ANOTAÇÕES SOBRE O TÍTULO “DA PROVA” DO NOVO CÓDIGO CIVIL J OSÉ C ARLOS B ARBOSA M OREIRA * Sumário: 1 – Generalidades; 2 – Âmbito de incidência do art. 212. Caráter exemplificativo do elenco legal; 3 – Referências à presunção no Título “Da prova”; 4 – Considerações sobre a enumeração do art. 212; 5 – Inspeção judicial e perícia; 6 – As presunções; 7 – Considerações finais. 1 – G ENERALIDADES O Título “Da prova” (Título V do Livro III, arts. 212 a 232) é certamente dos menos felizes do Código Civil de 2002. Seria talvez adequado começar por questionar a propriedade mesma da inserção, no texto do Código, de um conjunto de regras concernentes à prova. Como é notório, muito se tem discutido em doutrina a pertinência desta ao direito material ou ao direito processual. O legislador de 1973 claramente optara pelo segundo termo da alternativa, conforme ressalta da existência, no vigente Código de Processo Civil, de um Capítulo (n° VI do Título VIII do Livro I, arts. 332 a 443) dedicado às provas1, onde se contém disciplina bem mais minuciosa que a constante do novo estatuto civil. Admita-se que este tomasse outra opção; abstraindo-se das críticas a que se sujeitaria em razão dela, era de esperar que, tendo resolvido tratar do assunto, o fizesse de modo abrangente e sistemático, com revogação expressa, ao menos parcial, das disposições do diploma anterior. Professor da Faculdade de Direito da UERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. 1 A bem da verdade, a localização não é incensurável. A disciplina das provas de modo algum interessa apenas ao processo de conhecimento (rubrica do Livro I), e menos ainda só ao procedimento ordinário (rubrica do Título VIII). Ficaria melhor numa parte geral, a que lamentavelmente não se reservou espaço na estrutura do Código. * 11 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Não é o que se vê; fica a legislação brasileira sobre prova dividida entre dois códigos. Há outros exemplos no direito comparado: assim a França (code civil, arts. 1.315 e ss.; code de procédure civile, arts. 9 e ss., 132 e ss.), a Itália (códice civile, arts. 2.697 e ss.; códice di procedura civile, arts. 191 e ss., 281 ter), Portugal (Código Civil, arts. 341 e ss.; Código de Processo Civil, arts. 513 e ss.). Aliás, a divisão vem do próprio direito brasileiro antigo: por longo tempo coexistiram regras sobre prova no Código Civil de 1916 (Capítulo IV do Título I do Livro III) e no Código de Processo Civil de 1939 (Título VIII do Livro II), e depois no de 1973 (Capítulo VI do Título VIII do Livro I). Nada disso, é óbvio, justificava que se persistisse no rumo2. Nem se compreende bem o critério adotado para a escolha dos tópicos que o novel diploma regularia, com preterição de outros. Para dizer diversamente: não fica muito claro o motivo por que o legislador de 2000 entendeu de levar para o Código Civil determinada porção da disciplina da prova e deixar de lado a porção restante. Não se terá seguido à risca, exemplificativamente, a orientação preconizada em obra clássica, segundo a qual pertencem ao direito substantivo “as disposições relativas à essência das provas, à sua admissibilidade, aos seus efeitos, às pessoas que devem ministrá-las” e ao direito processual “as regras propriamente relativas ao modo, tempo e cautelas da sua constituição e produção”3. À luz da cláusula que grifamos, deveriam incorporar-se ao Código Civil, v.g., as disposições que distribuem o ônus da prova entre as partes, à semelhança do que ocorre na Itália (códice civile, art. 2.697) e em Portugal (Código Civil, art. 342): entre nós, desprezou-se esse modelo, e a matéria continua versada exclusivamente no Código de Processo Civil, art. 333. Tem conseqüência sobremodo inconveniente a técnica fragmentária e assistemática utilizada pelo legislador de 2002. Há no novo Código Civil disposições sobre tópicos versados no Código de Processo Civil; em alguns casos, mas não em todos, repetiu-se no mais recente diploma o que já constava do anterior: v.g., o art. 225 deste praticamente nada acrescenta Também na França há quem censure o “chevauchement entre le deux codes”: segundo VINCENT/GUINCHARD (Procedure civile. 27.ed. Paris, 2003, p.790), nele se depara “tout ce qu’il y a de plus critiquable en théorie comme en pratique”. 3 AMARAL SANTOS. Prova judiciária no cível e no comercial. 5.ed. São Paulo, 1983, p.42-43 (sem grifo no original). 2 12 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 (exceto a imprópria qualificação de “plena” dada à prova4) ao que se lê no art. 383 daquele; o art. 227, caput, do primeiro reproduz quase ipsis verbis (com ociosa ressalva inicial e substituição de “contratos” por “negócios jurídicos”) o art. 401 do segundo. A par disso, em cada um dos dois diplomas existem normas sem correspondente no outro. Destarte, nosso direito probatório de hoje é o resultado da superposição de dois retículos normativos, com pontos e espaços que nem sempre coincidem. Os intérpretes e aplicadores da lei têm de precaver-se contra as ciladas que lhes prepara esse autêntico cipoal5. Se se quiser um exemplo, comparem-se os dizeres do art. 368 do diploma processual e do art. 219 do civil. O caput deste harmoniza-se com o daquele: abstraindo-se de ligeiras e irrelevantes diferenças de redação, estabelecem ambos que se presumem verdadeiras em relação aos signatários as declarações constantes de documento particular assinado. Outro tanto não se dirá, contudo, dos parágrafos. Nos termos do que acede ao art. 368 do Código de Processo Civil, “quando, todavia, contiver [o documento] declaração de ciência, relativa a determinado fato, o documento particular prova a declaração, mas não o fato declarado, competindo ao interesssado em sua veracidade o ônus de provar o fato”. Já no parágrafo único do art. 219 do Código Civil (que repete o parágrafo único do art. 131 do Código Civil de 1916), é coisa diferente que se lê: “Não tendo relação direta, porém, com as disposições principais ou com a legitimidade das partes, as declarações enunciativas não eximem os interessados em sua veracidade do ônus de prová-las”. Salvo engano, “declaração de ciência relativa a determinado fato” não significa o mesmo que declaração enunciativa sem “relação direta com as disposições principais ou com a legitimidade das partes”. Que se há de concluir? Que o parágrafo único do art. 368 do Código de Processo Civil foi revogado pelo parágrafo único do art. 219 do Código Civil? Ou podem as duas disposições coexistir pacificamente, somando-se as declarações mencionadas numa e noutra, para o fim de excluir quanto a Para a crítica dessa terminologia, vide MOREIRA, Barbosa. O novo Código Civil e o direito processual. Revista Forense, v.364, p.190-191; ARAGÃO, Moniz de. Regras de prova no Código Civil. Ibid., v.376, p.56-57. 5 Fundadas as observações de DINAMARCO, Cândido. Instituições de Direito Processual Civil. 4.ed. São Paulo, 2003, v.III, p.46. 4 13 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 todas elas a presunção de veracidade e, por conseguinte, manter a normal distribuição do onus probandi6? 2 – ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DO ART. 212. CARÁTER EXEMPLIFICATIVO DO ELENCO LEGAL A enumeração das provas constante do art. 212 do novo Código Civil é precedida de uma advertência: “Salvo o negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico pode ser provado mediante...”. À vista dela, vem à mente a conjectura de que o Código só se preocupa com a prova de fatos jurídicos, isto é, de fatos que, por estarem previstos em alguma norma jurídica, como pressupostos da respectiva incidência, são – ao menos em tese e potencialmente – capazes de produzir efeitos no mundo do direito. Entretanto, não são apenas esses fatos que podem necessitar de prova. É mister, com certa freqüência, demonstrar a veracidade de alegações sobre fatos que, insuficientes por si mesmos para produzir efeitos jurídicos, assumem relevância, não obstante, para a formação do convencimento do órgão judicial; v.g., acontecimentos naturais: a que horas o sol nasceu no dia x; qual a maior altura atingida pela maré em certo ponto do litoral; até que distância da praia era audível, em determinado momento, o ruído das ondas do mar? E assim por diante. Não raro, embora um fato não baste, sozinho, para gerar efeitos jurídicos, o conhecimento que se tenha dele vai fornecer o ponto de partida para chegar-se, por meio de raciocínio, ao conhecimento de outro fato, gerador de tais efeitos. Tem essa feição o mecanismo intelectual a que se aplica o nome de presunção simples ou comum (praesumptio hominis): para aproveitar exemplo dado noutra obra clássica de nossa literatura processual, o fato de Tício passar empunhando um archote, pouco antes do incêndio, conquanto em si desprovido de efeitos jurídicos, bem pode interessar em processo no qual se queira promover a responsabilidade civil 6 Inclinamo-nos para a segunda solução. Também CINTRA, Araújo. Comentários ao Código de Processo Civil. 2.ed. Rio de Janeiro, 2003, v.IV, p.107, rejeita a idéia da revogação, mas, ao que parece, por equiparar as “declarações enunciativas” do mais recente diploma às referidas no anterior. Assistelhe inteira razão, por sinal, quando censura a redação do Código Civil como “tortuosa” e de “sentido obscuro”; e mais, quando frisa que “a menção à legitimidade das partes (...) não faz sentido claro no contexto”. É estranho o emprego do pronome em “prová-las”: o ônus a que alude o texto não pode dizer respeito às próprias declarações (que o documento, por si, já prova), mas ao(s) fato(s) a que elas se referem. Merece apoio a conclusão do autor: “Seria pois preferível que o legislador não editasse a regra do artigo 219 do novo Código Civil que em nada melhorou a disciplina da prova feita por documento particular assinado” (no original, por manifesto cochilo de revisão, lê-se “assinada”) 14 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 de Tício pelos danos que teria causado ateando fogo ao prédio7. Talvez não seja possível demonstrar diretamente a veracidade da afirmação de que foi Tício quem provocou o incêndio, mas possa comprovar-se a sua passagem por perto, minutos antes, com o archote; e da certeza sobre esse fato, somada à certeza sobre outros fatos que apontem no mesmo sentido, concluir, com segurança, que foi Tício o causador do sinistro. Em linguagem técnica, a presença de Tício, nas condições aludidas, servirá de indício, a ser valorado em conjunto com outros, porventura concordantes, para fundamentar a presunção da culpa de Tício. À luz dessas considerações, desde logo se impõe uma pergunta: o elenco do art. 212 concerne unicamente à prova dos fatos jurídicos e não abrange a dos fatos simples? Argumentos de ordem textual seriam invocáveis para dar-se resposta afirmativa. Não só o teor literal do caput aponta nessa direção: vários dispositivos do Título V mostram que o legislador, ao redigilos, sem dúvida tinha a mente voltada para o caso de prova de fato jurídico, e não falta até um ou outro (como o art. 227 e seu parágrafo único) em que nítida e categórica cláusula restritiva limita a incidência da regra aos negócios jurídicos. No entanto, parece injustificável, do ponto de vista lógico, a idéia de que as provas arroladas no art. 212 não possam referir-se a fatos simples. As conseqüências seriam disparatadas: para continuarmos a usar o exemplo acima invocado, não se poderia provar com testemunhas (inciso III) a presença de Tício, com o archote, pouco antes do incêndio, nas imediações do prédio, e menos ainda aplicar à eventual confissão de Tício quanto a esse fato a norma do art. 214... Assente a premissa de que as provas arroladas no art. 212 do Código Civil são invocáveis, em princípio, acerca de quaisquer fatos, jurídicos ou simples, a indagação que segue é sugerida pelo confronto entre esse texto e o do art. 332 do estatuto processual, verbis: “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”. Aí se consagrou o princípio da não-taxatividade das enumerações legais na matéria; o direito brasileiro não é refratário à utilização de “provas atípicas”8. 7 8 LOPES DA COSTA. Direito Processual Civil Brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro, 1959, v.II, p.318. O autor assinalava terminologicamente a diferença entre as duas classes de fatos chamando jurídicos aos de uma e simples aos de outra. Acerca do sentido que se deve atribuir a essa expressão, bem como de algumas questões pertinentes, vide MOREIRA, Barbosa. Observaciones sobre las llamadas pruebas atípicas (comunicação ao XVI Congresso Mexicano de Direito Processual, de 1999, publicada no respectivo volume de 15 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Põe-se a questão de saber se esse princípio foi afastado pelo art. 212 do novo Código Civil; noutras palavras, se é ou não taxativa a enumeração nele contida. A doutrina tem sustentado, a nosso ver com acerto, o caráter exemplificativo do elenco legal e, por via de conseqüência, se bem que nem sempre em termos explícitos, a subsistência da admissibilidade de provas atípicas9. 3 – REFERÊNCIAS À PRESUNÇÃO NO TÍTULO “DA PROVA” No Título “Da prova”, a palavra “presunção” aparece, no singular, no art. 212, n° IV, onde se encontra a enumeração a que acima aludimos; no plural, no art. 230, verbis: “As presunções, que não as legais, não se admitem nos casos em que a lei exclui a prova testemunhal”. O verbo cognato “presumir” figura no caput do supracitado art. 219: “As declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários”. Não quer isso dizer que as outras disposições do mesmo título não tenham relação alguma com o assunto. Certamente a tem, por exemplo, o art. 232 (“A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame”); mas aí se cuida de matéria específica, da qual não nos ocuparemos neste trabalho10. O texto do art. 230 pressupõe a distinção correntia entre presunções legais (praesumptiones iuris) e presunções comuns ou simples (praesumptiones hominis) também chamadas judiciais, porque na prática adquirem relevância memórias, t.I, p.17 e ss., e em Temas de Direito Processual, Sétima Série. São Paulo, 2001, p.39 e ss.). Sobre a origem do art. 332, remetemos ao nosso escrito Códice di procedura civile dello Stato delia Città dei Vaticano come fonte storica dei diritto brasiliano. In: Studi in onore di Vittorio Denti. Pádua, 1994, v.I, p.9, ou in Temas cit., Quinta Série. São Paulo, 1994, p.194-195. 9 Não deparamos pronunciamento algum no sentido contrário. Cf., ao propósito, entre outros: RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 34.ed. São Paulo, 2003, v.I, p.271 e 280; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro, 2003, v.III, t.II, p.395-396; NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Parte Geral. Rio de Janeiro, 2003, p.591-592; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife, 2004, v.I, p.432; VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Parte Geral. 5.ed. São Paulo, 2005, p.639; RIZZARDO, Arnaldo. Parte geral do Código Civil. Rio de Janeiro, 2003, p.688 e 690; DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. São Paulo, 2004, p.39; ARAGÃO, Moniz de. Regras de prova no Código Civil. Rev. For., v.376, p.53; OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil. Rio de Janeiro; São Paulo, 2002, p.431. 10 Dela tratamos ex professo noutro trabalho, em que procuramos mostrar como se articulam e que significação têm, interpretados em conjunto, os arts. 232 e 231: La negativa de la parte a someterse a una perícia médica (según el nuevo Código Civil brasileno) (comunicação ao XXII Congresso Argentino de Direito Processual, de 2003, publicada na Rev. de Proc., n.113. 16 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 por obra do juiz. Conjuga-se a regra com a do art. 227, caput (reprodução quase literal, reitere-se, do art. 401 do Código de Processo Civil), que restringe a admissibilidade da prova exclusivamente testemunhal aos “negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados”. Também a disposição do art. 230, pois, tem incidência limitada à área dos negócios jurídicos. Salvo na distinção pressuposta por esse artigo, nenhuma das duas normas se reveste de interesse geral para o presente estudo. Não se descobre no estatuto civil (nem no processual, apesar de seu gosto por tal gênero de disposições) uma definição de presunção. Outras legislações têm-na formulado; entre as mais singelas, ressalta a do bicentenário Código Civil francês, art. 1.349: “Les présomptions sont des consequences que la loi ou le magistrat tire d’unfait connu à unfait inconnu” (traduzido quase ao pé da letra no art. 2.727 do códice civile italiano: “Le presunzioni sono le conseguenze che la legge o il giudice trae da unfatto noto per risalire a unfatto ignorato”). O texto põe em relevo a supramencionada classificação das presunções em legais e comuns ou judiciais. A designação de “presunções legais”, porém, é equívoca: abrange fenômenos de variável substância. Como esperamos haver deixado claro em escrito que já data de mais de duas décadas11, as presunções legais relativas (praesumptiones iuris tantum) constituem regras especiais de distribuição do onus probandi12, ao passo que as presunções legais absolutas (praesumptiones iuris et de iure) nada têm que ver com a prova, e esgotam no plano do direito material seu significado e sua função. Recapitulando em apertada síntese o que ali se expôs: quando a lei consagra uma presunção absoluta – seja porque entenda maior a probabilidade de que as coisas se hajam passado de certa maneira, seja porque leve em conta a particular dificuldade que se encontraria em demonstrar que elas assim realmente se passaram –, o que na verdade faz é tornar irrelevante, para a produção de determinado efeito jurídico, a presença deste ou daquele elemento ou requisito no esquema fático13. Se não existisse a presunção, seria indispensável, para que se As presunções e a prova. In: Temas. Op. cit., Primeira Série. 2.ed. São Paulo, 1988, p. 55 e ss. Sublinha-o a doutrina alemã: vide, em sede monográfica, LEIPOLD. Beweislastregeln und gesetzliche Vermutungen. Berlim, 1966, p.99-100; na mais recente literatura, ROSENBERG; SCHWAB; GOTTWALD. Zivilprozessrecht. 16.ed. Munique, 2004, p.783. 13 Cf. LEIPOLD. Op. cit., p.102-104. Na doutrina brasileira contemporânea, acentua corretamente DINAMARCO, Cândido. Op. e vol. cit., p.125, que, “ao interferir na estrutura da disciplina jurídico11 12 17 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 produzisse o efeito, o concurso de x, y e z; estabelecendo uma presunção absoluta em relação a z, a lei faz depender a produção do efeito somente do concurso de x e y. Dizer que, nesse caso, não se admite a prova da inexistência de z é usar fórmula oblíqua para expressar que semelhante prova nenhuma influência teria, já que, com z ou sem z, a situação jurídica seria a mesma. A rigor, a existência ou inexistência de z fica fora do thema probandum como fora dele fica a prova de todo e qualquer fato irrelevante: no processo, não devem praticar-se atos inúteis. Exemplo típico era a disposição do art. 550 do antigo Código Civil, verbis: “Aquele que, por 20 (vinte) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente de título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para transcrição no Registro de Imóveis”. Noutras palavras: para consumar-se a aquisição por usucapião, bastam a posse e o tempo: não se necessita de título nem de boafé. O novo Código, com melhor técnica, prescinde do expediente da presunção e diz com simplicidade no caput do art. 1.238: “Aquele que, por 15 (quinze) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis”14. O atual art. 212 alude à presunção, no inciso IV, em termos genéricos, sem especificação alguma. Contudo, à vista do que acima ficou dito, mais vale excluir desde logo de nossas cogitações, na análise da enumeração, toda e qualquer referência às presunções legais absolutas – assunto, vale repetir, inteiramente estranho à matéria da prova. Não só: tampouco as presunções legais relativas merecem figurar no elenco das provas. Com efeito: o fato presumido não precisa ser provado (Código de Processo Civil, art. 334, n° IV); o contrário sim, mas obviamente de outro modo. Fica, pois, entendido material de um instituto, a presunção absoluta somente produz o efeito de definir os fatos aptos a constituir, impedir, modificar ou extinguir direitos e obrigações”; mas equivoca-se em equiparar as presunções absolutas às ficções legais (p.116-117): vide a distinção que expusemos no trab. cit. em a nota 9, supra, p.64-66. 14 É estranhável que THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ob. e vol. cit., p.406, ainda enxergue presunção no art. 1.238; PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 3.ed. Rio de Janeiro, 1971, t.XI, p.137, negava-lhe a existência no próprio art. 550 do estatuto de 1916. Ainda mais estranhável é ver perdurar em obras contemporâneas a arqui-superada concepção da coisa julgada como presunção absoluta de verdade: assim RODRIGUES, Sílvio. Op. e vol. cit., p.278; VENOSA, Silvio de Salvo. Op. cit., p.651. 18 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 que doravante, quando nos referirmos a presunções, teremos em vista unicamente as comuns, simples ou judiciais (praesumptiones hominis). 4 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A ENUMERAÇÃO DO ART. 212 Não é encontradiça, nas legislações estrangeiras, disposição como a do art. 212, que contenha enumeração das provas em tese admissíveis. Nas leis que pudemos consultar, o que disso mais se aproxima é o art. 1.316 do Código Civil francês, aliás situado em capítulo que se intitula, restritivamente, “De lapreuve des obligations et de celle du payemenf”15 aí se lê que “les regies qui concernent lapreuve littérale, lapreuve testimoniale, les présomptions, l’aveu de lapartie et le serment, sont expliquées dans les sections suivantes”. Trata-se, indiretamente, de uma enumeração, aliás como tal incompleta, já que – mesmo a abstrair-se da questão das provas atípicas – é sensível a omissão de duas figuras tradicionais: a perícia e a “descente sur les lieux” (correspondente à nossa inspeção judicial)16. No direito brasileiro, todavia, é tradicional a inclusão, nas leis, de disposição enumerativa: ela existia no art. 136 do estatuto civil de 1916 e, antes, no art. 138 do Regulamento n° 737, de 1850. O novo Código ateve-se à tradição. Para aferir criteriosamente o valor da enumeração do art. 212, é necessário fixar de antemão algumas noções básicas. A função da prova no processo consiste em proporcionar ao juiz conhecimentos de que ele precisa a fim de reconstituir mentalmente os fatos relevantes para a solução do litígio. De ordinário, cada parte terá apresentado sua versão; ao órgão judicial incumbe averiguar se e em que medida espelham a realidade essas versões normalmente contraditórias, ou quando nada divergentes. Para tanto, há de valer-se das provas, uma vez que, por bem conhecidas razões de política legislativa, não lhe é dado invocar, na fundamentação da sentença, o conhecimento direto e pessoal que porventura tenha: não pode, por exemplo, afirmar que assistira da janela de sua casa ao acidente de trânsito e, por isso, está convicto de que o responsável foi o réu. Por conseguinte, com ressalva das exceções legais (v.g., fatos notórios: Código de Processo Civil, art. 334, n° I), as provas constituem as pontes através das quais os fatos passam para chegar, primeiro, aos sentidos, depois à mente do juiz (nihil est in intellectu quod prius nonfuerit in sensu). 15 16 Em sentido crítico quanto à localização, VINCENT; GUINCHARD. Op. e lug. cit. (supra, nota 2). Observação também colhida em VINCENT; GUINCHARD. Ibid. 19 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 De onde podem partir essas pontes? À evidência, de tudo quanto seja acessível aos comuns sentidos humanos – já que, ainda a admitir-se (como pessoalmente admite o autor destas linhas) a possibilidade de uma revelação sobrenatural, nenhum ordenamento jurídico moderno autorizaria o juiz a pô-la como fundamento da decisão. Logo, os pontos de partida concebíveis são: outras pessoas, coisas e fenômenos naturais (sucessão de dias e noites, precipitações atmosféricas, modificações do solo ou da paisagem devidas a movimentos tectônicos e assim por diante) ou artificialmente provocados (v.g., uma reação química em laboratório). Em terminologia rigorosa, a esses pontos de partida é que se deve aplicar, a nosso ver, a designação de fontes de prova17. Como passam das fontes ao órgão judicial as informações de que ele precisa? Colher provas significa essencialmente, para o juiz, exercitar seus sentidos em relação às outras pessoas, às coisas e aos fenômenos. Os mais importantes são, à evidência, a visão e a audição: por exemplo, o juiz vê os documentos (espécie do gênero coisas) e ouve os depoimentos das testemunhas e das próprias partes (as quais, em regra, igualmente vê). Mas de jeito algum fica excluída, embora menos freqüente, a hipótese de que ele adquira informações por outros sentidos: provando um líquido, apalpando um objeto, utilizando o próprio olfato para verificar a intensidade das emissões de uma oficina. Pode empregar-se aqui, com maior propriedade, a expressão meios de prova para designar os pontos de passagem entre as outras pessoas, as coisas, os fenômenos, de um lado, e a mente do juiz, de outro – a não ser que se prefira reservá-la para a operação psíquica que capta os dados sensoriais e os transmite à mente18. A expressão, no entanto, tem sido usada equivocamente na doutrina: por exemplo, escrevia CHIOVENDA. Principii di diritto processauale civile. Nápoles, 1865 (reimpressão), p.812: “Sono mezzi di prova lefonti da cui ilgiudice trae i motivi di prova”(destaques do original). Estaríamos de acordo com a exemplificação: “A pessoa da testemunha, os lugares inspecionados”, entendendose que podem funcionar como fontes, nestes, as pessoas e coisas encontráveis e os fenômenos observáveis. Já não nos inclinamos a subscrever a identificação, pelo menos aparente, entre fontes e meios de prova: vide, infra, o nosso texto. Entre nós, DINAMARCO, Cândido. Op. e vol. cit. (supra, nota 4), escreve que “fontes de prova são pessoas ou coisas das quais se possam extrair informações capazes de comprovar a veracidade de uma alegação” (grifos do autor); parece que os fenômenos (naturais e artificialmente provocados) foram incluídos, a nosso ver forçadamente, no conceito de “coisas”. 18 Consoante fazia CARNELUTTI, que, em todas as hipóteses apontadas até agora em nosso texto, via na percepção o verdadeiro meio de prova: vide La prova civile. 2.ed. Roma, [s.d.] (1949), passim, espec. p.66 e ss., 79, 234. Em sentido crítico, porém, TARUFFO. La prova dei fatti giuridici. Nozioni 17 20 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 É fácil advertir que a enumeração do art. 212, como todas as outras que se encontram em disposições legais, peca ostensivamente pela heterogeneidade19. Nos três primeiros incisos, ela engloba referências a pessoas (inciso III: testemunha), a coisas (inciso II: documento), a atos (item I: confissão); nos dois últimos, menciona a presunção (entenda-se: a presunção simples, comum ou judicial) e a perícia. Acerca desta, faremos sem demora algumas observações; para a presunção, guardaremos o item subseqüente. Cingindo-nos por ora aos três primeiros incisos, logo se percebe que a confissão não poderia figurar ao lado da testemunha e do documento. A aceitar-se a definição do art. 348, 1ª parte, do Código de Processo Civil (“Há confissão, quando a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu interesse e favorável ao adversário”), assim como a respectiva divisão em judicial e extrajudicial (art. 348, 2ª parte), bem se vê que esta se corporifica num documento (cf. o art. 353), enquanto aquela se contém de ordinário no depoimento pessoal da parte (art. 349, caput, in fine), excepcionalmente em peça processual, com lavratura de termo nos autos (art. 349, caput, 2ª alínea) e de novo se recai, em última análise, na figura do documento. Parece claro que a confissão não está para os sentidos do juiz na mesma relação que um documento. A fonte da prova, a rigor, não é a confissão, e sim a parte que confessa (quando presta seu depoimento), ou o documento em que ela admite o fato contrário ao seu interesse e favorável ao adversário. O juiz ouve (depoimento pessoal) ou vê (documento) as palavras da parte, que admite o fato. Fonte da prova é a parte; meio de prova (pelo qual a fonte se comunica com o órgão judicial) é o depoimento pessoal do confitente ou o documento que contém a confissão. Há mais. O art. 212 coloca lado a lado a confissão e a testemunha, como se houvesse analogia entre uma e outra. Na verdade, num caso estamos diante do conteúdo da informação; no outro, diante da pessoa que informa. Analogia existe, sim, entre os informantes (parte/testemunha) e entre as informações (confissão/conteúdo do depoimento da testemunha). Se quis falar em confissão, deveria o art. 212 falar em depoimento da testemunha, não em testemunha tout court. E inversamente: se quis falar em testemunha, deveria falar em parte, não em confissão. generali. In: CICU; MESSINEO; MENGONI. Trattato di diritto civile e commerciale. Milão, 1992, v.H1, t.2, seção 1, p.427-428. 19 No mesmo sentido, DIDIER JR. Fredie. Op. cit., p.37. 21 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 O que ficou dito já basta para evidenciar quão imperfeita é a enumeração do art. 212. Não leva em conta a diferença entre fontes e meios de prova, e põe em pé de igualdade figuras diversas na substância e na função que exercem. Mais patente ficará a imperfeição à luz do que se vai expor nos itens subseqüentes. 5 – INSPEÇÃO JUDICIAL E PERÍCIA O art. 212 faz menção expressa à perícia (inciso V); silencia acerca da inspeção judicial, entretanto regulada nos arts. 440 a 443 do Código de Processo Civil. Mal se justifica a desigualdade de tratamento, desde que se atente na similitude substancial entre ambas. Com efeito. Já se disse que pessoas e coisas podem servir de fontes de prova, mediante o exercício, pelo juiz, de seus sentidos. Aqui, porém, se impõe uma distinção. Em certos casos, o juiz vê o que alguém lhe mostra (ex.: documento) ou ouve o que alguém lhe diz (ex.: depoimento de testemunha): não é ele que dirige de propósito a visão ou a audição a determinado alvo, ainda que por iniciativa sua lhe haja chegado à presença a coisa ou a pessoa. Outros casos são marcados pelo traço de uma essencial intencionalidade: o juiz, para ver, olha; para ouvir, escuta. Acrescente-se que o objeto visado pode consistir num fenômeno, e que outros sentidos (olfato, tato, paladar) são exercitáveis, conquanto menos amiúde, mas sem prejuízo da feição intencional. Pois bem. Às vezes, basta para fornecer a informação desejada o exercício pessoal, pelo próprio juiz, do sentido pertinente. Comparece ele ao local do acidente e vê que a estrada faz ali curva perigosa; aproxima-se da oficina e ouve o ruído que produz o funcionamento da máquina, ou sente o mau odor que ela emana – e assim por diante. Outras vezes, para captar a informação, torna-se necessário algo mais: um conhecimento científico ou técnico que o juiz não tem, ou a utilização de métodos especializados, cujo manejo requer preparação também especializada, para revelar, na pessoa, na coisa ou no fenômeno, a realidade só perceptível por meio deles. É então que tem lugar a perícia, qualificada com acerto como “meio de integração da atividade do juiz”20. 20 CARNELUTTI. Op. cit., p.91. Menos exato parece identificar na perícia, em termos genéricos, um “sucedâneo da inspeção judicial” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.654): antes resulta do art. 22 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Em qualquer hipótese, fonte de prova será sempre a pessoa, a coisa ou o fenômeno. Meio de prova será, conforme o caso, a inspeção judicial ou a perícia – a menos, vale repetir, que se adote a opção carneluttiana e se identifique o meio de prova na percepção, direta na primeira figura, indireta na segunda21. Seja como for, visto que mencionou a perícia, deveria o art. 212, por questão de coerência, mencionar também a inspeção judicial. 6 – AS PRESUNÇÕES Voltemos os olhos, de novo, para as presunções: simples, comuns ou judiciais (praesumptiones hominis), como são aquelas a que se refere, usando o substantivo no singular, o inciso IV do art. 212. Do que ficou até agora já ressalta, com ofuscante nitidez, que a referência à presunção, no elenco legal, só faz agravar a heterogeneidade da enumeração. Ela quase nada tem em comum com os outros elementos arrolados. Não é fonte de prova, como o documento e a testemunha; nem meio de prova, no sentido em que o é a perícia22. Tampouco seria exato afirmar que nela o juiz recebe a informação pelo exercício de um sentido, como sucede no caso da confissão. Decerto, a presunção ministra ao órgão judicial o conhecimento acerca de um fato; mas ela o faz de maneira absolutamente peculiar: mediante raciocínio23 feito a partir do indício. Essa característica da presunção justifica a qualificação, que se lhe atribui, de prova indireta, por oposição às chamadas provas diretas, como o documento e o depoimento da testemunha. É evidente que tal classificação não se confunde com a distinção entre percepção direta e percepção indireta, à qual se aludiu no item anterior. Igualmente claro é que a qualificação de prova indireta, atribuída à presunção, se baseia na função que ela exerce no iter cogitivo do juiz24. A nota característica reside aqui em que a aquisição do conhecimento se opera em duas etapas: primeiro, o juiz toma conhecimento 441 do estatuto processual (“Ao realizar a inspeção direta, o juiz poderá ser assistido de um ou mais peritos”) que ela pode funcionar como complemento ou adminículo da inspeção. 21 Ao propósito, vide ainda a luminosa exposição de CARNELUTTI. Op. cit., p. 85 e ss. 22 Para mais extensa elaboração, vide BARBOSA MOREIRA. Trab. cit. em a nota 10, supra, p.57-58. 23 Deduzione, no dizer de CARNELUTTI. Op. cit., p.81 e ss.; inferenza, para TARUFFO. Ob., vol. e t. cit., p.430. Em todo caso, nunca “indução”, como equivocadamente diz o defeituoso (também noutros aspectos) texto do art. 239 do Código de Processo Penal: “Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. 24 E “funzionale e relazionale”, nas palavras de TARUFFO. Ob. e lug. cit. 23 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 do indício, para em seguida passar deste à presunção. Daí dizer-se que o indício funciona como fato probante (factum probans), enquanto a presunção é o fato a ser provado (factum probandum). Não se afigura clara a razão pela qual o art. 212 do novo Código Civil deixou de arrolar o indício junto com a presunção: se esta merecia um lugar na enumeração, por que não aquele25? Convém sublinhar que o indício pode provir de qualquer fonte (pessoa, coisa, fenômeno) e chegar ao conhecimento do juiz por qualquer meio de prova. Retomemos o exemplo do incêndio (supra, n° 2): perfeitamente se concebe que da presença de Tício, a empunhar um archote, nas imediações do prédio incendiado, pouco antes do sinistro, tenha ciência o juiz pelo depoimento de pessoa ouvida como testemunha, ou por uma fotografia (documento), ou até pela confissão do próprio Tício. Caso já se cuidasse do fato relevante, em si, para a decisão, encerrada estaria a atividade probatória; o que interessa afinal, porém, não é simplesmente saber que Tício se encontrava nas aludidas circunstâncias, e sim se foi ele quem ateou fogo ao prédio. Se por certo prisma o indício já é ponto de chegada, mais importante ele se torna como ponto de partida26. Na passagem do indício à presunção, conta o juiz com o auxílio das chamadas “regras de experiência”27, a que se refere o art. 335 do Código de Processo Civil, verbis: “Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial”. A redação é um tanto obscura, Mais de uma lei inclui o indício entre os meios de prova: o Capítulo VI do Título “Das provas”, no Código de Processo Civil de 1939, tinha como rubrica “Das presunções e dos indícios”. Refere-se a estes, como “médios de prueba”, o Código de Procedimiento Civil colombiano, art. 175. Sustentava tal posição, compreensivelmente, DEVIS ECHANDÍA, principal autor do código: vide Compendio de pruebas judieiales. Antodo por Alvarado Velloso. Santa Fe, [s.d.] t. II, p.301-302; cf., a noção de meios de prova exposta pelo autor: "'métodos aceptados en eada ley procesal como vehículo de la prueba: por ejemplo, el testimonio, el documento, el indicio, la confesión, la inspección por el juez mismo, el dictamen de peritos” (t. I, p. 156). 26 Sobre essa dupla feição do indício, remetemos ainda o leitor ao trab. cit. em a nota 10, supra, p.5859. Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.652: “O indício é o ponto de partida de onde, por inferência, chega-se a estabelecer uma presunção” (grifado no original). 27 Erfahrungssãtze, na linguagem jurídica alemã: registramos o ponto por que foi na Alemanha que primeiro se sistematizou a matéria, sobretudo por obra de STEIN, cuja clássica monografia Das private Wissen des Richters foi traduzida para o espanhol por ANDRÉS DE LA OLIVA SANTOS, sob o título El conocimiento privado del juez. Pamplona, 1973 (vide espec. p.23 e ss.). Tivemos ocasião de tratar do assunto no artigo Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. In: Temas, cit., Segunda Série. 2.ed. São Paulo, 1988, p. 61 e ss. 25 24 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 principalmente porque, ao traduzir-se o texto italiano do códice di procedura civile do Estado do Vaticano, cujo art. 78 é a fonte histórica do texto brasileiro, se omitiu parte indispensável para a boa compreensão da norma. Eis o teor da disposição inspiradora: “giudice, nei casi in cui non siano statuite norma giuridiche particolari per la deduzione dei fatto da provare dal fatto percepito, applica le regole di esperienza comune, date dal Vosservazione di quanto comunemente avviene, e le regole di esperienza técnica, salva, in questo ultimo caso, lafacoltà di cui all’art. 121”. Pusemos em destaque, na transcrição, o trecho que elucida o significado da alusão às “normas jurídicas particulares”. O Código vaticano quis deixar claro que o recurso às “regras de experiência comum” só é legítimo quando não exista alguma “norma jurídica particular” a que deva obedecer o juiz na passagem do fato conhecido (“fatto percepito”) isto é, do indício ao fato que se quer provar (“fatto da provare”), a saber, à presunção28. Sob a etiqueta de “regras de experiência”, na verdade, costumam reunir-se proposições muito diversas. Tamanha é a diversidade, que se torna dificílimo estabelecer uma tipologia abrangente. Costumam ser enfiadas pêlemêle nesse escaninho desde proposições que têm sólido fundamento científico (o calor dilata os corpos metálicos; a água corre naturalmente do plano superior para o inferior; a gestação do ser humano dura em média 267 dias) ou que expressam um dos chamados princípios fundamentais da razão especulativa (nada pode ser e não ser ao mesmo tempo; tudo que acontece tem uma causa), até simples juízos mais ou menos generalizados em certos meios, com apoio no denominado “senso comum”, ou a rigor em meros preconceitos sem base empírica (as pessoas desta ou daquela nacionalidade ou etnia têm maior propensão para envolver-se em negócios ilícitos; as testemunhas do sexo masculino merecem mais crédito que as do sexo feminino)29. Ao longo desse amplo espectro, acham lugar verdades matemáticas (a soma dos ângulos internos do triângulo é igual a 180°), Cf., ARAGÃO, Moniz de. Exegese do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro, [s.d], v.IV, t.1, p.114115. Melhor que a do nosso texto é a do art. 141 do Código General del Proceso uruguaio: “A falta de regias legates expresas, para inferir del hecho conocido el hecho a probar, el tribunal aplicará las regias de experiência común extraídas de la observación de lo que normalmente acaece”. 29 Nessa ordem de idéias, não seria fora de propósito recordar ditados populares, do gênero “cão que ladra não morde”, “depois da tempestade vem a bonança”, “o uso do cachimbo faz a boca torta” e por aí além. Cf. as observações fortemente críticas de TARUFFO. Ob., vol. e t. cit., p.194-195, onde se sublinha que, com freqüência, “e massime d’esperienza esprimono solo rozze general izzazioni, generiche tenderize, opinioni e pregiudizi diffusi, alia cui base sta la cultura dei senso comune senza alcuna convalida o confer ma di tipo scientifico”. 28 25 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 sentenças relativas às artes (o movimento impressionista teve início na segunda metade do Século XIX), a atividades profissionais (os militares em serviço vestem uniforme), a costumes negociais (ninguém exige recibo do pagamento da passagem de ônibus), sociais (o uso da gravata é obrigatório para os homens em cerimônias oficiais), religiosos (os muçulmanos não comem carne suína), culturais (a linguagem empregada em ocasiões informais é menos atenta que a de trabalhos acadêmicos às regras gramaticais) ou observáveis no quotidiano “ordinário” (a freqüência às praias da Zona Sul do Rio de Janeiro aumenta muito nas manhãs ensolaradas dos domingos de verão). Como bem se compreende, o valor do indício varia extremamente de acordo com a proposição que fornece a base para a presunção judicial. Será decisivo, se se trata de proposição que não comporta dúvida: por exemplo, o álibi é indício negativo de absoluta força persuasiva: caso fique provado que o réu se achava noutra cidade, no preciso momento em que ocorreu o acidente, qualquer juiz concluirá com segurança que ele não pode havê-lo provocado, consoante se alega, por imperícia na condução do veículo. Com efeito, ninguém pode estar em dois lugares distintos ao mesmo tempo. Noutras hipóteses, a significação do indício é apenas relativa, ou até muito baixa: se recordarmos o exemplo do incêndio, dificilmente conceberemos uma regra de experiência dotada de credibilidade bastante, segundo a qual as pessoas munidas de archotes costumam atear fogo aos prédios em cuja proximidade se encontram. Parece óbvio que poderia haver várias explicações para a presença de Tício naquelas circunstâncias. Dito isso, não fica excluído que o órgão judicial possa fundar-se, para decidir, num único indício, conquanto sejam provavelmente raras, na prática, as hipóteses em que isso se justifica. 7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS O quanto se expôs é suficiente para justificar o juízo desfavorável expresso nas primeiras palavras deste trabalho. O Título “Da prova”, no novo Código Civil, não faz qualquer contribuição digna de nota à sistematização da matéria; ao contrário, deixa-a mais desordenada que antes. A impressão de desordem é particularmente forte à vista da enumeração do art. 212. Ainda na perspectiva (atécnica) que parece haver adotado, mostra-se arbitrária e lacunosa. Mistura alhos com bugalhos e esquece distinções fundamentais, como a que deveria levar em conta no 26 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 tocante a presunções, para não induzir os menos familiarizados com o assunto a supor genérica, abrangente de todas as espécies, a menção feita no inciso IV. Muito preferível teria sido renunciar à pretensão enumerativa: num quadro normativo em que, para gregos e troianos – perdão, para civilistas e processualistas –, continua a viger o princípio da não-taxatividade (supra, n° 2 e, aí, nota 9), o melhor alvitre consistiria em deixá-lo reinar a plena luz, sem ameaçar toldá-lo com enumerações como a do art. 212, que em nada ajudam e podem atrapalhar. No confronto com o Código de Processo Civil, os acréscimos importantes não dizem aqui respeito à prova, senão à forma – assunto do qual, diga-se de passagem, não tinha mesmo de tratar o diploma de 1973. Estão eles nos parágrafos do art. 215 e foram mutuados, na grande maioria, da Lei n° 6.952, de 06.11.1981. Curiosamente, afastando-se do diploma de 1916 (onde o capítulo pertinente se intitulava “Da forma dos atos jurídicos e da sua prova”), a rubrica do Título que vimos examinando, no de 2002, omite a referência à forma, que todavia assume, na substância, maior relevo. Por questão de justiça, antes de concluir o trabalho, registrem-se dois pontos, os únicos, salvo engano, em que o texto do novo Código mostra progresso em relação ao Código de Processo Civil. Primeiro: a dicção do art. 213, caput, do estatuto civil, consoante a qual “não tem eficácia a confissão se provém de quem não é capaz de dispor do direito a que se referem os fatos confessados”, afigura-se mais exata do que a do art. 351 do diploma processual (“Não vale como confissão a admissão, em juízo, de fatos relativos a direitos indisponíveis”). A hipótese é realmente de eficácia, não de validade; o texto mais antigo devia ser lido como se dissesse que a confissão, no caso indicado, não produz efeitos. Segundo: o art. 214 corrige o deslize em que incorrera o legislador de 1973, ao empregar, no art. 352, o particípio “revogada”, a propósito da coação viciada por “erro, dolo ou coação”. Agora, se diz, com melhor técnica, que, “se decorreu de erro de fato ou de coação” (não se sabe por que foi desprezado o dolo), a confissão “pode ser anulada” (art. 214)30. Não será muito; mas antes pouco do que nada. 30 Cuidamos de assinalar a correção no devido tempo: vide o art. cit. em a nota 4, supra, p.190. 27 A TUTELA DO CONSUMIDOR DIANTE DAS NOÇÕES DE PRODUTO E SERVIÇO “DEFEITUOSOS”. A QUESTÃO DO TABACO L UIZ G UILHERME M ARINONI * 1 – A “APRESENTAÇÃO DO PRODUTO”, “O USO E OS RISCOS QUE DELE RAZOAVELMENTE SE ESPERAM” E “A ÉPOCA EM QUE FOI COLOCADO EM CIRCULAÇÃO” É importante analisar o significado de produto e serviço seguros para a venda, o qual, na realidade, se confunde com o de “segurança legitimamente esperada”, já que não há como esperar uma segurança absoluta. Diz o art. 12, § 1º, do CDC que, para definir um produto como defeituoso – e que assim não oferece a segurança que legitimamente dele se espera –, devem ser levadas “em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – sua apresentação; II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; e III – a época em que foi colocado em circulação”. Quando se pensa na apresentação do produto, imagina-se a forma externa de sua apresentação ao público, não importando o produto em si mesmo. Assim, no que diz respeito aos produtos que exigem informações, cabe atentar aos escritos que o acompanham. Lembre-se que o art. 8º do CDC afirma que, nos casos de riscos normais e previsíveis, o fornecedor tem o dever de dar “informações necessárias e adequadas” e, na hipótese de produto industrial, ao fabricante cabe prestar essas informações “através de impressos apropriados que devem acompanhar o produto”. Além disso, o art. 9º, quando trata dos “produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos”, diz que o fornecedor tem o dever de “informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto”. * Professor Titular de Direito Processual Civil da UFPR. Advogado em Curitiba. 29 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 No que diz respeito à publicidade e à embalagem do produto, importa verificar se o fornecedor, na ânsia de elevar as qualidades do produto, não deixou de informar sobre os seus riscos. De outro lado, não há como ignorar que o CDC, ao utilizar a expressão “informação ostensiva” diante dos produtos potencialmente nocivos e perigosos, teve a intenção de exigir, em relação a eles, maiores evidências e detalhes na informação. Deixe-se claro que a “informação” deve advertir sobre a utilização do produto e sobre os seus riscos1. Portanto, não basta apenas informar como usar o produto, mas também o que pode ocorrer diante do seu uso. Nesse sentido, não é suficiente advertir o que, em regra, pode acontecer, mas sim tudo o que possa vir a ocorrer, desde que razoavelmente previsível diante do dever de segurança do fornecedor ou do fabricante, vale dizer, do seu dever de prever o que pode prejudicar o consumidor. A idéia de informação necessária, adequada e apropriada quer dizer o óbvio: a informação deve ser realizada no idioma nacional, de forma compreensível ao público a que se destina, contendo descrições que possam ser compreendidas pelo homem dotado de conhecimento comum, e não apenas pelo especialista em determinado ramo do conhecimento, como o médico. No caso de produto industrial, previsto no parágrafo único do art. 8º do CDC, as informações deverão ser prestadas por meio de impressos apropriados, que devem acompanhar o produto. Porém, como já dito, no caso de produtos potencialmente nocivos ou perigosos, o CDC alude a dever de informar de “maneira ostensiva”. É o caso da venda de material radioativo ou de agrotóxicos. Frise-se que a informação deve considerar o padrão do consumidor a que se destina. Isso não pode deixar de ser levado em conta quando o público consumidor não é formado por pessoas “esclarecidas” ou “alfabetizadas”, sob pena de se considerar adequada uma informação que não atinge o público-alvo, ou que somente atingiria o consumidor de outra camada cultural ou social ou mesmo de outra região, estado ou país. O art. 12, § 1º, do CDC diz, ainda, que a análise de defeito do produto deve considerar o “uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam”. Quer dizer que, para a definição de produto sem segurança, não importa apenas o fim a que se destina, mas também o uso que o consumidor dele pode fazer, desde que razoavelmente esperado. 1 FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil. São Paulo: RT, 2002, p.147. 30 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 O fornecedor e o fabricante não podem descurar do uso que o consumidor pode fazer do produto, ainda que esse uso fuja da finalidade a que o produto se dirige. O que interessa é que tal uso seja razoavelmente previsível. É previsível que a caneta esferográfica possa ser levada à boca, e por isso a caneta produzida com material tóxico que possa trazer danos à saúde do consumidor não está de acordo com o dever de segurança. Nesse caso, a caneta não pode mais ser comercializada, e assim deve ser retirada do mercado. É que esse produto, quando utilizado em condições previsíveis, traz riscos à saúde que não podem ser considerados “normais e previsíveis”, na dicção do art. 8º do CDC. Frise-se que risco “normal e previsível” é algo completamente diferente de uso previsível. O risco normal e previsível é o risco aceitável, ao passo que o uso previsível é o que, diante do dever de segurança do fornecedor ou do fabricante, pode ser suposto como possível de acontecer. Se do uso previsível de um produto pode decorrer risco que não pode ser aceito, o produto não pode sequer ser admitido como “potencialmente nocivo ou perigoso” (como o agrotóxico ou o material radioativo, que apenas exigem informação “ostensiva”), pois é “produto de alto grau de nocividade ou periculosidade”, nos termos do art. 10 do CDC. De forma que, se é previsível que crianças podem utilizar fogos de artifício, a sua venda é admitida porque o risco é aceito, devendo a informação tomar em consideração o fato de que esse produto pode ser utilizado pelas crianças. Ou seja, nesse caso a informação, além de ostensiva, por ser o produto potencialmente perigoso (art. 9º do CDC), deve levar em conta aqueles que podem utilizá-lo, isto é, as crianças2. Ora, isso é um uso evidentemente previsível. Entretanto, porque o risco é aceito, o que deve importar é o dever de informar. Se o risco não fosse aceito, 2 CHRISTOPH FABIAN afirma que “os perigos previsíveis não são apenas aqueles que resultam do uso adequado. Eles abrangem também os perigos de utilizações erradas que podem naturalmente ou facilmente acontecer. Um exemplo são os fogos de artifício. Facilmente caem nas mãos de crianças” (O dever de informar no direito civil, cit., p.149) Ao que parece, quando FABIAN fala em “utilizações erradas que podem naturalmente ou facilmente ocorrer” quer aludir a um uso previsível, ainda que inadequado, e quando pensa em perigo previsível supõe um risco aceito. Note-se que uso e risco são duas coisas distintas, pois o risco é uma decorrência do uso. Pode haver uso previsível gerador de risco aceitável (normal) ou não. De qualquer forma, a excelente obra de FABIAN não deixa de salientar, em relação ao exemplo que nos ocupa, que “o fornecedor deve tomar as precauções adequadas contra o seu uso por crianças” (O dever de informar no direito civil, cit., p.149). 31 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 e o uso previsível, o produto deveria ser retirado do mercado, cabendo ação de remoção do ilícito3. Por outro lado, quando se percebe, no desenvolvimento do consumo de um produto, que ele passou a ser utilizado de modo distorcido, tornandose nocivo ou perigoso, há que se agravar o dever de informação ou, se for o caso, determinar a retirada do produto do mercado. Pense-se no remédio que passou a ser utilizado como tóxico ou naquele que passou a ser usado como provocador de abortos. Além disso, é necessário atentar para os produtos complexos e para os produtos associados. Os primeiros são formados pelo produto principal e um acessório, destinado a tornar o produto principal mais agradável ou sedutor ao consumidor. Os segundos são os produtos que podem ser associados a outros, visando a uma utilização mais eficaz. Nesse último caso, os produtos podem ser separados e têm vida útil autônoma. Como exemplo de produto complexo, tem-se a venda de chocolates contendo brindes, destinados a seduzir as crianças para a compra do produto principal. Se a venda de ovos de Páscoa contendo pequenos brindes em seu interior pode trazer risco à saúde, diante do fato de que tais brindes, quando da abertura desses ovos, podem ser projetados contra os olhos das crianças, somente podem existir, em princípio, duas saídas: I) se o risco for aceito, o produtor deve informar que o brinde pode atingir o consumidor quando da abertura do ovo; II) se o risco não for aceito, e o produto, com essa complexidade, for reputado perigoso, tal produto não poderá ser comercializado e, aquele que já foi exposto à venda, deverá ser retirado de circulação. Porém, considerando-se que o produto, nesse caso, além de ser dirigido às crianças, não exige, enquanto alimento, informações minuciosas, é certamente muito provável que o seu consumidor não vá atentar para as informações sobre o perigo do brinde colocado no interior do ovo de chocolate. Além disso, como o ovo de chocolate não depende do brinde para ser comercializado, é completamente irracional aceitar que, para que o produtor possa seduzir a criança de modo mais eficaz, seja aceito o risco à sua saúde. Portanto, nesse caso não há como pensar nem mesmo em 3 Sobre as tutelas inibitórias e de remoção do ilícito, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004; MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. 4.ed. São Paulo: RT, 2006; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, Processo de Conhecimento. 7.ed. São Paulo: RT, 2008, v.2. 32 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 incremento do dever de informar, sendo imprescindível a proibição da comercialização do produto. Sublinhe-se, aliás, que, se uma criança sofreu dano nos olhos em razão da projeção do brinde posto no ovo de chocolate, não há como descartar a responsabilidade do produtor, que obviamente feriu o seu dever de segurança ao colocar no mercado um ovo de chocolate que apela às crianças por meio de um brinde que se transforma em arma lesiva. Tal proceder deve ser considerado até mesmo imoral, pois, ao lembrar uma maneira de seduzir a criança, esquece da legítima expectativa de segurança do consumidor. Nessa hipótese, não há que pensar em uso inadequado, ou mesmo uso por consumidor inadequado, mas sim no uso do produto pelo seu próprio destinatário e de maneira plenamente adequada. O uso do produto foi totalmente razoável e previsível. O dano e o risco é que não podem ser aceitos. Com a expressão produtos associados, deseja-se fazer referência aos produtos que têm o seu uso combinado com outros. É freqüente, para se combater uma doença com maior eficácia, a necessidade de utilização de um remédio associado a outro. Se dessa associação podem advir efeitos colaterais, os produtores de cada um dos remédios devem informar sobre o perigo de sua associação ou combinação. Aliás, e aí o caso não é de “combinação científica” de um remédio com outro, o produtor também possui o dever de informar sobre a nocividade da associação do seu produto com o álcool. Além disso, diz o inciso III do § 1º do art. 12 do CDC que, para a definição de produto defeituoso, deve ser considerado o momento de sua introdução no mercado. A definição da época em que o produto foi colocado em circulação, no que diz respeito às tutelas inibitória e de remoção do ilícito4, importa para a compreensão do chamado dever de vigilância. O dever de segurança não se extingue com a introdução do produto no mercado, mas prossegue ainda que o produto já esteja sendo utilizado pelo comprador. Isso porque o desenvolvimento da tecnologia pode evidenciar um perigo que não poderia ter sido constatado à época do ingresso do produto no mercado. Ademais, a utilização do produto pode gerar um 4 Sobre as tutelas inibitórias e de remoção do ilícito, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004; MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória. 4.ed. São Paulo: RT, 2006; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, Processo de Conhecimento. 7.ed. São Paulo: RT, 2008, v.2. 33 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 perigo que não esteja dentro das expectativas de segurança do consumidor, e por isso deva ser tido como um “perigo anormal”. Nessas situações, descoberto o perigo, o produtor deve informar o consumidor, por meios de comunicação que se presumam eficazes, para que o produto passe a ser utilizado com determinado cuidado, ou para que o produto seja conduzido às oficinas do produtor para certas modificações técnicas, ou ainda para que o produto não mais seja usado. Nesses casos, o produto era defeituoso no instante em que foi posto no mercado, só que o estado da tecnologia não permitia tal constatação, ou não se tinha considerado que o uso normal pudesse acarretar um perigo legitimamente não esperado. Contudo, como diz o § 2º do art. 12 do CDC, “o produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado”. Assim, como escreve CALVÃO DA SILVA, “o automóvel fabricado e posto em circulação há alguns anos com freios hidráulicos, sem cintos de segurança e faróis de nevoeiro não se torna defeituoso só porque ulteriormente aparece melhorado com o sistema de frenagem ABS, cintos de segurança, faróis de nevoeiro, balão de ar que abre em caso de acidente grave, etc. O critério decisivo é o de que o produto satisfaça as legítimas expectativas de segurança do grande público no momento da sua emissão no comércio, sem que do seu aperfeiçoamento ulterior possa inferir-se a existência de defeito naquele momento”5. Nesses casos, o produto não é defeituoso no momento em que entrou em circulação. Se um remédio, no momento em que foi posto em circulação, não podia ser dito nocivo à saúde, porém mais tarde, em razão do desenvolvimento da tecnologia, constata-se que é causador de câncer, ele evidentemente deve ser retirado de circulação. No caso em que se descobriu, em virtude do avanço tecnológico, que um produto de consumo duradouro no tempo foi introduzido com defeito no mercado, é racional que o produtor pague as despesas de informação, de modificação ou provenientes da sua retirada do mercado. Nessa situação, não importa se o fornecedor agiu, ou não, com culpa, pois se trata de uma “questão de confiança decepcionada”6. 5 6 SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Almedina, 1999, p.634. Cf. FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil, cit., p.153. 34 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 2 – “O MODO DE FORNECIMENTO DO SERVIÇO”, “O RESULTADO E OS RISCOS QUE RAZOAVELMENTE DELE SE ESPERAM” E “A ÉPOCA DE SEU FORNECIMENTO” Na mesma linha do referido art. 12 do CDC, estabelece o seu art. 14, § 1º, que, para a conclusão de que um serviço é defeituoso, devem ser levadas em conta “as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – o modo de seu fornecimento; II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi fornecido”. Todo serviço deve ser acompanhado das informações sobre sua utilização e seus riscos. Sua propaganda, se evidentemente pode realçar suas qualidades, não pode escamotear os seus riscos. Tudo deve ser passado de forma clara e compreensível ao leigo, considerando sempre o nível de educação do provável público consumidor. Além disso, todo serviço deve corresponder ao resultado e aos riscos que dele se esperam. Tal resultado, como é óbvio, é o prometido pela natureza do serviço, levando-se em conta, especialmente, a sua publicidade e as informações que o acompanham. No que diz respeito ao risco, deve ser considerado se o serviço, por sua natureza, deve gerar riscos normais e previsíveis, ou se existe um serviço potencialmente nocivo ou perigoso. Nos dois casos, como é evidente, as informações deverão ser adequadas, mas no segundo, de acordo com a dicção do art. 9º do CDC, elas deverão também ser “ostensivas”. Por fim, como igualmente acontece em relação ao produto, a definição de defeito não pode deixar de considerar “a época em que foi fornecido”. Assim, se o desenvolvimento da tecnologia demonstrou que o serviço pode ser fornecido de maneira mais perfeita, isso não significa que, no momento em que foi fornecido ao consumidor, apresentava defeito. De modo que o consumidor de um serviço de fruição duradoura no tempo não pode, apenas porque foi descoberta uma técnica mais avançada, pretender que o serviço passe a lhe ser prestado conforme a nova tecnologia. Contudo, se essa tecnologia demonstrar que o serviço, da forma como vinha sendo prestado, pode gerar riscos que até então não haviam sido imaginados, existirão três alternativas: se o risco for aceito, o fornecedor deverá informar o consumidor; se o risco não for aceito, e bastar a readequação do serviço ou de sua prestação, o serviço poderá continuar a ser prestado com as devidas 35 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 alterações; se o risco não for aceito, e não for mais possível prestar o serviço, ele deverá ser interrompido. Nessas hipóteses, o fornecedor deve arcar com as despesas para as informações e para as alterações necessárias e, ainda, no último caso, devolver a quantia que o consumidor eventualmente houver pago de forma adiantada pelo serviço. Isto não se confunde com ressarcimento do dano. Trata-se, isso sim, de se dar integral cumprimento ao dever de vigilância e à base do contrato de consumo, que é a confiança depositada pelo consumidor no fornecedor. Lembre-se que, se a relação de consumo se estabelece em determinado momento, isso acontece porque o consumidor tem confiança no produto ou no serviço que lhe é oferecido. Portanto, se a segurança que se espera do produto ou do serviço desaparece em determinado instante, diante do desenvolvimento da tecnologia, o fornecedor tem o dever de fazer o possível para que a segurança esperada pelo consumidor volte a se instalar. Nessa perspectiva, como o desenvolvimento da ciência é algo desejado e ineliminável, e a venda se funda em um voto de confiança na segurança do produto ou do serviço, o fornecedor deve sempre estar acordado para o seu dever de segurança (ou para o seu dever de vigilância), correndo os riscos do desenvolvimento. 3 – DEMAIS CIRCUNSTÂNCIAS QUE DEVEM SER CONSIDERADAS. EM ESPECIAL A QUESTÃO DO TABACO Os arts. 12, § 1º, e 14, § 1º, do CDC deixam claro que, para a definição de produto e serviço defeituosos, devem ser consideradas não apenas as circunstâncias expostas acima – enumeradas de forma exemplificativa nesses artigos –, mas também outras “circunstâncias relevantes”. Isso porque o legislador sabe que é impossível enumerar todas as circunstâncias que devem ser tomadas em conta pelo juiz. Assim, preferiu enumerar as mais importantes, deixando ao julgador a ponderação das que apareçam como relevantes diante do “caso concreto”. Trata-se, mais uma vez, de uma opção pela “justiça do caso concreto”, perante a impossibilidade de se prever, em abstrato, o que deve ser analisado pelo juiz. Ou melhor, não há como antever, em abstrato, o que importa para a definição de legítima expectativa de segurança sem considerar a natureza do produto e do serviço e o perfil do consumidor, os quais variam de acordo com o caso concreto. 36 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Lembre-se, em primeiro lugar, que o dever de informar se altera conforme o produto ou o serviço possa produzir riscos normais e previsíveis ou seja potencialmente nocivo ou perigoso. Além disso, as expectativas de segurança do consumidor variam conforme a natureza do produto ou do serviço. Segundo o art. 220, § 4º, da CF, a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, e conterá, sempre que necessário, advertências sobre os malefícios decorrentes de seu uso. Por outro lado, diz o art. 196 da CF que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos. Por lógica, se o Estado tem o dever de proteger a saúde e a segurança da população, não há como aceitar que ele possa autorizar a venda de um produto que reconhece nocivo ou perigoso, sem que essa autorização esteja fundada na necessidade de proteção da própria sociedade. Não há dúvida que os medicamentos devem conter informações ostensivas a respeito dos males que a sua utilização, ainda que normal, pode gerar. Se um medicamento, que causa efeito nocivo, é fundamental para tratar de certa doença, a sua venda somente poderá ser feita mediante controle médico, além de ter que trazer informações adequadas e ostensivas a respeito dos malefícios que o seu uso pode ocasionar. Quanto aos agrotóxicos, a informação também deve ser ostensiva, uma vez que os riscos que esses produtos podem trazer, quando considerados os benefícios que podem proporcionar, são tidos como aceitáveis. Em relação às bebidas alcoólicas, alguém poderia afirmar que a nocividade do seu consumo não pode legitimar a sua venda, uma vez que a sua utilização não é imprescindível ao desenvolvimento da sociedade. Acontece que, diante desse último caso, é novamente necessária a distinção entre aceitabilidade do risco e uso previsível. O consumo de bebidas alcoólicas, quando feito de forma moderada, não gera um risco de prejuízo inaceitável. Nesse caso, é o uso inadequado do produto que pode trazer males à saúde. Se o risco não está no consumo, mas sim na forma do consumo, o produto somente poderá ser comercializado quando acompanhado de restrições ao seu uso por menores e de informações a respeito dos prejuízos à saúde que o seu uso inadequado pode trazer. 37 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 No que diz respeito ao tabaco, a nocividade não advém da forma do consumo, mas sim do próprio consumo. O cigarro, diz o Ministério da Saúde, é causador de câncer, gera impotência sexual, etc. Isso quer dizer que o Estado já reconheceu de maneira expressa a nocividade do tabaco. Perceba-se que o Estado, ao prestar informações ao consumidor, não diz apenas – nem poderia – que o uso imoderado do cigarro pode ser prejudicial à saúde. Há, para dizer o mínimo, uma gritante contradição entre o dever do Estado de proteger a saúde e a informação de que o cigarro causa câncer de pulmão. Diante da obviedade de que o Estado tem o dever de proteger a saúde, as informações de que o cigarro provoca câncer, inseridas de maneira tímida nos comerciais em que os produtores de tabaco procuram seduzir o consumidor, somente podem ser vistas como um escárnio aos direitos básicos da população. Na verdade, se a Administração Pública reconhece a alta periculosidade ou a alta nocividade de um produto, e ainda assim permite a sua venda, sem que esse perigo ou nocividade seja legitimado por estar tutelando outro bem digno de proteção, o ato da Administração Pública carece de fundamentação, e assim não precisa ser acatado pelo juiz, que então fica com a possibilidade de proibir a venda do produto. Isso por uma razão simples: o dever de proteção é incumbência do Estado, e, portanto, também do juiz, que não pode ficar em uma posição de assistente dos desvios e das omissões da Administração. Quando esta reconhece a alta nocividade do produto, é completamente irracional a autorização do seu consumo sem que a proteção de outro bem possa justificá-la. Seria possível argumentar que, se o art. 220, § 4º, da CF afirmou que a propaganda de tabaco deve conter advertências sobre os malefícios decorrentes de seu uso, a sua comercialização estaria admitida pela própria Constituição. Acontece que nenhuma norma que faz juízo técnico pode deixar de se submeter à questão do desenvolvimento da tecnologia. De qualquer forma, a norma constitucional não disse que o cigarro não é altamente nocivo, mas sim que a sua propaganda deve conter advertências sobre o seu uso. Quando o art. 220, § 4º, da CF regulamentou a propaganda do cigarro, impondo informações ao consumidor, ele obviamente teve a intenção de dar proteção à população, exatamente porque não havia “certeza científica” quanto ao seu grau de nocividade. Melhor explicando: o objetivo dessa norma não foi garantir a comercialização do tabaco, mas sim proteger a saúde 38 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 do consumidor. Por isso frisou a necessidade de sua propaganda conter restrições e advertências. Aliás, considerando-se o princípio da precaução, é certo concluir que em tal momento a comercialização do cigarro foi privilegiada em relação à saúde do consumidor. Atualmente, reconhecida pela ciência e pelo Estado a nocividade do tabaco, não há outra alternativa a não ser proibir a sua comercialização. A menos que o Estado se negue a proteger o consumidor, ou melhor, suponha que é melhor arrecadar impostos com a comercialização do cigarro do que proteger a saúde das pessoas. Aliás, é preciso frisar que existem estudos que demonstram que tal arrecadação é ilusória, diante dos gastos públicos com doenças provocadas pelo consumo de cigarro. E não se diga que é preciso considerar uma norma constitucional que liberou a comercialização do cigarro – embora o inverso deva ser óbvio. Como já adiantado, essa norma, diante de determinado momento do desenvolvimento científico, impôs deveres ao produtor diante da propaganda de cigarro, deixando clara a intenção de proteger a saúde do consumidor. Se o passar do tempo demonstrou que o cigarro provoca câncer, etc., não há necessidade de combater a norma constitucional, uma vez que essa não disse que o cigarro pode ser vendido ainda que cause câncer (como é óbvio), mas apenas que a propaganda de cigarro deve sofrer restrições. Ou seja, não há incompatibilidade entre a norma que, em determinado momento do desenvolvimento da ciência, impõe restrições à propaganda de um produto e deveres de informação ao seu produtor e a norma que, em outro estágio do desenvolvimento da tecnologia, veda a sua comercialização diante da conclusão técnica de que o produto é “altamente nocivo”. Tais normas se apóiam em situações fáticas completamente distintas. É fácil concluir, assim, que a lei infraconstitucional pode – e deve – proibir a comercialização do cigarro. Ora, se a aludida norma constitucional impõe ao Estado o dever de estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem (entre outras coisas) de propagandas de produtos nocivos à saúde (art. 220, § 3º, II, da CF), além do dever de o produtor de tabaco advertir, nas suas propagandas, “sobre os malefícios decorrentes do seu uso” (art. 220, § 4º, da CF), o que a lei infraconstitucional não pode é eliminar os deveres impostos ao Estado e ao produtor de tabaco, pois aí sim estaria violando normas constitucionais de proteção do consumidor e da saúde. Diante de um direito fundamental – no caso os direitos fundamentais do consumidor e à saúde –, o Estado não pode se esquivar do seu dever de 39 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 proteção. Perante esse dever, há o que CANARIS7 chama de imperativo de tutela, isto é, a necessidade de tutela ou de proteção do direito fundamental. Essa tutela incumbe, em princípio, ao legislador, que deve editar a norma de proteção, realizando a denominada proteção ou tutela normativa. Contudo, quando o legislador descumpre o seu dever de proteção, surge uma situação de omissão de tutela ou de proteção. Não obstante, essa omissão pode ser questionada perante o Poder Judiciário, quando o juiz deverá verificar, em face do direito fundamental, se realmente houve omissão de proteção por parte do legislador. Se a conclusão for positiva, caberá ao magistrado suprir a omissão na proteção do direito fundamental, concedendo a tutela jurisdicional. Isso porque, como já dito, o dever de proteção é incumbência do Estado, e não apenas do legislador. Não se pense que o juiz, nesse caso, estará assumindo o lugar do legislador. É que o dever de proteção normativa decorre do direito fundamental. Quando o legislador deixa de proteger um direito fundamental, há simplesmente violação do direito fundamental, a qual pode ser corrigida pelo Poder Judiciário. Imaginar que o juiz não pode corrigir tal violação é o mesmo que supor que o Estado-legislador não tem “obrigações” para com os particulares. Na verdade, a conseqüência de que o Estado tem o dever de proteger um particular contra o outro é a de que a violação desse dever pode ser corrigida pelo Poder Judiciário. Separação de poderes, como é óbvio, não é o mesmo do que “carta branca” para a violação dos direitos 7 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003, p.56 e ss. 40 LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DEPOIS DA LEI 11.232/2005: REFLEXÕES SOBRE O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO ART. 475-B NO CUMPRIMENTO DAS SENTENÇAS INDIVIDUAL E COLETIVA * L UIZ R ODRIGUES W AMBIER * * E VARISTO A RAGÃO S ANTOS * * * Sumário: 1 – As dificuldades inerentes ao período de transição entre modelos e a delimitação do objeto do texto; 2 – A Lei 11.232/2005 e a mudança meramente topográfica que propiciou aos mecanismos de liquidação; 3 – O perfil do art. 475-B no texto da Lei 11.232/2005; 4 – A determinação do valor por meros cálculos, ainda no contexto da Lei 8.898/1994; 5 – Cont.: o deslocamento do contraditório da liquidação para os embargos (com efeito suspensivo) como um dos pontos fundamentais dessa mudança; 6 – O modelo anterior foi textualmente transposto para o art. 475-B: sua aplicação precisa ser adaptada ao novo contexto; 7 – O art. 475-B na execução da sentença coletiva: primeira visão; 8 – Cont.: o art. 475-B não tem lugar na execução da sentença coletiva; 9 – Conclusão. 1 – AS DIFICULDADES INERENTES AO PERÍODO DE TRANSIÇÃO ENTRE MODELOS E A DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO TEXTO Passamos por um momento de transição. De mudança de paradigmas. Não apenas no âmbito estrito do Direito (em decorrência dessas constantes Este trabalho foi originalmente escrito para integrar obra coletiva publicada em homenagem ao Professor José Manoel de Arruda Alvim Netto. ** Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UEL. Professor no curso de mestrado em Direito da UNAERP e no curso de especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP. Exprofessor nos cursos de graduação, especialização e mestrado da UEPG. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Membro do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. Advogado. *** Mestre pela PUC/PR. Doutorando pela PUC/SP. Advogado. * 41 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 reformas processuais, por exemplo), mas, principalmente, no plano sociocultural. Por isso, acaba sendo inevitável que essa transitoriedade no plano social também apareça refletida, em maior ou menor grau, no (e pelo) Direito de nossa época. Um lampejo dessa transição, em nosso sentir, é a clara expectativa social, já captada pelo legislador, sobretudo nos últimos anos, no sentido de que o sistema jurídico (especialmente o órgão judicial, enquanto núcleo desse sistema1) deixe de ter como objetivo a mera composição formal dos interesses que lhe são submetidos a análise e opere no sentido de proteger e satisfazer, em termos substanciais, esses mesmos interesses. Em certo sentido chega a ser emblemática a mudança de rota do legislador: o juiz deixa de meramente “pôr fim ao processo” quando sentencia (como se, com esse ato, pudesse “lavar as mãos” em relação ao papel institucional para o qual foi chamado a exercer também dali em diante) e deverá dirigir ativamente um processo, cuja integração das atividades jurisdicionais bem dá a dimensão de que agora, sem escusas, sua preocupação primeira (apesar de algumas amarras que ainda lhe são impostas) precisa realmente ser a de atuar no sentido de tentar entregar (em termos concretos, efetivos, substanciais) a proteção postulada pela parte no pedido inicial. Isso, porém, é assunto para uma outra oportunidade. O que nos move aqui é essa mencionada substituição de paradigmas ou, pelo menos, no plano estrito do Direito, a opção por um novo modelo de estrutura procedimental e alguns dos reflexos que essa mudança irradia sobre o papel da liquidação de sentença e, mais especificamente, do mecanismo de sua execução (= cumprimento) baseado em cálculo formulado pelo próprio credor (CPC, art. 475-B). Não costuma ser imediata a percepção desanuviada dessas mudanças, mesmo porque toda transição de paradigmas, como percebe BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, é sempre semicega e semi-invisível2. Por isso é comum que vivamos e operemos já sob um novo modelo, mas nem o enxerguemos (ou resistamos a enxergá-lo), pois continuamos atuando segundo os valores do modelo (ou paradigma) anterior. Mais do que isso: temos a tendência natural de até tentar encaixar a nova realidade nos moldes a que estávamos acostumados. A começar porque esse certo continuísmo gera alguma sensação de segurança, além de muitas vezes ser, em última análise, mais cômodo mantermos as coisas mais ou menos como já estavam. 1 2 Cf. LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. AJURIS, n.49, p.160. SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 5.ed. São Paulo: Cortês, 2001, p.15. 42 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 O fato, portanto, é que não deixa de ter até certo grau de naturalidade nos flagrarmos buscando interpretar a lei nova (ou, principalmente, um novo regime jurídico, como há pouco ocorreu com a execução da sentença) pelos moldes antigos. O problema é que, por mais natural que seja essa nossa tendência, ela pode ganhar contornos negativos dentro do sistema do Direito, especialmente em razão da rigidez dogmática que lhe caracteriza. Aquilo (por exemplo, uma alteração legislativa) que deveria representar um avanço do sistema, ou não “emplaca” ou a demora em absorvê-lo lhe altera a pertinência prática ou, o que é pior, acaba sendo simplesmente neutralizado naquilo que tinha de novo. O regime do cumprimento de sentença, de maneira geral, e a liquidação de sentença, de forma mais específica, parecem estar cada vez mais expostos a esse risco. Neste texto concentraremos nossa atenção no papel, por assim dizer, revitalizado que a liquidação de sentença passa a ter nesse novo contexto. Isto é, sua perceptível relevância para, de maneira geral, preparar o adequado cumprimento da sentença que tutela direito individual e sua indispensabilidade para execução da sentença coletiva (especialmente daquela que tutela direitos individuais homogêneos). Como conseqüência imediata disso, parece inafastável a necessidade de (re)analisarmos (com os olhos voltados para o novo modelo e não para o antigo) o âmbito de aplicação do art. 475-B do CPC. Isto é, de verificarmos até que ponto continua sendo legítimo permitir-se o início do cumprimento da sentença sem liquidação e simplesmente baseado em cálculos do próprio credor. 2 – A LEI 11.232/2005 E A MUDANÇA MERAMENTE TOPOGRÁFICA QUE PROPICIOU AOS MECANISMOS DE LIQUIDAÇÃO O primeiro passo para isso é reconhecermos que a Lei 11.232/2005, apesar de ter criado um novo regime jurídico para a execução das sentenças que fixam a obrigação de pagar, não trouxe inovações propriamente substanciais aos mecanismos de liquidação. Na verdade, o que de mais relevante (e visível) propiciou foi a alteração topográfica (e, portanto, essencialmente formal) dos dispositivos que disciplinam os instrumentos de liquidação: do Livro II do CPC (arts. 603 a 611) foram remanejados para o Livro I e ali organizados junto aos dispositivos que tratam do processo de conhecimento (art. 475-A a 475-H). Em sua substância, porém, a estrutura dos mecanismos de liquidação permaneceram rigorosamente os mesmos (arbitramento e artigos – CPC, 43 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 arts. 475-C e 475-E). É certo que a liquidação agora não acontece mais em uma relação processual autônoma, isto é, diferente tanto do processo de conhecimento que a antecedeu quanto do de execução que a sucederá. Todas essas atividades foram unificadas e organizadas naquilo que, ainda por falta de melhor denominação, muitos têm chamado de “processo sincrético”. Apesar disso, continua exigindo instauração por meio de provocação do credor interessado (CPC, art. 475-A, § 1º), o que em boa medida acaba por obrigar o intérprete a uma “ginástica” hermenêutica: embora parte de um mesmo processo preservaria sua natureza de ação autônoma; em conseqüência disso, a intimação do advogado para responder ao pedido liquidatório traz em si, na verdade, o conteúdo e os ônus de um legítimo ato de citação; conseqüentemente, a decisão interlocutória que a resolve precisa ser vista, em essência, como uma sentença, embora submetida a recurso de agravo por vontade do legislador3. O fato é que as enormes similitudes com o regime anterior tornam inevitável a percepção de que, na prática, muito pouco realmente se alterou de essencial. Talvez a operação desse novo modelo engendrado pela Lei 11.232/2005 se tornasse até mais simples (e algo efetivamente mais distinto do que aquilo que se praticava no regime revogado) se se conferisse também ao órgão judicial a possibilidade de iniciar as atividades tendentes a definir o quantum do seu comando condenatório: pelo menos essa discussão em torno da natureza da liquidação (como fase desse novo processo ou ainda a ação autônoma de antigamente) ficaria bastante arrefecida, o que terminaria por atingir, também, outros dos seus vários aspectos ainda à espera de melhor definição. 3 – O PERFIL DO ART. 475-B NO TEXTO DA LEI 11.232/2005 Ao lado das modalidades de liquidação, o que também permaneceu idêntico foi a possibilidade de se dispensar a instauração de qualquer procedimento específico para apuração do quantum quando, nos termos do art. 475-B, “a determinação do valor depender apenas de cálculo aritmético”. Nessa circunstância, cabe ao próprio credor elaborar a conta e com ela instruir o pedido de execução da sentença. Daí ser majoritário o posicionamento da doutrina no sentido de que não se trata, rigorosamente, de uma terceira modalidade de liquidação. O título judicial já apresenta os elementos essenciais que o tornam “líquido”, bastando ao credor reuni-los em uma planilha de cálculo. 3 A esse respeito, por todos, WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006. 44 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Por isso, e já que nessa fase da reforma processual o legislador estava reorganizando os dispositivos, não seria de todo incongruente se retirasse essa previsão do capítulo da liquidação e o alocasse naquele destinado ao cumprimento da sentença. Tal dispositivo é muito mais afeito à execução do que, propriamente, à liquidação De todo modo (e aqui começamos tangenciar o núcleo deste nosso trabalho), esse dispositivo (reprodução praticamente literal do antigo art. 604) foi originariamente pensado para operar em outro regime jurídico: o do processo de execução autônomo e cuja reação do executado, por meio dos embargos, estava compulsoriamente dotada de efeito suspensivo. O que nos interessa a partir daqui é justamente averiguar se e em que medida o novo contexto no qual foi reproduzida a possibilidade de determinação do valor da condenação pelas mãos do próprio credor alteralhe o âmbito de abrangência. Isto é, se apesar da transposição literal do dispositivo do Livro II para o Livro I as novas feições da execução de sentença não exigiria que o órgão judicial passasse a aplicá-lo, no mínimo, com maior rigor ou de maneira mais seletiva (por exemplo, quando a determinação do valor realmente dependa de simples cálculos e não, como cada vez mais se tem visto no plano empírico, toda vez que o título judicial simplesmente não preveja, de maneira explícita, a necessidade de prévia liquidação). 4 – A DETERMINAÇÃO DO VALOR POR MEROS CÁLCULOS, AINDA NO CONTEXTO DA LEI 8.898/1994 Comecemos esse nosso percurso relembrando que, na redação originária do CPC e até o ano de 1994, eram três as modalidades de liquidação: cálculo do contador, arbitramento e artigos. Foi na primeira fase dessa reforma processual (Lei 8.898/1994) e em sintonia com o posicionamento há muito majoritário da doutrina4 que se aboliu a liquidação 4 Já em 1969, por exemplo, ainda durante as discussões que antecederam o CPC de 1973, EGAS DIRCEU MONIZ DE ARAGÃO (Sugestões ao novo Código de Processo Civil. In: Estudos sobre a reforma processual. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1969, p.90) opinava sobre a desnecessidade da chamada liquidação por cálculos, os quais poderiam ser tranqüilamente elaborados pelas próprias partes e independeriam da atividade do contador judicial. Nesse mesmo sentido, ALCIDES DE MENDONÇA LIMA (Comentários ao Código de Processo Civil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, item 1.318, p.563) não tinha dúvidas de que se tratava de “um desperdício de esforços e de atividade”, acreditando ser muito mais produtivo que o próprio credor já “fizesse o cálculo e indicasse os dados da operação na inicial respectiva” e “se nada fosse impugnado, o juiz homologaria o cálculo oferecido pelo credor”. 45 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 por cálculo elaborado pelo contador e permitiu-se que a execução da sentença fosse iniciada sem esse prévio acertamento judicial e com base em cálculos apresentados pelo próprio credor. É interessante perceber que a motivação maior desse posicionamento da doutrina, encampado a partir daquele momento também pelo legislador, era agilizar o trâmite processual. No lugar de procedimento que ensejava a remessa dos autos ao auxiliar do juízo e precisava ser encerrado por sentença (apelável, etc.), mais condizente até com o dia-a-dia forense era justamente autorizar o início da execução, se realmente apenas de meros cálculos se precisava para quantificar o crédito. Fosse a lacuna essencialmente aritmética, e como lembrou ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, seria “difícil haver interpretações antagônicas: é ou não é”5. Na própria exposição de motivos da Lei 8.898/1994 (entre cujas modificações estava o do antigo art. 604), destacava-se a certa trivialidade imanente às hipóteses que poderiam dar ensejo a esse cálculo formulado pelo próprio credor. Exemplificavam-se lá com situações um tanto quanto corriqueiras, tais como o mero cômputo de “aluguéis, rendimentos, honorários, pensões, correção monetária, juros, etc.”. Apesar disso, nessa própria exposição se percebe não ter o legislador ignorado que tal prática (embora realmente apta a tornar mais célere o trâmite processual) também acabava por dar maior margem a equívocos (intencionais ou não) da parte credora. Para essas situações, apontou-se ali, de maneira um tanto quanto peremptória, diga-se de passagem, “que se o executado achar incorreto o cálculo, irá impugná-lo em embargos do devedor por excesso de execução (CPC, art. 741, inc. V)”. 5 – CONT.: O DESLOCAMENTO DO CONTRADITÓRIO DA LIQUIDAÇÃO PARA OS EMBARGOS (COM EFEITO SUSPENSIVO) COMO UM DOS PONTOS FUNDAMENTAIS DESSA MUDANÇA Esse é o ponto que gostaríamos de destacar: o contraditório em torno do valor do crédito, que precederia a execução da sentença na antiga liquidação por cálculo (e que ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, por exemplo, não dispensava que acontecesse antes da execução, nem mesmo quando 5 A esse respeito, com remissão a outros autores e reconstituindo, com mais vagar, o ambiente que precedeu e que circundou a reforma do CPC de 1994 nesse ponto, sugerimos o trabalho de um dos autores deste texto. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, item 4.1 e ss. LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, item 1.318, p.563. 46 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 sugeria outro procedimento em seu lugar6), na primeira parte da reforma foi como que transferido para a fase dos embargos do devedor. Como essa reação do executado contava com efeito suspensivo compulsório, na prática não havia maiores inconvenientes (prejuízos) nessa postergação. Manifestando-se antes mesmo dessa alteração do antigo art. 604, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO já sugeria que, iniciando-se desde logo a execução, ficaria, então, “a ‘liquidação’ do credor sujeita à censura pelo juiz na própria execução ou fiscalização pela parte contrária, em eventuais embargos”7. Emblemática dessa necessidade de se postergar para os embargos do devedor o contraditório que, rigorosamente, deveria ter acontecido antes mesmo do início da execução é, em nosso sentir, a opinião de VICENTE GRECO FILHO, manifestada logo após a reforma. Para esse ilustre processualista, a liquidação por cálculo do contador teria sido substituída por aquilo que denomina de liquidação por cálculo do próprio credor. A primeira fase de procedimento aconteceria com a tão-só apresentação da memória de cálculos já no bojo da inicial da execução, ficando remetida para os embargos (hoje a impugnação) a oportunidade de contraditório do devedor8. Em relação a esse último aspecto (contraditório da liquidação postergado para os embargos), pode-se dizer que a doutrina era praticamente unânime. Embora o entendimento prevalecente nesses posicionamentos sempre tenha sido o de que a possibilidade de o credor iniciar a execução, com base em seus cálculos aritméticos, não é uma modalidade de liquidação, a nota comum em todos era a de que, como o objetivo dessa alteração foi o de “acelerar” ou “desobstruir” o acesso à execução, a reação do devedor contra esses cálculos deveria ser redirecionada para os embargos9. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA (Comentários ao Código de Processo Civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, item 1.318, p. 563) propunha adoção de procedimento no qual o próprio credor “fizesse o cálculo e indicasse os dados da operação na inicial respectiva [para que, em seguida] e sobre a mesma o devedor se manifestasse”. Os autos seriam remetidos ao contador apenas “se houvesse divergência que o juiz não pudesse resolver”. Em resumo: propunha a instauração do contraditório em torno do valor do crédito antes de iniciar-se a execução. 7 DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 6.ed. São Paulo: Malheiros,1998, item 361, p.531. 8 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 9.ed. São Paulo: 1995, v.3, p.45. 9 De acordo com DONALDO ARMELIN (Informativo IASP, n.19, p.9.), por exemplo, “a eliminação do processo de liquidação por cálculo, que se efetivará pelo exeqüente na própria inicial da execução por quantia certa, sempre que depender apenas de cálculos aritméticos, remanescendo o eventual questionamento a respeito de seu resultado para ser suscitado pela via dos embargos de 6 47 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Não se demorou a perceber que exigir do devedor a constrição patrimonial apenas para reagir contra equívocos que deveriam ter sido acertados antes da execução não era algo legítimo10. Aliás, aí começavam a surgir discussões a respeito da aptidão, para essa correção, da ainda incipiente figura da exceção de pré-executividade11. Isso obrigou o legislador a uma segunda reforma, não muito tempo depois (Lei 10.444/2002), para possibilitar que o próprio órgão judicial, de ofício, se valesse do contador para conferir cálculo cujo resultado, ao menos na aparência, já revelasse exceder os limites do título judicial. Caso essa verificação realmente apurasse algum excesso, mas o exeqüente dele discordasse, a constrição patrimonial ficaria momentaneamente limitada ao valor encontrado pelo contador. devedor”. Substancialmente nesse mesmo sentido, entre vários: ALVIM, José Eduardo Carreira. Liquidação de Sentença e a Lei 8.898/94. RePro, 77, jan./mar. 1995, p.66; NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O Novo Perfil da Liquidação de Sentença. RT, v.707, p.16; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lineamentos no Novo Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p.128-129; ARRUDA, Antonio Carlos Matteis de. Ainda a nova disciplina da liquidação de sentença. Informativo IASP, n.21, p.9; UBALDO, Edson. As Modificações no Processo de Execução. Florianópolis: Obra Jurídica, 1995; PERALTA, Francisco Antonio Zem. A Liquidação de Sentença depois da Lei 8.898/94. São Paulo: LTr, 1995, p.26; GONÇALVES, Benedito. O art. 128 da Lei 8.213/91 diante da nova sistemática de liquidação de liquidação de sentença. RT, v.712, p.22-23. 10 Nesse sentido, v. um dos autores deste ensaio, LUIZ RODRIGUES WAMBIER (Liquidação de Sentença. 2.ed. São Paulo: RT, 2000, p.170 e 176) que, pelo menos desde a 2ª edição do seu Liquidação de Sentença (2000), já observava que ao se exigir a penhora como pré-requisito para se discutir o cálculo do credor “se estaria cometendo flagrante violação do princípio do devido processo legal, inserido no art. 5º, inc. LIV, da CF”, mesmo porque “a exatidão do cálculo que instrui o pedido de execução, no nosso entender, é matéria de ordem pública, que pode (e deve) ser conhecida de ofício pelo juiz, também pode ser conhecida por ele depois do alerta dado pela parte, sem que, para tanto, seja necessário o oferecimento de embargos”. Esse mesmo entendimento aparece, em sua substância e já atualizado para o contexto criado pela Lei 11.232/2005, no seu livro Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, p.224-231. 11 Cf. ARMELIN, Donaldo. A nova disciplina da liquidação de sentença. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p.664; DINAMARCO, Cândido Rangel. As três figuras da liquidação de sentença. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Atualidades sobre a liquidação de sentença. São Paulo: RT, 1996, item 10, p.23-26; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Anotações sobre a liquidação de sentença após a reforma do CPC. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Atualidades sobre a liquidação de sentença. São Paulo: RT, 1996, p.60-66; BUENO, Cássio Scarpinella. O art. 604 do Código de Processo Civil comporta exceção de pré-executividade? In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Atualidades sobre a liquidação de sentença. São Paulo: RT, 1996, p.121-150; TALAMINI, Eduardo. A determinação do valor do crédito por simples cálculo. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Atualidades sobre a liquidação de sentença. São Paulo: RT, 1996,p.171-182; MOREIRA, Alberto Camiña. Defesa sem Embargos do Executado. São Paulo: Saraiva, 2001, item 18.6, p.154-160. 48 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Tal possibilidade logo se revelou de duvidosa eficácia, não apenas porque as avaliações dos contadores judiciais se mostram equivocadas com alarmante freqüência, mas sobretudo porque procurava harmonizar, pela simples e pontual alteração legislativa, elementos em si mesmos de dificílima conjugação, quer no plano teórico, quer no prático. Ao mesmo tempo em que inegavelmente conferia ao juiz a possibilidade de esboçar alguma investigação, dentro da própria execução e com auxílio do contador judicial, a respeito do montante do direito de crédito apresentado pelo exeqüente, também procurava preservar a eficácia abstrata da execução (decorrente do título executivo que a lastreava), ao manter qualquer discussão sobre esse direito fora de seus limites (isto é, preservando-a deslocada para dentro da ação de embargos). Paralelamente a isso, ainda procurava contornar, parcialmente (já que continuava exigindo a garantia do juízo, mas limitada ao valor encontrado pelo contador), a violência que se revelava sujeitar o devedor a constrição patrimonial apenas para impugnar valores cujo acertamento, rigorosamente, deveria ter precedido a atividade executiva. Tudo isso, porém, a despeito mesmo de sua duvidosa eficiência prática, inegavelmente estava em harmonia com o desenho do sistema processual da época: o processo autônomo de execução, o caráter abstrato do título executivo e, conseqüentemente, a necessidade de a reação do executado acontecer por meio de outra ação (no caso, a de embargos). Tudo permeado pela perspectiva da paralisação compulsória da execução pelo oferecimento dos embargos12. 6 – O MODELO ANTERIOR FOI TEXTUALMENTE TRANSPOSTO PARA O ART. 475-B: SUA APLICAÇÃO PRECISA SER ADAPTADA AO NOVO CONTEXTO Esse mesmo mecanismo, todavia, foi reproduzido, em termos praticamente literais, no art. 475-B, §§ 3º e 4º. Embora, como visto acima, pensado a partir de uma realidade (o processo autônomo de execução de sentença), foi transposta para outra (o cumprimento da sentença reunida em um mesmo processo). 12 É interessante observar que um dos autores deste texto, ao lado de TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER (Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil. 2.ed. São Paulo: RT, 2002, p.234), ao opinarem, à época, sobre a melhor acepção a ser dada ao dispositivo, tinham claramente como pano de fundo para tanto a paralisação automática da execução pelos embargos: “A penhora se faz no valor a ser encontrado pelo contador e assim de considera estar garantido o juízo para efeito de apresentação de embargos (já que o legislador presumiu que, em casos assim, o executado queira discutir valores). Apresentados e recebidos os embargos, a execução ficará paralisada, isto é, não prossegue”. 49 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Em nosso sentir, essa transposição exigia adaptações que, como não foram feitas, agora e dentro do possível, precisarão ser alcançadas por meio da interpretação da lei. Não é demais lembrar que, no atual regime, o devedor não é mais apenas cientificado para, num determinado prazo, cumprir (= pagar) a obrigação fixada no título, sob pena de ter seu patrimônio penhorado. Muito menos continua preservada para si a perspectiva de que, pelo simples oferecimento dos embargos, já conseguirá suspender execução eventualmente irregular. Como a reação do executado não está mais compulsoriamente dotada de efeito suspensivo, esse, em nosso sentir, é o elemento-chave que sobreleva em importância a necessidade de acertamento prévio do valor do crédito e, conseqüentemente, a parcimônia com que se deve permitir a adoção do art. 475-B do CPC. Diferentemente do que acontecia antes da Lei 11.232/2005, agora mesmo após a penhora, suspender ou não o curso da execução será medida que ficará ao alvedrio do órgão judicial e que terá por base a percepção de verossimilhança na impugnação do executado. Isso quer dizer que deixa de existir aquela possibilidade (expressamente consignada até na exposição de motivos da lei que introduziu em nosso sistema o modelo agora reproduzido no art. 475-B) de se postergar para os embargos do devedor o contraditório em torno do valor do crédito proposto exclusivamente pelo credor. Em contrapartida e com a desburocratização da liquidação de sentença (não se trata de mais de processo autônomo; é resolvida por decisão agravável e assim por diante), esta emerge como procedimento importantíssimo, não apenas para preparar a execução de pagar quantia, mas como para conferir a essa atividade a excepcionalidade que lhe é característica. Ou seja, ressurge não mais como aquele instrumento anacrônico e cuja adoção, na prática, apenas retardaria a satisfação do direito13, mas como 13 Por detrás da opção legislativa que fez surgir, primeiramente, o art. 604 do CPC, facilmente se percebe a busca de alternativas, sempre compatíveis com o sistema, para abreviar o trâmite processual. A instauração de processo de liquidação passou a ser relegado apenas para as situações em que se revelasse como etapa absolutamente indispensável. Nas demais, especialmente naquelas em que a obrigação fixada no título não se apresentava propriamente líquida, mas era possível forçar-se o início da execução mediante a apresentação de cálculos pelo próprio credor, a liquidação era evitada. Realmente, há tempos, antes da Lei 11.232/2005, a liquidação se apresenta como procedimento de eficácia bastante duvidosa no plano da efetivação dos direitos. A parte credora era submetida a verdadeiro processo (resolvido por sentença e para cuja apelação era recebida no duplo efeito, etc.) e, mesmo após a apuração do quantum devido por força da condenação, ainda assim a parte 50 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 procedimento mais ágil e, portanto, vital para preparar o equilíbrio da execução que o sucederá. Isto é, verdadeira etapa de acertamento, em nosso sentir importantíssima sempre que a obrigação a ser executada não se revele rigorosamente líquida (isto é, passível de determinação por cálculos aritméticos realmente simples). O contexto em que está inserido art. 475-B, em nosso entendimento, exige que o órgão judicial tenha postura mais criteriosa. Admitir-se o processamento de execução mesmo quando a obrigação não se apresente rigorosamente quantificável por simples cálculo (o que tem sido algo cada vez mais comum), trará consigo o inevitável risco de desprestigiar o novo regime de cumprimento da sentença como, ao mesmo tempo, acreditamos que também terá o efeito perverso de, no mínimo, roubar a eficiência que dele poderá ser extraída. O desprestígio virá do aumento das chamadas “execuções injustas”: o devedor será intimado a pagar obrigação em valor equivocado (como em boa parte das vezes se apresenta o cálculo unilateralmente elaborado pelo devedor ou até aquele revisto pelo contador judicial) e o instrumento de que disporá para reagir contra isso não terá, como regra, o condão de suspender a expropriação de seu patrimônio; já a ineficiência surgirá, sobretudo, das inúmeras medidas, ortodoxas ou não, de que precisará lançar mão o executado como forma de reagir eficazmente contra essa execução injusta: a exceção de pré-executividade para impedir a aplicação da multa e/ou a penhora e os recursos decorrentes de seu eventual não-acolhimento; o agravo de instrumento contra a decisão que não atribuir efeito suspensivo à impugnação; medidas cautelares ou até o próprio mandado de segurança devedora poderia reagir contra a execução forçada, suspendendo automaticamente seu curso mediante o oferecimento de embargos. Por isso é que, como verdadeiro subterfúgio para abreviar essa seqüência de procedimentos pouco produtivos em prol do credor, passou-se a admitir, de maneira cada vez mais elástica, o início da execução mediante cálculos do próprio exeqüente. Mesmo que a situação concreta, rigorosamente, exigisse alguma atividade prévia do juízo no sentido de acertar o valor a ser cobrado pela execução, essa verificação era postergada para os embargos do devedor. Como sob qualquer circunstância assistia ao devedor a possibilidade de suspender o curso da execução mediante o oferecimento dos embargos, o contraditório, que deveria ter sido instaurado e exercido no processo para liquidação do valor da obrigação, acabava sendo postergado para essa outra fase. Os embargos, assim, como vimos acima, terminavam por fazer as vezes de instrumento de liquidação, já que o acertamento judicial do valor da obrigação, que deveria ter ocorrido antes do início dos atos executivos, na prática acabava sendo realizado ali. Como isso não trazia maiores prejuízos ao devedor, salvo a indisponibilização de parcela de seu patrimônio, o órgão judicial conseguia, no plano empírico, queimar etapas para satisfação do direito reconhecido no título judicial. 51 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 para viabilizar a obtenção desse efeito no plano dos Tribunais e tudo o mais que a criatividade dos advogados e a necessidade do caso concreto permitirem e/ou exigirem. Percebendo-se o que, em nosso sentir, se apresenta como sendo a possibilidade de nosso sistema contar com mecanismos de liquidação de sentença “desburocratizados” (= revitalizados) pela reforma, ou tudo isso poderá ser evitado ou, pelo menos, essa necessidade de reação do devedor ficará bastante minorada com a individualização prévia da obrigação a ser cumprida por meio da força. Em nosso sentir, essa fase prévia de acertamento, enquanto atividade verdadeiramente preparatória da execução, ou evitará o cumprimento coercitivo da sentença (é bastante crível que o devedor pague a obrigação após seu quantum ter sido certificado pelo órgão judicial mediante prévio contraditório) ou esvaziará os meios de reação de que poderá se valer o devedor caso ainda assim resista ao cumprimento da ordem judicial. Por razões até mais fortes, acreditamos que o disposto no art. 475-B não se aplica ao processo coletivo relacionado com direitos individuais homogêneos, fazendo com que a prévia liquidação tenha sua importância multiplicada (tornado-se indispensável) enquanto fase de preparação da execução dessa sentença coletiva. 7 – O ART. 475-B NA EXECUÇÃO DA SENTENÇA COLETIVA: PRIMEIRA VISÃO De início, não percamos de vista a necessária distinção entre o “processo civil clássico” (= processo individual) e o “processo civil coletivo”, bem como, e especialmente, a subsidiariedade do primeiro em relação ao segundo14. Isso quer dizer que, embora ainda careçamos de uma 14 Há algum tempo a doutrina procura delinear as diferenças entre esses sistemas (o individual e o coletivo). Esse esforço tem sido marcado pelo objetivo de caracterizar que o processo coletivo não é uma categoria do processo civil, mas, sim, um novo ramo do direito processual, com berço e natureza constitucionais (Cf. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, item 1.1, p.17). Enquanto as expressões “processo civil” ou “processo penal” serviriam para designar o processo destinado a viabilizar a tutela dos interesses puramente individuais, o termo “processo coletivo” seria a denominação própria do ramo do direito processual destinado à proteção dos direitos/interesses coletivos (cf. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, item 1.1, p.17). O fato é que a distinção entre o processo civil e o processo coletivo, enquanto espécies do gênero “direito processual”, parece, hoje, algo irreversível. Revelam-se cada vez mais nítidas as diferenças e especificidades entre ambos, especialmente a partir da perspectiva de seus princípios 52 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 sistematização (= codificação) legislativa própria e específica destinada a disciplinar a tutela dos interesses coletivos em geral, o (micro)sistema acaba sendo formado pela reunião de alguma legislação esparsa, da LACP, do CDC e, subsidiariamente, também pelo CPC15. Em relação a esse último e como seus institutos são moldados para as necessidades do processo individual, deverão ser sempre interpretados de modo a amoldarem-se aos princípios fundamentais do processo coletivo. Dizemos isso porque, de acordo com o CDC e “em caso de procedência do pedido [de proteção para direitos individuais homogêneos], a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados” (CDC, art. 95, g.n.). Em outro espaço, um dos autores deste texto já teve a oportunidade de observar que, em nosso (micro)sistema processual coletivo, “a condenação sempre será genérica, não havendo qualquer possibilidade, diante da lei posta, de os legitimados obterem sentença que contenha condenação cujo quantum já esteja definido”16. Aliás, há expressiva corrente doutrinária (que em nosso sentir ganha ainda mais força depois da Lei 11.232/2005) que defende a própria impossibilidade jurídica de pedido condenatório coletivo que não seja genérico17. O problema com a sentença coletiva (e aqui mantemos nosso foco concentrado naquela que tutela direitos individuais homogêneos) é que a “iliquidez”, por assim dizer, ultrapassa a barreira da quantificação da condenação. Esse comando judicial, além de não individualizar o valor do e institutos fundamentais (cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito Processual Coletivo. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela Coletiva. São Paulo: Atlas, 2006, p.302-308). Até anteprojeto para codificação própria do processo coletivo já foi esboçado (de autoria de ADA PELLEGRINI GRINOVER). Como um dos autores deste texto já teve a oportunidade de escrever em outro espaço, trata-se de um novo sistema processual, vigente concomitantemente e em paralelo ao do CPC (WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, item 7.1.1, p.291). Dessa concomitância, porém, é ainda inafastável o risco de surgirem interpretações que nem sempre representam a melhor leitura, especialmente dos mecanismos processuais disponibilizados pelo nosso ordenamento ao processo individual. 15 O que queremos com isso significar, aproveitando, para tanto, a correta e sintética observação de ELTON VENTURI (Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, item 2.7, p.41), é que dois cuidados devem ser tomados pelo operador do processo coletivo: a) o caminho a ser seguido, para definição do direito aplicável, deve ter como ponto de partida o CDC. Naquilo em que esse for omisso, serve-se do contido na LACP e, por final, caso ainda persista a lacuna, aplicam-se as normas do CPC, por expressa previsão do art. 90 do CDC. 16 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, item 7.2.1, p.371. 17 Cf. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza Arruda; ALVIM, Eduardo Arruda; MARINS, James. Código do Consumidor Comentado. São Paulo: RT, p.432. No mesmo sentido, VENTURI, Elton. Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, item 6.2, p.126. 53 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 crédito de cada um dos possíveis beneficiários da tutela, também não individualiza esse beneficiário da obrigação. Ou seja, o início de toda e qualquer atividade executiva individual, relacionada com aquela condenação, exigirá dois acertamentos prévios por parte do órgão judicial: a) verificar a legitimidade do credor individual para beneficiar-se da tutela coletiva; b) acertar o valor que lhe é individualmente devido. 8 – CONT.: O ART. 475-B NÃO TEM LUGAR NA EXECUÇÃO DA SENTENÇA COLETIVA Logo depois da Lei 11.232/2005, um dos autores deste texto sustentou ser possível que o órgão judicial, excepcionalmente, mesmo em processo coletivo por meio do qual se tutelasse direito individual homogêneo, prolatasse sentença “líquida”. Isto é, quantificável por simples cálculo na própria execução individual a ser iniciada por parte de cada ente legitimado18. Esse posicionamento é revisto aqui. Antes do regime do cumprimento da sentença, existiam em nosso Judiciário execuções individuais de sentença coletiva, tratando de interesses individuais homogêneos, iniciadas sem prévia liquidação: cada credor ajuizava individualmente sua execução, apresentando, com a inicial, os documentos que comprovassem sua titularidade e os cálculos traduzindo em cifras o montante de seu direito19. Apesar de procedimento tecnicamente incorreto, essa prática foi de certo modo tolerada justamente porque os questionamentos em torno da legitimidade do exeqüente e/ou do valor cobrado por meio da execução eram sempre transferidos para a ação de embargos. Qualquer irregularidade nesses segmentos poderia ser ali discutida e corrigida sem que a execução tivesse prosseguimento. Ou, em outras palavras, sem que o valor depositado WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, item 7.2.3, p.373. 19 Isso aconteceu no Paraná, na cidade de Curitiba, em ações civis públicas nas quais foi concedida tutela coletiva condenando instituições financeiras ao ressarcimento das diferenças de correção monetária nas aplicações de caderneta de poupança, geradas por planos econômicos na segunda metade da década de 1980. Embora essas sentenças não individualizassem nem os valores e tampouco seus beneficiários, entendeu-se que as execuções individuais dispensariam prévia liquidação: cada interessado iniciaria a execução individual, apresentando-se como um dos beneficiários da tutela e trazendo consigo, na própria inicial da execução, os demais elementos que permitissem a quantificação de seu crédito. Apesar da mudança do regime jurídico para execução das sentenças condenatórias, essa prática tem sido mantida pelo Judiciário paranaense, o que nos parece, com o devido respeito e pelas razões que expomos neste texto, algo incompatível com o atual regime do cumprimento de sentença. 18 54 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 em garantia do juízo fosse repassado às mãos daquele que se apresentou como credor. Como vimos linhas acima, isso mudou com o regime de execução instituído pela Lei 11.232/2005 e os principais reflexos dessas alterações também já foram apontados nos itens anteriores. A execução individual da tutela coletiva não poderá ter início sem que ao menos o órgão judicial certifique-se de que aquele que se apresenta como exeqüente é, realmente, o titular do crédito assegurado na sentença e, também, que o valor postulado em cobrança corresponde ao montante total do direito de crédito postulado. Se essa postura era, por assim dizer, tolerável no regime anterior, tornou-se incompatível com o procedimento instituído pela Lei 11.232/2005. Relembremos que no novo regime o devedor é meramente intimado a cumprir a obrigação, isto é, a pagá-la sob pena de multa. Mesmo após a penhora ou, em outras palavras, mesmo após garantir a satisfação da obrigação executada, o meio de reação de que dispõe não tem efeito suspensivo, cuja atribuição fica ao inteiro alvedrio do órgão judicial. Ou seja, prosseguindo-se a execução, a mesma será definitiva e os recursos depositados/penhorados serão levados pelo credor. A incompatibilidade (empírica e dogmática) está justamente aí: no plano prático, é plenamente factível que sem o acertamento prévio propiciado pela liquidação o sucumbente da ação coletiva fique à mercê de falsos credores e/ou de créditos em valores equivocados, sem meios de reação eficientes para defender-se; no jurídico, terá contra si iniciada execução de sentença, cujo título não aponta o credor e tampouco essa falta terá sido suprida por qualquer atividade prévia do juízo. Então, terá de valer-se de sucedâneos de defesa, tais como a exceção de pré-executividade ou o próprio mandado de segurança, para tentar evitar o prejuízo que lhe traria o simples prosseguimento da execução nos termos programados pelo novo regime. É fenômeno notório que das deficiências do sistema (como ocorria antes) ou de sua má aplicação (como parece estar ocorrendo agora) inevitavelmente forjam-se alternativas com o objetivo de fazer frente a essas distorções. A conseqüência disso, porém, é conhecida e sentida por todos nós: a paulatina perda de operatividade do sistema em direção ao seu engessamento. Tratando-se de sentença condenatória genérica, mais do que nunca a satisfação agora precisa ser antecedida, necessariamente, pela liquidação. Por meio desse procedimento, o órgão judicial não apenas acertará o valor do crédito 55 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 em si, mas, mais do que isso, estabelecerá o nexo de causalidade entre o dano individualmente sofrido e a providência coletivamente tutelada. Antes da Lei 11.232/2005, essa necessidade era minorada ou obscurecida, no plano empírico, pela possibilidade que o credor tinha de oferecer embargos com efeito suspensivo. O contraditório que, formalmente, deveria ter sido instaurado e exaurido em prévia liquidação acabava sendo transferido, na prática, para a ação de embargos. Agora isso não é mais possível. O devedor deve cumprir a obrigação sob pena de multa e toda a discussão a respeito da titularidade do crédito e/ou do montante da obrigação não pode mais ser suscitada sem a suspensão automática da execução. Por isso, se antes era até admissível que se transferisse o contraditório da liquidação da sentença para a ação de embargos do devedor, no atual regime isso não é mais possível. Na verdade, nossa maneira de enxergar o atual regime e a sugestão que damos para operá-lo simplesmente se amolda com ainda mais precisão àquilo que já orientava a jurisprudência do STJ (maio de 2006): “A despeito de ser conhecida como um processo executivo, a ação em que se busca a satisfação do direito declarado em sentença de ação civil coletiva não é propriamente uma ação de execução típica. As sentenças proferidas no âmbito das ações coletivas para tutela de direitos individuais homogêneos, por força de expressa disposição do CDC (Lei 8.078/1990, art. 95), são condenatórias genéricas. Nelas não se especifica o valor da condenação nem a identidade dos titulares do direito subjetivo. A carga condenatória, por isso mesmo, é mais limitada do que a que decorre das demais sentenças condenatórias. Sobressai nelas a carga de declaração do dever de indenizar, transferindo-se para a ação de cumprimento a carga cognitiva relacionada com o direito individual de receber a indenização. Assim, a ação de cumprimento não se limita, como nas execuções comuns, à efetivação do pagamento. Nelas se promove, além da liquidação do valor se for o caso, o juízo sobre a titularidade do exeqüente em relação ao direito material, para somente então se passar aos atos propriamente executivos”20,21 (g.n.). 20 21 STJ – Embargos de Divergência em REsp nº 691.563-RS, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 26.06.2006. Esse posicionamento também é defendido, no plano doutrinário, por TEORI ALBINO ZAVASCKI (Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 2.ed. São Paulo: RT, 2007, item 7.8.2, p.199), para quem a sentença condenatória do art. 95 do CDC “não tem eficácia executiva. Para alcançá-la, terá de ser complementada por outra, da qual resultem identificados os elementos faltantes da norma jurídica individualizada. Essa atividade de complementação se dá em fase processual autônoma, denominada, em geral, de liquidação de sentença”. 56 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 A opinião de SÉRGIO SHIMURA não é diferente da nossa. Manifestandose já sobre o regime instituído pela Lei 11.232/2005, observa que “tratandose de ação coletiva, relativamente à defesa de direitos individuais homogêneos, a sentença será sempre genérica para permitir que cada lesado proceda à liquidação dos danos experimentados (art. 95 do CDC)”22. Assim e da perspectiva do título executivo, lembra que “sendo genérica, a decisão é certa mas ilíquida” (g.n.). Portanto, conclui que no novo regime “a fase executiva se dá mediante instauração de novo processo, com a liquidação individual de cada lesado, seguindo-se o respectivo cumprimento da sentença liquidanda”. A partir de 24.06.2006, portanto, em nosso sentir, não há mais qualquer espaço para se admitir que o cumprimento da sentença coletiva que disponha sobre direitos individuais homogêneos aconteça sem prévia liquidação, apenas com base na afirmação e nos cálculos daquele que se apresenta como credor. Ou seja, o cumprimento dessa sentença, em nosso sentir, não é compatível com o disposto no art. 475-B do CPC. Para que o devedor possa ser instado a pagar a obrigação, sob pena de multa, necessariamente o órgão judicial precisa acertar, em procedimento prévio, a titularidade do credor e o valor a ser cobrado. Como a reforma “desburocratizou” os procedimentos de liquidação disponibilizados pelo sistema processual, tudo poderá ocorrer de maneira objetiva e expedita. Ao receber o pedido do credor e como ainda não existem elementos que autorizem o cumprimento da obrigação pela execução forçada, determinará a intimação do advogado do devedor para que se manifeste a respeito da titularidade do postulante e do valor do crédito pelo mesmo pretendido (arts. 475-A, § 1º, e 475-E). Estabelecido e exercido o contraditório em torno desses pontos, ambos serão resolvidos por meio de decisão interlocutória (art. 475-H). Após esse acertamento, então aí sim estarão reunidas as condições mínimas indispensáveis para execução: obrigação líquida sendo exigida por credor individualizado (= certo) em relação ao título executivo. Depois de intimado, ao devedor restará cumpri-la, sob pena de multa, na forma do art. 475-J. No jargão constitucional, esse é o “devido processo legal” para execução da sentença que dispõe sobre direitos individuais homogêneos. 22 SHIMURA, Sérgio. A Execução da Sentença na Reforma de 2005. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos Polêmicos da Nova Execução de Títulos Judiciais: Lei 11.232/05. São Paulo: RT, 2006, v.3, p.580-582. 57 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Além desse, porém, outro fator, bem mais pragmático, ainda merece ser considerado. Observado esse procedimento, pouco ou nada restará ao devedor para resistir ao cumprimento da sentença. Mesmo que reaja por meio da impugnação, serão muito excepcionais as hipóteses que poderão vir a ser arroladas como aptas a paralisar essa execução. Na prática, respeitada a prévia liquidação, fica esvaziada a própria possibilidade de reação do devedor. Caso contrário, porém, admitir-se a execução coletiva sem prévia liquidação será o mesmo que se admitir seja o executado não apenas submetido a cumprir condenação em favor de quem nem mesmo ainda teve sua legitimidade certificada pelo órgão judicial e, o que é pior, para cobrança de dívida cuja individualização do valor também não foi previamente acertada. Na verdade, se terá de admitir ainda mais: que além dessa incerteza em torno da legitimidade ativa e do valor cobrado, ao devedor franqueie-se alternativa bastante precária para o exercício de sua defesa, já que a suspensão dos atos executivos fica ao inteiro critério do órgão judicial. 9 – CONCLUSÃO De tudo isso, por mais tentadora e até premente que possa se apresentar a predisposição de interpretar as regras de execução de modo a delas extrair o maior rendimento possível à satisfação dos interesses do credor, deve ser tido como inafastável o princípio de que toda e qualquer execução deve transcorrer da maneira menos gravosa para o devedor. No cumprimento da sentença, seja individual ou coletiva, o prévio acertamento do valor da obrigação quando esse realmente não se apresente quantificável por simples operação aritmética representa, em nosso sentir, o mínimo exigível para uma execução justa e equilibrada. Pelo que expusemos acima, acreditamos que, no atual contexto, revelase indispensável buscar-se um (re)equilíbrio mais adequado entre liquidação e execução, a partir do qual a própria atividade executiva não apenas ganhará em eficiência como retomará mais do seu caráter verdadeiramente excepcional, como, aliás, eficiente e excepcional deverá ser, sempre, o emprego da força pelo Estado. 58 LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO DA SENTENÇA M ARIÂNGELA G UERREIRO M ILHORANZA * Sumário: Breve escorço introdutório; 1 – Liquidação da sentença; 2 – Do cumprimento da sentença e da impugnação; 2.1 Da (des)necessidade de intimação pessoal do devedor para cumprimento da sentença no prazo de 15 dias nas execuções alicerçadas em título executivo judicial; 2.1.1 Do termo a quo para a contagem do prazo de 15 dias para a incidência da multa de 10% a que alude o artigo 475-J; 2.2 Da execução provisória; 3 – Dos honorários advocatícios no cumprimento da sentença; 4 – Considerações finais. B REVE E SCORÇO I NTRODUTÓRIO Em apertada síntese, a Lei nº 11.232/2005 trata, especialmente, do cumprimento da sentença que condena o devedor ao pagamento de quantia. A inserção da fase do cumprimento da sentença, dentro do processo de conhecimento, traz à tona a assertiva de ARAKEN DE ASSIS1 de que há falsidade na rígida tripartição das funções – cognição, execução e cautelar – em estruturas autônomas e separadas, dizendo, ainda, que em todo processo haverá cognição, uma vez que, sem cognição, o Poder Judiciário não teria como atingir seus objetivos. Nesse ponto, diz BARBOSA MOREIRA2: Mestre em Direito Processual Civil pela PUCRS. Especialista em Direito Processual Civil pela PUCRS. Advogada em Porto Alegre/RS. Coordenadora Editorial da Editora Notadez. Professora da ULBRA. 1 ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.6. 2 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Cumprimento” e “Execução” de sentença: necessidade de esclarecimentos conceituais. Revista Jurídica, n.346, p.11, ago. 2006. * 59 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 “Convicção assente nos meios jurídicos é a de que a novidade capital introduzida pela Lei nº 11.232, de 02.11.2005, consiste na junção das atividades jurisdicionais cognitiva e executiva, eliminando-se a diferenciação formal entre o processo de conhecimento e o processo de execução, ressalvadas as hipóteses do art. 475-N, parágrafo único, do Código de Processo Civil e a de ser devedora a Fazenda Pública.” Destarte, mesmo que inexistente, na prática, essa divisão das funções jurisdicionais, não poderia o legislador elaborar um projeto de lei em que não fossem previstas regras gerais aplicáveis a todas as funções jurisdicionais. Com efeito, diversamente, as reformas trazidas rechaçaram a arquitetura inicial do Código de Processo Civil, pois como a lei não prevê uma parte geral de regras aplicáveis às funções jurisdicionais previstas no diploma legal, acabou-se por dissolver regras comuns no Livro do Processo de Conhecimento3. A bem da verdade, observa-se que a Lei nº 11.232/2005 dá lugar a um processo de natureza mesclada: junto à cognição efetiva-se o julgado4. Nesse mesmo sentido, ADA PELLEGRINI GRINOVER5 atesta que “a efetivação dos preceitos contidos em qualquer sentença civil condenatória se realizará em prosseguimento ao mesmo processo em que for proferida”. A Lei nº 11.232/2005, criada com o intuito de trazer agilidade à práxis hodierna e, especialmente, à execução de título executivo judicial, acabou por trazer inúmeros problemas tanto de ordem prática quanto de ordem doutrinária6. Tendo em vista a existência de inúmeras questões suscetíveis de dúvidas, por razões metodológicas, optou-se por examinar, neste tópico, cada uma dessas questões em itens diferenciados. ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3. MITIDIERO, Daniel Francisco. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução: Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3. 5 GRINOVER, Ada Pellegrini. Cumprimento da sentença. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes. Execução Civil e Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006, p.19. 6 OVÍDIO enxerga avanços com o advento da Lei nº 11.232/2005. Diz o autor que a maior virtude da lei em comento é que: “A partir de agora, todas as sentenças – ressalvada a indicada exceção – ou serão execuções reais, quando digam respeito a pretensões à entrega de coisa certa, ou serão preponderantemente mandamentais; quando não, em certas hipóteses, igualmente execuções reais, as pretensões que digam respeito ao cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer, segundo o prevê o § 5º do art. 461. Aproximamo-nos, portanto, das formas peculiares à tutela interdital. Este, a nosso ver, é um ganho expressivo no caminho da publicização do direito processual civil”. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Sentença condenatória na Lei 11.232. Revista Jurídica, n.345, p.20, jul. 2006. 3 4 60 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 1 – LIQUIDAÇÃO DA SENTENÇA A partir do advento da Lei nº 11.232/2005, é vedada a prolação de sentença ilíquida concernentemente às ações de procedimento comum sumário previstas no artigo 275, II, alíneas d e e, do Código de Processo Civil, ou seja, a lei veda a prolação de sentença ilíquida concernentemente às ações de indenização por danos causados em acidente de veículo de via terrestre e às ações de cobrança de seguro relativas aos danos causados em acidente de veículo, exigindo, portanto, que o juiz, se necessário, fixe de plano o valor devido conforme preceitua o artigo 475-A, § 3º. Segundo ensina TESHEINER7: “Deve-se, porém, repudiar a idéia de que a prolação de sentença ilíquida gere nulidade, o que viria em prejuízo de quem sofreu o dano, exatamente a parte a quem a Lei quer favorecer; a omissão da sentença pode ser suprida, por arbitramento judicial, a qualquer tempo, para fins de execução.” Nas hipóteses em que houver a necessidade de liquidação, a mesma pode ser realizada na pendência de recurso8 e, nesse caso, a liquidação será processada em autos apartados, cabendo ao liquidante instruir o pedido de liquidação com cópias das peças processuais pertinentes, uma vez que os autos originais são remetidos ao tribunal, segundo dispõe o artigo 475-A, § 2º. Em que pese a liquidação de sentença ser processada em autos apartados, a mesma não constitui novo processo, razão pela qual não se procede à citação pessoal do requerido, mas sim à intimação da parte na pessoa de seu advogado (art. 475-A, § 1º). Aliás, mister frisar que nem a liquidação por artigos constitui novo processo. Pois bem, quando a determinação do valor a ser liquidado depender apenas de simples cálculo aritmético, ou seja, em não sendo hipótese de liquidação por artigos ou por arbitramento, cabe ao próprio credor providenciar o cálculo e o anexar apresentando memória discriminada e atualizada do cálculo em comento. Todavia, se, porventura, a elaboração da memória do cálculo depender de dados existentes em poder ou do devedor ou ainda de terceiros, o juiz, mediante requerimento expresso do credor, 7 8 TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença – Regime introduzido pela Lei 11.232/2005. Revista Jurídica, n.343, p.18-19, maio 2006. Nesse sentido, os magistérios de GUILHERME RIZZO AMARAL e DAISSON FLACH. AMARAL, Guilherme Rizzo. Estudos de Direito Intertemporal e Processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.25; FLACH, Daisson. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução: Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.48. 61 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 poderá requisitá-los, fixando, ainda, prazo de 30 dias para que se cumpra a diligência. Contudo, se o devedor não apresentar os dados requeridos pelo juiz, reputar-se-á correto o cálculo apresentado pelo credor: artigo 475-B, §§ 1º e 2º. De igual forma, poderá o juiz determinar que o contador judicial proceda ao cálculo, em lugar do credor, em duas hipóteses distintas: a) quando a memória apresentada pelo credor, aparentemente, exceder os limites da decisão exeqüenda; b) nos casos de assistência judiciária, bem como se desconfiar do que foi por ele apresentado, conforme preleciona o artigo 475-B, § 3º. Destarte, se o credor discordar com o cálculo apresentado pelo contador do juízo, proceder-se-á à execução pelo valor por ele pretendido, mas a penhora terá por baliza o valor apontado pelo contador: art. 475-B, § 4º. No que tange à liquidação por arbitramento, far-se-á esta em duas hipóteses legais: I – quando determinado pela sentença ou convencionado pelas partes ou II – quando assim o exigir a natureza do objeto posto em causa na liquidação: art. 475-C. Após apresentado o laudo pelo perito nomeado pelo juiz, caberá às partes manifestar-se no prazo de dez dias, sobrevirá a decisão judicial ou, ainda, se necessário, haverá a designação de audiência: art. 475-D, parágrafo único. Desta decisão judicial, por tratar-se de decisão de mérito, cabe agravo de instrumento9. Já a liquidação por artigos ocorrerá naquelas hipóteses em que houver a necessidade de alegar e provar fato novo: art. 475-E. Mas o que é fato novo? Leciona ANTONIO CARLOS MATTEIS DE ARRUDA que fato novo “é aquele que resulta da obrigação e que não foi objeto de iudicium no provimento sob liquidação, ou, então, que surgiu durante ou após a demanda condenatória”. Por expressa determinação legal, a liquidação por artigos é regida pelo procedimento comum, art. 475-F, sendo o prazo para a resposta de 15 dias a contar da data da intimação da parte adversa na pessoa do seu advogado, ou com citação pessoal, se caso for, sendo expressamente vedada, em sede de liquidação por artigos, a rediscussão da lide ou, ainda, a modificação da sentença que a julgou: art. 475-G; tal ressalva deixa clara a preocupação do legislador em preservar a autoridade da coisa julgada. A decisão do julgamento da liquidação por artigos tecnicamente é a sentença, 9 Segundo entendimento de TESHEINER. TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença – Regime introduzido pela Lei 11.232/2005. Revista Jurídica, n.343, p.19, maio 2006. 62 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 mas o recurso cabível é o de agravo de instrumento, por expressa previsão legal, conforme prevê o artigo 475-H. 2 – DO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA E DA IMPUGNAÇÃO Atualmente, há duas diferentes sistemáticas para o cumprimento da sentença: o cumprimento da sentença tanto pode se dar por força dos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil, em se tratando de obrigação de fazer, obrigação de não fazer e obrigação de entrega de coisa; tanto pelos artigos 475-J, 475-L e 475-M, quando a obrigação for de pagar quantia. Porém, pode ocorrer que existam casos em que seja possível o cabimento das duas formas de execução, como, por exemplo, nos casos de crédito por alimentos, onde é admitida tanto a prisão do devedor quanto a penhora. Nas obrigações de fazer, não fazer e de entrega de coisa, foi rechaçado o processo de execução autônomo no que toca a títulos executivos judiciais. A efetivação do julgado se dá por conta do que determinam os artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil. Após a condenação do réu, é expedido mandado para o cumprimento da ordem, sendo, ainda, cominada multa diária. Almeja-se a efetivação da tutela específica ou a obtenção de resultados práticos equivalentes, e, nesse intuito, diferentes medidas podem ser adotadas como, e.g., a remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva. Relativamente à multa, a questão discutida diz respeito “ao momento em que o crédito resultante da incidência da multa – seja ela fixada em antecipação de tutela, seja em sentença ou acórdão – passa a ser exigível”10. Para GUILHERME RIZZO AMARAL11, entendimento com o qual se faz coro, a execução do crédito decorrente da incidência de multa, em caráter provisório, deve ocorrer a partir da sentença de procedência até o seu trânsito em julgado “após o que a execução passará a ter caráter definitivo, o que não significa que o valor em execução não possa vir a ser reduzido ou até mesmo suprimido, dado o caráter acessórios das astreintes e o fato de as mesmas não ficarem cobertas pelo manto da coisa julgada”. AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução: Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.84. 11 AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução: Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.87. 10 63 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Já no cumprimento da sentença por força dos artigos 475-J, 475-L e 475-M, quando a determinação do valor da condenação depender apenas de cálculo aritmético, tal cálculo pode ser efetuado tanto pelo credor quanto pelo devedor, havendo, inclusive, casos em que este é quem detém os dados necessários para efetuá-lo, motivo por que não há que se subordinar o início do prazo à apresentação de cálculo pelo vencedor. Quanto à impugnação, calha referir que a mesma substitui os antigos embargos do devedor. A impugnação é uma forma de defesa que o devedor deve utilizar para contrapor-se ao requerimento executivo. Quanto à natureza jurídica, a impugnação não é um instrumento de defesa por via de exceção12, mas sim uma ação incidental13 de oposição à execução similar aos antigos embargos à execução de sentença14, oportunidade em que “o executado veicula por ação sua reação contra a execução”15. A impugnação16 somente poderá versar sobre as matérias elencadas nos incisos do artigo 475-L, ou seja, somente versará sobre: falta ou nulidade da citação caso o processo tenha corrido à revelia; inexigibilidade do título; penhora incorreta ou avaliação errônea; ilegitimidade das partes; excesso de execução; qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, Em sentido contrário, entendendo que a impugnação constitui instrumento de defesa (exceção), ver, por todos, WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil – 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.151; CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução de sentença. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.125; SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de 2005 do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p.60; DIDIER JUNIOR, Fredie. Impugnação do Executado (Lei Federal nº 11.232/2005). Revista Jurídica, n.354, p.31, abr. 2007. 13 No tópico, assevera VANDERLEI ARCANJO DA SILVA que a impugnação vem a ser “decisão interlocutória apta a permitir o prosseguimento da fase executiva, o que, de acordo com as lições acima mencionadas, atribui a ela a natureza de mero incidente”. SILVA, Vanderlei Arcanjo da. Impugnação ao cumprimento da sentença: controvérsias e repercussões. Revista Jurídica, n.355, p.75-76, maio 2007. 14 Nesse sentido, ver por todos, ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.314; ARRUDA ALVIM, José Manoel de. A natureza jurídica da impugnação prevista na Lei 11.232/2005 – A impugnação do devedor instaura uma ação incidental, proporcionando o exercício do contraditório pelo credor; exige decisão, que ficará revestida pela autoridade de coisa julgada. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos da nova execução 3 – de títulos judiciais – Lei 11.232/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.44-50. 15 ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.314. 16 Para LUIZ GUILHERME AIDAR BONDIOLI, tanto a impugnação quanto os embargos à execução funcionam como “mecanismo de controle da nulidade dos atos processuais”. Assevera, ainda, o autor que o controle de nulidade fulcrado no inciso I do artigo 475-L do Código de Processo Civil “tem aptidão para a desconstituição do título executivo judicial, o que lhe atribui função rescindente e o aproxima da ação rescisória”. BONDIOLI, Luiz Guilherme Aidar. Nulidades processuais e mecanismos de controle. Revista de Processo, n.145, p.45-47, mar. 2007. 12 64 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença. A impugnação não tem efeito suspensivo, pode anteceder a penhora e a decisão da impugnação, por força legislativa, será atacável via agravo de instrumento, salvo quando importar extinção da execução, caso em que caberá apelação. 2.1 Da (Des)Necessidade de Intimação Pessoal do Devedor para Cumprimento da Sentença no Prazo de 15 Dias nas Execuções Alicerçadas em Título Executivo Judicial Uma das questões que mais têm suscitado o salutar debate acadêmico concerne à (des)necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento voluntário da sentença que o condene ao pagamento de quantia17, no caso do artigo 475-J do CPC. Concernentemente à necessidade ou não de intimação pessoal do réu para o cumprimento voluntário da sentença, houve uma omissão18 legislativa e, tendo em vista tal omissão, a doutrina dividiu-se em duas grandes correntes. Por um lado, a corrente encabeçada por LUIS WAMBIER, TERESA WAMBIER, JOSE MEDINA19 e LUIZ MANOEL GOMES JUNIOR20 defende que é imprescindível a intimação pessoal do devedor para que se inicie a contagem do prazo de 15 dias a que se refere Nesse particular, LUIZ WAMBIER entende que: “A primeira alteração estrutural relevante, decorrente do art. 475-J do CPC, está na eliminação da separação entre processo de conhecimento e de execução, já que as atividades voltadas à condenação e à execução passam a ocorrer no mesmo processo. Na verdade, o novo art. 475-J do CPC corrigiu anomalia que havia no sistema processual civil brasileiro. (...) A regra do art. 475-J do CPC, assim, ao unificar procedimentalmente as ações condenatória e de execução, encontra-se em sintonia com as modificações processuais realizadas na última década”. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Algumas considerações sobre o cumprimento da sentença que determina o pagamento de quantia em dinheiro, de acordo com a Lei nº 11.232/05. Revista Jurídica, n.343, p.12-13, maio 2006. 18 A existência de omissão legislativa, no tópico em tela, também é o entendimento defendido por ANA LAURA GONZÁLEZ POITTEVIN e VIVIAN RIGO. A multa no cumprimento da sentença e outros aspectos da Lei nº 11.232/05. In: MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto; TESHEINER, José Maria Rosa (Coords.). Instrumentos de Coerção e outros temas de direito processual civil – estudos em homenagem aos 25 anos de docência do Professor Dr. Araken de Assis. Rio de Janeiro: Forense, 2007, no prelo. 19 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil – 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.141 e ss.; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC (inserido pela Lei 11.232/2005). Disponível em: <http://w w w . t e x . p r o . b r >. Acesso em: 10 jul. 2006. 20 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Cumprimento de decisão judicial que fixou a multa. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes. Execução Civil e Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006, p.339. 17 65 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 o artigo 475-J do Código de Processo Civil. De outro lado, a corrente encabeçada por ERNANE FIDELIS DOS SANTOS21 e GUILHERME RIZZO22 defende que basta a intimação do procurador para que se inicie a contagem do prazo de 15 dias a que se refere o artigo 475-J do Código de Processo Civil. Vamos examinar a cinca. Intimar, segundo PONTES DE MIRANDA23, “é fazer saber, comunicar”. Nesse mesmo viés, THEODORO JÚNIOR24 ensina que a intimação dos atos processuais tem duplo objetivo, ou seja, o primeiro objetivo é “o de dar ciência de um ato ou termo processual” e o segundo objetivo é “o de convocar a parte a fazer ou abster-se de fazer alguma coisa”. Ainda segundo THEODORO JÚNIOR, “é da intimação que começam a fluir os prazos para que as partes exerçam os direitos e faculdades processuais”. Já MITIDIERO25, por seu turno, entende que “o objeto da intimação é dar ciência a alguém dos atos e termos do processo”. Seja como for, o importante é destacar que o prazo de 15 dias, para que o condenado cumpra, voluntariamente, os termos da condenação deve ser contado de acordo com o que preceitua o artigo 184 do Código de Processo Civil, ou seja, exclui-se o dia do início e inclui-se o dia do fim. LUIZ WAMBIER, TERESA WAMBIER, JOSÉ MEDINA e GOMES JUNIOR defendem a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença que condene ao pagamento de quantia. Logo, para tais doutrinadores, a intimação deve ocorrer na pessoa do réu e não mediante seu advogado, uma vez que o caráter coercitivo da multa a que aduz o artigo 475-J poderia ser ineficaz caso a intimação fosse dirigida ao advogado e não à parte26,27. De fato, não se olvida que existam atos processuais cuja intimação SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reforma de 2005 do Código de Processo Civil: execução dos títulos judiciais e agravo de instrumento. São Paulo: Saraiva, 2006, p.54. 22 AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro. (Coord.). A nova execução: comentários à Lei n° 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.92 e ss. 23 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, t.III, p.297. 24 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, v.I, p.269. 25 MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica, 2005, t.II, p.358. 26 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC (inserido pela Lei 11.232/2005). Disponível em: <www.tex.pro.br>. Acesso em: 10 jul. 2006. 21 66 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 na pessoa do advogado não se justifica, uma vez que tais atos processuais devem ser praticados pela própria parte. Nesse ínterim, LUIZ MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART28 defendem que diante da prática de atos personalíssimos da parte a via adequada é a da intimação pessoal e direta da parte e não de seu advogado. Ora, se o cumprimento da obrigação não é ato cuja realização dependa de advogado, mas sim de comportamento personalíssimo da parte; o ato de cumprimento ou descumprimento do dever jurídico é algo que unicamente será exigido da parte, e não de seu procurador, sendo esta, portanto, a hipótese prevista no art. 475-J, caput, do Código de Processo Civil29, segundo o entendimento de LUIZ WAMBIER, TERESA WAMBIER e JOSÉ MEDINA30. Para a corrente doutrinária encabeçada por ERNANE DOS SANTOS e GUILHERME RIZZO, inexiste a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença que condene ao pagamento de quantia. Portanto, para esta corrente, intimadas as partes, mediante seus procuradores, ocorre a abertura do prazo de 15 dias a que se refere o artigo 475-J do Código de Processo Civil. Assim, uma vez que o devedor já foi chamado a juízo durante a fase de cognição, torna-se obsoleta nova citação na fase de cumprimento da sentença, bastando, portanto, a intimação do devedor em nome de seu advogado. GUILHERME RIZZO31 ensina que a condenação da parte sucumbente, que, a partir de então, passa a ser retratada como devedora, pode se dar tanto na sentença de 1º grau quanto nas decisões subseqüentes, sendo que o artigo 475-J não faz propalada referência ao trânsito em julgado de tais decisões. Nesse passo, enquanto não transitar em julgado a sentença GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Cumprimento de decisão judicial que fixou a multa. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes. Execução Civil e Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006, p.339. 28 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 2.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.132. 29 BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários sistemáticos às Leis nºs 11.187, de 19.10.2005, e 11.232, de 22.12.2005. São Paulo: Saraiva, 2006, v.I, p.73. 30 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC (inserido pela Lei 11.232/2005). Disponível em: <http://w w w . t e x . p r o . b r >. Acesso em: 10 jul. 2006. 31 AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro (Coordenador). A nova execução: comentários à Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.92 e ss.; AMARAL, Guilherme Rizzo. Sobre a desnecessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC. Disponível em: <http://w w w . t e x . p r o . b r >. Acesso em: 10 jul. 2006. 27 67 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 ou acórdão, o cumprimento voluntário só se dará por provocação do credor e intimação específica do devedor, caso em que estará diante da hipótese de cumprimento provisório da sentença. Ademais, conforme bem observa o autor32, o dispositivo ora objeto de análise não informa a necessidade de intimação específica para cumprimento voluntário da sentença, fazendo, unicamente, menção no que tange à “condenação” do devedor e seu eventual descumprimento. Pois bem, ocorrendo o trânsito em julgado da sentença (ou do acórdão), diz GUILHERME RIZZO ser desnecessária a intimação do devedor para cumpri-la, bastando a simples ocorrência do trânsito em julgado para que se inicie o prazo de 15 dias para o cumprimento voluntário. No mesmo sentido, afirma THEODORO JÚNIOR que o devedor deve cumprir a obrigação no prazo legal, com o intuito de evitar a multa de 10%, a qual independe de citação ou intimação do executado33. ERNANE DOS SANTOS34 entende que o prazo de 15 dias somente tem início com o trânsito em julgado da decisão, ainda que esta seja impugnada por recurso que não tenha efeito suspensivo, sendo desnecessária a intimação pessoal do devedor35. Após examinarmos as duas correntes em seus diversos argumentos e pontos de vista, sustenta-se a desnecessidade de intimação pessoal do devedor para o cumprimento voluntário da sentença que condene ao pagamento de quantia. Inclusive, hodiernamente, o devedor dispõe de 15 dias, a contar do trânsito em julgado, para pagar, e somente AMARAL, Guilherme Rizzo. Sobre a desnecessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC. Disponível em: <http://w w w . t e x . p r o . b r >. Acesso em: 10 jul. 2006. 33 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 39.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, v.II, p.51. 34 SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de 2005 do Código de Processo Civil: execução dos títulos judiciais e agravo de instrumento. São Paulo: Saraiva, 2006, n.28, p.56. 35 No tópico, assevera TESHEINER: “O trânsito em julgado ocorrerá, na maioria dos casos, em outra instância, motivo por que se poderia sustentar que o termo inicial do prazo fixado para pagamento seria o da intimação do despacho de ‘cumpra-se’, quando do retorno dos autos. Mas isso implicaria a concessão de um prazo, que pode estender-se por vários meses, a um devedor já condenado porque deve e porque em mora. Note-se que não se trata de depósito, que deva ser autorizado pelo juiz, mas de pagamento, que independe de autos. Nos casos em que a falta deles torne difícil, para o devedor, a elaboração de um cálculo mais exato, resta-lhe a solução de efetuar pagamento parcial, caso em que a multa de dez por cento incidirá sobre o saldo (artigo 475-J, §4°). Essa dificuldade, acaso existente, será, na maioria dos casos, imputável à desídia do próprio devedor, que não se muniu de cópias necessárias de atos do processo. Excepcionalmente, a multa poderá ser relevada, em caso de provimento parcial do recurso, em termos tais que o cálculo se torne impossível sem consulta aos autos”. TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença – Regime introduzido pela Lei 11.232/2005. Revista Jurídica, n.343, p.22, maio 2006. 32 68 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 após o decurso deste prazo é que incidirá a multa de 10%36. No que toca à jurisprudência, existem entendimentos nos mais diversos sentidos: “Processual Civil – Agravo no Agravo de Instrumento – Recurso Especial – Art. 475-J do CPC – Intimação do Devedor na Pessoa de Seu Patrono – Ausência de Negativa de Prestação Jurisdicional – Ausência de Prequestionamento – Fundamentação Deficiente – Acórdão Recorrido em Consonância Com a Jurisprudência do STJ – Dissídio Não Demonstrado – Rejeitam-se corretamente os embargos declaratórios se ausentes os requisitos da omissão, contradição ou obscuridade. O prequestionamento dos dispositivos legais tidos por violados constitui requisito específico de admissibilidade do recurso especial. Não se conhece do recurso especial na parte em que se encontra deficientemente fundamentado. Não se conhece do recurso especial quando o acórdão recorrido está em consonância com a jurisprudência do STJ. Súmula 83/STJ. A comprovação do dissídio jurisprudencial requer o confronto analítico a evidenciar a similitude fática entre o acórdão recorrido e o julgado paradigma. Agravo no agravo de instrumento não provido” (STJ – AgRg-Ag 965.762 – RJ – 3ª T. – Relª Min. Nancy Andrighi – DJ 30.04.2008) (grifo nosso). “Processual Civil – Cumprimento de Sentença – Art. 475-J do CPC – Intimação – Quando se tratar de satisfação de título executivo judicial, o art. 475-J do CPC compromete pessoalmente o sucumbente ao cumprimento da sentença em 15 dias, sob pena de multa. Assiste, portanto, razão aos agravantes no que alegam ter sido indevidamente dirigida a intimação, ademais porque, não bastasse a literal disposição da nova lei, a satisfação do crédito pelo próprio 36 ELAINE MACEDO aduz que esta última reforma do Código de Processo Civil, no que toca à multa do artigo 475-J, “vem no sentido de agravar a situação do credor. Pois pela lei velha (a reformada), decorrido o prazo de quinze dias, isto é, trânsita a sentença em julgado (desimportando se esse trânsito ocorresse em primeiro grau ou depois do julgamento em sede de apelo, mas no decurso dos primeiros quinze dias após o respectivo julgamento), o credor podia, desde logo, no 16º dia, promover a execução, requerendo a citação do devedor para pagar no prazo de 24 horas, pena de penhora. Em suma, 15 dias até o trânsito e mais 24 horas. Com a reforma, 15 dias até o trânsito, mais 15 dias (com ou sem intimação conforme o entendimento doutrinário das duas posições, e, no futuro próximo, jurisprudencial) para cumprimento espontâneo e só depois expedição de mandado de penhora e avaliação”. MACEDO, Elaine Harzheim. O cumprimento da sentença e a multa do art. 475-J do CPC sob uma leitura constitucional da Lei nº 11.232/05. Revista da Ajuris, n.104, p.88, dez. 2006. 69 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 devedor visa a acelerar o cumprimento da tutela jurisdicional (TRF 2ª R. – Ag 2007.02.01.006270-3 – 7ª T. – Rel. Desemb. Fed. Sergio Schwaitzer – DJ 21.07.2008) (grifo nosso). “Sentença – Cumprimento – Ação de Cobrança – Indeferimento do pedido de intimação da executada para pagamento do débito, em atendimento ao disposto no artigo 475-J do CPC. Procedida a penhora e elaborado o auto respectivo pelo oficial de justiça, será o executado intimado, de imediato, na pessoa de seu advogado, nos termos do artigo 475, “J”, § 1º, do CPC. Na falta de advogado, será intimado o representante legal, ou ele próprio pessoalmente, consoante estabelecido pelo dispositivo sob análise. Aplicação da Lei nº 11.232/2005 ao processo, pois o cumprimento da sentença teve início durante sua vigência. Aberta a fase de cumprimento da sentença, nada impedia o pagamento da verba devida, posto que decorrente da improcedência da ação. Possibilidade de incidência da multa, como conseqüência do inadimplemento. Recurso desprovido” (TJSP – AI 7.101.585-1 – Araraquara – 15ª CDPriv. – Rel. Desemb. Manoel Mattos – DJ 27.03.2007) (grifo nosso). Enfim, após criterioso exame tanto jurisprudencial quanto doutrinário, calha referir que defender a posição de necessidade de intimação pessoal do réu para cumprir voluntariamente a sentença transitada em julgado não apenas acarreta em má resolução do conflito entre efetividade, celeridade e, principalmente, segurança jurídica como, também, acarreta retrocesso processual e de nada, portanto, teria adiantado a reforma trazida pela Lei nº 11.232/2005. 2.1.1 Do termo a quo para a contagem do prazo de 15 dias para a incidência da multa de 10% a que alude o artigo 475-J As dificuldades doutrinárias aos operadores do direito trazidas pela Lei nº 11.232/2005 estão longe de acabar, pois se, por um lado, há embaraços em determinar a (des)necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença que condene ao pagamento de quantia, por outro lado, há, ainda, o embaraço de determinar o início da contagem do prazo de 15 dias para a incidência da multa de 10%, deixando, assim, novamente, omissa a legislação, o que nos faz concordar, de plano, com as felizes 70 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 palavras de ANA LAURA GONZÁLES POITTEVIN e VIVIAN RIGO37, que ensinam que tal omissão deu “margem a que vozes ecoassem nos mais diversos tons”. Aliás, JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER38 há muito apontou o desencadeamento de controvérsia na doutrina quanto ao termo a quo do prazo de 15 dias. LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART39, com propriedade, assim sumulam a questão telada: “O art. 475-J não diz a partir de quando deve ser contado o prazo para o pagamento voluntário da quantia fixada na condenação. Limita-se a dizer que, não efetuado o pagamento no prazo de 15 dias, o valor da condenação deve ser acrescido da multa de 10%. Na verdade, como a regra não esclarece quando tem início o cômputo do prazo de 15 dias, também não se tem por certo o instante em que a multa deverá incidir”. ARAKEN DE ASSIS40, por exemplo, defende que existe um lapso de espera de 15 dias, contados da data em que a condenação se tornou exigível, e que, após findar tal prazo de 15 dias, a multa de 10% é aplicada automaticamente. Para o autor, a multa incide tanto nos casos de decisão com trânsito em julgado como nos casos em que exista pendência de julgamento de recurso sem efeito suspensivo. De outra banda, de acordo com o magistério de SCARPINELLA BUENO41, se houve a interposição de recurso, o lapso inicial do prazo em questão terá início somente após a intimação das partes acerca da baixa dos autos, bastando, inclusive, que a intimação se dê na pessoa dos advogados das partes em questão. Destarte, em verdade, o termo a quo para a contagem do prazo de 15 dias tem início a partir do momento em que a sentença se torna exeqüível, seja porque transitou em julgado, seja porque impugnada por recurso destituído de efeito suspensivo, fazendo-se coro, portanto, com os POITTEVIN, Ana Laura González; RIGO, Vivian. A multa no cumprimento da sentença e outros aspectos da Lei nº 11.232/05. In: MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto; TESHEINER, José Maria Rosa (Coord.). Instrumentos de Coerção e outros temas de direito processual civil – estudos em homenagem aos 25 anos de docência do Professor Dr. Araken de Assis. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.24. 38 TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença – Regime introduzido pela Lei 11.232/2005. Revista Jurídica, n.343, p.21, maio 2006. 39 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil – Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v.3, p.238. 40 Assis, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 212. 41 Bueno, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários sistemáticos às Leis nºs 11.187, de 19.10.2005, e 11.232, de 22.12.2005. São Paulo: Saraiva, 2006, p.78. 37 71 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 ensinamentos de ARAKEN DE ASSIS42 e ATHOS CARNEIRO43. A jurisprudência, por seu turno, não está pacificada, existindo, portanto, decisões nos mais diversos sentidos, conforme arestos a seguir colacionados: “Agravo de Instrumento – Cumprimento de Sentença – Auto de Penhora – Intimação – Necessidade – Conforme disposto no art. 475-J, § 1º, do CPC, o prazo de 15 dias para apresentação de impugnação pela parte executada começa a fluir da intimação do auto de penhora. Recurso provido” (Agravo de Instrumento nº 70019294776, 2ª Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Catarina Rita Krieger Martins, Julgado em 03.07.2007) (grifo nosso). “Agravo de Instrumento – Cumprimento de Sentença – Pagamento do Valor Devido pelo Executado – Diferença Apontada pelo Credor – Penhora Online – Decisão que determinou a expedição de mandado de pagamento sem dar ciência ao devedor do auto de penhora, a fim de marcar o início do lapso temporal para oferecimento de impugnação. Malferida a regra prevista no artigo 475-J, § 1°, do CPC, a decisão merece reforma. Provimento do recurso” (TJRJ – Agravo de Instrumento 2007.002.04666 – 5ª Câmara Civel – Rel. Desemb. Roberto Wider – J. 12.06.2007) (grifo nosso). Execução de Sentença – Lei 11.232/05 – Art. 475-J do CPC – Termo Inicial do Prazo Para Cumprimento da Sentença – 1. Ainda que não expresso no art. 475-J do CPC, o termo inicial para cômputo do prazo de 15 dias, ali estabelecido, para cumprimento voluntário da obrigação decorrente de sentença, é a intimação da parte, através de seu patrono e pela imprensa oficial, da decisão que contenha condenação líquida e certa – descontado apenas o prazo recursal, se a decisão for passível de recurso que suspenda sua executividade. 2. Exigir a intimação pessoal do devedor para cumprimento da obrigação não é interpretação que se extrai da Lei 11.232/05, cujo intuito foi justamente conferir maior coercitividade, efetividade e celeridade à execução de sentença. Recurso que se nega seguimento” (TJRJ – AI 2007.002.02413 – 16ª C. Cív. – Rel. Desemb. Marcos Alcino A. Torres – J. 03.05.2007). Divergências jurisprudenciais à parte, em verdade, ocorrendo o trânsito em julgado da sentença ou do acórdão (independentemente de 42 Assis, Araken de. Cumprimento de Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.212. 43 Carneiro, Athos Gusmão. Nova execução. Para onde vamos? Vamos melhorar. Revista de Processo, n.123, p.118. 72 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 intimação pessoal do devedor), passa-se a contar o prazo de 15 dias para o cumprimento voluntário da condenação. Caso o devedor não cumpra voluntariamente os preceitos da condenação, haverá a incidência da multa de 10%, retornando a iniciativa do processo ao credor, para que requeira, ou não, a instauração do procedimento de cunho executivo44. 2.2 Da Execução Provisória O artigo 475-O contempla a hipótese de execução provisória. A execução provisória “é uma modalidade de execução só admitida em caso de título executivo judicial”45, quando há a pendência de apelação com efeito devolutivo. A execução provisória está condicionada ao requerimento do credor. Destarte, sobrevindo anulação ou reforma da sentença em que se fundou, a execução provisória fica sem efeito, hipótese em que voltam as partes ao status quo, caso em que o exeqüente responde objetivamente pelos danos causados. Mesmo que provisória a execução, ainda assim a novel legislação em vigor permite a alienação de bens do executado, bem como o levantamento de depósito em dinheiro pelo exeqüente, desde que seja prestada caução, real ou fidejussória, em valor arbitrado pelo juiz; porém, a caução pode vir a ser dispensada pelo juiz, nos casos em que a causa versar sobre crédito de natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito, desde que seja observado o limite de 60 vezes o salário mínimo. Para ATHOS CARNEIRO46, o § 2º do art. 475-O ampliou as hipóteses de dispensa da caução. Nesse ínterim, a caução também poderá ser dispensada quando houver pendência de agravo de Para não passar in albis, importante trazer o posicionamento de CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA, para quem: “A multa introduzida pelo art. 475-J só pode ser aplicada se o trânsito em julgado da sentença condenatória ocorreu depois da vigência da nova lei, dado o seu caráter penitencial. E isso porque, no tocante às normas revestidas desse caráter, vigora o princípio da irretroatividade das sanções agravadas ou inovadas, as quais não incidem, assim, sobre os atos praticados antes da vigência da nova lei”. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro (Coord.). A nova execução: comentários à Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.292293. 45 CARREIRA ALVIM; José Eduardo; CABRAL; Luciana Gontijo Carreira Alvim. Cumprimento da Sentença. Curitiba: Juruá, 2006, p.108. 46 CARNEIRO, Athos Gusmão. Do ‘cumprimento da sentença’, conforme a Lei 11.232/2005. Parcial retorno ao medievalismo? Por que não?. Revista da Ajuris, n. 102, p.72, jun. 2006. 44 73 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 instrumento47 junto ao Supremo Tribunal Federal ou junto ao Superior Tribunal de Justiça, à exceção de quando da dispensa de caução possa, manifestamente, resultar risco de grave dano de difícil ou incerta reparação. Sobre o assunto em tela, GUILHERME AMARAL48 entende que: “Não tendo sido realizado o ato de levantamento de depósito ou expropriação de bens até a entrada em vigor da nova lei, então qualquer caução eventualmente prestada poderá ser dispensada, nos termos do novel artigo 475-O, § 2º, II”. Por último, importante mencionar que não cabe execução provisória contra a Fazenda Pública, segundo assevera ATHOS CARNEIRO49. 3 – DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA A Lei 11.232/05 quedou silente acerca da possibilidade de honorários advocatícios na fase do cumprimento da sentença. Tendo em vista tal silêncio do legislador, mister se faz a análise da necessidade ou não da fixação de honorários nessa “fase processual”. Ora, para a instauração do cumprimento da sentença, aprioristicamente, o advogado do credor promove o requerimento do cumprimento, oportunidade em que instrui seu pedido com a memória discriminada e atualizada de cálculo. Ao devedor, nessa fase, se quiser se defender, poderá promover a impugnação ao cumprimento da sentença. E ao credor é dada a prerrogativa de responder a tal impugnação. Em verdade, todas estas atividades técnicas são desempenhadas por advogados. Há labor advocatício técnico pelos profissionais contratados tanto pelo devedor quanto pelo credor. Nesse diapasão, não há como ser rechaçada a possibilidade de o advogado auferir honorários na fase do cumprimento da sentença. Ademais, cristalino está que, mesmo após a prolação da sentença, a atividade jurisdicional não resta esgotada, eis que, na prática, falta a efetivação do julgado. Por outro lado, a lei dispõe que os honorários advocatícios são fixados nas execuções. DANIEL ROBERTO HERTEL eclarece que nas hipóteses de pendência de agravo de instrumento, “a ratio legis, nesse caso, é que o executado está manejando praticamente o último recurso cabível para impugnação da decisão. A probabilidade de não-obtenção de êxito nesse recurso é grande, motivo pelo qual o Legislador, primado pela celeridade e efetividade processuais, entende que a caução pode ser dispensada na execução provisória. A despeito dessa previsão, obviamente, havendo risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação, poderá o magistrado exigir a prestação da caução, exatamente conforme determinado no art. 475-O, § 2º, inc. II, in fine, do CPC”. HERTEL, Daniel Roberto. A execução provisória e as inovações da Lei nº 11.232/05. Revista Jurídica, n.348, p.62, out. 2006. 48 AMARAL, Guilherme Rizzo. Estudos de Direito Intertemporal e Processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.30. 49 CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da Sentença Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.98. 47 74 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Portanto, seja utilizado o termo “cumprimento”, seja utilizado o termo “execução”da sentença, fato é que devidos são os honorários advocatícios. Em recente decisão acerca do tema, nesse sentido se manifestou o STJ nos autos do REsp 987.38850. Em seu voto, a Ministra Fátima Nancy Andrighi afirma: “... Acrescente-se, ainda, que o art. 475-I do CPC é expresso em afirmar que o cumprimento da sentença, nos casos de obrigação pecuniária, se faz por execução. Ora, se haverá arbitramento de honorários na execução (art. 20, § 4º, do CPC) e se o cumprimento da sentença se faz por execução (art. 475, I, do CPC), outra conclusão não é possível, senão a de que haverá a fixação de verba honorária na fase de cumprimento da sentença. No mais, o fato da execução agora ser um mero ‘incidente’ do processo não impede a condenação em honorários, como, aliás, ocorre em sede de exceção de préexecutividade, na qual esta Corte admite a incidência da verba. Confiram-se, nesse sentido, os seguintes precedentes: REsp 737.767/AL, 3ª Turma, Rel. Min. Castro Filho, Rel. p/acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 22.05.2006; REsp 751.400/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 19.12.2005; e AgRg no REsp 631.478/MG, 3ª Turma, minha relatoria, DJ de 13.09.2004. (...) Tudo isso somado – embora cada fundamento me pareça per se bastante – leva à conclusão de que deve o juiz fixar, na fase de cumprimento da sentença, verba honorária, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC.” 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ARAKEN DE ASSIS51, ao fazer vigoroso estudo sobre o método em processo civil, com ênfase nas lições de KARL POPPER, aponta que: “Uma das questões fundamentais da metodologia jurídica implica iluminar e resolver como o juiz aplica a lei ao caso que lhe é submetido”. Conforme ARAKEN DE ASSIS52: “(...) o conhecimento se alcança pela tentativa e pela eliminação do erro. Ante uma teoria, que não passa de uma hipótese de trabalho, o progresso é obtido pela refutação, ou seja, submetendoCumprimento de Sentença – Honorários Advocatícios – Cabimento. São devidos honorários advocatícios no pedido de cumprimento de sentença. (STJ – REsp 987.388-RS – Proc. 2007/0126133-6 – 3ª T. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJ 26.06.2008). 51 ASSIS, Araken de. Doutrina e Prática de Processo Civil Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.42. 52 Aut. cit., op. cit. p.44. 50 75 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 a a testes de crescente dificuldade, até que, finalmente, ela não corresponde a um problema e fica superada por outra mais abrangente.” Trazendo este último ensinamento de ARAKEN DE ASSIS para o estudo das reformas do Código de Processo Civil, mergulha-se na investigação metodológica das reformas: qual melhor método a utilizar? Reforma parcial ou reforma total da legislação? Na exposição de motivos do Código de Processo Civil de 1973, Lei nº 5.869/1973, o então Ministro da Justiça, ALFREDO BUZAID, faz uma alentada reflexão que se inicia através de uma indagação: “Revisão ou Código novo?” Consoante se vê, desde os auspícios do Código anterior, as reformas processuais são objetivo de debates no mundo jurídico. Nessa linha de idéias, ALFREDO BUZAID53 passa a descrever os motivos pelos quais optou por uma nova legislação em vez de somente, parcialmente, reformar o Código de Processo Civil de 1939, e, nesse diapasão, elucida: “O grande mal das reformas parciais é o de transformar o Código em mosaico, com coloridos diversos que traduzem as mais variadas direções” (grifo nosso). Ao ler esta passagem de BUZAID sobre a reforma parcial, fica no ar a pergunta: se vivo estivesse, como estaria reagindo BUZAID às recentes reformas parciais do Código de Processo Civil de 1973? Em verdade, o Código de Processo Civil não se transformou em um “mosaico com coloridos diversos”, mas, pior, se transformou, como bem sugestiona DINAMARCO54, em uma grande colcha de retalhos, remendada, com cores diferenciadas que não combinam entre si, perfazendo, assim, um aglomerado de tecido disforme e sem ordenação. Verifica-se, portanto e de plano, nos dizeres de ARAKEN DE ASSIS55, “a hipertrofia” e o “conseqüente desequilíbrio estrutural do CPC”, uma vez que “reformas parciais transformam a lei em caleidoscópio com as mais diferentes e contraditórias orientações”. BUZAID, Alfredo. Exposição de motivos do Código de Processo Civil. In: Código de Processo Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2006, p.1. 54 CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, quando da promulgação das Leis nºs 10.352/2001, 10.358/2001 e 10.444/2002, chamou a atenção para o “perigo de uma colcha de retalhos”: “(...) as Reformas não se pautam por preocupações concentradamente sistemáticas, o que gera o risco de alojar no Código disposições mal costuradas entre si, sem a indispensável coordenação orgânica, funcional e mesmo conceitual. Exemplos dessa falha são a disciplina da tutela antecipada e do processo monitório”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.38. 55 ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3. 53 76 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 Assim, o Código de Processo Civil perdeu não só a sua ordenação inicial, mas, também, a sua unidade. As últimas reformas afastaram a estrutura inicial do Código de Processo Civil, verificando-se, assim, um completo desequilíbrio estrutural. Mesmo que inexistente, na prática, a divisão das funções jurisdicionais (processo de conhecimento, processo de execução e processo cautelar), não poderia o legislador elaborar um projeto de lei em que não fossem previstas regras gerais aplicáveis a todas as funções jurisdicionais, uma vez que tal atitude carece de lógica e sistematização processual56. Ora, voltando à metáfora57 da colcha de retalhos, calha dizer que, atualmente, o colorido do Código de Processo Civil é um matizado com nuança destoante, com tonalidades antagônicas, onde, por exemplo, entre inúmeros problemas, sobrevivem normas que se referem a institutos jurídicos revogados pela última reforma processual. Exemplificando: foram revogados, pela Lei nº 11.232/2005, os artigos 589 e 590 do Código de Processo Civil, que se referiam à carta de sentença. Destarte, em que pese a eliminação da carta de sentença do ordenamento processual civil brasileiro, outros dispositivos do Código continuam prevendo a referida carta (v.g. artigo 521 e artigo 484). ARAKEN DE ASSIS58, com peculiar visão crítica sobre as recentes reformas do Código de Processo Civil, ao abordar a questão da sobrevida da carta de sentença em determinados dispositivos do Código, observa: “No entanto, conforme só ocorre nas reformas parciais e erráticas empreendidas no último decêndio entre nós, o sepultamento da carta de sentença seja prematuro. O defunto soergue-se do túmulo na parte final do artigo 521, prevendo-se aí a extração da ‘respectiva carta’ na hipótese de o juiz (nos casos legalmente admissíveis) receber a apelação tão-só no efeito Nesse mesmo sentido, é o magistério de ARAKEN DE ASSIS. ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3. 57 A metáfora da colcha de retalhos jamais poderia ser desenvolvida no sentido de metáfora patchwork, pois o patchwork é um trabalho artístico, feito com retalhos de pano, onde impera a ordenação de cores e tamanho dos retalhos... Já a metáfora da colcha de retalhos é aqui utilizada no intuito de demonstrar um trabalho não ordenado e, aliás, nada artístico, onde apenas juntamse pedaços de retalhos desordenadamente sem qualquer preocupação com combinação de cores e matizes. 58 ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.163. 56 77 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 devolutivo, e no art. 484, segundo o qual a execução de sentença estrangeira ‘far-se-á por carta de sentença’.” De outra banda, calha trazer, também, a questão da execução dos alimentos ante o advento da Lei nº 11.232/2005. O legislador quedou silente no que tange à execução dos alimentos, com base em título executivo judicial, após a promulgação da Lei nº 11.232/2005. O silêncio legislativo é aqui visto como omissão legislativa e, tendo em vista tal omissão, vem sendo questionado se os atos de cumprimento da sentença alcançam os encargos de natureza alimentícia, uma vez que inexistiu revogação expressa e, muito menos, qualquer alteração no Capítulo V do Título II do Livro II do CPC, que trata “Da Execução de Prestação Alimentícia”. Em contrapartida, de igual forma, inexistem referências à obrigação alimentar nas novas regras de cumprimento da sentença, inseridas nos Capítulos IX e X do Título VIII do Livro I: “Do Processo de Conhecimento”: artigos 475-I a 475-R do Código de Processo Civil. Portanto, tendo em vista a não-revogação dos artigos e a inserção de novos dispositivos legais, ante a reforma parcial do Código de Processo Civil, opera-se o conflito de leis no tempo: duas leis regulando a mesma matéria ao mesmo tempo. Então, aos operadores do direito resta, somente, a dúvida: nas execuções de prestações alimentícias fundadas em título executivo judicial, se aplicam as novas regras do cumprimento da sentença ou continua-se a executar o julgado com base no artigo 732 (já que o mesmo não foi revogado pela Lei nº 11.232/2005)? MARIA BERENICE DIAS59 soluciona o problema da seguinte forma: “Os alimentos podem e devem ser cobrados pelo meio mais ágil introduzido no sistema jurídico. O crédito alimentar está sob a égide da Lei 11.232/05, podendo ser buscado o cumprimento da sentença nos mesmos autos da ação em que os alimentos foram fixados (CPC, art. 475-J). Houve mero descuido do legislador ao não retificar a parte final dos arts. 732 e 735 do CPC e fazer remissão ao Capítulo X do Título VII: ‘Do Processo de Conhecimento’. A falta de modificação do texto legal não encontra explicação plausível e não deve ser interpretada como intenção de afastar o procedimento mais célere e eficaz logo da obrigação alimentar, cujo bem tutelado é exatamente a vida. A omissão, mero 59 DIAS, Maria Berenice. Execução dos Alimentos e as Reformas do CPC. Disponível em: <http://www.tex.pro.br>. Acesso em: 24 dez. 2006. 78 RJ 370 D OUTRI NA C IVI L A GO STO /2008 cochilo ou puro esquecimento, não pode levar a nefastos resultados.“ ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS60 entende que pode ser aplicado tanto o artigo 475-J quanto o artigo 732 para que se proceda à execução de alimentos: “A execução de prestação alimentícia pode ser feita de maneiras diversas, inclusive na forma comum, seguindo, agora, o art. 475-J, mas com a possibilidade de se aplicar a antiga regra do art. 732, parágrafo único, com permissão de levantamento mensal das importâncias depositadas, haja ou não impugnação, não sendo de se permitir qualquer efeito suspensivo.” Seja como for, o exemplo da revogação dos artigos 589 e 590 através do advento da Lei nº 11.232/2005 e o exemplo do silêncio do legislador sobre o rito da execução de alimentos após a promulgação da Lei nº 11.232/2005 somente ilustram a falta de metodologia das reformas parciais do Código de Processo Civil. Portanto, melhor seria uma reforma geral da legislação do que a atual e problemática reforma parcial61; afinal, as emendas parciais exigem uma convergência de idéias e estudos que nem sempre se opera (como agora ocorreu com a promulgação da Lei nº 11.232/2005, que desestabilizou a estrutura inicial do Código de Processo Civil). Enfim, sobre as reformas parciais, faz-se coro com as observações de ALFREDO BUZAID62 ao optar por uma reforma geral em 1973. SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reforma de 2005 do Código de Processo Civil: execução dos títulos judiciais e agravo de instrumento. São Paulo: Saraiva, 2006, p.94. 61 Todavia, MAURO CAPPELLETTI, ao enfrentar o tema das reformas processuais na Itália, afirma que: “In conclusione: no alla pseudo-riforma, che non serve praticamente a nulla, anzi à dannosa perché fa perdere altro tempo e offre incondate illusioni. Si, invece, ad una riforma anche parziale e sperimentale, che rapra infine, e d’urgenza, le aule della giustizia alla gente che ne ha bisogno e che, oggi, ne è esclusa a causa di una situazione divenuta ormal tragica di inefficienza, disorganizzazione e ritardo”. CAPPELLETTI, Mauro. Parere iconoclastico sulla riforma del processo civile. In: Giurisprudenza, Dottrina e Legislazione. Torino: Unione Tipográfico – Editrice Torinese, 1969, p. 87, Serie 7ª, v. XXI. 62 Nesse sentido, diz BUZAID: “Mas a pouco e pouco nos convencemos de que era mais difícil corrigir o Código velho que escrever um novo. A emenda ao Código atual requeria um concerto de opiniões, precisamente nos pontos em que a fidelidade aos princípios não tolera transigências. E quando a dissensão é insuperável, a tendência é de resolvê-la mediante concessões que não raro sacrificam a verdade científica a meras razões de oportunidade. [...] Propondo uma reforma total, pode parecer que queremos deixar abaixo as instituições do Código vigente, substituindo-as por outras inteiramente novas. Não. Introduzimos modificações substanciais a fim de simplificar a estrutura do Código, facilitar-lhe o manejo, racionalizar-lhe o sistema e torná-lo um instrumento dúctil para a administração da justiça”. BUZAID, Alfredo. Exposição de motivos do Código de Processo Civil. In: Código de Processo Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2006, p.1-2. 60 79