da escuta, ou ativamente através da
prática.
Assim, conclui-se que os aspectos natural e social podem ser
complementares e que, no caso da música, essa relação pode ser feita através de
uma analogia com a linguagem – instituição social. Nesse sentido poderia se falar
em linguagem musical enquanto uma possível instituição social. Logo, entende-se
que existe um processo que flui do âmbito natural para o âmbito social, por
mediação da linguagem musical.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das perspectivas tomadas, pode-se fazer uma série de considerações
que, apesar de serem parcialmente conclusivas, também levantam uma série de
outros possíveis problemas demasiadamente complexos, que obviamente não
podem ser resolvidas por este trabalho. No entanto, talvez a perspectiva adotada
aqui possa vir a ser um ponto de partida para outros estudos que se proponham a
resolver esses possíveis decorrentes. Logo, a fim de tentar responder a pergunta
feita na introdução – Quais são os papeis e a importância dos fatores natural e
social para o processo de emergência musical? Adotaram-se as seguintes
perspectivas: a importância do fator natural para a emergência musical se dá
inicialmente por um “instinto natural” evolutivo para a prática da música, ou
seja, uma pré-disponibilidade biológica para a música; a música está sempre
carregada de um significado incorporado socialmente, além de que suas relações
externas e até mesmo internas são impostas através das instituições sociais; e
finalmente, procurou-se entender o conceito de processo de emergência do
comportamento musical como uma “união” entre disponibilidade natural da
música e a estruturação social do comportamento musical, através da utilização
de uma analogia com a linguagem. Dessa maneira, pôde-se sugerir que a música
é: um fenômeno, que por ser de caráter biológico evolutivo, é natural intrínseco e
fundamental ao ser humano; sua essencialidade se deu por seu grande poder
mnemônico e de coesão social; e se constrói culturalmente na relação com a
linguagem musical vigente da sociedade a que pertence. Nessa perspectiva podese entender que há inicialmente uma musicalidade natural intrínseca, mas que
esta se estrutura e toma forma através do contato com a sociedade. Portanto, a
emergência da música seria um processo que flui do âmbito natural para o
âmbito social, tendo como meio a linguagem musical.
283
A respeito dessas possíveis conclusões podem ser feitas considerações
importantes que, além de explicitar melhor as delimitações deste trabalho,
apontam para outras possíveis perspectivas:
A primeira é de que a perspectiva biológica não é a única possível quando
se fala em musicalidade natural, pois são vários os significados para “natural”.
No caso da música, vale lembrar a origem e o significado dessa própria palavra.
Segundo Tomás (2002), “o conceito de mousiké, portanto ultrapassa a organização
gramatical da linguagem musical e entende a música não só como entretenimento
ou um ato de fruição estética, mas como um universo de características mágicas,
cosmológicas e metafísicas”. Assim a música seria algo cosmológico muito maior
do que a música auditiva propriamente dita. Nesse sentido, talvez a música
auditiva tenha sua origem natural por ser justamente uma representação em
menor escala de uma música macro cosmológica.
A segunda consideração é de que se deve atentar para o fato de que se
utilizou uma perspectiva sociológica bastante extrema, na qual se entende que o
comportamento dos sujeitos é imposto de forma unilateral pelas instituições
sociais. O trabalho se delimitou a essa corrente mais extrema justamente para
criar uma relação dialética mais intensa entre os fatores naturais e os fatores
sociais, para então posteriormente tentar a dissolução dessa crise, entendendo os
dois fatores como complementares, e não como uma dualidade. Assim parece ficar
claro que obviamente essa crise existe, mas que, no entanto, ela pode ser
atenuada se vista por outra perspectiva.
Finalmente, a terceira consideração é de que não se pretendeu em
momento algum afirmar a existência de um talento musical natural, no entanto
também não se delimitou exatamente até que ponto se dá a influência do fator
natural sobre o comportamento musical. Ao mesmo tempo em que a perspectiva
utilizada para a analogia com a linguagem considera que as relações musicais são
aprendidas, se ressalta a existência de universais musicais. Aqui então fica mais
clara a discussão sobre essa crise entre o fator natural e o fato social mencionada
na consideração anterior. Talvez seja esse o ponto que mais precise ser
aprofundado e que, portanto, mais levante problemas. A influência social sobre o
processo de emergência musical parece ser muito mais clara e evidente, mas
ainda é um tanto quanto obscuro até que ponto se dá o movimento contrário.
Obviamente essa discussão não pôde ser aprofundada neste trabalho, no entanto,
através dessa consideração, pode-se sugerir uma nova possibilidade de enfoque
deste problema:
Na argumentação do fator natural, se sugere que a música pode ter se
originado tenha se originado a partir de chamados reprodutivos. Nesse sentido,
ter um bom repertório musical seria um sinal de estabilidade de recursos básicos,
pois só com essa estabilidade sobraria tempo para o desenvolvimento musical. O
bom repertório também poderia ser um sinal de criatividade, que seria uma
característica adaptativa importante. Segundo Levitin (2011), alguns estudos
284
sugerem que mulheres que estão no auge de seu período fértil são muito mais
atraídas por características que indicam criatividade, do que as mulheres que
estão em outra etapa do ciclo menstrual. Talvez a criatividade seja uma palavra
importante para entender esse processo. Se por um lado as instituições sociais
impõem uma linguagem musical a ser seguida, por outro, existem forças
contrárias que impulsionam as mudanças. Na história da música, é bastante
clara essa relação cíclica de mudanças. Parece haver uma força motriz que
impulsiona a quebra das regras postas pela linguagem. Se essa sugestão estiver
certa, seria a criatividade essa força. Uma força natural em resposta às
imposições sociais. No entanto essa oposição de forças talvez não seja um
problema, pois há uma troca e é nessa troca que está o movimento das coisas.
Como foi abordado, uma das características das instituições sociais é a
historicidade, na qual se entende que a as características de uma instituição são
frutos de interações passadas. Regras que foram quebradas levaram a novas
regras, e assim por diante.
Nessa perspectiva poderia ser respondida a pergunta inicial: qual é o papel
e a importância de cada fator (natural e social)? Por um lado, a linguagem
musical estrutura as funções e as regras do comportamento musical. Por outro
lado, a pré-disponibilidade natural para a música e a criatividade seriam os fator
naturais necessários para a busca pelo fazer musical e a renovação destas regras
impostas socialmente. Logo, este processo seria como uma força motriz que,
através destas duas forças, impulsionam o fazer musical no decorrer da história.
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