CRÍTICA DA RAZÃO PURA Immanuel Kant Tradução de MANUELA PINTO DOS SANTOS e ALEXANDRE FRADIQUE MORUJÃO Introdução e notas de ALEXANDRE FRADIQUE MORUJÃO 5ª E D I Ç Ã O SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN CAPÍTULO III A 832 B 860 A ARQUITETÔNICA DA RAZÃO PURA Por arquitetônica entendo a arte dos sistemas. Como a unidade sistemática é o que converte o conhecimento vulgar em ciência, isto é, transforma um simples agregado desses conhecimentos em sistema, a arquitetônica é, pois, a doutrina do que há de científico no nosso conhecimento em geral e pertence, assim, necessariamente, à metodologia. Sob o domínio da razão não devem os nossos conhecimentos em geral formar uma rapsódia, mas um sistema, e somente deste modo podem apoiar e fomentar os fins essenciais da razão. Ora, por sistema, entendo a unidade de conhecimentos diversos sob uma idéia. Esta é o conceito racional da forma de um todo, na medida em que nele se determinam a priori, tanto o âmbito do diverso, como o lugar respectivo das partes. O conceito científico da razão contém assim o fim e a forma do todo que é correspondente a um tal fim. A unidade do fim a que se reportam todas as partes, ao mesmo tempo que se reportam umas às outras na idéia desse fim, faz com que cada parte não possa I faltar no conhecimento das restantes e que não possa ter lugar nenhuma adição acidental, ou nenhuma grandeza indeterminada da perfeição, que não tenha os seus limites determinados a priori. O todo é, portanto, um sistema organizado (articulado) e não um conjunto desordenado (coacervatio); pode crescer internamente (per intussusceptionem), mas não externamente (per oppositionem), tal como o corpo de um animal, cujo crescimento não acrescenta nenhum membro, mas, sem alterar a proporção, torna cada um deles mais forte e mais apropriado aos seus fins. Para se realizar, a idéia tem necessidade de um esquema, isto é, de uma pluralidade e de uma ordenação das partes que sejam essenciais e determinadas a priori segundo o princípio definido A 833 B 861 A 834 B 862 pelo seu fim. O esquema, que não for esboçado segundo uma idéia, isto é, a partir de um fim capital da razão, mas empiricamente segundo fins que se apresentam acidentalmente (cujo número não se pode saber de antemão), dá uma unidade técnica. Mas aquele que surge apenas em conseqüência de uma idéia (onde a razão fornece os fins a priori e não os aguarda empiricamente) funda uma unidade arquitetônica. O que designamos por ciência não pode surgir tecnicamente, devido à analogia dos elementos diversos ou ao emprego acidental do conhecimento in concreto a toda a espécie de fins exteriores e arbitrários, mas sim arquitetonicamente, devido à afinidade das partes e à sua derivação de um único fim supremo e interno, que é o que primeiro torna possível o todo; e o seu esquema deve conter, em conformidade com a idéia, isto é, a priori, o esboço (monogramma) do todo e a divisão deste nos I seus membros e distingui-lo de todos os outros com segurança e segundo princípios. Ninguém tenta estabelecer uma ciência sem ter uma idéia por fundamento. Simplesmente, na elaboração dessa ciência, o esquema e mesmo a definição, que inicialmente se dá dessa ciência, raramente correspondem à sua idéia, pois esta reside na razão, como um gérmen, no qual todas as partes estão ainda muito escondidas, muito envolvidas e dificilmente reconhecíveis à observação microscópica. É por isso que todas as ciências, sendo concebidas do ponto de vista de um certo interesse geral, precisam de ser explicadas e definidas, não segundo a descrição que lhes dá o seu autor, mas segundo a idéia que se encontra fundada na própria razão, a partir da unidade natural das partes que reuniu. Verifica-se então, com efeito, que o autor e muitas vezes ainda os seus sucessores mais tardios se enganam acerca de uma idéia que não conseguiram tornar clara para si mesmos e, por isso, não podem determinar o conteúdo próprio, a articulação (a unidade sistemática) e os limites da ciência. É lamentável que só depois de ter passado muito tempo, orientados por uma idéia profundamente escondida em nós, a reunir rapsodicamente, como materiais, muitos conhecimentos que se reportam a essa idéia e mesmo depois de os ter por muito tempo disposto I de uma maneira técnica, nos seja enfim possível, pela primeira vez, ver a idéia a uma luz mais clara e esboçar arquitetonicamente um todo segundo os fins da razão. Os sistemas parecem ter sido criados, como os vermes, por uma generatio aequivoca, a partir da simples confluência de conceitos reunidos, ao princípio truncados e, com o tempo, completos; contudo possuíam todos o seu esquema, como um gérmen primitivo, na razão que simplesmente se desenvolve; por isso, não só cada um deles está em si articulado segundo uma idéia, mas além disso encontram-se todos harmoniosamente unidos entre si, como membros de um mesmo todo, num sistema de conhecimento humano e permitem uma arquitetônica de todo o saber humano, que agora, estando já reunido tanto material ou podendo ser extraído das ruínas de velhos edifícios desmoronados, não só seria possível, mas ainda nem seria difícil. Limitamo-nos aqui a completar a nossa. obra, ou seja, a esboçar simplesmente a arquitetônica de todo o conhecimento proveniente da razão pura, e começaremos, a partir do ponto em que se divide a raiz comum da nossa faculdade de conhecer, para formar dois ramos, um dos quais é a razão. Entendo neste caso por razão a faculdade superior do conhecimento e oponho, por conseqüência, o racional ao empírico. Se abstrair de todo o conteúdo do conhecimento, objetivamente considerado, todo o conhecimento é então, subjetivamente, I ou histórico ou racional. O conhecimento histórico é cognitio ex datis e o racional, cognitio ex principiis. Qualquer conhecimento dado originariamente, seja qual for a sua origem, é histórico naquele que o possui, quando esse não sabe nada mais do que aquilo que lhe é dado de fora, seja por experiência imediata, ou por uma narração, ou mesmo por instrução (de conhecimentos gerais). Por isso, aquele que aprendeu especialmente um sistema de filosofia, por exemplo o de Wolff, mesmo que tivesse na cabeça todos os princípios, explicações e demonstrações, assim como a divisão de toda a doutrina e pudesse, de certa maneira, contar todas as partes desse sistema pelos dedos, não tem senão um conhecimento histórico completo da filosofia wolffiana. Sabe e ajuíza apenas segundo o que lhe foi dado. Contestais-lhe uma definição e ele não sabe onde buscar outra. A 835 B 863 A 836 B 864 A 837 B 865 A 838 B 866 Formou-se segundo uma razão alheia, mas a faculdade de imitar não é a faculdade de invenção, isto é, o conhecimento não resultou nele da razão e embora seja, sem dúvida, objetivamente, um conhecimento racional, é, contudo, subjetivamente, apenas histórico. Compreendeu bem e reteve bem, isto é, aprendeu bem e é assim a máscara de um homem vivo. Os conhecimentos da razão, que o são objetivamente (isto é, que originariamente podem apenas resultar da própria razão do homem), só podem também usar este nome, subjetivamente, quando forem hauridos nas fontes I gerais da razão, donde pode também resultar a crítica e mesmo a rejeição do que se aprendeu, isto é, quando forem extraídos de princípios. Ora, todo o conhecimento racional é um conhecimento por conceitos ou por construção de conceitos; o primeiro chama-se filosófico e o segundo, matemático. Da diferença intrínseca entre ambos já tratei no primeiro capítulo. Um conhecimento pode assim ser objetivamente filosófico e, contudo, subjetivamente histórico, como é o que acontece com a maior parte dos discípulos e com todos aqueles que não vêem nunca mais longe do que a escola e ficam toda a vida discípulos. Mas é estranho que o conhecimento matemático, seja qual for a maneira como tenha sido aprendido, possa valer também, subjetivamente, como conhecimento racional, e nele não se possa fazer a mesma distinção como no conhecimento filosófico. A causa reside em que as fontes de conhecimento, que só o mestre pode alcançar, apenas se encontram nos princípios essenciais e verdadeiros da razão, e, portanto, não podem ser extraídos de outra fonte pelos discípulos, nem podem ser de qualquer modo contestados e isto porque o uso da razão não se faz aqui a não ser in concreto, embora a priori, a saber, numa intuição pura e por isso mesmo infalível, excluindo toda a ilusão e todo o erro. Entre todas as ciências racionais (a priori) só é possível, por conseguinte, aprender a matemática, mas nunca a filosofia (a não ser historicamente): quanto ao que respeita à razão, apenas se pode, no máximo, aprender a filosofar. I O sistema de todo o conhecimento filosófico é então a filosofia. Deve-se tomá-la objetivamente, se entendermos por isso o arquétipo de apreciação de todas as tentativas de filosofar, apreciação essa que deve servir para julgar toda a filosofia subjetiva, cujo edifício muitas vezes é tão diverso e tão mutável. Desta maneira, a filosofia é uma simples idéia de uma ciência possível, que em parte alguma é dada in concreto, mas de que procuramos aproximar-nos por diferentes caminhos, até que se tenha descoberto o único atalho que aí conduz, obstruído pela sensibilidade, e se consiga, tanto quanto ao homem é permitido, tornar a cópia, até agora falhada, semelhante ao modelo. Até então não se pode aprender nenhuma filosofia; pois onde está ela? Quem a possui? Por que caracteres se pode conhecer? Pode-se apenas aprender a filosofar, isto é, a exercer o talento da razão na aplicação dos seus princípios gerais em certas tentativas que se apresentam, mas sempre com a reserva do direito que a razão tem de procurar esses próprios princípios nas suas fontes e confirmá-los ou rejeitálos. Mas até aqui o conceito de filosofia é apenas um conceito escolástico, ou seja, o conceito de um sistema de conhecimento, que apenas é procurado como ciência, sem ter por fim outra coisa que não seja a unidade sistemática desse saber, por conseqüência, a perfeição lógica do conhecimento. Há, porém, ainda um conceito cósmico (conceptus cosmicus) que sempre serviu de fundamento a esta designação, especialmente quando, por assim dizer, era personificado I e representado no ideal do filósofo, como um arquétipo. Deste ponto de vista a filosofia é a ciência da relação de todo o conhecimento aos fins essenciais da razão humana (teleologia rationis humane) e o filósofo não é um artista da razão, mas o legislador da razão humana. Neste sentido, seria demasiado orgulhoso chamar-se a si próprio um filósofo e pretender ter igualado o arquétipo, que não existe a não ser em idéia. O matemático, o físico, o lógico, por mais que possam ser brilhantes os progressos que os primeiros em geral façam no conhecimento racional e os segundos especialmente no conhecimento filosófico, são contudo artistas da razão. Há ainda um mestre no ideal que os reúne a todos, os utiliza como instrumentos, para promover os fins essenciais da razão humana. A 839 B 867 A 840 B 868 A 841 B 869 Somente este deveríamos chamar o filósofo; mas como ele próprio não se encontra em parte alguma, enquanto a idéia da sua legislação se acha por toda a parte em toda a razão humana, deter-nos-emos simplesmente na última e determinaremos, mais pormenorizadamente, o que prescreve a filosofia, segundo este conceito cósmico * , do ponto de vista dos fins, I para a unidade sistemática. Os fins essenciais não são ainda, por isso, os fins supremos; só pode haver um único fim supremo (numa unidade sistemática perfeita da razão). Portanto, os fins essenciais são ou o fim último, ou os fins subalternos, que pertencem necessariamente ao fim último como meios. O primeiro não é outra coisa que o destino total do homem e a filosofia desse destino chama-se moral. Por causa dessa prioridade que a filosofia moral tem sobre as outras ocupações da razão, entendia-se sempre ao mesmo tempo e mesmo entre os antigos, pelo nome de filósofo, o moralista; e mesmo a aparência exterior de autodomínio pela razão, faz com que ainda hoje, por uma certa analogia, se chame alguém filósofo, apesar do seu limitado saber. A legislação da razão humana (filosofia) tem dois objetos, a natureza e a liberdade e abrange assim, tanto a lei natural como também a lei moral, ao princípio em dois sistemas particulares, finalmente num único sistema filosófico. A filosofia da natureza dirige-se a tudo o que é; a dos costumes somente ao que deve ser. Toda a filosofia é, ou. conhecimento pela razão pura ou conhecimento racional extraído de princípios empíricos. O primeiro chama-se filosofia pura, o segundo, filosofia empírica. I A filosofia da razão pura é ou propedêutica (exercício preliminar), que investiga a faculdade da razão com respeito a todo o conhecimento puro a priori e chama-se crítica, ou então é, em segundo lugar, o sistema da razão pura (ciência), todo o conhecimento filosófico (tanto verdadeiro como aparente) derivado _________________ * Chama-se aqui conceito cósmico aquele que diz respeito ao que interessa necessariamente a todos. Portanto, determino o fim de uma ciência segundo conceitos escolásticos, quando esta é considerada como uma das aptidões para certos fins arbitrários. da razão pura, em encadeamento sistemático c chama-se metafísica; este nome pode, contudo, ser dado a toda a filosofia pura, compreendendo a crítica, para abranger tanto a investigação de tudo o que alguma vez pode ser conhecido a priori, como também a exposição do que constitui um sistema de conhecimentos filosóficos puros dessa espécie, mas que se distingue de todo o uso empírico como também do uso matemático da razão. A metafísica divide-se em metafísica do uso especulativo e metafísica do uso prático da razão pura e é, portanto, ou metafísica da natureza ou metafísica dos costumes. A primeira contém todos os princípios da razão, derivados de simples conceitos (portanto com exclusão da matemática), relativos ao conhecimento teórico de todas as coisas; a segunda, os princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer e o não fazer. Ora, a moralidade é a única conformidade das ações à lei, que pode ser derivada inteiramente a priori de princípios. Por isso, a metafísica dos costumes é, propriamente, a moral pura, onde não se toma por fundamento nenhuma antropologia (nenhuma condição I empírica). A metafísica da razão especulativa é, então, o que no sentido mais estrito se costuma chamar metafísica. Na medida, porém, em que a doutrina pura dos costumes também pertence ao ramo particular do conhecimento humano e filosófico derivado da razão pura, conservar-lhe-emos essa designação, embora a coloquemos de parte por não ser pertinente, por agora, ao nosso fim. É da maior importância isolar os conhecimentos que, pela sua espécie e origem, são distintos de outros conhecimentos e impedilos cuidadosamente de se misturar e confundir com outros, com os quais se encontram ordinariamente ligados no uso. O que faz o químico na separação das matérias, o matemático na sua doutrina pura das grandezas, diz respeito mais ainda ao filósofo, a fim de poder determinar a parte que um modo particular do conhecimento tem no uso corrente do entendimento, seu valor próprio e influência. Por isso, a razão humana, desde que começou-a pensar, ou melhor, a refletir, não pode prescindir de uma metafísica, embora não a tivesse sabido expor A 842 R 870 A 843 B 871 A 844 B 872 suficientemente liberta de todo o elemento estranho. A idéia de uma tal ciência é tão antiga como a razão especulativa do homem; e qual é a razão que não especula, seja à maneira escolástica, seja ao jeito popular? Deve-se, porém, confessar que a distinção dos dois I elementos do nosso conhecimento, dos quais um está plenamente a priori em nosso poder, enquanto o outro só pode ser extraído a posteriori da experiência, tem sido apresentada sempre de maneira muito pouco clara, mesmo em pensadores de profissão, e, assim, a delimitação de um modo particular de conhecimento, por conseqüência, a justa idéia de uma ciência que ocupou durante tanto tempo e tão fortemente a razão humana, nunca pôde ser realizada. Quando se dizia que a metafísica era a ciência dos primeiros princípios do conhecimento humano, não se designava uma espécie particular de princípios, mas somente um grau mais elevado de generalidade, pelo qual a metafísica não se podia distinguir claramente do que é empírico. Com efeito, também entre os princípios empíricos estão alguns mais gerais e por isso mais elevados do que outros e na série de uma tal subordinação (uma vez que não se distingue entre o que é conhecido completamente a priori do que é conhecido apenas a posteriori), onde se deve fazer o corte que separa a primeira parte da última parte, e os membros superiores dos membros subordinados? Que se diria se a cronologia só pudesse designar as épocas do mundo, dividindo-as nos primeiros séculos e em séculos seguintes? Perguntar-se-ia: então o século quinto, o décimo, etc., estão incluídos nos primeiros? Do mesmo modo pergunto, se o conceito de extensão pertence à metafísica. Respondereis que sim. Pois bem e o do corpo também? Sim. E o do corpo fluido? I Ficais espantados, pois se continuarmos assim a progredir tudo pertencerá à metafísica. Por aqui se vê que o simples grau de subordinação (do particular ao geral) não pode determinar os limites de uma ciência, mas que necessitamos, no nosso caso, de uma heterogeneidade radical, de uma diferença de origem. O que, porém, obscureceria ainda, por outro lado, a idéia fundamental da metafísica, era que esta, como conhecimento a priori, mostra uma certa semelhança com a matemática; esta semelhança, é certo, no que respeita a origem a priori, indica bem um certo parentesco entre elas, mas quanto ao modo de conhecer por conceitos, na primeira, em comparação com o modo de ajuizar simplesmente a priori por construção de conceitos, nesta última, por conseguinte quanto à diferença entre um conhecimento filosófico e um conhecimento matemático revela-se uma heterogeneidade tão absoluta que foi sempre sentida, de qualquer maneira, mas nunca foi reduzida a critérios evidentes. Por isso aconteceu que, tendo os próprios filósofos falhado no desenvolvimento da idéia da sua ciência, a elaboração desta não podia ter um fim determinado e uma direção segura e, com um projeto tão arbitrariamente traçado, ignorando o caminho que deviam tomar e sempre em desacordo acerca das descobertas que cada um, por sua conta, pretendia ter efetuado, tornaram a sua ciência desprezível aos outros e acabaram eles próprios por a desprezar. I Todo o conhecimento puro a priori constitui, assim, graças à faculdade particular de conhecimento onde tem exclusivamente a sua sede, uma unidade particular e a metafísica é a filosofia que esse conhecimento deve expor nesta unidade sistemática. A sua parte especulativa, que se apropriou principalmente desse nome, ou seja, a que chamamos metafísica da natureza e examina tudo, por conceitos a priori, na medida em que é (e não o que deve ser), divide-se da maneira seguinte. A chamada metafísica, em sentido estrito, compõe-se da filosofia transcendental e da fisiologia da razão pura. A primeira considera apenas o entendimento e a própria razão num sistema de todos os conceitos e princípios que se reportam a objetos em geral, sem admitir objetos que seriam dados (ontologia); a segunda considera a natureza, isto é, o conjunto dos objetos dados (seja aos sentidos, seja, se, quisermos, a uma outra espécie de intuição) e é portanto fisiologia (embora apenas rationalis). Ora, o uso da razão, nesta consideração racional da natureza, é ou físico ou hiperfísico, ou para melhor dizer, imanente ou transcendente. O primeiro tem por objeto a natureza, na medida em que o seu conhecimento pode ser aplicado na experiência (in concreto); o segundo ocupa-se daquela ligação dos objetos da experiência que ultrapassa I toda a experiência. Esta fisiologia A 845 B 873 A 846 B 876 A 847 B 875 transcendente tem, portanto, por objeto uma ligação interna ou externa, mas tanto num como noutro caso ultrapassa a experiência possível; aquela é a fisiologia da natureza universal, isto é, a cosmologia transcendental; esta, o conhecimento da ligação de toda a natureza com um ser superior à natureza, isto é, o conhecimento transcendental de Deus. A fisiologia imanente considera, pelo contrário, a natureza como o conjunto de todos os objetos dos sentidos, por conseqüência, tal como nos são dados, mas apenas segundo condições a priori, relativamente às quais nos podem ser dadas em geral. Há, pois, somente duas espécies de objetos dos sentidos: 1. Os dos sentidos externos, portanto o conjunto desses objetos, a natureza corpórea. 2. O objeto do sentido interno, a alma e, segundo os conceitos fundamentais da alma em geral, a natureza pensante. A metafísica da natureza corpórea chama-se física, mas porque deve apenas conter os princípios do seu conhecimento a priori, física racional. A metafísica da natureza pensante chamase psicologia e, pela razão acabada de apontar, trata-se aqui apenas do conhecimento racional da alma. Assim, o sistema inteiro da metafísica consta de quatro partes fundamentais: 1. A ontologia. 2. A fisiologia racional. 3. A cosmologia racional. 4. A teologia racional. A segunda parte, a saber, a física da razão pura, encerra duas divisões, a physica rationalis * e a psychologia rationalis. A própria idéia originária de uma filosofia da razão pura prescreve esta divisão; é portanto arquitetônica, segundo os fins ___________________ * Não se pense que entendo por esta designação aquilo que ordinariamente se designa por physica generalis e que é mais matemática do que filosofia da natureza. Com efeito, a metafísica da natureza distingue-se inteiramente da matemática e se está bem longe de oferecer perspectivas tão amplas como esta, é, contudo, muito importante com vista à crítica do conhecimento puro do entendimento em geral aplicável à natureza; à falta desta metafísica. os próprios matemáticos, aderindo a certos conceitos vulgares, mas na realidade metafísicos, têm, sem dar por isso, sobrecarregado a física de hipóteses, que desaparecem perante unia crítica desses princípios, sem contudo prejudicarem o mínimo que seja o uso da matemática neste campo (uso que é absolutamente indispensável). essenciais da razão e não meramente técnica, segundo afinidades acidentalmente percebidas e como por acaso afortunado; e, precisamente por isso, também imutável e legisladora. Mas há alguns pontos que poderiam suscitar dúvidas e enfraquecer a convicção da sua legitimidade. Em primeiro lugar, como posso esperar um conhecimento a priori, portanto uma metafísica, de objetos que são dados aos nossos sentidos, isto é, a posteriori? E como é possível conhecer segundo princípios a priori a natureza I das coisas e chegar a uma fisiologia racional? A resposta é que não tomamos mais da experiência do que o necessário para nos dar um objeto, seja do sentido externo, seja do sentido interno. O primeiro caso acontece mediante o simples conceito de matéria (extensão impenetrável e sem vida); o segundo, pelo conceito de um ser pensante (na representação empírica interna: eu penso). De resto, em toda a metafísica destes objetos deveríamos abster-nos totalmente de todos os princípios empíricos que poderiam acrescentar ainda ao conceito qualquer experiência que servisse para formular um juízo sobre esses objetos. Em segundo lugar, qual será a posição da psicologia empírica, que sempre reclamou o seu lugar na metafísica, e da qual se esperavam na nossa época tão grandes coisas para o esclarecimento desta ciência, depois de se ter perdido a esperança de estabelecer a priori qualquer coisa de concludente? Respondo: o seu lugar é aquele onde deve ser colocada a física propriamente dita (empírica), isto é, do lado da filosofia aplicada, para a qual a filosofia pura contém os princípios a priori e com a qual portanto deve estar unida, mas não confundida. Assim, a psicologia empírica deve ser completamente banida da metafísica e já está dela completamente excluída pela idéia desta ciência. Contudo, deveria nela reservar-se-lhe um pequeno lugar, segundo o uso da Escola (mas somente como episódio), I e isto por motivos de economia, porque não é ainda tão rica para constituir isoladamente um estudo e todavia é demasiado importante para que se possa repelir inteiramente ou ligá-la a outra matéria, com a qual tivesse ainda menos parentesco do que com a metafísica. É, portanto, simplesmente um estranho, ao qual se concede um A 848 B 876 A 849 B 877 A 850 B 878 domicílio temporário até que lhe seja possível estabelecer morada própria numa antropologia pormenorizada (que seria o análogo da física empírica). Tal é, pois, a idéia geral da metafísica, dessa ciência que, por se ter esperado mais dela do que razoavelmente se podia exigir, e ela própria se ter embalado nas mais belas esperanças, caiu finalmente no descrédito geral, porque todos ficaram desiludidos nas suas expectativas. Em todo o decurso da nossa crítica deve-se ter ficado suficientemente convencido de que, embora a metafísica não possa ser o fundamento da religião, deve contudo ficar sempre o seu escudo, e de que a razão humana, já dialética pela tendência da sua natureza, não pode nunca dispensar uma tal ciência que lhe põe um freio e que, por um conhecimento científico e inteiramente esclarecedor de si próprio, impede as devastações que, de outro modo, uma razão especulativa sem lei infalivelmente produziria, tanto na moral como na religião. Pode-se estar certo de que, por mais reservados ou desdenhosos que possam ser aqueles que julgam I uma ciência, não de acordo com a sua natureza, mas a partir somente dos seus efeitos acidentais, voltar-se-á sempre à metafísica como a uma amada com quem se tenha estado em desavença, porque a razão, como se trata aqui de fins essenciais, deve trabalhar sem descanso ou na aquisição de um saber sólido ou na destruição dos bons conhecimentos já existentes. Por conseguinte, a metafísica, tanto da natureza como dos costumes, e sobretudo a crítica de uma razão que se arrisca a voar com as suas próprias asas, crítica que a precede a título preliminar (propedêutico), constituem por si sós, propriamente, aquilo que podemos chamar, em sentido autêntico, filosofia. Esta refere tudo à sabedoria, mas pelo caminho da ciência, o único que, uma vez aberto, não se fecha mais e não permite que ninguém se perca. A matemática, a física, o próprio conhecimento empírico do homem, possuem um alto valor como meios para se alcançarem os fins da humanidade, na maioria das vezes fins contingentes, mas no fim de contas também para se atingirem fins necessários e essenciais, embora unicamente mediante um conhecimento racional por simples conceitos, o qual, designe-se como se quiser, não é propriamente outra coisa senão a metafísica. Precisamente por isso, a metafísica é também o acabamento de toda a cultura da razão humana, acabamento imprescindível, I mesmo deixando de lado a sua influência, como ciência, sobre certos fins determinados. Com efeito, considera a razão segundo os seus elementos e máximas supremas, que devem encontrar-se como fundamento da possibilidade de algumas ciências e do uso de todas. Que a metafísica sirva, como mera especulação, mais para prevenir erros do que ampliar o conhecimento, não prejudica em nada o seu valor, antes lhe dá mais dignidade e consideração, através do ofício de censor que assegura a ordem pública, a concórdia e o bom estado da república científica e impede os seus trabalhos ousados e fecundos de se desviarem do fim principal, a felicidade universal. A 851 B 879