Sociedade de Geografia de Lisboa Comemoração do Dia Nacional do Mar (16 de Novembro de 2011) “Jornadas A Sociedade Civil e o Mar – Por uma Literacia do Oceano”1 José Bastos Saldanha O princípio do mundo são os mares. (Reflexão de pescadores, recolhida por Luís Martins2) 1998: O COMPROMISSO Em 16 de Novembro de 1998, neste auditório, proferimos uma conferência titulada “A Sociedade de Geografia e o Mar”, uma singela evocação do Dia do Mar, porventura a sua primeira celebração, com apresentação de um projeto a prazo por um grupo de sócios que se propunha reativar a Secção de Geografia dos Oceanos, “ciente da necessidade, tão só de informar a sociedade civil, mas persuadi-la de que o seu contributo é essencial para valorizar a importância objectiva do mar nos desafios de modernidade e viabilidade duradoura que se colocam a Portugal no virar deste século”. Além de definir a missão e os objetivos dela decorrentes foram indicados os segmentos-alvo da população que se pretendia atingir: o público e, em particular, os jovens, os quadros superiores e, em especial, os ligados a atividades do mar e os responsáveis tutelares e os empresários e gestores envolvidos naquelas atividades. O mesmo projeto procurava afirmar-se como movimento de ideias, congregando vontades na abordagem de questões de atualidade, sem a pretensão de oferecer qualquer solução para as resolver ou esgotar. O conjunto de atividades a desenvolver recebeu a designação de Jornadas A Sociedade Civil e o Mar para contemplar três objetivos: A Governação Duradoura dos Oceanos sobre a postura moderadora da sociedade civil face à intervenção do Estado e dos mercados na gestão dos oceanos e das zonas costeiras e a Divulgação do Conhecimento do Mar, ou seja a vulgarização do conhecimento oceanográfico; e ainda a celebração do Dia do Mar, como oportunidade para refletir sobre a temática dos oceanos e das zonas costeiras e para prestar homenagem a quem se tenha distinguido no desenvolvimento e divulgação do conhecimento do mar. “Os subscritores daquele projeto assumiram o compromisso de realizar uma análise permanente dos resultados das acções encetadas, que lhes permitisse ou prosseguir naquela linha de ação ou arrepiar caminho e tentar, com humildade e redobrada tenacidade, reencontrar esteira mais promissora”. 1 Comunicação apresentada na sessão solene do Dia Nacional do Mar, realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 16 de Novembro de 2011 2 Martins, Luís “Quantos mares tem o mar: O conhecimento dos fundos marinhos e a partilha da informação”, in GeoINova – Revista do Departamento de Geografia e Planeamento Regional, número 11 sobre Espaços marítimos, pesca e sustentabilidade. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 2005, pp.168-9. Decorridos treze anos de caminhada, perante a Sociedade Portuguesa, a quem sempre se dirigiu o nosso compromisso, é tempo de balanço, de passar em revista as Jornadas, os êxitos e os insucessos, e de nos indagarmos se o esforço valeu a pena. AS PREMISSAS DAS JORNADAS3 Antes de prosseguir, importa reiterar os conceitos de sociedade civil e de transição para a sustentabilidade que enformam as Jornadas. Sistema de governação e sociedade civil O economista escocês Adam Smith (1723-1790), celebrado autor de “A Riqueza das Nações” e um dos fundadores da teoria de mercado, reconheceu na sociedade civil uma intervenção moderadora, tanto da regulação e controlo do estado, como dos mecanismos de fixação de preços do mercado, essencial à institucionalização de um sistema de governação4. Só uma teia complexa e dinâmica de interdependências a estabelecer entre aqueles elementos (estado, mercados e sociedade civil) pode facultar ao sistema de governação a sustentabilidade e a equidade social e geracional que lhe são indispensáveis. A finalidade de um sistema de governação é contribuir para a modificação de comportamentos e para a assunção de escolhas colectivas desde o nível local até ao mundial; os maiores desafios que tem de ultrapassar são a incerteza, a inexatidão e a ignorância (sobre a precisão de estimativas e medições, a adequabilidade de métodos e a aceitabilidade dos conceitos aplicáveis) e a coordenação entre jurisdições. Clarificado o conceito de governação sustentável, o sociólogo Steve Rayner5 distingue a sociedade civil dos governos e dos mercados, por se constituir em múltiplas organizações de voluntários, muitas vezes em actividades sobreponíveis, por intermédio das quais são prestados diversos serviços às comunidades. É reconhecido que uma sociedade civil interveniente concorre para o sucesso de um governo ou a eficiência dos mercados. O pluralismo cívico e a confiança (trust) que gera são essenciais ao bom funcionamento da democracia, porque induz na sociedade a capacidade de mudança estratégica, isto é, a aptidão para responder a situações novas com soluções inovadoras. Portanto, é patente a necessidade de desenvolvimento de uma tal capacidade de modo a conferir sustentabilidade e equidade social e geracional à governação dos recursos oceânicos e das áreas costeiras. A propósito, a Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento refere no seu princípio 10 que a participação cívica é a melhor forma de se tratar as questões ambientais e a Cimeira Mundial para o Desenvolvimento Sustentável consagrou a importância decisiva da sociedade civil na modulação do processo de mudança. Desenvolvimento sustentável e transição para a sustentabilidade O objecto da sustentabilidade é o equilíbrio a estabelecer a prazo longo entre os anseios legítimos de desenvolvimento da Humanidade e os limites ambientais do Planeta, conceito conhecido por desenvolvimento sustentável, cuja aplicação universal suscita um paradigma de transição. A ideia de desenvolvimento sustentável reside na tentativa de reconciliação dos conflitos reais entre economia e ambiente e entre o presente e o futuro; a sua definição (o desenvolvimento que 3 Saldanha, José B. “Os oceanos na transição para a sustentabilidade”, in GeoINova – Revista do Departamento de Geografia e Planeamento Regional, número 11 sobre Espaços marítimos, pesca e sustentabilidade. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 2005, pp.11-32. 4 Rayner, Steve “Civil Society and Fairness in Sustainable Governance Strategies”, in Ecological Economics and Sustainable Governance of the Oceans, FLAD, Lisboa, 1998, p. 177. 5 Rayner, Steve “Mapping institutional diversity for implementing the Lisbon principles“, in Ecological Economics, 1999. 2 de 11 satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a capacidade das gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades) enunciada pela Comissão Brundtland6 concitou preocupações comuns com inevitáveis diferenças de percepção, que o relatório Our Common Journey – A Transition Towards Sustainability7 distingue entre o que deve ser sustentado, o que deve ser desenvolvido, a ligação entre si e o prazo almejado para a sua concretização. Aquilo que deve ser sustentado distribui-se por três áreas, a saber: a Natureza (a biosfera e o seu valor intrínseco, as formas de vida descritas como biodiversidade em geral ou como espécies ou ecossistemas em particular), os sistemas essenciais à preservação da vida (os recursos naturais e a sua associação com o ambiente e os serviços prestados pelo ecossistema global) e a comunidade (a diversidade cultural, grupos humanos particulares e o património). O que deve ser desenvolvido agrupa-se em: pessoas (os direitos fundamentais como sobrevivência infantil e aumento da expectativa de vida e qualidade de vida em termos de educação, equidade e igualdade de oportunidade), economia (os sectores produtivos geradores de emprego e consumo e a riqueza propiciadora de incentivos e meios de investimento e financiamento para preservação do ambiente e sua requalificação) e sociedade (um conceito amplo centrado no bem-estar e segurança dos estados, regiões e instituições e no capital social, como expressão de vínculos sociais e formas de organização comunitária). Assim, o conceito de desenvolvimento sustentável liga o que deve ser sustentado com aquilo que deve ser desenvolvido; essa ligação tem sido concretizada, de forma expressa ou implícita, por diversas opções, de harmonização e operacionalidade difíceis: sustentar e desenvolver, só sustentar, desenvolver se, sustentar ou desenvolver quanto baste. Mesmo que fosse possível obter consenso sobre aquilo que especificamente deve ser sustentado e desenvolvido, e a que prazo (a imprecisão persiste entre: uma ou várias gerações, do presente ao futuro e sempre) as sociedades confrontam-se com o desafio de como atingir aquelas finalidades. Assim, o paradigma de transição para a sustentabilidade configura uma caminhada de pequenos passos (“navegação à vista”) com progressos significativos no conhecimento básico, na capacidade social e competência tecnológica para o utilizar e avaliar os seus resultados e na vontade política para concretizar aquele conhecimento e técnicas aplicáveis. 1999: O INÍCIO DA CAMINHADA O ano de 1998 é memorável por ser o Ano Internacional dos Oceanos, pela realização em Lisboa da EXPO’ 98 sob o lema “Os Oceanos: um património para o futuro” e pela apresentação do relatório “O Oceano: Nosso Futuro” elaborado pela Comissão Mundial Independente para os Oceanos, presidida pelo Dr. Mário Soares, que fundamentou a Declaração de Lisboa; este enquadramento propiciou, no âmbito interno, propiciou o compromisso solene pelo Governo de empenhamento num projeto nacional que apelidou de regresso de Portugal ao mar, tendo para esse efeito iniciado a concretização de um notável conjunto de medidas. As Jornadas “A Sociedade Civil e o Mar” procuraram corresponder neste contexto exigente com um conjunto de conferências e colóquio aliciante que procurou atender aos três objetivos programáticos acima enunciados. Entre os primeiros oradores convidados contam-se, como não 6 Relatório Brundtland O Nosso Futuro Comum, elaborado pela Comissão Mundial para o Ambiente e Desenvolvimento sob a égide das Nações Unidas, 1987. 7 National Research Council Our Common Journey: a transition toward Sustainability, National Academy Press, Washington D.C., 1999, pp. 21-26. 3 de 11 podia deixar de ser, o Dr. Mário Soares que em 9 de Abril proferiu na sala Algarve uma conferência sobre A governação dos oceanos – a declaração de Lisboa. A celebração do Dia do Mar revestiu uma oportunidade para refletir sobre a temática dos oceanos e das zonas costeiras e para prestar homenagem a quem se tivesse distinguido no desenvolvimento e divulgação do conhecimento do mar. Na sessão solene esteve presente S. Ex.ª o Ministro da Ciência e da Tecnologia (Prof. doutor José Mariano Gago), tendo sido prestada homenagem pública ao Prof. Luiz Saldanha, com entrega das insígnias de Grande-oficial da Ordem de Santiago da Espada, grau concedido a título póstumo por Sua Excelência o Presidente da República. O evento filatélico comemorativo, com inteiro postal alusivo e aposição de carimbo do Dia do Mar, e a cunhagem de medalha comemorativa refletiram aquela homenagem e, de certo modo, moldaram a celebração nos anos seguintes. 2011: HOJE Em 2011, no âmbito nacional a Agenda do Oceano é marcada pela tomada de posse do XIX Governo Constitucional, pela apresentação e debate do seu Programa em 30 de Junho e 1 de Julho na Assembleia da República e pela promulgação da lei orgânica do Governo, aguardando-se que seja conhecida a estrutura da nova Secretaria de Estado do Mar e o modelo de articulação das várias áreas funcionais que lhe são afins. No âmbito comunitário, a aprovação pelo Parlamento Europeu em 9 de Março de 2011 de orientações para a elaboração da Estratégia Europeia para a Região Atlântica (Resolução P7_TA(2011) e em 13 de Julho passado, a Comissão Europeia adotou um conjunto de propostas relativas à modernização e simplificação da Política Comum das Pescas (PCP), que vai ser apresentado ao Parlamento Europeu e ao Conselho para apreciação e aprovação nos termos do processo legislativo ordinário (de co-decisão) e vigorarem a partir de 1 de Janeiro de 2013. No âmbito internacional, em 13 de Outubro de 2011 a ONU promoveu a celebração do Dia Internacional para a Redução de Catástrofes. As Jornadas organizaram, em conformidade, as sessões seguintes: de comemoração do Dia Europeu do Mar em 20 de Maio (tema: Estratégia Europeia para a Região Atlântica), primeira reflexão sobre “A Nova Política Comum das Pescas” em 22 de Setembro e comemorativa do Dia Internacional para a Redução de Catástrofes na data aniversariante. No âmbito interno, além da organização conjunta, em 10 de Fevereiro, de uma sessão pública de discussão do Plano de Ordenamento do Espaço Marítimo, o evento dominante das Jornadas é o 2.º Encontro da Rede Nacional da Cultura do Mar realizado na Póvoa de Varzim em 2 de Setembro volvidos sete anos após a data de realização do 1.º Encontro, em 16 de Novembro de 2004, e a deliberação tomada por unanimidade e aclamação de passar a designar aquela Rede por Rede Nacional da Cultura dos Mares e dos Rios. Em consequência, a Sociedade de Geografia de Lisboa decidiu propor o tema “Dos Mares, dos Estuários e dos Rios: Por uma Perceção Plural das suas Culturas” para a jornada comemorativa do Dia Nacional do Mar. Do programa faz parte uma mesa-redonda sobre aquele tema que tem por finalidade lançar o debate no âmbito da Rede Nacional da Cultura dos Mares e dos Rios sobre uma perceção plural das culturas marítimas, estuarinas e lagunares e fluviais, em que a bateira, embarcação originária da Ria de Aveiro, como instrumento de trabalho é o elo de ligação de comunidades piscatórias/agrícolas que navegaram ao longo da costa até ao estuário do Tejo (para a pesca do sável) e do Sado; e que a partir da Praia de Leiria demandaram por via terrestre o 4 de 11 curso médio do Tejo (os avieiros). A bateira é o símbolo desta jornada comemorativa, representada no cartaz do Dia Nacional do Mar, no carimbo comemorativo e no projeto da medalha comemorativa. PELO CAMINHO: ÊXITOS E INSUCESSOS Êxitos A evocação do Comandante Artur Baldaque da Silva (1853-1915), engenheiro hidrógrafo (2000); A homenagem ao Dr. Alfredo Magalhães Ramalho (1894-1959), pioneiro da investigação oceanográfica em Portugal (2001); A mostra itinerante sobre a vida e obra do Dr. Alfredo Magalhães Ramalho, cuja exposição tem granjeado grande interesse; A aposição do carimbo comemorativo na Sociedade de Geografia de Lisboa (navio oceanográfico “Albacora”) (2001); A atribuição pela Câmara Municipal de Oeiras do topónimo “Dr. Alfredo Magalhães Ramalho (1894-1959) – Pioneiro da Oceanografia em Portugal” ao prolongamento da Avenida Brasília no concelho de Oeiras (2001); A Declaração da Nazaré de 11 de Maio de 2002; O Encontro dos Museus do Mar (2002); A aposição do carimbo comemorativo no Museu de Marinha (muleta do Tejo) (2002); A Mostra itinerante sobre os nossos museus do mar que nos anos seguintes foi patente em localidades ribeirinhas do Continente e Açores; O Encontro das comunidades piscatórias e a rede de cultura do mar (2003); A conferência do Prof. Cat. Carlos Diogo Moreira sobre “Património e Identidade Marítima: Transmitir, Reinventar e Utilizar a Herança Marítima e Piscatória Portuguesa” (2003); A aposição do carimbo comemorativo na Figueira da Foz (saveiro da Nazaré) (2003); O Encontro da Rede Nacional da Cultura do Mar para preservar e divulgar a memória das comunidades ribeirinhas (2004); A aposição do carimbo comemorativo no Museu Marítimo de Ílhavo (lugre “Creoula”) (2004); O tema “Pescas e comunidades ribeirinhas” pela atualidade incontroversa da sustentabilidade socioeconómica da fileira das pescas em Portugal e a sua incidência na reafirmação identitária e patrimonial das nossas comunidades ribeirinhas (2005); A celebração conjunta dos Dias Mundial e Nacional do Mar (2005); A aposição do carimbo comemorativo dos Dias Mundial e Nacional do Mar na Sociedade de Geografia de Lisboa (traineira) (2005); O tema "O mar e o desenvolvimento sustentável" em razão da discussão pública sobre a Estratégia Nacional para o Mar (2006); A aposição do carimbo comemorativo na Biblioteca Municipal Rocha Peixoto (lancha poveira do alto) (2006); O tema “as comunidades ribeirinhas e o desenvolvimento local” para evidenciar a importância do âmbito local no desenvolvimento sustentável das actividades marítimas, sem perder de vista a discussão do livro verde sobre a futura política marítima europeia (2007); A aposição do carimbo comemorativo no Centro do Mar, na Horta (bote baleeiro) (2007); 5 de 11 O tema “O oceano: conhecimento e cidadania” pela evocação do 10.º aniversário do Ano Internacional dos Oceanos (2008); A compilação de eventos com divulgação periódica pela Agenda do Oceano (iniciada em 1 de Setembro de 2008); A aposição do carimbo comemorativo na sala do protocolo do pavilhão de Portugal (canoa do Tejo) (2008); O tema “O oceano: comunicação e participação” (2009); A reflexão sobre “Qual a importância eleitoral do Mar?” (2009); A aposição do carimbo comemorativo em Setúbal (galeão do sal) (2009); O tema “O Oceano e as Instituições” (2010); A aposição do carimbo comemorativo no Museu de Marinha (iate “Sirius”) (2010); A conferência “Conjuntura Marítima 2010: Oportunidades e Desafios” (2010) A cunhagem de medalhas comemorativas (1999 a 2010); As sessões comemorativas do Dia Europeu do Mar (desde 2009). Alguns insucessos O adiamento da edição do livro de homenagem ao Dr. Alfredo Magalhães Ramalho; O cancelamento da compilação do Directório de Museus com Colecções relativas ao Mar, Aquários e Oceanários; A desaprovação do projeto ”Construindo a Rede Nacional de Cultura do Mar – Encontro com o Património Marítimo e as Culturas Ribeirinhas” (2004). POR UMA LITERACIA DO OCEANO Começo por aludir a um excerto do I Inquérito Nacional às Representações e Práticas dos Portugueses sobre o Ambiente8 conduzido em 1997: “Vive-se cada vez mais no litoral, sem que o mar tenha a visibilidade de conhecimento e de preocupação que talvez se pudesse esperar num país há tanto tempo para ele virado. É, pelo contrário, para o interior, para a terra, para os rios, que os portugueses parecem dirigir o essencial da sua atenção e dos seus cuidados”. Apesar de certo folclore que rodeou a EXPO-98, muitos Portugueses foram expostos e tiveram a oportunidade de descobrir a nossa ancestral ligação ao mar, de reconhecer a condição quasiarquipelágica do Estado Português, de saber que a nossa zona económica exclusiva é 18 vezes a área do território terrestre e de tomar consciência das potencialidades dos nossos recursos marinhos. Não existe nenhum inquérito social anterior e posterior àquele evento que possa indiciar uma tal aquisição cultural e o nível da sua aplicação. As inúmeras celebrações do Dia Nacional do Mar que nos chegam noticiadas de todo o País é um indicador indesmentível de que, pelo menos, nesta data aniversariante o Mar é tema recorrente de media, instituições e participantes. O que perpassa para a Sociedade não se sabe, nem como ela a utiliza. O que reveste tão só um desafio de comunicação A capacidade de compreender e aplicar informação impressa ou a partir de outros media, isto é, a literacia, é essencial ao bom funcionamento de um sistema de governação por facilitar a modificação de comportamentos e a assunção de escolhas colectivas e robustecer em particular a sociedade civil e a sua tolerância e pluralismo. 8 João Ferreira de Almeida (organizador), Os Portugueses e o Ambiente: I Inquérito Nacional às Representações e Práticas dos Portugueses sobre o Ambiente, Oeiras, 2000. 6 de 11 O Plano Nacional de Leitura Em Portugal, o Plano Nacional de Leitura9 é uma iniciativa do Governo que tem como objectivo central elevar os níveis de literacia dos portugueses e colocar o país a par dos nossos parceiros europeus. Com efeito, os resultados globais de estudos nacionais e internacionais realizados nas últimas duas décadas demonstraram que a situação de Portugal é grave, revelando baixos níveis de literacia, significativamente inferiores à média europeia, tanto na população adulta, como entre crianças e jovens em idade escolar. O Plano Nacional de Leitura propõe-se criar condições para que os portugueses alcancem níveis de leitura (literacia de leitura) em que se sintam plenamente aptos a lidar com a palavra escrita, em qualquer circunstância da vida, possam interpretar a informação disponibilizada pela comunicação social, aceder aos conhecimentos da Ciência, desfrutar as grandes obras da Literatura. O Plano Nacional de Leitura concretiza-se num conjunto de medidas destinadas a promover o desenvolvimento de competências nos domínios da leitura e da escrita, bem como o alargamento e aprofundamento dos hábitos de leitura, designadamente entre a população escolar; adopta uma estratégia faseada para abranger os diferentes sectores da população, identificando públicos-alvos privilegiados para cada fase de cinco anos. Na primeira fase, que decorreu entre 2007 e 2011, foram eleitas como público-alvo prioritário as crianças que frequentam a Educação Pré-escolar e o Ensino Básico, em particular os primeiros seis anos de escolaridade. O mesmo Plano reconhece ser importante criar um ambiente social propício ao alargamento de hábitos culturais na área do livro e da leitura, mediante o debate público e o fomento de múltiplas e variadas iniciativas, de âmbito local, regional, nacional, tanto na esfera do setor público como do privado, levadas a cabo por organizações da sociedade civil, por profissionais e por voluntários. Literacia para todos No âmbito das Nações Unidas, refira-se a ação da UNESCO na vanguarda dos esforços conducentes a uma abordagem da literacia à escala global, conferindo-lhe prioridade nas agendas nacionais, regionais e internacional. É que a literacia é um direito humano, um instrumento de capacidade pessoal e um meio de desenvolvimento social e humano e da qual dependem oportunidades educacionais. E, no entanto, quando cerca de 800 milhões de adultos (um em cada seis) não dispõem de níveis mínimos, literacia para todos parece algo inacessível! O desafio foi lançado em 2003 pela Década das Nações Unidas sobre Literacia: Educação para Todos (20032012) para expressar a determinação coletiva da comunidade internacional para promover um ambiente literato para todos, jovens, mulheres e homens, em países desenvolvidos e em desenvolvimento: o objetivo geral é, em 2015, aumentar em 50% as taxas de literacia. No Dia Internacional da Literacia, que anualmente se celebra a 8 de Setembro, a UNESCO relembra a responsabilidade da comunidade internacional sobre o estado global da literacia e da aprendizagem de adultos. Importa ainda atentar na renovação do conceito de literacia adotado pela UNESCO que ultrapassou a noção simples de um conjunto de níveis de competência de leitura, escrita e cálculo para outra, que integra dimensões múltiplas destas capacidades10. Ao admitir recentes 9 Plano Nacional de Leitura. 2011. http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/, consultado em 10 de Novembro de 2011. Literacia é a capacidade para identificar, compreender, interpretar, criar, comunicar, calcular e usar materiais, impressos e escritos, associados a diversos contextos. A literacia implica uma continuidade na aprendizagem de modo a permitir que um indivíduo atinja os seus objetivos, desenvolva o seu conhecimento e potencial associado e participe plenamente na sociedade aberta. Nos tempos modernos, a literacia é considerada um problema social para ser resolvido pela educação. 10 7 de 11 transformações económicas, políticas e sociais – incluindo a globalização e o avanço das tecnologias de comunicação e informação – a UNESCO reconhece as muitas práticas de literacia incluídas em diferentes processos culturais, circunstâncias individuais e estruturas coletivas. Nas sociedades contemporâneas, os usos de literacia estão a transformar-se rapidamente reagindo a mudanças sociais, económicas e tecnológicas. A Rede para uma Literacia do Oceano Desde 2002 que, nos Estados Unidos da América, a Rede para uma Literacia do Oceano (The Ocean Literacy Network)11 tem desencadeado um vasto esforço de colaboração descentralizado, conduzido por cientistas e educadores para criar uma sociedade mais literata em assuntos do Oceano. Neste contexto, literacia significa compreender qual é a influência que o Oceano exerce sobre nós e como o influímos; uma pessoa literata em assuntos do Oceano entende os princípios essenciais e os conceitos fundamentais, sabe comunicar de modo adequado e é capaz de fundadamente tomar decisões responsáveis sobre o Oceano e os seus recursos. Um objetivo importante daquela Rede é a educação dos estudantes desde o ensino pré-escolar (Kindergartenlevel) até ao secundário (12th level). A sua parte essencial consistiu no desenvolvimento consensual do chamado Enquadramento para uma Literacia do Oceano (Ocean Literacy Framework) composta por dois documentos: (1) Os (sete) Princípios da Literacia do Oceano (Ocean Literacy: The Essential Principles of Ocean Sciences K-12)12 refletem os esforços para definir literacia do Oceano e estão relacionados com os padrões nacionais para educação da Ciência (the National Science Education Standards); e (2) o Âmbito e Sequência (Ocean Literacy Scope and Sequence for Grades K-12) é uma ferramenta pedagógica para ajudar os alunos dos vários níveis de escolaridade a desenvolverem um entendimento sobre os sete Princípios supracitados. Por intermédio da Net13, a Rede faculta aos educadores formais e informais e aos planeadores curriculares um roteiro de apoio à formulação coerente e conceptualmente válida de experiências de aprendizagem para os diversos níveis de escolaridade, além de permuta de contributos individuais para promover uma literacia do Oceano e a interligação entre os diversos parceiros. Com a divulgação em Setembro de 2011 de uma iniciativa, liderada por vinte Estados norteamericanos, para enunciar a próxima geração de padrões de Ciência (Next Generation Science Standards) com o intuito de aperfeiçoar a educação científica de todos os estudantes, a Rede agita-se de novo para garantir a representação da literacia do Oceano e acompanhar o esforço que está a ser conduzido por aqueles Estados. Primeira referência a uma literacia do Oceano No âmbito das Jornadas “A Sociedade Civil e o Mar”, a primeira referência a uma literacia do Oceano, ou seja a capacidade individual de compreender e aplicar informações sobre o Oceano impressas ou a partir de outros media, foi feita há dois anos por ocasião de uma comemoração do Dia Nacional do Mar, em 16 de Novembro de 2009, pela Dr.ª Carla da la Cerda Gomes no seminário “Como tornar mais eficientes a comunicação e a participação nos assuntos do Mar?”, 11 Ocean Literacy. http://oceanliteracy.wp2.coexploration.org/, consultado em 14 de Novembro de 2011. 1 - A Terra tem um Oceano global muito diverso; 2 - O Oceano e a vida marinha têm uma forte ação na dinâmica da Terra; 3 - O Oceano exerce uma influência importante no clima; 4 - O Oceano permite que a Terra seja habitável; 5 - O Oceano suporta uma imensa diversidade de vida e de ecossistemas; 6 - O Oceano e a humanidade estão fortemente interligados; e 7 - Há muito por descobrir e explorar no Oceano. 13 http://oceanliteracy.wp2.coexploration.org/ 12 8 de 11 numa breve apresentação titulada “Comunicar o Conhecimento do Mar: processos, desafios e experiências”. O projeto Conhecer o Oceano A Ciência Viva – Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica coordenou a adaptação à realidade portuguesa da iniciativa da supracitada Rede para uma Literacia do Oceano, designando-a projeto Conhecer o Oceano com o propósito de “estimular o envolvimento dos cidadãos nos temas do Mar”. Estranhamente, a única menção a literacia do Oceano é a referência incompleta Ocean Literacy à supracitada iniciativa norte-americana; aliás, percebe-se no texto uma aceção polissémica de literacia do Oceano como Conhecer o Oceano (na designação acima do projeto) e como cultura científica do Oceano (na identificação dos sete princípios essenciais, indevidamente considerados sobre cultura científica do Oceano quando deveriam ser sobre literacia do Oceano). Uma tal polissemia é incompreensível, porque literacia, conhecimento e cultura científica não são sinónimos, embora os dois últimos termos detenham certa afinidade; além disso, o conceito em rede da iniciativa norte-americana (The Ocean Literacy Network) foi desvirtuado, reduzindo-o a um propósito genérico baseado numa aceção de princípios essenciais de literacia do Oceano confundidos com conceitos fundamentais das Ciências do Mar que os enformam14. Em 15 de Novembro de 2011, no portal Ciência Viva foi aberta a página do projeto Conhecer o Oceano15 que oferece: 1) Conhecimento essencial sobre as ciências do mar adaptado ao currículo escolar; 2) Recursos educativos sobre o Oceano adequados a cada nível de escolaridade; 3) Enquadramento sobre as políticas públicas do mar; e 4) Informação sobre a investigação relacionada com o mar que se está a fazer em Portugal. Ambientes literatos É consensual a importância de uma educação para todos, mas não é tudo: há necessidade de desenvolver ambientes literatos16 em casa, nas escolas, na comunidade e na sociedade em geral. Com efeito uma literacia para todos requer a criação de sociedades literatas. O conceito de ambiente literato associa todos os aspetos de literacia, tais como, a aquisição, uso e desenvolvimento, práticas, materiais, edições, bibliotecas, meios de comunicação, instituições, propósitos e linguagem. Interessa considerar a inexistência desse ambiente na ponderação da eficácia das ações a empreender e da sua retenção pelos destinatários; pode ser o caso da indisponibilidade de documentação escrita. Atente-se, que as competências em literacia se devem desenvolver ao longo da vida em ambientes literatos, sem os quais aquelas competências estagnam e se perdem com facilidade, mesmo com uma aplicação consistente. Refira-se, de novo, os baixos níveis de literacia em Portugal, significativamente inferiores à média europeia, tanto na população adulta, como entre crianças e jovens em idade escolar, a que o Plano Nacional de Leitura tem procurado dar resposta, atentando em primeira mão na literacia da leitura. No entanto, segundo a UNESCO, o conceito de literacia é mais amplo, incluindo além de níveis de competência de leitura, escrita e cálculo, dimensões múltiplas destas capacidades que incorporam outros desafios, mormente, a evolução das tecnologias de comunicação e informação 14 Ocean Literacy: Essential Principles and Fundamental Concepts. http://www.coexploration.org/oceanliteracy/documents/OceanLitChart.pdf, consultado em 14 de Novembro de 2011. 15 Conhecer o Oceano. http://www.cienciaviva.pt/oceano/home/, consultado em 15 de Novembro de 2011. 16 Lind, Agneta, Literacy for all: making a difference, IIEP's key series “Fundamentals of educational planning”, N.º 89, UNESCO, Paris, 2008, p. 82. 9 de 11 (literacia da informação); assim, os usos de literacia estão a transformar-se rapidamente reagindo a mudanças sociais, económicas e tecnológicas. Neste contexto, desconhece-se a existência no nosso País de um debate sobre o tema literacia na aceção moderna de que o seu propósito último é induzir a participação plena dos indivíduos na sociedade aberta (uma questão de cidadania essencial). Um tal esforço poderia dar sentido e articulação a várias iniciativas, aparentemente disjuntas, tais como, o Plano Nacional de Leitura, a educação de adultos, a educação ambiental, a cultura científica e tecnológica, o património material e imaterial e as culturas, as quais contribuiriam concertadamente, no âmbito nacional, regional e local, para elevar os níveis de literacia existentes e para afirmar uma renovada cidadania como seu propósito plural. Jornadas “A Sociedade Civil e o Mar” A Sociedade de Geografia de Lisboa está ciente do contributo prestado desde 1999 pelas Jornadas “A Sociedade Civil e o Mar” para a criação e desenvolvimento de um ambiente propício à chamada literacia plural do Oceano; refira-se, em particular, a Rede Nacional da Cultura dos Mares e dos Rios e, mais recentemente, a atualização periódica da Agenda do Oceano que, identificando as questões relativas ao oceano e às suas margens, permite o seu acompanhamento e eventual debate. Conforme foi anteriormente referido, decorridos sete anos sobre a data de realização do seu primeiro Encontro, a Rede Nacional da Cultura do Mar concretizou o segundo em 2 de Setembro passado na Póvoa de Varzim a convite da autarquia local e dele se podem respigar três aspetos essenciais: a mudança de designação por deliberação unânime e aclamação para Rede Nacional da Cultura dos Mares e dos Rios (RNCMR) para enfatizar o seu caráter plural; a realização do Encontro numa comunidade local, a qual assume durante dois anos uma responsabilidade partilhada com a Sociedade de Geografia de Lisboa pela continuidade da Rede; e o início de uma itinerância transcomunitária. Interessa referir que a RNCMR é conceptualmente uma constelação de redes locais, as quais se pretende que sejam espaços de encontro e permuta de experiências e informação, abertos, permanentes, orientados por objectivos de cooperação comuns na divulgação da realidade ribeirinha que lhe é familiar, por estar mais próxima, e do respetivo contexto patrimonial, cujo conhecimento pode contribuir para a educação ambiental, o enriquecimento da cultura científica e a consciencialização cívica. Por esta via, poder-se-á criar um ambiente de literacia ribeirinha das comunidades locais habilitando-as, a uma melhor apropriação da informação sobre o mar e as zonas costeiras. Torna-se, pois, prioritário iniciar a construção ascendente da RNCMR começando por ensaiar na Póvoa de Varzim a estrutura piloto que se baseia numa rede comunitária constituída por município, universidade e escolas, administração portuária, organizações económicas e sociais, empresas e órgãos de comunicação social, associações cívicas e cidadãos. Agenda da Literacia Por último, a Sociedade de Geografia de Lisboa, atenta à pertinência temática, vai propor por ocasião do Dia Internacional da Literacia, em 8 de Setembro próximo, a celebração desta efeméride, o encerramento da Década das Nações Unidas sobre Literacia: Educação para Todos (2003-2012), declarada pela Resolução da Assembleia-geral das Nações Unidas A/RES/56/116 e a convocatória de um Encontro Nacional sobre Literacia. EPÍLOGO 10 de 11 Durante estes anos, intensos e gratificantes das Jornadas “A Sociedade Civil e o Mar” e para além do contributo de vulgarização do conhecimento oceanográfico, ambos em prol de um ambiente propício a uma literacia plural do Oceano, tem sido possível tecer uma rede informal de cumplicidades a favor da nobre causa do Mar que paulatinamente se vai desenvolvendo ao ritmo empático das relações pessoais e com a disponibilidade para trabalho voluntário. O meu agradecimento e da Sociedade de Geografia de Lisboa a todos quantos, no dia a dia, tornam esta caminhada uma realidade viva e atuante. Bem-hajam! 11 de 11