UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC CAROLINE DIAS OS LUSÍADAS : MITO E HISTÓRIA Criciúma, 2005 1 CAROLINE DIAS OS LUSÍADAS : MITO E HISTÓRIA Monografia apresentada à Diretora de Pós-Graduação da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC, para a obtenção do título de especialista em Língua Portuguesa: Fenômeno Sóciopolítico. Orientador: Prof. Dr.Celdon Fritzen Criciúma, 2005 2 RESUMO Esta pesquisa procura abordar Os Lusíadas, discutindo-a a partir da compreensão da Renascença como uma época de contradições que torna os limites entre mito e história flutuantes. Os Lusíadas, escrito por Luís Vaz de Camões, é uma epopéia renascentista que reflete tais tensões, quando se constitui numa narrativa de exaltação à pátria portuguesa. A obra conta com elementos indispensáveis e ao mesmo tempo tão opostos para a construção do épico: o mito e a história. O mito colabora no dinamismo do enredo, na divinização dos atos portugueses, entre outros. A história serve para aproximar o texto da realidade, exaltar os feitos pátrios. O conjunto destas funções faz com que a epopéia tenha uma relação contínua entre história e mito. Este paralelo traz para o texto uma convivência que valoriza a alma nacional portuguesa. Palavras-chaves: história, mito, epopéia. 3 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ..............................................................................................................4 2. VISÕES DE MITO E HISTÓRIA NO RENASCIMENTO...............................................6 2.1 As contradições do Renascimento...........................................................................6 2.2 Discurso Histórico.....................................................................................................10 2.3 Separação do Mito.....................................................................................................13 2.4 Descobrimentos, mito, verdade e ciência...............................................................15 3. O LUGAR DE MITO E HISTÓRIA EM LUSÍADAS.......................................................20 3.1 Apresentação do Autor.............................................................................................20 3.2 Apresentação da Obra..............................................................................................23 3.3 Gênero Épico: História e Mito..................................................................................25 3.4 A História em Lusíadas: Funções............................................................................27 3.5 O Mito em Lusíadas: Funções..................................................................................29 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................31 REFERÊNCIAS...............................................................................................................33 4 1. INTRODUÇÃO O mito e a história, pontos cruciais referentes ao tema abordado no texto a seguir, a obra Os Lusíadas, foram importantes para tornar esta epopéia universal e imortal. Em nossa pesquisa, procura-se abordar os papéis de mito e história na Renascença e depois, particularmente, na epopéia camoniana, devido à necessidade de compreender o universo desses aspectos e analisar suas funções dentro da obra. Em meio a tantas contradições ligadas ao próprio Renascimento, o período foi favorável a um clima intelectual capaz de dar fôlego à ciência, literatura, política e à leitura dos antigos clássicos. Para Saraiva e Lopes (1979, p.356), com a vinda da Renascença e suas inovações, abriu-se caminho para o advento do conhecimento científico, geografia e de novas descobertas. O Renascimento foi uma mescla de novos e velhos padrões. Um novo continente surgia e, a partir dele, novas descobertas e visões se ampliavam. Todavia, muitos mitos, como o do Paraíso Terrestre e sua localização em alguma parte do mundo ou Novo Mundo ainda tinham também estatuto de verdades. A verdade e a ficção não têm uma clara distinção no pensamento da Renascença. Quis-se, neste trabalho, investigar tal convivência tensa e harmônica naquele período histórico e depois na obra Os Lusíadas. Os Lusíadas mostra a história da viagem de Vasco da Gama às Índias e o navegador se apresenta como um dos principais narradores, colocando-se, na epopéia, como instrumento para contar a história das conquistas lusitanas. Não obstante, em conjunto com a dimensão histórica, a mitologia também se apresenta na epopéia. Segundo Peixoto (1981, p.05), o épico de Camões cuida de ser uma projeção do amor ao povo português. A terra é glorificada e a natureza faz parte deste cenário 5 maravilhoso para exaltar o povo.O poema épico é grandioso, representando, sobretudo, a glorificação dos feitos históricos portugueses. O texto épico exige do autor, Camões, que trate as conquistas com um cunho histórico e mitológico. Deve haver a junção da história e mitologia. Há necessidade que se traga para o leitor e mundo, por um lado, certos padrões como o do mito, com a interferência de deuses e façanhas; e, por outro lado, a dimensão histórica tem a função de representar a realidade e proporcionar a fidelidade conferida à obra. Este trabalho foi organizado em dois capítulos. O primeiro apresenta as contradições da Renascença e seu mundo de antagonismos; em seguida, aborda aspectos dos descobrimentos, o advento científico que surgia e trouxe novas visões, terminando por refletir sobre o significado de mito e de verdade, enfatizando esta a partir do discurso historiográfico usado no Renascimento e a maneira com foi compreendida a veracidade nesse momento. O segundo capítulo faz uma introdução a respeito da obra Os Lusíadas e do seu autor, Camões; depois, se expõe a relação da epopéia com o mito e a história, culminando com a função que estes exercem na epopéia. 6 2. VISÕES DE MITO E HISTÓRIA NO RENASCIMENTO 2.1 As Contradições do Renascimento O movimento de renovação literária, artística e científica chamado Renascimento e as contradições que envolvem este período serão abordados a seguir. O momento foi marcado pelo avanço humano e da ciência. Há também a volta aos clássicos e da mitologia, com a presença de inúmeras obras gregas e latinas, tanto de caráter literário, filosófico e científico. As conquistas humanas e toda a formação intelectual fervescente não caminharam sozinhas, o espírito medieval ainda permaneceu. A relação entre o medieval e o renovador foi constante. O mundo em torno de Deus e o mundo ao redor do homem resistiam lado a lado. As contradições marcam a Renascença. O belo e o feio, o novo e velho se misturavam, mas nem por isso esta época deixou de ser um momento fértil para a humanidade. O Renascimento teve começo por volta do século XVI e foi marcado por transformações de ordem política, social e cultural. Esta época era designada por novos rumos e descobertas. Dá-se a partir de então lugar a outras concepções, visões e o humanismo, fator extremamente ligado ao humano e o antropocêntrico. Além destes, houve outro ponto importante nesta época: a presença do racionalismo, já que a razão determinava as questões e o início da descoberta científica. O saber científico valoriza a razão e se ela era umas das virtudes tomadas ao pensamento clássico, a arte também o foi, contudo, numa perspectiva distinta. O racionalismo clássico não significa de modo algum ausência de emoção sentimento, apenas pressupõe que a razão exerça sobre eles uma espécie de controle, de policiamento, a fim de evitar que se derramem. Estabelece-se ou deseja-se um equilíbrio entre a razão e imaginação, no afã de criar uma arte universal e impessoal ( MOISÉS; 1983, p.63). 7 Cabe salientar ainda que as idéias já existentes da Idade Média não foram deixadas tão facilmente em segundo plano. Elas continuavam e se misturavam com as renascentistas.O passado se assimilava ao novo. Moisés (1983,p.65) diz que a questão da tradição já estava enraizada há séculos. Ela estabelecia que aquilo que fora ensinado ao longo dos tempos tinha sua veracidade e não deveria ser contestada e sim absorvida e também aceita. Como exemplo: os ensinamentos cristãos, que jamais poderiam ser postos em dúvida. E de fato para a Igreja, Deus era centro do universo e da verdade. Moisés (1983,p.35) coloca a dupla relação do passado com o novo que surgia. A tradição já era presente e constante na Idade Média. Determinados resquícios medievais deviam-se à tradição da Igreja que estabelecia uma concepção de Deus como centro de tudo. Em contrapartida, junto à tradição religiosa havia todo um conjunto de mitos e f ábul asdami t ol ogi a.“ Umac ol eçãodel endasedees pant os asdes cr i çõesdeani mai s es t r anhosedehomensmonst r uosos . ”( DELUMEAU,1984, p. 50) . A beleza e o horrível, o simples e o difícil rodeavam a Renascença. Delumeau (1984, p.23) discute em sua obra estes antagonismos existentes, mostra as contradições que surgem na época, observando que, juntamente aos percursos complicados, há a constante interferência mitológica e toda sua exaltação ao humano, seu corpo e beleza. O Renascimento levou o homem a evocar o paraíso mitológico.Segundo Delumeau (1984, p.17), os habitantes deste lugar são eternos jovens em função do amor. Nunca foi tão usada a mitologia como maneira de sonhar. Havia a presença de ninfas, Baco, Vênus e outros deuses que levavam os humanos a alcançar o paraíso. As epopéias também se remetiam a um papel mitológico, e levavam o leitor a um paraíso 8 do mundo maravilhoso. Há um testemunho da obra de Thomas More em a Utopia que mostra os antagonismos referentes ao período. A Ilha dividia-se em duas partes: a primeira reproduz as cores sombrias da Inglaterra, a segunda mostra uma ilha maravilhosa e sem problemas.Nada mais explicativo para apresentar a época em suas contradições. A cultura grega contribuiu de sua maneira para que os renascentistas evoluíssem na ciência e cultura através de determinados conhecimentos e de concepções geográficas Delumeau (1984, p.53) reforça a tal importância do regresso ao passado e toda a bagagem cultural estudada pelos clássicos.Os gregos, a partir da escola de Pitágoras, e depois com Aristóteles, tinham afirmado a esfericidade da Terra. Uma boa parte da Idade Média cria, pelo contrário, que a Terra era um disco, achatada. A ciência tivera grande progressão e as descobertas geográficas davam início a um novo período que ainda guardava raízes medievais. O inventário do mundo vivo vinha, evidentemente, acompanhado pelo alargamento e melhoramento dos conhecimentos geográficos.A descoberta do novo mundo não podia deixar de fazer com que a geografia desce um decisivo passo a frente (IDEM, 1984,p.137). De um outro ângulo, a Renascença abriu as portas para a ciência, mas a angústia a respeito do problema da liberdade individual levava o homem a acreditar também no destino pelos astros: ‘ ’ O Renasci ment o,r eavi vando o i nt er es se pel as divindades pagãs, parecia conferir-lhes novos poderes, pois exaltava a virtude mágica dospl anet ascom osquai sel asseconf undi am’ ’ ( DELUMEAU,1984,p. 52) . Delumeau (1984, p.137) coloca que houvera grandes progressos tanto do campo da química, física, botânica, zoologia. Porém, não se deixou em nenhum 9 momento de acreditar paralelamente em esoterismo, alquimia e astrologia. A ciência conquistou seu lugar à base de persistência e interesse pela natureza e geografia, pela vontade de poder organizar e dominar o espaço. Ela caminhou lado a lado com o humanismo.“ Est eeac i ênc i a nem sempr es e af ast ar am um do out r o.Em cer t os domí ni os ,ohumani s mof oic i ent i f i cament ef ec undo;out r osnão“ (p. 148) . Até mesmo com todo o poder influenciador da Igreja cristã não houve quem deixasse de continuar a crer na astrologia. Os astros de alguma maneira influenciaram o mundo por milhares de anos. Certas obras deste período referiam-se ao interesse no campo astrológico. E por inúmeras vezes, a astrologia e as obras referentes a ela determinavam formas de obtenção de favores e falavam de espírito. Segundo Delumeau (1984, p.53), o interesse astrológico reforçou a crença na Antigüidade e nos pensadores gregos que acreditavam na força e nos poderes do universo. Vale salientar que mesmo com o advento científico, o Renascimento enfocou todo este conhecimento tanto no campo da medicina, como da química e da física. Mesmo com todo este avanço científico, havia muito presente um paralelo entre a ciência e o esotérico. “ As críticas à astrologia foram muito raras na época do Renas ci ment o”( p. 58) . Delumeau (p.148) lembra que em meio a tantas contradições, o Renascimento foi uma fase de organização e de orientação para a ciência. Apesar disso, nunca se deixou de acreditar na beleza e no saber sendo um reflexo de Deus. A Renascença, mesmo sendo palco de fatos contraditórios, foi um celeiro de novidades para a música, pintura, literatura, entre outros. Há de se lembrar que em nenhum outro período histórico existiram tantas invenções em curto tempo. Para entender este universo tão contraditório, basta ressaltar que os pintores ora representavam em seus quadros cenas bíblicas, ora nus mitológicos. Ocorria 10 constantemente um dualismo entre a corrente medieval e a clássica. O homem renascentista nunca deixava escapar a duplicidade de idéias e concepções contidas no seu tempo, conforme se analisa no trecho abaixo: Como eram belos Adão e Eva antes do pecado! Tantos artistas no-los recordaram com amor e melancolia!E a natureza era doce e clama, o céu era azul, a folhagem verde, as águas límpidas, mas a tendência de uns sonhos cada vez mais sensuais conduzia á separação mútua da Idade do Ouro e do pecado original. Surge então o Jardim das Delícias Terrestres, cujo caráter impossível.Em primeiro plano, gulosos de ambos os sexos, deliciam-se com grandes melancias, cerejas e morangos.À esquerda do painel, os preguiçosos vagueiam, mais além, as vaidosas regalam-se com usa beleza. Ali são conduzidas doentes e aleijados que saem da maravilhosa piscina belos e felizes para entrar logo em festins, danças e risos (DELUMEAU, 1984, p.17). As marcas da Renascença se fazem presentes na história e no próprio discurso. Há uma tentativa de questionar a antiga compreensão da história que naquele tempo tinha sua veracidade assegurada pela credibilidade daquele que a enunciava. Vale lembrar que com as novas descobertas surgiam idéias e fatos a serem averiguados e esse modo de fazer a história pôde ser questionado. 2.2 Discurso Histórico O discurso histórico tem por conceito levar a tentar conhecer a tudo que nos rodeia através da cronologia dos fatos e seus efeitos. Assim, nos tempos dos gregos, as fontes diversas vezes não eram constituídas por levantamento dos fatos, mas se faziam em base no que diziam os historiadores presentes, o discurso deles. A palavra destes era o dado mais importante. O historiador antigo tinha por hábito não citar suas fontes. Ele não faz notas de rodapé e acima de tudo postula que o que se escreve é verdadeiro e passível de 11 acreditar. Para Veyne, o importante para a época era a credibilidade da obra e do historiador, pois as obras antigas não necessitavam de citações, devido à autoridade de quem escrevia e cuja palavra era suficiente para impor a verdade do que estava nas l i nhas.“ Es t as l i nhas es pant osas f azem-nos ver o abismo que separa a nossa concepção da história de uma outra concepção, que foi de todos os historiadores da Antigüidade e que era ai ndaadoscont empor âneos”( VEYNE;1983,p.19). Os historiadores antigos tinham a concepção de estabelecer uma verdade histórica e ter reconhecido o texto como original, em vez de fornecer provas. Muito do que se acreditava não passava de tradição. Percebe-se no discurso renascentista a fusão da história nova, científica, de descobertas e feitos, caminhando paralelamente a história antiga e tradicionalista. Lima coloca que no período clássico, por volta do século XVI, havia a certeza da matemática muito presente como ideal científico. Assim, a história era inferiorizada de tal forma que seus argumentos não tinham tanta importância “ Todaacer t ez aque não encontre uma demonstração matemática é uma simples probabilidade a certeza hi st ór i caédessaespéc i e”( 1984,p. 115) . Lima (1984, p. 116) expõe em sua obra que a história era colocada sempre entre as belas artes e também tinha pouca importância.“ Sempr e as sediada, nem sempre vitoriosa, a razão sente-se pouco à vontade com ahi st ór i a” . Insinuava-se que o percurso histórico era um estado natural e livre de sentimentos, sem limites, desprovido de leis, instituições e racionalidade. O historiador tem a t ar ef adedi z erav er dadenua,ousej a,“o acontecimento que se tem de relatar, sem quet odososenf ei t essej am r ef er i dos” . ( LI MA,1984,p. 119) . A descoberta de um Novo Continente pelos europeus abriu caminhos a 12 respeito do conhecimento teórico sobre a história. Velhas polêmicas deixaram de ter certas validades.Surgiram novas formulações de verdade no Novo Mundo, revelando a superioridade do moderno. Houve uma aceleração na forma de conceituar os feitos históricos e seus discursos que começaram de modo certo a adquirir credibilidade, contudo, a tradição dos historiadores antigos ainda permanecia junto as suas formas de pensamento. Giucci (1992, p.194) toma o discurso renascentista como uma união entre o novo e tradicional. A partir dos tempos modernos com as descobertas iniciaram-se uma diversidade de interpretações: “ Osc r oni s t asespanhói sconceber am opr obl emada incorporação do Novo Mundo ao Velho em termos de sua cont i nui dadecom opas sado” (GIUCCI, 1992, p.195). Na época, havia muitas dúvidas acerca da veracidade de determinados acontecimentos. Novas visões surgiram e descobertas; a ciência abria caminhos, porém o discurso histórico empregado na época, ainda continha tendências medievais. Alguns cronistas do passado trataram de analisar verdades creditadas a respeito da Igreja e várias delas foram descartadas, pois eram falsas. Até os santos eram acometidos de erros, como: Santo Agostinho e Lactâncio Firmiano também se enganaram. O testemunho começou a ser um modo de confirmar os fatos que ocorriam até a história ser considerada como autoridade por volta do século XIX. Para conhecerse o passado, nomes de reis, laços de parentescos necessitava-se nada mais que testemunhas oculares.O conhecimento era transmitido de geração em geração. A observação pessoal e as fabulações existentes apresentavam a história.Todavia, esta mescla não comprometia os textos, pois eram as provas permanentes e as tradições estabelecidas neste período. A magia dos sábios e as vozes dos profetas nunca deixaram de serem acreditadas. Muitos cronistas reforçaram 13 a idéia do mito e da profecia. A Atlântida de Platão, o presságio de Sêneca em sua Medéia, as profecias de Abdias, Isaías e Mateus, sejam quais referências mencionadas, de alguma forma tinha validade. A tradição prevalecia, várias vezes, em torno da fé cristã. Com a existência de inúmeras culturas não européias, ao longo dos tempos separadas pelo oceano, não haviam se questionado sobre a teoria de Adão e Eva só presente na civilização da Eur opa e di t a c omo a ver dadei r a e i nabal ável .“ Enquant o sábi os e sant os demonstravam com suas afirmações que errar era comum aos humanos, as verdades da palavra sagr adasobr evi ver am r el at i vament ei nt ocadas” ( GI UCCI ,1992,p. 197) . Novas idéias surgiam e a fé cristã permanecia.Porém, era difícil descobrir o que era a verdade naquele tempo e questionava-se sobre os mitos que foram trazidos com os clássicos. Buscava-se esclarecer o papel da mitologia e suas funções. 2.3 Separação do mito As contradições presentes no Renascimento tornam-se proteiforme, fazendo com que seja difícil compreender o que era verdade, a realidade da história e dos mitos, as fábulas que rodeavam a época.Os mitos foram marcantes e responsáveis por várias dúvidas. Para Veyne (1983, p.146), os gregos precisavam de uma verdade, assim como toda a humanidade no decorrer da sua evolução. O homem durante toda a trajetória necessitava e necessita de conforto.Desse modo, o mito buscou ter uma função social, aquela que reconforta. Na Renascença, ao questionarem-se de como se pode separar o mito da história haverá uma grande interrogação. O mito e a história dos antigos caminharam 14 juntos, pois a verdadeira história consistia na palavra e na verdade dita pela tradição. “ A bem dizer, o problema está em distinguir a história-ficção da história que se pretende ser séria. Deveremos julgá-las com base na sua verdade? Mesmo o sábio mais grave pode enganar-s ee,sobr et udo,af i cçãonãoéer r o. ” ( VEYNE,1983,p. 126) . Os antigos não mediam a história cronologicamente e por fatos. Assim muitos não levavam a sério a história. Os historiadores antigos transcreveram os acontecimentos através de suas visões do cotidiano e da tradição dos povos. A história era escrita à maneira deles. A verdade dos fatos estava em suas narrativas. Existiam aqueles que copiavam os outros escritores, sem citá-los e apenas melhoravam ou ampliavam o texto, dando a dimensão que desejassem. Então como separar o mito da história, se a história estava na versão dos historiadores da época que conduziam a ver dadepors euses cr i t os. ” Um det er mi nadomi t os er áoengr andeci ment o épico de um grande acontecimento, mas para um grego, o mesmo mito será uma verdade alterada pel ai ngenui dadepopul ar“ ( VEYNE,1983,p. 28) . O maravilhoso era visto como verdadeiro e único, não se duvidava dele, todavia não se acreditava nele como na realidade.Todos os heróis e mártires e o universo do maravilhoso habitavam um tempo atemporal. Para Veyne (1983, p.20), o tempo e o espaço mitológicos são diferentes do nosso atual.Os heróis e lendas encontravam-se em out r omundoet empo. ” O mundo mítico é definitivamente outro, inacessível, diferente e espantoso, que o problema da sua autenticidade permanece suspenso”. A separação do mito da história aconteceu quando a história foi tratada com autoridade.Os especialistas, profissionais da área tinham a função de pôr os fatos em cronologia através de dados e fontes. De acordo com Veyne (1983, p.50), um profissional confere sua informação. No tempo mítico a história era uma narrativa com 15 causas. Reduzia-se à mistura de acontecimentos com lendas e fatos. É difícil contar a história dos tempos míticos, quanto mais não devido á imprecisão da cronologia; esta imprecisão faz com que muitos leitores não a levem a sério. A história mítica, além disso, os acontecimentos desta época recuada são demasiado longínquos e demasiado inverossímeis para se acreditar facilmente neles. (VEYNE, 1983, p.50). A história acerca dos mitos pode deixar dúvidas. Mas, de certa maneira, havia a crença de que havia um fundo de verdade trazida pela mitologia no decorrer dos séculos. O mito e a verdade sempre foram questionados. Existem muitos contrapontos que os envolvem. No texto a seguir colocam-se os contrapontos da verdade, mito e ciência. 2.4 Descobrimentos, mito, verdade e ciência O poder da imaginação e da fantasia eram uma das maneiras de colaborar com a realidade renascentista. Mas a experiência pessoal ao longo dos séculos serviu para mostrar faces das supostas verdades. Para Giucci (1992, p.200), Colombo grande navegador da época, utilizou-se do valor da experiência para suas teorias geográficas. Colombo escudou-se na experiência para defender suas próprias teorias e o planeta perdeu sua plena redondez. Na relação da terceira viagem o Almirante revelou aos reis católicos que o mundo não era esférico como supunham os sábios, e sim da forma de uma pêra arredondada ou de um bola (GIUCCI,1992, p.200). Os cronistas espanhóis partiram também da experiência pessoal para assegurar novas verdades e comprovaram diversas questões que jamais foram 16 discutidas como sendo falsas desde os gregos. Com a descoberta do quarto continente houve uma determinada abertura para outras formas de pensar. A América contribuiu de alguma maneira com a libertação de determinados dogmas. Deste modo, a autoridade consagrada durante séculos passou a depender do apoio da verificação para ser validada, o que implicava que a palavra dos santos, anteriormente sinônimo de verdade adquiria uma posição subordinada frente as evidências(GIUCCI, 1992, p.202). Mesmo com o descobrimento de um novo continente e abertura de novas correntes, não se deixou de acreditar na fé e na tradição, apenas houve uma ruptura. As tensões entre a fé e a razão, entre a palavra divina e a ciência ainda persistiam. Para Giucci (1992, p.203), o descobrimento do Novo Mundo aumentou os caminhos para o progresso da ciência e a ampliação para as novas verdades. O mito foi marcante nesta época e podia-se tratá-lo como uma tradição oral. As lendas e fábulas que o representavam e toda a força do passado da Antigüidade diversas vezes eram motivo de polêmica. Trovões, cometas, terremotos eram inúmeras vezes interpretados como vontade de Deus e não fenômenos da natureza a serem estudados. Assim estes mitos eram usados também para punir e forma de controle sobre a fé do povo. A imaginação nestes tempos era algo surpreendente, fazendo o povo acreditar em coisas além do concreto. Enquanto a comprovação científica ainda abria espaços, a fantasia corria por todos os lados. Importante menos se o rinoceronte e o unicórnio são o mesmo animal do que se a descrição do animal rinoceronte dá vida a um objeto original, alusivo, que adquire autonomia do ser criado, que será reconhecido e perseguido.Num extremo do maravilhoso só haverá palavras por trás do novo objeto, nem sequer 17 o desagradável rinoceronte.Nestes casos, a imagem pode durar mais ou menos que a criada a partir de um modelo natural, mas também é obrigada a ser adotada por uma consciência coletiva que primeiro a protege e depois a liquida (GIUCCI, 1992, p.14). A descoberta do Novo Mundo trouxe à tona o início de outro discurso, mas o modo quinhentista ainda se apoiava no desejo do imaginário, no vislumbre. O viajante mostrado na Divina Comédia de Dante assim como em Os Lusíadas de Camões mostra o paralelo do divino com o real. O remoto e o maravilhoso se aproximam. Há uma abundância de ninfas, sereias e ciclopes. Pode-se levar o leitor a refletir sobre o que será verdade neste período. A verdade seguia uma tradição? Em que lugar está a verdade? Ela é produzida pela ciência ou não? Pode ela ser, produzida, inventada ou real? De acordo com Giucci (1992, p.87), na história antiga o próprio leitor ou ouvinte buscava se impregnar da narrativa como uma forma de juntar a informação e fábula. O leitor participava das aventuras, e para ele naquele momento tudo era real e verdadeiro. Sentia-se diferente e emocionado ao se transferir para o texto como o próprio protagonista. De tal modo que o relato do viajante devia convencer o leitor, seja relato que fosse, havendo assim a integração do leitor com o maravilhoso. Giucci cita exemplos transcritos em sua obra como Soleno que ignorava coisas comuns e se concentrava no estranho. Por sua vez, Polo tentava colocar em seu texto as mar av i l has do mundo.“ E no interior deste espaço da narração se entrelaçam, procurando satisfazer às expectativas do leitor, à observação pessoal, à vontade de recriar um mundo de fantasia e de reproduç ão dasconvenç õesl i t er ár i as”(GIUCCI, 1992, p.91). Para Cipriano e Passos ( 1985, p.55), de acordo com os anos a verdade tem gerado diferentes formas de enfrentamento da realidade e inúmeras conclusões. Há 18 muitas possibilidades interpretações.Existem a respeito diversas das tendências razões humanas filosóficas: e suas dogmatismo, várias ceticismo, idealismo, positivismo, entre outras. A partir de Descartes e de Kant a meta é ser o mais racional possível para at i ngi rav er dade“Ass i m asensi bi l i dadeécol ocadaem segundopl anoear az ãot or naseoúni c opar amei opar at al”(CIPRIANO E PASSOS, 1985, p.58). Pode-se notar que não há um critério infalível para chegar à verdade. Alguns teóricos dizem que o ideal era apossá-la, outros chegaram a imaginar tê-la atingido, muitos comentam não existir uma verdade única assim ocorrendo diferentes facetas. Para Cipriano e Passos (1985, p.59), não se pode tirar conclusões definitivas da verdade e sim saber apurá-la a partir de suas evidências e fontes. A tendência atual demonstra que a compreensão da verdade consiste em interrogar, analisar e buscar significados. Assim a verdade se torna realidade, a partir de verdades produzidas. Essa maneira de compreender a verdade rompe com as situações mais arraigadas que afirmavam ser a verdade a apreensão do real do qual ele era o fato.Essa idéia menospreza a subjetividade e o papel do sujeito como responsável pela apropriação do real (CIPRIANO E PASSOS, 1985, p.60). No que diz respeito à Renascença, a tradição é colocada de lado e nasce uma nova idéia acerca dos conceitos de verdade e de erro. A verdade agora cada vez mais é aquela que deve ser buscada e construída.E o erro perde o sentido de defeito, mas pode ser um fato que deve buscar questionamentos e conhecimentos. Cipriano e Passos (1985, p.60) colocam a verdade como um processo em movimento e não absoluto e inquestionável. Em contrapartida quando se trata de mitologia a preocupação com a verdade nos últimos tempos parece ter sido secundária. E a concepção de verdade se fez pelo valor da tradição, no princípio. 19 Os mitos que exprimem estas concepções chegaram até nós quase sempre através de textos literários, vários dos quais da autoria dos maiores escritores gregos e latinos e outros de poetas considerados de segunda ordem, porque foram tratados injustamente pela tradição humanista ocidental dos tempos modernos ( LE GOFF, 1924, p.291). O mito continua sendo usado e se faz essencial muitas vezes para trazer a uma narrativa leveza e descontração. Ele é alvo a respeito de sua veracidade. Porém, na literatura o essencial é mexer com o leitor e o maravilhoso colabora para isto. Leva o homem aos sonhos e fantasias E estimula a ler e observar.No outro capítulo será abordado a obra de Camões que mistura o maravilhoso com o real. 20 3. LUGAR DE MITO E HISTÓRIA EM LUSÍADAS 3.1 Apresentação da obra Os Lusíadas é um poema épico que narra a história da viagem de Vasco da Gama às Índias. A obra renascentista escrita por Luís Vaz de Camões registra um período de descoberta do caminho ao Oriente e os feitos heróicos que elevam o povo luso. O assunto central, a viagem de Gama às Índias, coloca o navegador como porta-voz da ação coletiva portuguesa e sobretudo mostra a glória das conquistas l usi t anas.“ A nar r at i vaconta com feitos positivamente apresentados e destinados a ex al t açãodeum povoedeconqui st aspor t uguesas . ’ ’( BERARDI NELLI ,1973,p. 28) . A epopéia apresenta os feitos históricos, deste período, conferindo ao povo lusitano o seu valor e todo o êxito alcançado. Alberto de Oliveira (1980, p.50) ressalta que os feitos portugueses, como a expansão marítima, foram iniciados por D.João II. Pois, anteriormente, o país possuía poucos recursos e ainda pouca extensão territorial. Já no fim do século XVI, os portugueses possuem ousados navegadores. O destino às Índias se inicia em 1497, por uma expedição guiada por Vasco da Gama. O êxito desta viagem foi não só um ato heróico para o navegador, mas motivo de orgulho de toda a nação. Tiné (1974, p.25) coloca que a cobiça dos portugueses por grandes lucros, contribuiu para que eles chegassem ao tão sonhado lugar. Ainda diz ele que para 21 formar um Império, Portugal tinha o desejo de tomar o comércio do Oriente, e tornar um monopólio. O poema se situa dentro do Renascimento, mas, embora considerado um exemplo de literatura clássica, ainda apresenta resquícios do pensamento medieval. O clima intelectual favorável à leitura dos antigos, junto da experiência adquirida nas expedições marítimas e também o lado fervoroso cristão acabaram favorecendo a realização de Os Lusíadas. A narrativa não deixa de levar o leitor a aventuras, tempestades e lugares nunca navegados, acompanhado de muita mitologia. Para Moisés, as circunstâncias históricas e a posição geográfica confiaram ao povo português um papel r el evant epar aoRenasci ment o.“ É que Portugal, através de alguns estudiosos e, particularmente, das descobertas marítimas, vai colaborar de modo direto e intenso nopr ocessor enasc ent i st a”( MOI SÉS, 1983,p,61). Os Lusíadas apresenta um ecletismo religioso e pagão. Durante o percurso marítimo os portugueses tiveram a proteção dos deuses; em contrapartida, tentaram estabelecer durante sua rota a fé cristã aos infiéis. Todo o fervor cristão não impede em pleno Renascimento de florescer idéias voltadas à ciência, humanismo e mitologia. O poema é narrado principalmente por Vasco da Gama, o herói. É ele que apresenta toda a primeira parte da viagem, até a passagem do Cabo, na conversa que mantém com o Rei de Melinde. Os Lusíadas é organizado em cinco partes: a proposição, que narra os feitos dos navegadores e a história do povo português; a invocação, na qual o poeta invoca o auxílio das musas do rio Tejo, as Tágides; a dedicatória, oferecida ao Rei Dom Sebastião, visto como a esperança da propagação da fé católica e continuação das conquistas; a narração, parte principal e na qual são relatadas a viagem e as glórias dos navegantes portugueses; o epílogo no qual poeta lamenta o fato de estar com a voz rouca, e ninguém mais o ouve. 22 Os Lusíadas possui dez cantos e se inicia quando a navegação já está em pleno Oceano Ìndico. Enquanto isso, no Olimpo, os deuses se reúnem. Vênus adere à proteção constante aos portugueses, ao contrário de Baco. Ao chegarem em Moçambique, os portugueses desviam-se de uma cilada feita por Baco. E quando partem para Moçambaça chegam vivos, devido à ajuda de Vênus, que pôde, por intermédio de Júpiter, conceder maior proteção aos portugueses. Os episódios são regados a muita fantasia e presença constante dos deuses.Os principais episódios são: A Ilha dos Amores, onde os portugueses são elevados simbolicamente à condição de deuses, recebidos pelas ninfas que se oferecem a eles. Outro é do gigante Adamastor, representação figurada do Cabo da Boa Esperança, simbolizava os perigos e tormentas enfrentados pelos lusitanos. Para Berardinelli (1973, p.35), a presença do Adamastor em forma de gigante indica o medo do desconhecido que se iniciou na partida dos navegadores. E a voz de Adamastor quando falou com portugueses significava as dificuldades pela qual passaram. Martins (1981, p.49) comenta que o mundo visível para Camões não o atraia tanto, já que o outro lado, o invisível o impressionava. Os Lusíadas mostra o valor da alma portuguesa e suas manifestações.Os acontecimentos reais eram projetados a partir do invisível. Ao se falar de subjetividade o poema tem presente uma tensão entre a espiritualidade e a carnalidade. Como exemplo podemos mencionar o papel da mulher, que era humana e ao mesmo tempo também era um ser angelical. A beleza não passava da imitação plena da concepção neoplatônica do amor. Para Saraiva e Lopes (1971, p.334), o amor carnal podia ser encontrado no episódio da Ilha dos Amores, onde há uma espécie de orgia para os navegadores. Vênus é símbolo central do erotismo na epopéia. A deusa sempre favorecia os 23 portugueses com seus auxílios, protegendo-os do perigo. A deusa levou seu pendor lusitano ao ponto de fazer a gente do Gama participar da natureza olímpica, preparando-lhe em alguma parte dos oceanos recepção que Homero, não desdenharia recolher em suas mais famosas crônicas helênicas (MARTINS, 1981, p.34). Muitas foram as batalhas e percursos que o texto apresentou. Os Lusíadas simbolizou as conquistas dos mares sobre os elementos da natureza A obra ultrapassa o século XVI,adquirir nítido valor universal e perene, pois contém a imagem do homem de sempre, ansioso de conquistas novas que lhe dêem a impressão de superar a certeza da própria pequenez e dependência identificada com a tremenda sensação de angústia que acompanha o ato de contemplar os mistérios fisiológicos da natureza (MÓISES, 1983, p.75). O poema possui uma grandeza de fatos, realismo das discussões, visão crítica e uma soma de conhecimentos literários, históricos e geográficos que o faz um marco na literatura portuguesa e universal. No outro tópico se falara um pouco de Camões, o poeta de Os Lusíadas. 3.2 Apresentação do autor Luís Vaz de Camões, autor dos Lusíadas nasceu entre 1524 e 1525, provavelmente em Lisboa. Veio de uma família de pequena nobreza, embora pobre o autor teve uma educação escolar relevante. Cursou artes em Coimbra. A vida palaciana que cultivou durante a juventude contribuiu também para sua formação intelectual.Leu importantes nomes da literatura como: Homero, Horácio, Virgílio, entre outros.Manteve 24 amizades de certo cunho intelectual como Sá de Miranda.Preferiu seguir a carreira das armas à das letras, devido à condição econômica. E ao ingressar para ordem militar, combateu em Marrocos e perdeu um olho. Mais tarde como punição por ferir um servidor do Paço é preso e depois libertado com a condição de prestar serviço militar ultramarino. Engaja-se na viagem às Índias e por volta de 1556, escreve parte de Os Lusíadas. Acusado de prevaricação,vai a Goa defender-se, mas naufraga na foz do rio Mecon. Salva-se a nado, levando Os Lusíadas, como quer a lenda, e perdendo sua companheira, Dinamene.Finalmente, chega a Goa, é encarcerado e solto pouco depois.Está-se em 1563.Quatro anos depois, em Moçambique, dá outra vez com os costados na cadeia por causa de dívidas.Posto em liberdade, arrasta uma vida miserável, até que Diogo de Couto o encontra e se empenha em levá-lo para a Pátria. Aonde chega a 23 de abril de 1569. Em 1571, publicava Os Lusíadas e recebe uma recompensa , porém morre pobre e abandonado, a 10 de junho de 1580 (MOISES, 1983, p.77). Camões participou da história da navegação marítima. E com sua experiência de soldado pôde ter elementos para ilustrar sua obra. O autor se identificou com a história marítima e, como os outros navegantes, registrou as experiências como maneira de representar a superação da condição humana. Para Berardinelli (1973, p.28), Camões utilizou o texto para levar o leitor a sensações do grande momento de Portugal, produzindo um signo destinado à exaltação deste povo. Como soldado, assumiu toda a experiência que vivenciou proximamente. Como poeta, foi um dos poucos que pôde exprimir na prática a guerra e a fome . Viajante, letrado, humanista, trovador à maneira tradicional, fidalgo esfomeado, numa mão a pena e noutra a espada, salvando a nado num naufrágio, manuscrito, a grande obra de sua vida, Camões resumiu a experiência meditada de toda uma civilização cujas contradições viveu na sua carne e procurou superar pela criação artística (SARAVIA e LOPES, 1979, P.326). 25 Ao tentar ultrapassar toda esta expressão da arte e da literatura, Camões foi grandioso não só como homem que superou certos obstáculos marítimos, mas ao colocar a língua portuguesa e sua literatura, assumindo um perfil nacional. Desde o fim da Idade Média nenhum outro escritor conseguiu apresentar um uso lingüístico que pudesse servir de padrão para a língua culta. A língua portuguesa até então não era solidificada. Camões, um grande escritor, reforça a partir de Os Lusíadas, a credibilidade da língua, aperfeiçoando-a e estabelecendo-a por todo o país e as colônias. Para Oliveira (1980, p.50), a língua escrita era variável até o século XVI. Camões iniciou um processo de aperfeiçoamento e solidez. O autor contribuiu para que a língua portuguesa fosse fonte de aprendizado para as seguintes gerações. Foi realmente Camões figura primordial no Renascimento, herói nos campos de batalha, solidificador da língua portuguesa, e que construiu esta narrativa tão importante para o mundo e seu país. Esse momento foi de tamanho valor que influenciou o autor em clima patriótico a construir a maior epopéia portuguesa. Este épico exigiu certas convenções e observações que serão observadas no próximo tópico referente ao gênero. 3.3 Gênero Épico: História e Mito A epopéia é um canto narrativo que exalta à pátria.Os Lusíadas, um exemplo do gênero, retrata os grandes feitos da nação portuguesa. Para que exista uma epopéia, deve haver uma relação contínua entre o mito e a história, a fim de que sejam satisfeitas as exigências do gênero. Os Lusíadas conta toda a história de uma pátria e de um povo apresentando 26 ao mesmo tempo elementos de mitologia e também fatos históricos. Não há como separar estes fatores, mito e história, pois caminham sempre juntos. No próprio Renascimento, já visto, onde esse épico se manifesta, existe bem presente estas contradições, de temas tão opostos. A mitologia tem sempre um fundo de realidade e em conjunto com a história tratam de revelar uma certa veracidade ao leitor. A epopéia aborda tais tópicos colocados acima, e no decorrer do texto um deles é o mito. O mito e história, no caso de Os Lusíadas, se relacionam com intuito de conduzir a narrativa de forma mais interessante e atraente possível. Ao retomar a mitologia, observa-se sua presença marcante na obra: o mito tem opapeldedei xarot ext ocom aal madopov oeuni v er sal .“ El eé condição prévia de umaepopéi a,poi sépopul ar ,dei númer oshomens”( PEI XOTO,1981,p. 340) . O mito contribuiu para aproximar o leitor da narrativa e da história.Tornando-se parte de um povo, por ser acessível a todos e elevar o nacionalismo.N’ Os Lusíadas, ele participa da exaltação dos feitos portugueses e contribui para enaltecer o povo e sua memória. Para Peixoto, o mito terá que ser nacional. Se não houver a presença dele com cunho patriótico, não existirá uma epopéia.Só há dois poemas épicos com caráter coletivo: A Ilíada e Os Lusíadas. Os heróis na epopéia se apresentam como além de mortais, mais que meros homens, são elevados ao patamar próximo dos deuses. Faz-se presente na narrativa com únicos e gloriosos. Servem para valorizar no poema de Camões, a pátria do povo português e exploram o lado divino com objetivo de alcançarem as graças de uma nação. O mito traz para a narrativa um dinamismo e movimento que contribui para que ele seja popular e de fácil acesso a todos. Ele explora o ponto coletivo e engrandece os heróis e a pátria e faz com que o povo se sinta honrado. Para que o mito chegue a 27 uma epopéia, são necessárias algumas condições: a primeira é que o mito seja coletivo.Como Joana d´Arc foi um mito pessoal e individual, fica fora do poema épico. Vasco da Gama, em Os Lusíadas, é o herói que representa o povo português. No gênero épico também se encontra a história, que colabora com o fundo de verdade para a obra. Os fatos históricos, por seguirem um tempo cronológico, contribuíram para que a obra chegasse mais perto do verossímil, já que o mito possui uma função oposta, que muitas vezes tem sido posto em dúvida. Há uma necessidade de fatos histórico na epopéia, a fim de que eles fiquem presentes e registrados na memória por séculos. A imortalidade das conquistas lusitanas é apresentada como se ainda a obra e os caminhos atravessados pelos portugueses não estivessem acabados e fossem possíveis de continuar. Segundo Pécora (2001,p.150), a continuação dos feitos lusos é o ponto mais elevado para que uma epopéia seja imortal. Mostrar a história como uma forma de prolongar estas conquistas é primordial. O poema épico descreve os feitos de Portugal para o mundo e torna este imortal e também popular. Leva a história e a mitologia à obra para tentar ficar eternamente na lembrança do povo. 3.4 A História em Lusíadas: funções Os Lusíadas é obra literária que tem como um dos objetivos aproximar o leitor e o mundo dos fatos que constituíram a grandeza de Portugal. O poema contém uma certa fidelidade histórica que traz credibilidade à obra. Na narrativa, a história possui algumas funções como: a pedagógica, a da verossimilhança e da exaltação aos feitos 28 pátrios. Ao falar a respeito da função pedagógica, busca-se associá-la à aprendizagem, pois a história leva à compreensão e entendimento deste universo real que se pode aliar à literatura. A epopéia de Camões percorre estes caminhos literários e históricos de modo que se estabeleça uma forma de conhecimento do passado. Pelo poema os nomes da história de Portugal e seus feitos memoráveis perdem o estatuto no que concerne à verossimilhança, da transitoriedade para perpetuarem-se como elementos da pedagogia do nacionalismo português. Pécora (2001,p.162) afirma que os feitos históricos contidos no poema só se estabelecem verdadeiramente se possuírem uma literatura que convença. Nada adianta um passado glorioso e muitas conquistas, se não houver a funcionalidade da verossimilhança, conduzindo o obra a ser mais próxima da verdade possível. A história tem uma cronologia que foi seguida, tornando-a próxima da realidade. Dificilmente se contesta a história, por ela se associar à verdade. Texto de Camões, por isso, torna-se verossímil colocando o leitor perto das conquistas e glórias de Portugal. A história é também um romance, com fatos e nomes próprios e já vimos que acreditamos ser verdadeiro tudo aquilo que lemos enquanto o estamos a ler; só a seguir é que o consideramos ficção e mesmo assim só se pertencermos a uma sociedade em que existia a idéia de ficção (VEYNE, 1983, p.125). Outro aspecto da função histórica é a exaltação dos feitos patrióticos. As conquistas dos portugueses são elevados ao maior grau possível. N’ Os Lusí adas , os portugueses superavam os antigos nas glórias e passado. Até os heróis portugueses são superiores a todos já vistos. Os feitos são relatados de forma apresentá-los superiormente, dessa forma enaltecendo o povo português nele representado. 29 Camões, igualmente tanto vence com a descoberta essencial da virtude heróica o gosto dos golpes fictícios, quanto supera com a energia poética da verdade o fingimento patriótico dos antigos épicos (PÈCORA,2001, p.150) Enfim, a obra registra conquistas e feitos arranjando conjuntamente toda a verossimilhança patriótica entre a verdade histórica e o mito, fazendo este, ainda, colaborar com o dinamismo do texto. 3.5 O Mito em Lusíadas: funções O mito, já visto ,é um dos elementos relacionados à epopéia, dentro da qual possui extrema associação com a história . Ele está presente em Os Lusíadas, e aqui identificar-se-á algumas de suas funcionalidades. Como anteriormente apresentado, os mitos estavam presentes nos relatos de viagem do descobrimento como forma de cartografar o desconhecido e celebrar o heroísmo dos viajantes.N’ OsLusí adas , no fundo um relato de viagem, sua função também é semelhante. A valorização humana, as atitudes dos portugueses próximas dos deuses é fruto da humanização do Renascimento. Tais são os efeitos provocados por alguns episódios fundamentais: a Ilha dos Amores, comentado anteriormente na apresentação da obra, e também do Gigante Adamastor. O mito fixou no texto outra função: a de divinizar as ações dos portugueses.Os heróis tomavam grandes proporções e por isso exaltavam o povo espelhado em seus atos magníficos.Não há como deixar de perceber, por uma lado a amplitude destes heróis, elevados ao ponto de ser comparados aos deuses. Por outro lado, percebe-se a duplicidade figurada dos mitos que ao mesmo tempo possuem um lado humano. Esse é o caso de Adamastor, um gigante 30 ameaçador que comove e se desespera por um amor, chorando constantemente por amor de Têtis. O episódio da Ilha dos Amores, em que as ninfas concedem favores aos navegadores, mostra esse aspecto que os tornam mais que humanos. Afora essas funções do mito, Saraiva e Lopes (1979) colocam que para o poema era indispensável uma mola de ação e só a história não bastava.Durante a viagem de Gama, a narrativa mostra este movimento: a face sobre-humana dos navegadores e dos deuses quase que humanos. “ Os deuses desejam, palpitam, lutam, são de carne , em cont r as t e com oshomenshi s t ór i cos ,que apar ec em de br onz e ou de már mor e” (p.346). Os Lusíadas necessitava de uma força dramática, algo que conferisse movimento e coerência para a obra. A mitologia trouxe, como mais uma de suas funcionalidades, ação ao texto. A narrativa não deve apresentar somente uma seqüência cronológica, porém, deve existir um dinamismo, como uma mola de ação para conduzir o texto. Para Saraiva e Lopes (1979, p.347), a função central da mitologia em os Lusíadas é o sentido da ação e de proporcionar um enredo dinâmico. Dessa maneira, o humano e o divino se revelaram de extrema importância na construção de uma dinâmica e coerente epopéia. 31 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os Lusíadas por ter sido escrito em uma época tão transitória da Renascença deixou na obra concepções novas e antigas. O Renascimento foi um momento fértil que exigiu ao mesmo tempo diferentes formas de pensar. O mundo começou a ser visto não só pelo ângulo tradicionalista, mas por novos caminhos. Dentro deste universo, o poema épico de Os Lusíadas colocou todo o sentimento contraditório pelas formas de pensamento e concepções. E um dos elementos que contribuíram foram o mito e a história. Eles se mostram temas tão opostos, mas que constituem uma epopéia. Para Veyne (1983,p.126), não há como separar o mito e a história, eles são convencionais para a sociedade da época. Vale salientar que na narrativa de Os Lusíadas, o importante é a conjunção da mitologia com a história que leva o texto a assumir seu papel crucial para a exaltação do povo e registrar o momento para o mundo. A obra ficará na memória do povo e do mundo, pois trouxe a celebração da pátria e a divinização dos heróis lusos, além de relatar uma história essencial para todos os tempos. O mito resgata na obra episódios importantes que trazem para o texto de Camões o heroísmo português com a elevação dos homens lusos ao maior grau existente. Há também um fato indispensável para a humanidade a apresentação da obra como relato de viagem, ressaltando este papel significativo para o patriotismo. Não há como negar a grandeza do canto que elevou Portugal,glorificou seus heróis e trouxe 32 mitos para toda a eternidade com intuito de ser permanente. Entende-se que a história colaborou para a formação do épico com o objetivo de levar a verossimilhança à obra, buscando ser a mais verdadeira possível. Ela também serviu e serve até hoje como forma de aprendizagem, pois há historicidade contida no texto, e com sua maneira dinâmica a epopéia torna-se mais interessante. “ Nãoésó o amor que faz grande o poeta Camões, mas a verdade que o faz sábio e as si m um f i elhi s t or i ador ”( PEI XOTO,1981,p. 10) . O mito e a história são cruciais para a formação da epopéia, pois pertencem a este gênero e fazem juntos uma exaltação á pátria. Eles tendem a construir uma dinâmica difícil de existir em outros textos e colaboram com a ação do enredo de Os Lusíadas A história desempenhou diversos papéis importantes, assim como a mitologia. O que vale salientar é que na narrativa jamais se pode separar a história do mito. Pois, com tais elementos se faz esta epopéia universal. 33 REFERÊNCIAS BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 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SARAIVA, Antônio José; LOPES,Oscar. História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Porto Editora, 1979. 1218p TINÉ, José Talles. Camões e os Lusíadas. Rio de Janeiro: Editora da Universidade do Estado de Guanabara, 1974.131 p. VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Lisboa: Edições 70,1983. 151p