Introdução - Editora Contexto

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Introdução
“G
raças a Deus, é a Grande Guerra!” O general Viktor
Dankl, comandante designado do 1º Exército austrohúngaro, escreveu essas palavras em 31 de julho de
1914, o dia em que ficou claro que a disputa entre
Áustria-Hungria e Sérvia, decorrente do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, um mês antes, não seria resolvida pacificamente nem se limitaria a uma
guerra nos Bálcãs. Quarenta e três anos haviam se passado desde a última guerra em
que potências europeias se enfrentaram e, como muitos oficiais militares europeus
da sua geração, Dankl, na época com 59 anos, temia servir toda a sua carreira sem
experimentar um conflito desse tipo. Em 2 de agosto, em outra anotação em seu diário,
ao se referir ao conflito que crescia rapidamente como “a Guerra Mundial”, Dankl
não podia imaginar o quão preciso se tornaria o rótulo: que a ação se estenderia ao
Extremo Oriente, ao Pacífico Sul e à África Subsaariana; que mais de um milhão de
homens dos impérios Britânico e Francês entrariam em ação em campos de batalha
europeus; que os Estados Unidos teriam um exército de mais de 2 milhões de homens
na França, apenas quatro anos mais tarde, ou que os países europeus seriam responsáveis por uma minoria de Estados participantes na conferência de paz pós-guerra.1
A Primeira Guerra Mundial como uma revolução global
A tese central deste livro é que a Primeira Guerra Mundial e o acordo de paz
que pôs fim a ela constituíram uma revolução global. Como Dankl e outros generais, os estadistas que levaram a Europa à guerra no verão de 1914 não previram
A Primeira Guerra Mundial
as consequências revolucionárias em todo o mundo do conflito cujo início eles
saudaram (ou, pelo menos, fizeram muito pouco para desencorajar). Embora o
surgimento do governo bolchevique na Rússia viesse a servir como um lembrete
de que o mundo ainda não estava seguro para a democracia, governos autoritários
antiquados, como Hohenzollern e Habsburgo, bem como Romanov, não tinham
lugar em uma Europa pós-guerra que contava com nada menos que 11 repúblicas
em um mapa redesenhado a partir da fronteira franco-germânica até bem dentro
da Rússia, com um aumento líquido de seis Estados independentes e a eliminação
de uma grande potência tradicional, a Áustria-Hungria do próprio Dankl. Para
além da Europa, a redistribuição das ex-colônias alemãs afetou o mapa da África,
do leste da Ásia e do Pacífico, enquanto o fim do Império Otomano gerou o redesenho generalizado das fronteiras no Oriente Médio e, na Palestina, as raízes do
moderno conflito árabe-israelense, decorrente das promessas contraditórias feitas
pela Grã-Bretanha durante a guerra ao movimento sionista e a nacionalistas árabes.
Mais do que questões de fronteiras e território, a guerra também viria a revolucionar as relações de poder dentro das sociedades europeias. Na Europa de 1914,
a maioria dos homens adultos não tinha direitos de voto verdadeiramente significativos; além de Portugal, que tinha acabado de derrubar o seu rei, a França tinha
a única república da Europa e, entre as outras cinco potências europeias, apenas a
Grã-Bretanha e a Itália tinham governos parlamentares em pleno funcionamento.
Apenas na Grã-Bretanha, e só recentemente, tinha havido um movimento sério
pedindo a ampliação dos direitos das mulheres incluindo o de voto. Enquanto a
guerra fortaleceu a posição dos trabalhadores organizados e proporcionou oportunidades de emprego sem precedentes para as mulheres, a maior parte dessas
oportunidades se revelou apenas temporária. No entanto, a Europa do pós-guerra,
a oeste da Rússia soviética, consistia em repúblicas democráticas e monarquias
constitucionais, e nela restava pouca ou nenhuma restrição ao sufrágio masculino
adulto. Em suas primeiras eleições nacionais do pós-guerra Alemanha e Áustria se
juntaram à Grã-Bretanha e deram às mulheres o direito de votar (com os Estados
Unidos as seguindo logo depois). Na Rússia do pós-guerra, o governo soviético
chegou a conceder às mulheres o direito ao aborto sob demanda.
A guerra teve um impacto igualmente dramático sobre a posição da Europa no
mundo. Os europeus brancos haviam desfrutado de uma dominação inquestionável
do mundo de 1914, um mundo em que 40% da raça humana era de origem europeia.
No entanto, em 1919, a mais espinhosa questão moral enfrentada pela Conferência
de Paz estava relacionada à inclusão ou não no Pacto da Liga das Nações de uma declaração global da igualdade racial. Apesar de proposto (de forma um pouco calculista)
pelo Japão, o debate refletia a perda de estatura simbólica e demográfica da Europa
no mundo como um todo. Mais do que isso, como exemplo da falibilidade europeia,
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Introdução
a Primeira Guerra Mundial lançou as sementes do movimento anticolonialista que
irrompeu após a Segunda Guerra, época em que a explosão populacional no mundo não
ocidental reduziu ainda mais o peso relativo de uma Europa que nunca se recuperara
do choque demográfico da Primeira Guerra – uma guerra na qual a esmagadora maioria dos milhões de mortos tinha sido de europeus ou de pessoas de origem europeia.
Conceituando a “primeira” guerra mundial
Nos primeiros dias de agosto de 1914, muitos observadores e participantes se
juntaram a Viktor Dankl no reconhecimento do início de uma “grande guerra” ou
“guerra mundial”, do tipo que a Europa não via desde o final da época de Napoleão,
um século antes. As Guerras Napoleônicas, e as guerras por império da Europa
moderna, tinham apresentado uma ação em nível mundial em alto-mar e nas colônias, bem como nos campos de batalha europeus. Contudo, no final de agosto, o
alcance e a intensidade do conflito em curso, no qual a maioria dos beligerantes já
tinha perdido mais homens em uma única batalha, ou mesmo em um único dia, do
que em guerras inteiras travadas durante o século xix ou antes, levaram a maioria a
reconhecer que estava testemunhando algo sem precedentes. Em setembro de 1914,
em declarações citadas pela imprensa norte-americana, o biólogo alemão e filósofo
Ernst Haeckel fez a primeira referência registrada ao conflito como “Primeira Guerra
Mundial”, em sua previsão de que a luta que começava “se tornar[ia] a primeira guerra
mundial no sentido pleno da palavra”.2 O rótulo de “Primeira Guerra Mundial” só
se tornaria corrente depois de setembro de 1939, quando a revista Time e uma série
de outras publicações popularizaram seu uso como corolário da expressão “Segunda
Guerra Mundial”, mas já em 1920 o oficial britânico – e jornalista em tempos de
paz – Charles à Court Repington publicou suas memórias da guerra sob o título A
Primeira Guerra Mundial, 1914-1918.3 Nos anos do entreguerras, uns poucos descrentes
e pessimistas usavam “Primeira Guerra Mundial” em vez da mais comum “Grande
Guerra” ou “Guerra Mundial”, de modo a refletir a sua consternação por ela não ter
sido, como Woodrow Wilson esperava, “a guerra para acabar com todas as guerras”.
O uso da expressão, desde 1939, reflete a nossa conceituação da Primeira
Guerra Mundial como precursora da Segunda – uma crença universal suficiente
para acomodar não só visões opostas sobre a natureza da causação (por exemplo, de
que a Segunda Guerra Mundial ocorreu porque Alemanha não tinha sido completamente esmagada durante a Primeira ou porque ela tinha sido desnecessariamente
antagonizada na mesa de paz, depois do conflito), mas, ainda mais, a notável diversidade de lições aprendidas e aplicadas pelos países, líderes e povos envolvidos.
Enquanto, na Alemanha e na Rússia, os regimes nazista e soviético se mostraram
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A Primeira Guerra Mundial
muito mais eficientes e cruéis do que seus antecessores de 1914 na mobilização de
seus países para a guerra e sua condução até o amargo final – independentemente
do custo em vidas humanas –, as democracias da Europa Ocidental, os domínios
britânicos e a Itália demonstraram pouco desejo de repetir o sacrifício de sangue da
Primeira Guerra Mundial e, em vários aspectos, adaptaram suas estratégias a isso,
desastrosamente para França e Itália. Os Estados Unidos, cuja população ainda
não estava pronta para abraçar o manto da liderança mundial no final da Primeira
Guerra, mobilizaram-se para a causa uma geração mais tarde e com grande fervor
após o choque de Pearl Harbor, enquanto seus líderes se beneficiaram da experiência
de 1917 e 1918 na mobilização de recursos norte-americanos para travar a Segunda
Guerra. Dos recursos consideráveis dos Estados Unidos, apenas seu contingente fez
diferença na Primeira Guerra Mundial, já que a luta terminou antes que a força industrial norte-americana pudesse ser aplicada; assim, Alemanha e Japão subestimaram
fatidicamente a capacidade bélica e a determinação nacional dos Estados Unidos na
Segunda Guerra Mundial.
A Primeira Guerra Mundial e a guerra total moderna
Não menos do que na esfera pública e política, a Primeira Guerra Mundial
produziu respostas radicalmente diferentes para as mesmas lições aprendidas em
estratégias, táticas e operações militares. O impasse sangrento das trincheiras na
frente ocidental levou a Alemanha a desenvolver a Blitzkrieg (guerra-relâmpago), a
fim de eliminar a guerra de posições estáticas, enquanto a França construiu a Linha
Maginot na tentativa da perfeita guerra de posições estáticas. Graças ao exemplo
da Alemanha, que partiu do exemplo britânico do final do verão de 1918, passou
a ser norma na Segunda Guerra Mundial as ofensivas de infantaria serem apoiadas por um número suficiente de tanques e aviões para evitar atolar como havia
acontecido na Primeira Guerra, exceto nos casos em que a luta se dava dentro ou
perto de uma grande cidade, ou no espaço confinado de uma ilha do Pacífico. A
Segunda Guerra Mundial apresentou versões mais letais de todas as armas e táticas
de campo de batalha que foram revolucionárias durante a Primeira Guerra, com
a destacada exceção do uso de gás venenoso.
A magnitude da morte e da destruição causadas pela Segunda Guerra ultrapassou em muito a da Primeira, principalmente para as populações civis, mas, a partir de
agosto de 1914, a Primeira Guerra Mundial testemunhou atos de brutalidade contra
não combatentes que pressagiavam o que aconteceria em uma escala muito maior
um quarto de século depois. Das execuções sumárias de civis belgas por soldados
alemães e de sérvios por austro-húngaros, passando pela perseguição e, finalmente,
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Introdução
chegando à matança genocida de armênios no Império Otomano, ao bombardeio
aéreo de Londres e de outras cidades por zepelins alemães, as populações civis sofreram atrocidades em um nível que a Europa e sua periferia não viam desde que a
Guerra dos Trinta Anos (1618-48) marcou o fim das guerras religiosas entre católicos
e protestantes. Enquanto isso, no mar, o afundamento indiscriminado de milhões
de toneladas de navios Aliados por submarinos alemães custou milhares de vidas e
prenunciou as campanhas de guerra submarina indiscriminada de ambos os lados
na Segunda Guerra Mundial, enquanto o bloqueio naval Aliado (principalmente
britânico) às Potências Centrais trouxe desnutrição para as frentes internas da Alemanha e da Áustria e, no final das contas, doença e morte prematura de centenas
de seus milhares de civis mais vulneráveis. É impressionante que as populações da
frente interna não apenas tenham suportado essas dificuldades sem precedentes,
mas, na maioria dos casos, tenham se tornado mais firmes em sua determinação à
medida que a guerra se arrastava. Na verdade, enquanto a fadiga de guerra finalmente
desencadeou os colapsos revolucionários na Rússia em 1917 e na Alemanha e na
Áustria-Hungria em 1918, durante a maior parte da Primeira Guerra Mundial, os
civis perseveraram como seus equivalentes dos países Aliados ocidentais, rejeitando
a noção de uma paz negociada que tornaria sem sentido não apenas suas privações
pessoais, mas, mais importante, as mortes de seus filhos, irmãos, pais e outros entes
queridos. Essa perseverança serviu de aviso para líderes políticos sobre o risco, bem
como a recompensa, da mobilização de um país para um esforço de guerra total na
era do nacionalismo moderno: a guerra não poderia ser vencida sem esse apoio, mas,
uma vez que os governos o recebiam, passava a ser uma questão de tudo ou nada,
pois seu próprio povo não aceitaria a negociação de concessões como recompensa
para esses sacrifícios. A infame observação atribuída a Joseph Stalin durante seus
Grandes Expurgos da década de 1930, de que uma morte é uma tragédia e um milhão
de mortes, uma estatística, poderia facilmente ter sido aplicada ao derramamento
de sangue da Primeira Guerra, e realmente teria sido impensável se essa sangria não
tivesse chegado antes. A Primeira Guerra Mundial – uma revolução global em muitos
aspectos – acima de tudo redefiniu o que as pessoas poderiam aceitar, suportar ou
justificar, e por isso se destaca como um marco na experiência humana pelo tanto
que dessensibilizou a humanidade para a desumanidade da guerra moderna.
Notas
1
2
3
Dankl, citado em Holger H. Herwig, The First World War: Germany and Austria (London: Arnold, 1997), 55.
Fred R. Shapiro, The Yale Book of Quotations (New Haven, CT: Yale University Press, 2006), 329.
Charles à Court Repington, The First World War, 1914‑1918 (London: Constable, 1920).
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