Da ontologia à morfologia: reflexões sobre a identidade da

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Da ontologia à morfologia: reflexões sobre a identidade da obra musical
Jean-Pierre Caron
Como consequência há uma fundamental diferença em pensar a 'identidade' de uma
peça musical. Por exemplo, constituintes da identidade de uma peça européia são,
por exemplo, as notas que ocorrem e suas características (altura, intensidade,
duração, etc.. como em Boulez), ou os temas que ocorrem nela, suas implicações
(harmônicas e melódicas) e modificações, etc etc... Por outro lado, consituindo a
identidade de Winter Music [de Cage], por exemplo, está o fato de que deve haver
irrupções mais ou menos complexas do silêncio e de que estas devem vir de um ou
mais pianos.1
I.
Uma das questões mais difíceis enfrentadas por todos aqueles que se propõem a pensar
filosoficamente a música é a questão do estatuto ontológico da obra musical. Algumas dificuldades
enfrentadas pelo ponto de vista ontológico são: a temporalidade da obra musical, o caráter efêmero
da performance, a dependência entre partitura e realização, a multiplicação de instâncias que
poderiam chamar-se A Obra, e, não menos importante, a própria prática musical como proponente
constante de novas situações entre documento e evento, artista e público, compositor e intérprete.
Este último ponto é tão importante que não permitiria separar o ponto de vista ontológico de um
certo compromisso com um ponto de vista estético. Em seu esforço para definir de uma vez por
todas aquilo de mínimo que poderia constituir uma obra musical, o ontólogo não consegue em
última análise se divorciar de uma certa visão da prática musical vigente. Assim, comumente
ontologias da obra musical se fixarão sobre o problema da identificação da obra como o sintoma de
sua existência como obra. A possibilidade de identificação se apóia por sua vez na capacidade de
uma obra de se atualizar de forma reconhecível em cada uma de suas performances, ou seja, de ser
repetida. Esta premissa toda se baseia em última instância em uma certa atitude com relação à
1
“Consequent on this comes the fundamental difference in thinking about the 'identity' of a piece of music. For
instance: constituting the identity of an European piece are, e.g., the tones that occur in it and their characteristics (pitch,
loudness, length, etc.. in Boulez for example), or the themes that occur in it, their implications (harmonic and melodic)
and modifications, etc etc. On the other hand, constituting the identity of e.g. Winter Music is the fact that there should
be more or less complex eruptions into silence, and that these should come from one or more pianos.” (CARDEW,
2006, p. 7)
1
notação musical enquanto garantidora de uma identidade para a obra musical.
Gostaríamos aqui de propor uma distinção entre ontologia e morfologia da obra musical. A
atitude ontológica versaria sobre as condições que devem ser satisfeitas para que haja obra. Ela
adquire a forma mais básica: o que é uma obra musical? Ou, levando em consideração a cadeia de
dificuldades que mencionei acima: Onde está a obra musical? A pergunta da Morfologia é um
pouco diferente. Ela versa sobre o aspecto perceptual da música e as transformações sofridas de
performance a performance e a maneira como essas transformações ocorreram. Trata-se de uma
questão de captar semelhanças e diferenças e sua relação com os contextos nas quais tais
semelhanças e diferenças são produzidas. A princípio poderíamos verificar uma circularidade entre
as duas noções: a pergunta morfológica como um posssível preâmbulo para a pergunta ontológica, e
esta como contendo em certa medida a pergunta morfológica. Assumimos esta circularidade. A
pergunta ontológica poderia de fato ser respondida se encontrássemos nessa cadeia de performances
os elementos constitutivos da obra, separando-os dos contigentes. Não temos a certeza de poder
fazer isto de uma vez por todas, para todas as obras. Mas vamos aqui examinar um exemplo
extremo desse tipo de tentativa, e discutir alternativas a sua posição.
II.
Uma das tentativas mais comentadas de abordagem da questão da Identidade de obra
musical, foi a empreendida por Nelson Goodman em seu Languages of art. Neste livro, Goodman
procura defender uma concepção de obra de arte (não apenas musical) como sistema simbólico.
Especificamente para a música ele elabora uma teoria nominalista da identidade da obra enquanto
perfeita obediência a uma partitura. A princípio tal concepção não violaria nem a prática musical
corrente nem o senso comum: de fato, pelo menos no contexto da música de concerto, que é o
contexto onde mais comumente encontramos partituras, estamos acostumados a pensar que a
interpretação da obra é da obra na medida em que as indicações presentes na partitura são
respeitadas. Mas é no cerne de sua teoria que Goodman leva ao extremo esta idéia.
A teoria de Goodman pode ser dividida em duas teses: 1- uma realização de uma obra conta
como realização da obra na medida em que se conforma perfeitamente a uma partitura. E 2- a
partitura deve ser um caracter em um sistema notacional.
Goodman parte do pressuposto de que a função de uma partitura é identificar uma obra.
Assim, todas as performances deveriam manter identidade entre si para que cada uma delas
mantenham identidade com a obra tal como apresentada em uma partitura. A preocupação básica de
2
Goodman é evitar o deslizamento de identidade entre performances. É proposto o exemplo do
conceito “mesa” e de como diferentes objetos que recaem sob o domínio deste conceito recaem
também sob o domínio de outros, p. ex. “mesa de aço” recai sob o domínio de “mesa” e de “objetos
de aço”. Segundo Goodman, poderíamos passar de um domínio ao próximo seguindo esta cadeia
de pertenças.
No contexto de performances de obras musicais, deve haver não apenas uma
determinação a partir da partitura de quais são as performances corretas, mas, ao contrário, as
performances corretas devem nos levar à obra e somente àquela obra. Para Goodman, se
considerarmos algo menos do que obediência total à partitura como critério de identificação, nada
impediria de haver uma deslizamento de identidade de uma versão para a próxima. Assim,
ambiguidades devem ser banidas do sistema notacional de tal forma que a identidade seja garantida.
Goodman propõe 5 critérios para a existência de uma sistema notacional. São eles:
i) Disjunção sintática- Considerando que os caracteres de um sistema sejam classes de
inscrições, eles devem ser disjuntos, ou seja, não deve ter intersecção entre eles, de
tal forma que nenhuma inscrição pertença a mais de um caracter.
ii) Diferenciação sintática- Caracteres devem ser finitamente determinados. A citação
de Goodman a esse respeito diz que “para cada caracter K e K´ e cada marca M que
não pertença aos dois, determinação de que M não pertence a K ou que M não
pertence a K´ deve ser teoricamente possível.”
iii) Determinação unívoca- Cada caracter deve determinar univocamente uma extensão,
cujos membros são invariantes. Assim, ambiguidade de inscrições é excluída.
iv) Disjunção semântica- Classes de conformantes devem ser disjuntas. Não deve haver
interseção de classes.
v) Diferenciação semântica- Dado um conformante, ele deve ser suficientemente
diferenciado dos outros para que seja possível a determinação de que obedece ao
caracter em questão.
A posição de Goodman parece extrema, mas responde claramente às exigências teóricas de
sua filosofia nominalista e deflacionista. A falta de um objeto ideal ao qual performances poderiam
se conformar com maior ou menor sucesso, proposta por visões platonistas da obra musical, faz
com que Goodman aloque a identidade da obra para a identificação entre partituras e performances
enquanto projeções umas das outras e não como instanciações de UM objeto abstrato. Nas palavras
3
de Lydia Goehr, a relação vertical entre idéia e instanciações é substituída, na teoria de Goodman,
pelas relações horizontais entre partituras e performances e cada performance com a próxima. A
Obra seria a classe de todas as performances que obedecem às determinações da partitura, tida
como critério de identificação da própria classe.
Ao nosso ver, Goodman assim submete a pergunta morfológica à pergunta ontológica: a
necessidade de identificar a obra como sendo a classe das classes coextensivas a uma classe que
funciona como critério geral de identificação passa ao largo da pergunta morfológica, determinando
de fora do processo efetivo de realização das obras as condições de performance de uma obra.
III.
A partitura abaixo é de autoria de um amigo meu, chamado Valério Fiel da Costa. Trata-se
de uma obra chamada Madrigal. Ela é composta para 3 instrumentos capazes de realizar
deslizamentos de alturas, glissandi, como chamamos em linguagem musical. Pois bem, os 3
instrumentos devem realizar glissandi seguindo as trajetórias das linhas propostas: correlaciona-se
frequências com o percurso das linhas de tal forma que pontos localizados em espaços acima de
outros sejam tocados como mais agudos que estes, e vice-versa. Além dessa regra para a leitura das
linhas, indicações de intensidade são espalhadas em pontos específicos.
4
Cada músico posiciona-se num dos lados do papel, escolhendo previamente a linha que irá
seguir. É esta disposição espacial dos músicos que justifica a escolha do título. Madrigais eram
formas musicais vigentes durante o Renascimento italiano, nas quais era habitual a disposição dos
músicos ao redor de uma partitura. Cada parte era impressa em um dos 4 lados da folha, para essa
leitura em roda.
Sobre o tempo de leitura das linhas, nada é dito. Assim, a mesma linha pode ser lida com
tempos completamente diferentes. Alguma regularidade do tipo: cada 10 centímetros = 1 segundo é
recomendável, no entanto.
Vamos ver o que está determinado: a regra para a leitura das linhas, a disposição espacial
dos músicos, o fato de cada músico escolher previamente uma das linhas e não passar a uma
próxima no meio da performance, a obediência às intensidades dispostas ao longo das linhas, o fato
de serem 3 músicos, e de seus instrumentos possibilitarem a emissão de sons deslizantes. Fora estes
componentes, o perfil momento-a-momento da obra é livre e é altamente improvável que duas
performances coincidam.
A esta partitura poderiam ser feitas as mesmas objeções que Goodman faz a uma partitura de
John Cage em seu Languages of art. Naquela partitura, também composta por linhas e pontos, a
proximidade de pontos das linhas determinaria parâmetros como intensidade e altura. Segundo
Goodman, a falta de unidades mínimas de ângulo e distância para a determinação dos parâmetros
correspondentes violaria a diferenciação sintática.
(188) E a falta de diferenciação sintática
acarretaria o colapso da diferenciação semântica, uma vez que falta um quadro de referência para os
valores de pontos e linhas, podendo eles serem interpretados de diversas maneiras. No entanto,
apesar de obviamente os trechos ouvidos não se assemelharem em seu perfil ao longo do tempo,
algo de reconhecível permanece. Trata-se de uma obra composta somente por sons deslizantes, o
que é excêntrico o suficiente para ao ouvirmos tal estímulo suspeitarmos de que se trata do
Madrigal de Fiel da Costa.
Temos aqui um problema conceitual, ou, melhor ainda, a exacerbação do problema
enfrentado por todos que falam de obras e performances: a determinação das condições para que
uma performance seja uma performance da obra. Se na música tradicional havia um perfil temporal
reconhecível, ainda que nuances de interpretação pudessem se afastar do texto da partitura, aqui a
própria partitura proposta não apresenta um perfil definido momento a momento, mas uma
sonoridade geral que deve ser sustentada durante um certo período. É nossa tese a de que música
indeterminada como essa em nada abre mão de sua identidade, porém esta identificação deverá se
dar por outros meios.
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IV.
Em seu Imaginary Museum of Musical Works, Lydia Goehr examina várias teorias
ontológicas da obra musical. A teoria de Goodman possui um papel estratégico nesse livro, assim
como no presente artigo, por seu caráter extremo e polêmico. Ela ilustra tanto a dependência de uma
teoria ontológica de um ponto de vista estético- a perfect compliance funciona melhor se aplicada a
um certo repertório historicamente localizado- o repertório padrão da música de concerto advindo
do classicismo-romantismo, e obras passíveis de serem convertidas a esse padrão, anteriores e
posteriores; e a independência que uma teoria ontológica pode tomar da pratica efetiva, por
exacerbação da sua exigência de pureza teórica.
Neste ensaio, Goehr examina várias posições alternativas ao nominalismo de Goodman.
Uma posição que nos chama a atenção é a proposta por Alan Tormey de uma substituição do
paradigma notacional que Goodman propõe, pela obediência das performances a regras para a
realização de ações. Neste caso, uma performance poderia ser considerada uma versão correta de
uma obra na medida em que as regras propostas pela obra tenham sido obedecidas. Esta posição
possui a vantagem de incorporar em sua definição de obra outras propostas que não se adaptem à
exigência goodmaniana, como a música antiga e a música indeterminada, incluindo também todo o
repertório do século XIX, que funcionava como o exemplo paradimgático na teoria de Goodman.
Neste caso específico, não só as regras para a leitura de uma partitura e sua conversão em sons
seriam admitidas como constituindo a obra, mas também outras indicações de caráter que
influenciariam a performance e que, por não atender aos 5 critérios de Goodman, não eram
reconhecidos por este como constituindo a partitura.
Mais uma vez, trata-se de um ponto de vista teórico, uma vez que é difícil determinar se
regras como as de Madrigal tenham sido fielmente seguidas em performance, ou se os músicos
estão improvisando as suas linhas de tal forma a emular uma sonoridade geral característica da
música.
Lembrando as duas teses de Goodman- 1- uma performance conta como performance na
medida em que é fiel a uma partitura. E 2- A partitura é um sistema notacional. A segunda condição
parece ter sido derrubada com a substituição de um sistema notacional por quaisquer regras
determinadas ad hoc em uma obra específica. A primeira condição parece resistir, no sentido em que
manter uma relação com um conjunto de regras ao menos parece ser uma condição necessária para
a realização de uma obra. Porém algo também se perdeu da primeira condição.
Se mantivermos a noção de condição de identidade como reguladora da primeira tese na
forma: é condição para a identificação da obra que as regras tenham sido seguidas, caímos na
6
mesma dificuldade teórica de Goodman, sem um meio seguro de verificar se a identidade foi de fato
mantida. A exigência ontológica está em perigo.
A proposta de Goehr pretende oferecer uma saída para os problemas da ontologia musical.
No entanto, ela não o faz no interior de uma abordagem ontológica de tipo analítica, argumentando
em favor da consideração de outros critérios para a compreensão de uma obra musical. Ao mesmo
tempo, e aqui podemos adiantar uma crítica à sua abordagem, ela não resolve os problemas de
identificação de obras, em lugar disso concentrando sua reflexão no momento histórico do advento
do conceito de obra (work-concept) ao invés de pensar a identidade de obras singulares. O livro de
Goehr estrutura-se em duas partes, uma primeira oferecendo uma crítica a abordagens analíticas das
obras musicais em termos que tocamos em nossa própria exposição: a pergunta por condições
mínimas que devem ser satisfeitas para que objetos sejam considerados obras (que é, finalmente,
como é frequentemente interpretada a tentativa de Goodman), passaria ao largo da prática, exigindo
um enrijescimento da noção de obra e uma purificação que está além da necessidade prática
existente na atividade dos músicos. A impermeabilidade da abordagem analítica a contra-exemplos
funciona como um sintoma dessa exigência, na medida em que quaisquer contra-exemplos são
considerados ou bem espécimes imperfeitos segundo a teoria ou bem são desconsiderados enquanto
obras musicais.
Analistas que procuraram descrever obras musicais empregaram princípios e
pressupostos metodológicos que impõem limitações desnecessariamente severas às
suas teorias. O fato de que a análise é empregada não para tratar diferentes tipos de
assuntos, e sim para capturar apenas o puro caráter ontológico – dito ´lógico´- de
qualquer fenômeno, parece ser a fonte de todos os seus problemas. Este propósito
criou um conflito irresolvível entre a teoria e a prática. Enquanto por um lado o
método analítico deu aos analistas uma maneira de lidar com a lógica dos
fenômenos, o mesmo não é verdade em relação ao seus caráteres históricos,
empíricos, e , quando relevantes, estéticos.2
Aparentemente a abordagem analítica seria impermeável à refutação por contra-exemplos,
portanto, em que medida ela pode também ser criticável por seu apelo a exemplos? Segundo Goehr,
é sintomático que as abordagens analíticas partam sempre do mesmo exemplo ou mesmo tipos de
2
“Analysts who have sought to describe musical works have employed methodological
principles and assumptions that impose unnecessarily severe limitations on their theories. The fact
that analysis has been designed not to treat different sorts of subject-matter, but rather only to
capture the pure ontological character – the so-called 'logic'- of any given phenomenon, turns out to
be the source of all its trouble. For this design has created an irresolvable conflict between theory
and practice. While the analytic method has given theorists a way to account for the logic of
phenomena, this has not been true for their empirical, historical, and, where relevant, their aesthetic
character.” (GOEHR, 1992, pg. 86)
7
exemplos, na maior parte das vezes, as sinfonias de Beethoven. As condições de identificação de
uma obra musical são então derivadas deste exemplo tido como um tipo privilegiado da classe de
obras musicais, a ser abstraída destes tipos. O argumento de Goehr é que os analíticos tendem a
ontologizar e generalizar para a classe inteira propriedades encontradas em um ou uns poucos
exemplos historicamente localizados, e que a desconsideração das características específicas do
exemplo é fundada no tipo de investigação que lhes interessa (a constituição de uma classe de
abstração, no sentido de Carnap). Portanto a crítica de Goehr não é ao uso de exemplos, e sim ao
uso de exemplos extremamente restritos em sua localização temporal e histórica e na generalização
de suas propriedades a todas as obras musicais.
A partir da seção seguinte, Goehr se dedica então a oferecer um conceito positivo de obra
musical, a partir não de condições mínimas, mas do exame de processos históricos de implantação
de conceitos regulativos de nossas práticas sociais. Em um movimento de pensamento bastante
contundente, a busca por essências ou condições de indentidades estáveis cede lugar aos
dinamismos históricos de constituição de práticas e conceitos No intuito de bloquear a tentação de
generalização, Goehr passa a se questionar então sobre o que há especificamente no momento
histórico de Beethoven que o torna suscetível a estas generalizações. Goehr encontra precisamente
um conceito-obra plenamente formado, com condições práticas e sociais que o reforçam. Goehr
elabora então as características de um tal conceito-obra, diferente das codições estáveis
identificadas nos analíticos.
A nova estratégia é investigar até onde a concepção implícita na produção de
música antiga ou de música de vanguarda se aplica àquela implícita na produção de
obras. Claro, devemos estabelecer primeiramente o que está envolvido na produção
de obras, mas nós podemos e deveremos fazer isto. Porém, antes de fazer isto, eu
devo tornar explícito o quadro ontológico a ser pressuposto na investigação
histórica.3
A ideia é que, com o deslocamento da investigação de condições de identificação de objetosobras, para a delimitação e localização de um conceito-obra, os pressupostos ontológicos se
modificam. A pergunta passa então a não ser por objetos e sim por conceitos regulativos, e uma
certa concepção de linguagem preside a adoção de conceitos regulativos como explicações para a
constituição de determinados objetos ou artefatos culturais. As característias então elencadas por
3
“The new strategy is to investigate how far the conception implicit in the production of
early music, and then of avant-garde music, matches that implicit in work-production. Of course we
have to establish what the production of musical works involves first, but we can and shall do that.
But before doing any of this, I need to make explicit the ontological picture to be pressuposed in the
historical investigation.” (GOEHR, 1992, p. 89)
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Goehr são as seguintes:
1 - O conceito de obra musical é um conceito aberto
Conceitos abertos diferenciam-se de conceitos fechados por não terem um domínio de
aplicação determinado de uma vez por todas. Há sempre a possibilidade de novas aplicações que
poderão modificar a definição do conceito. Isto não significa que qualquer objeto é passível de
recair sob sua extensão. Significa apenas que sua extensão não é dada de antemão, como por
exemplo o conceito de “anemia” ou de “triângulo” que são fechados em seus domínios de
aplicação. Assim, o conceito de obra de arte, ou mais especificamente, o de obra musical não podem
ser exaustivamente elucidados, sendo sempre abertos a novas aplicações. Se aceitamos a teoria de
Goehr de que o conceito de obra surgiu no início do século XIX para denotar corpus musicais
produzidos de acordo com certas estratégias de divulgação e recepção, é bem verdade que a sua
extensão sofreu uma ampliação e, com ela, a própria definição de obra musical, passando a abarcar
a posteriori as obras anteriores a este momento histórico (a chamada “música antiga”) e as obras de
vanguarda contemporâneas. Goehr insiste também que a distinção entre conceito aberto e conceito
fechado é função do uso e que, para determinados fins, pode-se traçar delimitações ad hoc para a
aplicação de conceitos (cf. Wittgenstein, parágrafo 69 das Investigações)
2 - O conceito de obra é correlacionado com os ideais de uma prática
O conceito de obra musical se relaciona com a prática musical tal como ela se constituiu em
uma época. Esta proposição tem o aspecto de um truísmo e sua verdade nos parece tão evidente
quanto trivial. Porém, torna-se importante ressaltar este aspecto em contraste com as concepções
analíticas do conceito de obra. Ao se ajustar o grau de generalidade e não mais se falar na prática
musical e sim em um conceito que se constitui enquanto tal pela função que ele exerce no interior
de uma prática, a trivialidade da asserção acima não nos parece tão evidente. E, no entanto, sua
verdade depende de se considerar os conceitos sob essa luz específica. Goehr fala em uma
centralidade institucionalizada para determinado conceito, e defende a existência de exemplos
paradigmáticos que recaem sob o conceito (aqui, no caso, exemplos paradigmáticos de obras
musicais, tais quais as Sinfonias de Beethoven), e exemplos derivados de uso (poderíamos nos
perguntar se as extensões mencionadas no parágrafo acima, a música antiga e a música de
vanguarda, forneceriam exemplos de usos derivados do conceito. Ainda não podemos no entanto
afirmar isto, uma vez que o conceito em seu uso próprio ainda não foi elucidado o suficiente.)
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3 - É um conceito regulativo
O fato de ser um conceito regulativo elucida a sua função no interior da prática musical
enquanto expressão dos ideais da prática. Goehr faz uma distinção entre condições de identidade tal
como propostas por Goodman, por exemplos, e ideais, no sentido em que, no primeiro caso, um
objeto para ser considerado como x deve atender a determinadas condições de identidade. As
condições são, neste caso, o pré-requisito para que o objeto seja x. No caso de ideais, tais condições
não precisam ser satisfeitas: ideais atuam como normas para a ação e não condições de identificação
subsumidas a categorias de cunho ontológico (de que tipo é este objeto?) ou epistemológico (como
posso identificar este objeto?). Segundo este ponto de vista, a perfect compliance de Goodman
passa a ser reconsiderada como um ideal que regularia a nossa prática de performance de música
clássica, e não como condição de identificação de obras. “O que nós entendemos hoje como perfeita
conformação não foi sempre um ideal e talvez deixe de ser no futuro”. 4
Para Goehr a adoção de ideais propõe uma tensão diferente da adoção de critérios de
identidade. Enquanto estes estabelecem uma dicotomia entre teoria e prática, ideais propõem uma
tensão entre o que é desejável e a limitação humana, não propondo um reino tão claramente
separado da prática. Pode se argumentar se os critérios de identificação não poderiam ser
considerados como ideais, uma vez que, ainda segundo Goodman, não se encontram triângulos
perfeitos fora da teoria euclidiana e mesmo assim estes são chamados triângulos. Neste sentido, a
função do pensamento filosófico é oferecer um padrão purificado de comparação a partir do qual
medir a realidade. Mas ainda assim, há uma separação entre teoria filosófica e prática, na medida
em que a teoria postulada é recriada em níveis de pureza não encontráveis na realidade, e a partir de
exemplos reais, vide o modelo de obra musical que serviu a Goodman. Tais modelos não estão
presentes com este grau de pureza na própria prática, enquanto os conceitos regulativos de Goehr
têm justamente por função a unificação da prática a partir dos ideiais que eles personificam.
4 - O conceito de obra é projetivo
Aqui se coloca uma diferença básica entre a abordagem de Goehr e a abordagem normativa
de Tormey como comentada acima. Tormey propõe substituir a perfeita conformação à partitura
4
“What we understand today to be perfect compliance has not always been an ideal and
might not be in the future.” (GOEHR, 1992, p. 99)
10
enquanto caracter em um sistema notacional, por conformidade com regras. As regras constitutivas
de cada obra deveriam ser obedecidas para que a performance conte como performance da obra. A
posição de Goehr mantém a mesma normatividade, no entanto, em um nível mais geral: não há
obras e sim um conceito regulativo de obra, orientando uma ética de composição, performance e
recepção musical. Isto significa que além de regulativo, o conceito de obra é projetivo, sendo
instanciado em objetos-obras singulares, que são reconhecidos como obras na medida em que são
hipostasiados enquanto tais. Segundo Goehr, sua existência seria ficcional, e a maneira como
falamos de obras seria orientada pelo conceito-obra e não inversamente, saberíamos o que é uma
obra após o exame de obras. Goehr argumenta em favor de uma mútua determinação de teoria e
prática: a teoria não precederia a prática, ou vice-versa, sendo o conceito-obra resultado de
importantes transformações ocorridas na prática musical na virada do século XVIII para o século
XIX, passando a então orientar a ação subsequente ao seu surgimento, projetando-se na produção
musical, que torna-se então produção de obras.
5 - O conceito de obra é emergente
A afirmação central de Goehr é de que o conceito-obra emergiu em uma certa época da
história, a partir da qual passou a funcionar como conceito regulativo dentro da prática de música
clássica. Este processo de emergência é um processo complexo no qual estão envolvidas mudanças
de ordem prática, bem como mudanças nas crenças, costumes e objetivos de um meio social. A
emergência, Goehr enfatiza, não surge de uma semente original, ela é a síntese, apreendida a
posteriori, de diferentes momentos (aqui tanto no sentido temporal, quanto no sentido husserliano
de partes que se interconectam) de um processo histórico.
Estas características definem então o conceito-obra tal como Goehr o compreende: aberto,
regulativo, projetivo e emergente. Não nos cabe aqui apresentar os dados históricos nos quais Goehr
se baseia para a sua datação (1800) da emergência do conceito-obra. Nosso objetivo é nos utilizar
de seu conceito-obra como um contraponto às abordagens que ela chama analíticas, particularmente
a de Goodman, na tentativa de compreender a possibilidade de manutenção de uma identidade de
obra em contextos onde estariam ausentes os critérios de identificação de obras. Para Goehr, a
iniciativa de Cage e outros é um desafio lançado ao conceito-obra, ainda que ela admita que suas
obras sejam ainda produzidas e apresentadas dentro de uma ética condizente com o conceito-obra:
partituras (ainda que nada convencionais) são produzidas e dadas a intérpretes que então as
performatizam para um público concentrado. As diferentes peças são separadamente intituladas,
ainda que a sua identidade perceptível varie com o tempo a cada execução.
11
Nossa posição é um pouco diferente. Aceitamos o fato de que a produção musical
indeterminada, particularmente a de Cage é apresentada de forma condizente com o conceito-obra,
mas nós julgamos insuficiente esta caracterização. Ela parece entender que o conceito-obra seria
uma concessão de Cage a um elemento tradicional da música que ainda orientasse a sua ação como
compositor. No entanto, não é isso o que se passa. Cage, em muitas ocasiões, chega mesmo a
fortalecer o conceito-obra, pressupondo todo um quadro de referência relacionado a este conceito
para a própria existência de suas obras. Tomemos, por exemplo, 4’33’’, a peça silenciosa. Em um
contexto de concerto tradicional, há um corpus musical sendo executado, por exemplo, uma sonata
de Beethoven, que aglutina a atenção do auditório. No caso de 4’33’’ não há estímulo deliberado da
parte do músico e a atenção do auditório é garantida apenas pelos mecanismos de fruição vigentes
nas salas de concerto. Por essa razão vamos mais longe que Goehr em insistir que não apenas o
conceito-obra é tolerado no contexto da obra de Cage, mas ele é por vezes mesmo reforçado. Isto
aponta no entanto para diferentes funções que o conceito-obra passa a ter no século XX, sendo
reforçado ou enfraquecido, reformulado, reconfigurado de diferentes maneiras. A posição de Goehr
abre espaço para se pensar estas transformações, no entanto, permanece uma difícil ambiguidade.
Ao concentrar o conceito-obra historicamente, Goehr abre um espaço de indecidibilidade em
relação à adequação nas aplicações do conceito-obra. Se sua alçada, seu uso original se encontra em
uma ética musical presente no início do século XIX, torna-se difícil definir até onde o conceito-obra
poderia ser usado em suas formas derivativas e até onde ele mais plausivelmente deixaria de ser
usado. Goehr argumenta em favor de não pensar, por exemplo, as performances de jazz como
obras, na medida em que ideais de execução perfeita característicos das obras do século XIX não se
aplicam à prática musical do jazz. Isto parece abrir novamente a porta a um essencialismo da obra
ou a um nominalismo pautado por critérios de identificação, na medida em que a ausência de um ou
mais componentes históricos do conceito-obra poderia acarretar a sua não-aplicabilidade. Se a
reflexão histórica nos termos de Goehr abre o conceito-obra a inúmeras instâncias que transformem
as suas características, ela também abre o espaço para que aquilo que se produza seja não mais
obras, e sim alguma coisa diferente. O limite parece então ser próprio de cada poética, na medida
em que cada uma aceite ou rejeite componentes determinadas da prática musical pautada nos ideais
da obra musical.
V.
Fiel da Costa, em sua tese de doutorado Da indeterminação à invariância: considerações
sobre morfologia musical a partir de peças de caráter aberto, apresenta uma maneira pessoal de
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abordar o problema das identidades vagas das obras de caráter aberto. Porém, mais uma vez, a
necessidade de abordagem de um tema historicamente circunscrito, no caso aqui, o advento da
música indeterminada com Cage, exige uma troca de quadro ontológico para a obra musical como
um todo. Em seu trabalho, Fiel da Costa começa por procurar compreender os contextos de criação
das obras indeterminadas de Cage, partindo dos pressupostos vigentes nos estudos destas obras: a
cisão claramente observada entre as obras da tradição, caracterizadas por um perfil morfológico
claramente definido, e as obras de Cage, que questionariam os papéis de compositor, intérprete e
público, incluindo a obra em um processo de conformação morfológica que dispensaria o papel
proscritivo da partitura e a necessidade de um resultado claramente definido. Assim, ao menos,
normalmente se entende o fenômeno.
Ao julgar que as obras de Cage seriam apenas oportunidades de liberar as forças do
caos, como o próprio compositor parece afirmar, não parece útil buscar nestas um
ímpeto criativo, um movimento em direção à ordem, uma vontade de que
determinados parâmetros se comportem de forma mais ou menos invariável. 5
Fiel da Costa detectou na história de Cage uma insatisfação para com as performances de
suas obras indeterminadas, que apontava para um desejo por um resultado mais claramente
definido. E que a dimensão ética do pensamento do compositor americano – a sua auto-colocação
como ouvinte em igual medida ao público e ao intérprete, ambos integrados em um processo
musical total - escondia uma dimensão estética claramente definida - a obtenção de resultados
sonoros que exibissem uma feição aleatória nos termos de Fiel da Costa. Sob este viés
reencontramos a observação penetrante de Cardew, para quem uma obra como Winter Music não
exibiria ausência de identidade e sim um outro tipo de identidade, não caracterizado por um perfil
dramático mantido ao longo do tempo, e sim por um certo conjunto de sons que tendem a acontecer
de forma recorrente. Esta feição aleatória proporia portanto um encaminhamento para a questão da
indeterminação como não apenas guiada pelos conhecidos objetivos políticos e filosóficos de Cage,
mas sim por um certo resultado estético característico de sua atividade de compositor. Assim, a
partir do segundo capítulo de sua tese, Fiel da Costa volta-se para o estudo dos meios pelos quais
uma obra mantém-se estável de performance a performance: as estratégias de invariância.
Perceba-se a troca de fundamentos ocorrida no quadro ontológico: a obra passa aqui a não
ser considerada como um objeto estável caracterizado por sua possibilidade de identificação
unívoca, e sim como um elemento instável a priori, que passa a se comportar de forma estável por
meio das diversas estratégias de invariâncias postas em jogo para a sua manutenção. A princípio
esta abordagem possui semelhanças com a abordagem de Lydia Goehr, na medida em que para a
5
COSTA, 2009, p. 44-45
13
manutenção da obra são chamados diversos elementos contingentes que fazem parte dos contextos
culturais nos quais as obras são criadas e sobrevivem. No entanto, uma diferença notável se faz
presente ao mesmo tempo: Fiel da Costa nunca suspende a noção de obra ou abre a possibilidade
para a sua suspensão. Se a posição de Goehr abria a possibilidade para que práticas musicais se
dissociassem do paradigma expresso pelo conceito-obra, a posição de Fiel da Costa, ao contrário,
aponta para um alargamento do conceito de obra tal como compreendido pelo senso comum a tal
ponto que, de direito, não se possa ver nenhum limite específico para a sua aplicação adequada.
Abordaremos esta diferença em um momento posterior.
“(...) há muito mais forças de desagregação morfológica operando sobre a obra
musical do que forças de conservação: nada impede um indivíduo de tocar uma
obra de modo a frustrar as expectativas do autor ou de seu projeto, seja por
incapacidade técnica, seja por um ímpeto de desafio à ordem estabelecida, seja por
simples negligência ou distração. Todo um sistema ético teve que ser estabelecido
para diminuir tal perigo legando a um indivíduo ou grupo precedência sobre os
outros e constituindo-se como referência capaz de impor a ordem mantendo a obra
musical nos eixos.”6
Os elementos invariantes tais como propostos por Fiel da Costa são estruturas, sons,
comportamentos sonoros, regras que permanecem estáveis a cada performance da obra. Este
conceito de invariância abre espaço para se pensar efetivamente a identificação de obras a partir de
algo que permaneça constante, mas que não seja determinado de uma vez por todas para todas as
obras. Assim, cada obra proporia as suas próprias estratégias de invariância, elementos pelos quais
ela permanece identificável de performance a performance. Neste sentido, retornamos à crítica de
Wollheim a Goodman, mal compreendida por este, que estabelece que a teoria da notação tal como
Goodman a concebe entraria na “teoria implícita” dos artistas, justamente, as estratégias de
invariância propostas por seus produtos, sendo eles obras, performances, etc... As obras
caracterizar-se-iam, portanto, por exibir muito mais regiões de tolerância morfológica do que a
ontologia gostaria de admitir, e a manutenção dentro destes limites de tolerância poderia ou não ter
sucesso.
A utilização dos conceitos de invariância e regiões de tolerância permitiriam unificar o
campo do estudo das obras musicais sob o mote do estudo morfológico. Mesmo no contexto de
obras tradicionais o estudo morfológico se aplicaria, como no parágrafo abaixo:
“(…) uma partitura de Mozart pode ser executada num ambiente reservado, sem
preocupação com um público ou com a afinação dos instrumentos, e ainda assim
6
COSTA, 2009, p. 48
14
remeter à música original. Pode-se tocar apenas um fragmento, assobia-lo
despreocupadamente, re-arranjá-lo, e ainda conseguiremos identificar sua
referência. Estamos diante dos limites do projeto morfológico de uma obra cuja
coesão é função de uma prescrição partitural que atua como fator de limitação
morfológica para o gesto instrumental e da memória da escuta individual que, por
sua vez, é alimentada pelos aspectos de invariância perceptíveis a cada execução da
obra.”7
Impõe-se a pergunta se a versão assobiada ou se a execução de um fragmento conta como
versão da obra. Parece-nos que o objetivo do parágrafo citado não seria insinuar a possibilidade de
estas versões serem contadas como versões corretas, e sim, reconhecer a fragilidade morfológica da
obra musical, e sua adaptabilidade a interferências da mais variada espécie. Daí a função da
partitura que serve, do ponto de vista do projeto composicional, para garantir aqueles elementos
tidos como essenciais à manutenção da identidade da obra em questão. Estes elementos não
dependem de seu grau de familiaridade ou de definição melódico-harmônica para contarem como
essenciais. Fiel da Costa propõe que mesmo um cluster de piano, determinado apenas em seus
limites inferior e superior conta como objeto estrito de uma composição musical: o objeto-cluster.
Há aí a possibilidade de um ajuste de foco de obra para obra que se adapte às condições de
identificação propostas pela própria obra. Este ajuste busca reconhecer os âmbitos de imprecisão
próprios a cada objeto musical. O exemplo do cluster é expressivo na medida em que ainda que se
deixe de tocar uma ou duas notas dentro de seus limites, ainda reconhece-se o objeto como um
cluster: um aglomerado de sons contíguos, com resultado próximo ao de um ruído. Assim, o
desrespeito a uma de suas determinações não é suficiente para acarretar a perda de identidade do
objeto.
Isto é generalizado no contexto do estudo da morfologia para a obra inteira: que elementos
podem ser movidos sem que a identidade da obra seja perdida? Identidade aí não estando vinculado
a nenhuma noção de cunho lógico-formal e sim à mera identificação à escuta. No vocabulário do
projeto de Fiel da Costa, o nexo morfológico da obra.
VI.
A princípio, como já dissemos, a proposta do conceito-obra de Goehr parece reforçar a
posição de Fiel da Costa com relação a uma morfologia da obra musical. A obra, constituindo para
este um corpo instável, apóia-se sobre um conjunto de estratégias de invariância para a sua
7
COSTA, 2009, p. 64
15
manutenção morfológica. Parece-nos que estas estratégias de invariância poderiam ser
compreendidas um pouco à maneira da influência do conceito regulativo de obra, tal como Goehr o
compreende. Por outro lado, o conceito-obra para Goehr caracterizar-se-ia por uma influência
“imperialista”, por assim dizer, sobre todos os outros conceitos possíveis de serem adotados para a
prática musical.
A posição de Goehr abre espaço para a transformação do conceito de obra, na medida em
que, enquanto conceito aberto, ele seria então passível de redefinição por sua aplicação a novos
casos. No entanto, a crítica aos analíticos por “ontologizarem” um conceito que teria tido uma certa
função no tempo aponta para a historicidade do próprio conceito e um dos objetivos admitidos por
Goehr de seu estudo é o de abrir as portas de novos conceitos para a música, que não estaria então
submetida necessariamente ao conceito-obra. Ao dar esse passo, insinua-se a pergunta sobre os
limites do conceito de obra. Para Fiel da Costa, não parece haver tampouco limite preciso, e obra
seria toda aquela ação musical passível de ter um nexo morfológico que a caracterize em suas várias
repetições. Aqui parece ampliar-se o conceito de obra, ali parece estreitar-se. De onde não
conseguimos retirar um emprego definido para o conceito. “(...) se cada modo de agir deve estar em
conformidade com uma regra, pode também contradizê-la. Disto resultaria aqui não haver nem
conformidade nem contradições”. 8
VII.
Retornemos ao nosso exemplo de Madrigal. Como já vimos, a partitura é composta
de linhas a serem correlacionadas com frequências por três músicos posicionados ao seu redor.
Verificamos que a obra é composta integralmente por sons deslizantes, ou glissandi. Verificamos
portanto que ela se caracteriza por um tipo de comportamento sonoro que lhe é típico. Há uma
instância de identificação de Madrigal que se dá por esta via: três músicos realizando sons
deslizantes por um certo intervalo de tempo. Uma questão que permanecia, no entanto, era a
seguinte: É possível errar tocando essa música?
Tenho experiência de ter tocado a música em concerto 3 vezes. Algumas foram melhores do
que outras, às vezes por razões externas aos critérios expressos na partitura. Não sou capaz de
dizer se alguém improvisa os glissandi imitando uma versão fiel, ou se de fato está seguindo a
regra. Mas me parece que, se alguém imitar uma realização correta desta peça, estará realizando
uma versão
8
senão
correta de acordo com condições estritas de identidade, aceitável
WITTGENSTEIN, L. 1999, parágrafo 201
16
perceptivelmente. No entanto, erros evidentes são possíveis. Se alguém em meio a essa performance
toca uma melodia composta por notas discretas, será erro, porque de forma nenhuma uma melodia
de notas discretas poderá resultar da aplicação correta das regras. Daí parece se depreender que,
ainda que aparentemente Madrigal opere de uma maneira mais “aberta” em relação às obras que
Goodman tinha em mente, ela ainda estabelece um domínio, uma classe de conformação. Mas não
como um critério de identificação. Madrigal assemelha-se a um convite: as regras propostas tal
como propostas prevêem que a música será tocada por intérpretes humanos. Ela prevê os desvios
que poderão acontecer. Mas aposta na força das regras e de uma prática musical constituída de
respeito à obra para a exclusão de algumas possibilidades, garantindo o mínimo para a realização do
perfil que o compositor tinha em mente.
É aqui que a reflexão do filósofo da música e do compositor de divorciam. Divórcio este que
é refletido na estranha relação que passa a se estabelecer entre a pergunta ontológica e a pergunta
morfológica. O filósofo preocupado em identificar o objeto Madrigal passa ao largo do próprio
objeto ao exigir precisão maior. Ele está preocupado com a pergunta ontológica: onde está
Madrigal? O que é Madrigal? Enquanto nosso compositor está preocupado com a obtenção de um
efeito morfológico: Madrigal é essa emergência de sons deslizantes.
Lydia Goehr questiona a necessidade de um critério de identidade, substituindo-a por um
ideal a ser alcançado. Não se trata de um objeto ideal tal como na posição platonista. A posição de
Goehr é normativa como a de Alan Tormey, mas a força da conformidade à partitura é
reconsiderada.
Retomando a nossa formulação das teses de Goodman: 1- A função da partitura é identificar
uma obra; e 2- A obra é um caracter em um sistema notacional. Se Tormey havia revisado a tese no
2 de Goodman, a reconsideração da obediência a uma partitura revisa a tese no 1. Mas para tanto,
perde-se a idéia de critério de identificação.
Parece que o que aqui se insinua no entanto é um divórcio entre ontologia e morfologa, na
medida em que aquilo que parece perceptualmente relevante para a obra, e em última instância para
o compositor, parece insuficiente para uma delimitação rigorosa da identidade da obra musical.
Poderíamos pensar que a princípio consigamos identificar Madrigal, morfologicamente
(“emergência de efeitos deslizantes”), porém ao não conseguirmos identificar claramente os erros
(fora os erros evidentes que se encontram fora da classe de sonoridades utilizada pela peça), do
ponto de vista ontológico não conseguimos assignar claramente uma delimitação para a sua
identidade. Parece que efetivamente há uma mudança no estatuto de obra e na função da partitura.
Até um determinado ponto, podemos verificar pelo comportamento dos músicos se o que eles fazem
é aceitável dentro do universo de possibilidades aceito pela obra, porém não podemos saber de fato
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o que está dentro da caixa do outro, ou seja, que linhas e que correlações entre sons e linhas (se
alguma!) estão sendo feitas. Poderíamos sempre parar a performance e pedir que o músico toque
sozinho a sua linha enquanto nos mostra o caminho que está seguindo. Mas para cada caso de
performance, a linha poderá ser sempre modificada, recolocando-se de novo a pergunta sobre se ele
está seguindo ou não a linha. Sua verificabilidade, momento-a-momento, permanece problemática.
Conclusões parciais
Mencionamos em nossa introdução uma circularidade que pode se instituir entre as duas
noções. O ontólogo precisa se reportar a uma prática musical efetiva para conceituar o que seria,
afinal, a obra musical. Mas em sua tentativa de dar uma definição única de tudo o que este conceito
denota, ele toma como um absoluto um determinado momento histórico de uma prática: a obra
musical se torna, eternamente, o que ela é em um momento histórico. Neste sentido, a ontologia
começa a sua investigação muito “de cima”, com um ponto de vista muito elevado e dissociado das
condições efetivas de conformação das obras enquanto obras. Isto parece derrotar a circularidade
que colocamos ao início: a pergunta morfológica como preâmbulo possível para a pergunta
ontológica. Mas isto é apenas aparente. Seu gesto é, frequentemente, o de congelamento de um
momento dentro da história morfológica. Há portanto, um apelo à morfologia. Por outro lado, e no
sentido inverso, uma discussão morfológica da obra musical pressupõe um certo conceito de obra.
Neste sentido também, a morfologia pressupõe aquilo que ela teria que explicar. Como ela pode
explicar o funcionamento das obras musicais sem um conceito já definido de obra musical? Uma
hipótese seria pensar que a ontologia pergunta “o que é uma obra ?” e a morfologia pergunta “como
é a obra?”. Assim, aqui, uma ontologia parece ser prévia em relação à morfologia.
No presente trabalho, em que pese o sentido do título Da ontologia à morfologia, nós
propomos o sentido inverso: partir da morfologia à ontologia. Não oferecemos nenhuma definição
completa de obra musical ou ontologia completa dos artefatos musicais. Mas o sentido da
investigação defendido pela discussão acima é este: deve-se partir de uma observação das condições
efetivas de realização das performances musicais. E isto significa: levar em consideração o seu
caráter instável, mutável e frequentemente provisório. As obras não são um objeto acabado que o
compositor encontra pronto e que o intérprete apenas comunica, como se ela fosse um “significado”
veiculado dentro da performance musical. Mas ainda não respondi o que quero dizer com obras.
Esta circularidade não é apenas constitutiva da relação entre as duas investigações:
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ontológica e morfológica. Mas sim dos próprios conceitos que habitam ambas as investigações. O
conceito de obra, por esta via, não seria ele próprio mais estável do que as obras que ele denota. Se
se quiser levar em consideração a morfologia e a prática efetiva para uma definição de obra, teria-se
que adotar uma concepção de linguagem que deixar-se-ia também modificar pela prática. O
conceito de obra, por esta via, denotaria uma certa classe de coisas. Mas a própria classe de coisas,
em suas transformações, modificariam por sua vez o conceito de obra. Circularidade novamente.
A questão do uso do conceito-obra permaneceu aberta. Lydia Goehr e Valério Fiel da Costa
propunham dois caminhos divergentes: enquanto a pesquisa de Goehr abria o espaço para uma
prática musical não baseada no conceito-obra, abrindo portanto espaço para o uso de outros
conceitos regulativos, a obra de Fiel da Costa propunha implicitamente uma extensão do conceitoobra, de tal forma que ele pudesse abarcar vários dos casos normalmente tidos como problemáticos.
Não acreditamos poder dar uma resposta direta a esta questão. Mas podemos, e tem sido o nosso
intuito, avançar maneiras de trabalhar as questões. Nosso objetivo foi metodológico. Acreditamos
que possamos adquirir uma compreensão mais aguda deste e de outros problemas atentando para as
duas dimensões: as regras explícitas nos textos das partituras e as normas implicitas no
comportamento socializado. Assim, se o conceito-obra de Goehr parece funcionar como um
elemento da norma em uma certa época da história, o projeto morfologico de Fiel da Costa parece
entender que há um nexo morfológico advindo de elementos explícitos na obra e implícitos na
prática de execução. Poderíamos assim propor tipologias de conformações morfológicas a partir
destes elementos, nas quais o quadro ontológico subjacente não é tanto formado por objetos
plenamente acabados e sim de processos de conformação, de usos de expressões sem um limite
previamente definido, de transformação e ampliação dos conceitos.
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Referências
COSTA, V. F. Da indeterminação à invariância: considerações sobre morfologia musical a partir
de peças de caráter aberto. Tese de doutoramento. IA Unicamp, 2009
GOEHR. L. The imaginary museum of musical works: an essay in the philosophy of music. Oxford
University Press. New York, 2007 (Revised edition)
GOODMAN, N. Languages of art: an essay on the theory of symbols. Hackett publishing, 1976
(2nd edition).
KRIPKE, S. Wittgenstein on rules and private language. Harvard University Press. Cambridge,
1982.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Nova Cultural. São Paulo, 1999.
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