María Zambrano-um pensar contemplativo

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María Zambrano e a razão poética: um pensar contemplativo
Fernanda Henriques – Universidade de Évora
María Zambrano foi aluna de dois grandes nomes do pensamento espanhol contemporâneo: Ortega e
Zubiri. Cada um deles, diz ela, a atraía com a mesma força, embora para zonas opostas – Zubiri transportava-a
para a obscuridade; D. José para a transparência.
Sentiu-se cindida e perdida entre os dois. Pensou, até, que tinha de abandonar a filosofia. Contudo, ficou.
E ficou porque encontrou o seu próprio lugar, um lugar só seu, um lugar que deixava entrar a luz, mas sem
excessos.
Segundo as suas palavras, encontrou uma “penumbra tocada de alegria”, uma “penumbra salvadora”,
que lhe possibilitou deixar de “andar errante, só, perdida, nos infernos da luz”1.
Que espaço é este?
Que luminosidade é esta?
E porquê uma “penumbra tocada de alegria”?
Este meu trabalho vai tentar satisfazer estas três interrogações, centrando-se na análise do conceito de
razão poética, mostrando como a razão poética corresponde a uma concepção da racionalidade vital e
ontologicamente enraizada, em que o plano metafórico assume um papel preponderante2 e que aponta para um
específico modo de pensar a que chamei contemplativo.
O texto organizar-se-á em duas partes - Configuração do problema e Resposta zambraniana: razão
poética - e uma pequena conclusão.
Filosofia y Poesia, Madrid, FCE, 1967, p. 11.
Este trabalho remete para dois outros textos que já dediquei a este assunto.. Cf., Fernanda Henriques:, “A penumbra tocada de alegría: a razão poética
e as relações entre a filosofia e a poesia em María Zambrano”, Philosophica 11, 1998, pp. 49-61. “María Zambrano e as metáforas do coração”, in Aavv,
Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Lisboa, Edições Colibri, 2001, pp. 621-631.
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2
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1. Configuração do problema
A questão filosófica que Zambrano tem para resolver é a da compatibilização entre a sua concepção de
realidade e os instrumentos racionais que a tradição cultural em que se insere lhe faculta para se relacionar com
ela e a compreender. Acercarmo-nos do conceito zambraniano de realidade supõe atender a três tópicos
centrais:
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•
•
a Realidade não é ser;
a Realidade não é transparência ou luz;
a Realidade é dinâmica vital, orgânica e, portanto, tempo.
A Realidade não é ser
O conceito de Realidade em María Zambrano não corresponde ao de ser, porque este, o conceito de ser,
remete para o dito e para o dizível e o de real aponta para lá do dizível, para o inominável.
Em El hombre y lo divino, Zambrano di-lo desta maneira:
“[…] realidade é não só o que o pensamento pode captar e definir, mas também isso que
permanece indefinível e imperceptível, isso que rodeia a consciência, destacando-a como ilha de
luz no meio das trevas” 3.
Esta perspectiva vai obrigá-la a confessar que existem “realidades sem ser”, isto é, zonas que a
linguagem discursiva não consegue articular para expressar. E se a filosofia, na esteira de Aristóteles, confinou a
realidade ao ser, ao que pode ser dito, isso não significa, segundo a nossa autora, que essas zonas não ditas da
realidade não continuem a “vaguear como almas penadas” em torno do espaço filosófico, importunando-o e
interpelando-o.
A Realidade não é transparência ou luz
Assim, para Zambrano, a realidade não se reduz à zona de luminosidade, de transparência e de
visibilidade da linguagem discursiva que a filosofia ocidental assumiu como espaço próprio, ao fazer das
metáforas da luz e da visão o único sentido do conhecimento e do ser.
Essa opção, no seu modo de ver, fez da prática filosófica uma actividade poderosa, segura, alcandorada
ao universal impassível, mas, simultaneamente, confinou-a a uma superfície simplificadora e, de alguma maneira,
exterior à dinâmica profunda, abismal, da realidade.
Num fragmento de 1944, “La metáfora del corazón”, María Zambrano trata este problema de modo claro.
Recorrendo a duas funções orgânicas – a do cérebro e a do coração – faz a apropriação metafórica do
3
El hombre y lo divino, Madrid, Ediciones siruela, 1991, p. 79.
2
desenvolvimento cultural do ocidente, mostrando que ele se deixou empobrecer e superficializar sempre que
privilegiou o pólo logóico do cérebro em detrimento do do coração. Ao fazê-lo, deixou-se inebriar pela visão e pela
luz, empurrando para a marginalidade cultural a sabedoria do coração, atenta à dimensão misteriosa do real e
decidida a não prescindir da sua profundidade, mesmo que isso obrigasse a permanecer numa certa opacidade.
Para exemplificar esta sabedoria do coração, Zambrano apresenta as metáforas do fogo e do sangue; o
primeiro, o fogo, articulado com ardor e exaltação; o segundo, o sangue, evocando a embriaguez e a sede. Em
ambos os casos, fogo e sangue, estão em causa as ideias de comunhão, transformação, miscigenação e
compromisso.
Em termos de síntese, no fragmento em análise, a autora mostra a carácter antitético destes dois pólos
logóicos:
o pólo cerebral reduz a realidade a ser, manipulando-a no sentido da visibilidade, da transparência, da
eficácia e do poder;
o pólo do coração pretende manter intacta a diversidade e a incomensurabilidade da realidade,
afundando-se numa comunhão com ela e situando-se numa zona de penumbra, em que a contemplação se
sobrepõe à acção e a impotência ao poder.
A Realidade é dinâmica vital e tempo
A metáfora do coração revela que a essência da realidade para María Zambrano está centrada em dois
aspectos fulcrais: interioridade e fluir. O coração representa uma interioridade generosa que se afirma pela
doação: “[…] ao oferecer-se, não é para sair de si mesmo, mas si para fazer com que o que está fora de adentre
nele”4; por isso, a metáfora do coração corresponde a um processo de aproximação à realidade que aprofunda a
interiorização, potencia a intimidade relacional e supõe o vai-vem entre a busca e o encontro.
Por outro lado, o coração como metáfora simboliza, igualmente, o ritmo vital e a sua dinâmica
diferenciadora; nessa medida, o saber do coração assegura aos “objectos” com que se ocupa a sua integridade
constitutiva, não querendo convertê-los em “cadáveres” formais, mas antes garantir que o seu fluir temporal, o
tempo do seu acontecer e o tempo da sua transformação em sentido sejam preservados.
Como se posiciona a filosofia dentro deste jogo metafórico antinómico entre o cérebro e o coração?
Para Zambrano, desde a sua origem no solo grego, a filosofia deu-se conta desta situação e, por isso, ela
é constitutivamente dilacerada.
4
“La Metáfora del corazón”, Hacía un saber sobre el alma, Madrid, Alianza Editorial, 1993, p. 55.
3
O perguntar, a busca pela razão das coisas que a filosofia empreende, representa a ruptura com um
modo de saber originado por uma dádiva divina e o regresso a uma ignorância originária. Nesse quadro, o
aparecimento da filosofia remete para uma nova era no processo do desenvolvimento humano.
No entanto, segundo Zambrano, esse processo de desenvolvimento não se traduz no percorrer de um
caminho único; para ela, que interpreta o nascimento da filosofia como o percurso de passagem do mistério ao
problema, esse nascimento viu configurarem-se duas racionalidades opostas: a de um logos espacial, ligado à
palavra e a de um logos temporal, ligado ao número.
Com Aristóteles e a sua teoria de definição e do juízo, triunfa totalmente a primeira forma de
racionalidade, correspondendo a um certo modo de pensar que “define e julga as coisas que são e as que não são,
iluminando as primeiras e condenando as segundas às trevas e à errância eterna. Este logos vitorioso ganhou em
unidade e em clareza, mas fê-lo por uma renúncia absoluta à transformação e ao padecer do tempo.
O logos temporal identifica-o Zambrano com os Pitagóricos. Para ela,
“os pensadores de inspiração pitagórica, do logos do número – do tempo – não se sentem obrigados a
fornecer um método, um caminho de razões; fabricam aforismos, frases musicais, equivalentes a
melodias ou cadências perfeitas, que penetram na memória ou a despertam; “recorda-te” ou “para que
te recordes”, parecem dizer … ou fazem “catecismos” ou “manuais”, porque o método que oferecem não
é só para a mente e sim para a vida”.5
O logos temporal tanto privilegia a palavra como o silêncio, relevando, sobretudo, o ritmo e o tempo como
modo de ser da realidade. Se o fluir é a essência da vida, o tempo é o elemento constitutivo da realidade, quer
humana, quer natural; por essa razão, a filosofia tem de encontrar um modo de expressar o sentido de uma
realidade que é vitalmente tempo.
Estes dois modos de protagonizar o logos representam, a meu ver, o conflito constitutivo do próprio
pensamento filosófico dilacerado entre a busca da luminosidade total da ideia e do conceito e o sentir-se ligado ao
pulsar vital e obscuro da realidade; entre o impulso de admiração perante a multiplicidade das coisas e o impulso
contrário para se afastar delas para melhor as definir e julgar.
“A filosofia”, diz Zambrano, “é um êxtase fracassado por uma cisão”6, por isso, a racionalidade filosófica
é paradoxal e frágil, porque a segurança explicativa que patenteia assenta sobre as areias movediças de uma
consciência infeliz, dilacerada entre o seu próprio paradigma, que não logra alcançar e a consciência viva desse
desfasamento.
5
6
El hombre y lo divino, op. cit., p. 97.
Filosofia y Poesia, op. cit., 16.
4
É esta perspectiva sobre a emergência da filosofia e do filosofar que respalda Zambrano na procura de
uma racionalidade filosófica que não descure nada da riqueza e da diversidade da realidade, mas, ao mesmo
tempo, cumpra também o desejo legítimo de um saber sobre essa realidade.
Tal é a sua razão poética, que define como razão de amor, e que se pode interpretar como sendo a
vontade de articular a clareza do conceito e a opacidade da metáfora, integrando os dois logos fundadores da
filosofia: o espacial e o temporal.
2. A resposta zambraniana: a razão poética
Segundo a própria autora a explicação do conceito de razão poética é feita em 1937, num artigo cujo objecto
é a poesia de António Machado.
A caracterização do conceito é feita através de três traços essenciais: amor, recomposição e gratuitidade,7
dialecticamente articulados.
A razão poética é uma razão de amor, porque é “reintegração da rica substância do mundo”, ou seja, porque
procura a reunião, a ligação. Se atendermos à definição dada – “reintegração da rica substância do mundo” –
temos de reconhecer nesta racionalidade a vontade de restituir algo perdido para que a riqueza do mundo se
recomponha. Ou seja, algo se cindiu e essa cisão foi um empobrecimento; restaurar a perdida riqueza do mundo
supõe superar essa cisão e retornar a uma unidade originária.
Não é esta via de superação reconciliadora, ou de mediações perfeitas, que María Zambrano segue. Para ela,
o equilíbrio originário é inalcançável, uma vez que, aberta uma ferida, haverá sempre cicatriz; contudo, pode
haver a esperança de um processo de tratamento dessa ferida através de uma actividade racional de
recomposição. Essa será a tarefa da razão poética. Todavia, adverte também a autora, essa tarefa de
recomposição não pode ser tomada como uma conquista guerreira; antes supõe uma atitude epistemológica de
atenção e escuta, de modo a poder aceitar uma “revelação graciosa e gratuita”8.
Neste quadro, cabe perguntar duas coisas:
•
•
Porque é que a racionalidade (entenda-se filosófica) tem de ser poética?
Como é que a racionalidade pode ser poética?
O texto de María Zambrano que mais explicitamente responde a estas duas interrogações é a sua obra
Filosofia y Poesia. Aí, retomando o conjunto das suas ideias sobre o tema, a autora sistematiza o seu olhar sobre
estas duas produções humanas, para mostrar:
•
7
8
a sua origem comum;
Este último é integrado posteriormente – 1939 – na obra: Pensamiento y Poesia en la vida española. Madrid, Endymion, 1996.
Ibidem, p. 50.
5
•
•
a disfunção total dos seus caminhos;
a incompletude constitutiva de cada uma delas.
Tendo nascido ambas, filosofia e poesia, da recusa do saber como dádiva divina, essa origem comum não
determinou, contudo, o mesmo processo de autonomização. Pelo contrário, filosofia e poesia estruturaram-se em
percursos epistemológicos não apenas diferenciados, mas mesmo antagónicos.
A filosofia centrou-se na perspectiva da busca, do método, da unificação totalizadora, do distanciamento
abstractivo, definindo, por isso, uma posição de ruptura absoluta com o momento mítico. A filosofia quis construir
um discurso de inteira responsabilidade humana, pelo qual, apenas o humano pudesse responder. O discurso
filosófico é, neste sentido, um discurso ético.
Por seu lado, a poesia, mantendo uma linha de continuidade com a atitude mítica inicial, concentra-se no
ponto de vista do encontro, da escuta, da abertura à diversidade, da unificação frágil, da proximidade íntima com
a concretude do real. Diz Zambrano, para caracterizar estes dois caminhos epistemológicos, a partir da mesma
origem:
“E desde então, o mundo divide-se sulcado por dois caminhos. O caminho da filosofia, em que o filósofo,
impulsionado pelo violento amor ao que buscava abandonou la superfície do mundo […]. A admiração inicial
irá converter-se em interrogação persistente, a inquirição do intelecto iniciou o seu próprio martírio bem
como o da vida.
O outro caminho é o do poeta. O poeta não renunciava, nem buscava porque possuía […]. A poesia perseguia,
entretanto, a multiplicidade desdenhada, a menosprezada heterogeneidade. O poeta enamorado das coisas
apega-se a elas, a cada uma de elas e segue-as através do labirinto do tempo, da mudança sem conseguir
renunciar a nada.”9
É a relação entre a origem comum e a diversidade dos caminhos individuais trilhados pela filosofia e pela
poesia que determina, por um lado, a sua incompletude constitutiva, por outro, a sua atracção mútua e a
impossibilidade da sua separação total e, por fim, a dimensão ontológica de ambas.
Elas necessitam uma da outra, para suprir a sua limitação específica: a filosofia precisa de se abrir à
concretude do real e a poesia necessita de se contextualizar no universal possível. Mas, por outro lado, a sua
articulação é quase natural e legitimada pelo enraizamento ontológico comum que as sustenta.
Conclusão
Neste sentido, a resposta que Zambrano encontrou, ao forjar o conceito de razão poética, exige um
compromisso e um pacto de entendimento entre a filosofia e a poesia:
9
Filosofia y Poesia, op. cit., 17-19..
6
•
Por um lado, teremos defendido o valor constitutivo da racionalidade, sustentando a força
insuperável da analítica filosófica, mas, por outro, teremos uma espécie de aguilhão
desestabilizador da frieza analítica, que o poético introduz.
•
Por um lado, estão asseguradas a pureza e a claridade conceptuais, mas, por outro,
atravessando aquelas, configura-se a opacidade da metáfora, espaço misto de promessa e
transgressão.
•
Por um lado, define-se o espaço da responsabilidade humana pela construção do sentido,
mas, por outro, fica estabelecido que essa construção tem de se basear na atenção à
própria dinâmica da realidade.
No quadro desta compreensão, a razão poética de María Zambrano representa um pensar contemplativo,
se por contemplação se entender, a descentração de si para acolher o que vem, a deslocação do olhar que
procura mais ser visto do que ver e, finalmente, a compaixão, no sentido de uma proximidade promíscua e de um
envolvimento entusiástico (com-paixão).
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