anotações sobre o título “da prova” do novo código civil

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ANOTAÇÕES SOBRE O TÍTULO
“DA PROVA” DO NOVO CÓDIGO CIVIL
J OSÉ C ARLOS B ARBOSA M OREIRA *
Sumário: 1 – Generalidades; 2 – Âmbito de incidência do art. 212.
Caráter exemplificativo do elenco legal; 3 – Referências à
presunção no Título “Da prova”; 4 – Considerações sobre a
enumeração do art. 212; 5 – Inspeção judicial e perícia; 6 – As
presunções; 7 – Considerações finais.
1 – G ENERALIDADES
O Título “Da prova” (Título V do Livro III, arts. 212 a 232) é
certamente dos menos felizes do Código Civil de 2002. Seria talvez adequado
começar por questionar a propriedade mesma da inserção, no texto do
Código, de um conjunto de regras concernentes à prova. Como é notório,
muito se tem discutido em doutrina a pertinência desta ao direito material
ou ao direito processual. O legislador de 1973 claramente optara pelo
segundo termo da alternativa, conforme ressalta da existência, no vigente
Código de Processo Civil, de um Capítulo (n° VI do Título VIII do Livro I,
arts. 332 a 443) dedicado às provas1, onde se contém disciplina bem mais
minuciosa que a constante do novo estatuto civil. Admita-se que este
tomasse outra opção; abstraindo-se das críticas a que se sujeitaria em razão
dela, era de esperar que, tendo resolvido tratar do assunto, o fizesse de modo
abrangente e sistemático, com revogação expressa, ao menos parcial, das
disposições do diploma anterior.
Professor da Faculdade de Direito da UERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro.
1 A bem da verdade, a localização não é incensurável. A disciplina das provas de modo algum
interessa apenas ao processo de conhecimento (rubrica do Livro I), e menos ainda só ao
procedimento ordinário (rubrica do Título VIII). Ficaria melhor numa parte geral, a que
lamentavelmente não se reservou espaço na estrutura do Código.
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Não é o que se vê; fica a legislação brasileira sobre prova dividida
entre dois códigos. Há outros exemplos no direito comparado: assim a
França (code civil, arts. 1.315 e ss.; code de procédure civile, arts. 9 e ss., 132 e ss.),
a Itália (códice civile, arts. 2.697 e ss.; códice di procedura civile, arts. 191 e ss., 281
ter), Portugal (Código Civil, arts. 341 e ss.; Código de Processo Civil, arts. 513
e ss.). Aliás, a divisão vem do próprio direito brasileiro antigo: por longo
tempo coexistiram regras sobre prova no Código Civil de 1916 (Capítulo IV
do Título I do Livro III) e no Código de Processo Civil de 1939 (Título VIII do
Livro II), e depois no de 1973 (Capítulo VI do Título VIII do Livro I). Nada
disso, é óbvio, justificava que se persistisse no rumo2.
Nem se compreende bem o critério adotado para a escolha dos tópicos
que o novel diploma regularia, com preterição de outros. Para dizer
diversamente: não fica muito claro o motivo por que o legislador de 2000
entendeu de levar para o Código Civil determinada porção da disciplina da
prova e deixar de lado a porção restante. Não se terá seguido à risca,
exemplificativamente, a orientação preconizada em obra clássica, segundo a
qual pertencem ao direito substantivo “as disposições relativas à essência
das provas, à sua admissibilidade, aos seus efeitos, às pessoas que devem
ministrá-las” e ao direito processual “as regras propriamente relativas ao
modo, tempo e cautelas da sua constituição e produção”3. À luz da cláusula
que grifamos, deveriam incorporar-se ao Código Civil, v.g., as disposições
que distribuem o ônus da prova entre as partes, à semelhança do que ocorre
na Itália (códice civile, art. 2.697) e em Portugal (Código Civil, art. 342): entre
nós, desprezou-se esse modelo, e a matéria continua versada exclusivamente
no Código de Processo Civil, art. 333.
Tem conseqüência sobremodo inconveniente a técnica fragmentária e
assistemática utilizada pelo legislador de 2002. Há no novo Código Civil
disposições sobre tópicos versados no Código de Processo Civil; em alguns
casos, mas não em todos, repetiu-se no mais recente diploma o que já
constava do anterior: v.g., o art. 225 deste praticamente nada acrescenta
Também na França há quem censure o “chevauchement entre le deux codes”: segundo
VINCENT/GUINCHARD (Procedure civile. 27.ed. Paris, 2003, p.790), nele se depara “tout ce qu’il y a
de plus critiquable en théorie comme en pratique”.
3 AMARAL SANTOS. Prova judiciária no cível e no comercial. 5.ed. São Paulo, 1983, p.42-43 (sem grifo no
original).
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(exceto a imprópria qualificação de “plena” dada à prova4) ao que se lê no
art. 383 daquele; o art. 227, caput, do primeiro reproduz quase ipsis verbis
(com ociosa ressalva inicial e substituição de “contratos” por “negócios
jurídicos”) o art. 401 do segundo. A par disso, em cada um dos dois
diplomas existem normas sem correspondente no outro. Destarte, nosso
direito probatório de hoje é o resultado da superposição de dois retículos
normativos, com pontos e espaços que nem sempre coincidem. Os
intérpretes e aplicadores da lei têm de precaver-se contra as ciladas que lhes
prepara esse autêntico cipoal5.
Se se quiser um exemplo, comparem-se os dizeres do art. 368 do
diploma processual e do art. 219 do civil. O caput deste harmoniza-se com o
daquele: abstraindo-se de ligeiras e irrelevantes diferenças de redação,
estabelecem ambos que se presumem verdadeiras em relação aos signatários
as declarações constantes de documento particular assinado. Outro tanto não
se dirá, contudo, dos parágrafos. Nos termos do que acede ao art. 368 do
Código de Processo Civil, “quando, todavia, contiver [o documento]
declaração de ciência, relativa a determinado fato, o documento particular
prova a declaração, mas não o fato declarado, competindo ao interesssado
em sua veracidade o ônus de provar o fato”. Já no parágrafo único do art.
219 do Código Civil (que repete o parágrafo único do art. 131 do Código
Civil de 1916), é coisa diferente que se lê: “Não tendo relação direta, porém,
com as disposições principais ou com a legitimidade das partes, as
declarações enunciativas não eximem os interessados em sua veracidade do
ônus de prová-las”. Salvo engano, “declaração de ciência relativa a
determinado fato” não significa o mesmo que declaração enunciativa sem
“relação direta com as disposições principais ou com a legitimidade das
partes”. Que se há de concluir? Que o parágrafo único do art. 368 do Código
de Processo Civil foi revogado pelo parágrafo único do art. 219 do Código
Civil? Ou podem as duas disposições coexistir pacificamente, somando-se as
declarações mencionadas numa e noutra, para o fim de excluir quanto a
Para a crítica dessa terminologia, vide MOREIRA, Barbosa. O novo Código Civil e o direito
processual. Revista Forense, v.364, p.190-191; ARAGÃO, Moniz de. Regras de prova no Código Civil.
Ibid., v.376, p.56-57.
5 Fundadas as observações de DINAMARCO, Cândido. Instituições de Direito Processual Civil. 4.ed. São
Paulo, 2003, v.III, p.46.
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todas elas a presunção de veracidade e, por conseguinte, manter a normal
distribuição do onus probandi6?
2 – ÂMBITO DE INCIDÊNCIA DO ART. 212. CARÁTER EXEMPLIFICATIVO DO
ELENCO LEGAL
A enumeração das provas constante do art. 212 do novo Código Civil é
precedida de uma advertência: “Salvo o negócio a que se impõe forma
especial, o fato jurídico pode ser provado mediante...”. À vista dela, vem à
mente a conjectura de que o Código só se preocupa com a prova de fatos
jurídicos, isto é, de fatos que, por estarem previstos em alguma norma
jurídica, como pressupostos da respectiva incidência, são – ao menos em tese
e potencialmente – capazes de produzir efeitos no mundo do direito.
Entretanto, não são apenas esses fatos que podem necessitar de prova.
É mister, com certa freqüência, demonstrar a veracidade de alegações sobre
fatos que, insuficientes por si mesmos para produzir efeitos jurídicos,
assumem relevância, não obstante, para a formação do convencimento do
órgão judicial; v.g., acontecimentos naturais: a que horas o sol nasceu no dia
x; qual a maior altura atingida pela maré em certo ponto do litoral; até que
distância da praia era audível, em determinado momento, o ruído das ondas
do mar? E assim por diante. Não raro, embora um fato não baste, sozinho,
para gerar efeitos jurídicos, o conhecimento que se tenha dele vai fornecer o
ponto de partida para chegar-se, por meio de raciocínio, ao conhecimento de
outro fato, gerador de tais efeitos. Tem essa feição o mecanismo intelectual a
que se aplica o nome de presunção simples ou comum (praesumptio hominis):
para aproveitar exemplo dado noutra obra clássica de nossa literatura
processual, o fato de Tício passar empunhando um archote, pouco antes do
incêndio, conquanto em si desprovido de efeitos jurídicos, bem pode
interessar em processo no qual se queira promover a responsabilidade civil
6
Inclinamo-nos para a segunda solução. Também CINTRA, Araújo. Comentários ao Código de Processo
Civil. 2.ed. Rio de Janeiro, 2003, v.IV, p.107, rejeita a idéia da revogação, mas, ao que parece, por
equiparar as “declarações enunciativas” do mais recente diploma às referidas no anterior. Assistelhe inteira razão, por sinal, quando censura a redação do Código Civil como “tortuosa” e de
“sentido obscuro”; e mais, quando frisa que “a menção à legitimidade das partes (...) não faz
sentido claro no contexto”. É estranho o emprego do pronome em “prová-las”: o ônus a que alude
o texto não pode dizer respeito às próprias declarações (que o documento, por si, já prova), mas ao(s)
fato(s) a que elas se referem. Merece apoio a conclusão do autor: “Seria pois preferível que o
legislador não editasse a regra do artigo 219 do novo Código Civil que em nada melhorou a
disciplina da prova feita por documento particular assinado” (no original, por manifesto cochilo
de revisão, lê-se “assinada”)
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de Tício pelos danos que teria causado ateando fogo ao prédio7. Talvez não
seja possível demonstrar diretamente a veracidade da afirmação de que foi
Tício quem provocou o incêndio, mas possa comprovar-se a sua passagem
por perto, minutos antes, com o archote; e da certeza sobre esse fato, somada
à certeza sobre outros fatos que apontem no mesmo sentido, concluir, com
segurança, que foi Tício o causador do sinistro. Em linguagem técnica, a
presença de Tício, nas condições aludidas, servirá de indício, a ser valorado
em conjunto com outros, porventura concordantes, para fundamentar a
presunção da culpa de Tício.
À luz dessas considerações, desde logo se impõe uma pergunta: o
elenco do art. 212 concerne unicamente à prova dos fatos jurídicos e não
abrange a dos fatos simples? Argumentos de ordem textual seriam invocáveis
para dar-se resposta afirmativa. Não só o teor literal do caput aponta nessa
direção: vários dispositivos do Título V mostram que o legislador, ao redigilos, sem dúvida tinha a mente voltada para o caso de prova de fato jurídico,
e não falta até um ou outro (como o art. 227 e seu parágrafo único) em que
nítida e categórica cláusula restritiva limita a incidência da regra aos negócios
jurídicos. No entanto, parece injustificável, do ponto de vista lógico, a idéia
de que as provas arroladas no art. 212 não possam referir-se a fatos simples.
As conseqüências seriam disparatadas: para continuarmos a usar o exemplo
acima invocado, não se poderia provar com testemunhas (inciso III) a
presença de Tício, com o archote, pouco antes do incêndio, nas imediações
do prédio, e menos ainda aplicar à eventual confissão de Tício quanto a esse
fato a norma do art. 214...
Assente a premissa de que as provas arroladas no art. 212 do Código
Civil são invocáveis, em princípio, acerca de quaisquer fatos, jurídicos ou
simples, a indagação que segue é sugerida pelo confronto entre esse texto e o
do art. 332 do estatuto processual, verbis: “Todos os meios legais, bem como
os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são
hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”.
Aí se consagrou o princípio da não-taxatividade das enumerações legais na
matéria; o direito brasileiro não é refratário à utilização de “provas atípicas”8.
7
8
LOPES DA COSTA. Direito Processual Civil Brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro, 1959, v.II, p.318. O autor
assinalava terminologicamente a diferença entre as duas classes de fatos chamando jurídicos aos
de uma e simples aos de outra.
Acerca do sentido que se deve atribuir a essa expressão, bem como de algumas questões
pertinentes, vide MOREIRA, Barbosa. Observaciones sobre las llamadas pruebas atípicas (comunicação
ao XVI Congresso Mexicano de Direito Processual, de 1999, publicada no respectivo volume de
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Põe-se a questão de saber se esse princípio foi afastado pelo art. 212 do novo
Código Civil; noutras palavras, se é ou não taxativa a enumeração nele
contida. A doutrina tem sustentado, a nosso ver com acerto, o caráter
exemplificativo do elenco legal e, por via de conseqüência, se bem que nem
sempre em termos explícitos, a subsistência da admissibilidade de provas
atípicas9.
3 – REFERÊNCIAS À PRESUNÇÃO NO TÍTULO “DA PROVA”
No Título “Da prova”, a palavra “presunção” aparece, no singular, no
art. 212, n° IV, onde se encontra a enumeração a que acima aludimos; no
plural, no art. 230, verbis: “As presunções, que não as legais, não se admitem
nos casos em que a lei exclui a prova testemunhal”. O verbo cognato
“presumir” figura no caput do supracitado art. 219: “As declarações
constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação
aos signatários”. Não quer isso dizer que as outras disposições do mesmo
título não tenham relação alguma com o assunto. Certamente a tem, por
exemplo, o art. 232 (“A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá
suprir a prova que se pretendia obter com o exame”); mas aí se cuida de
matéria específica, da qual não nos ocuparemos neste trabalho10.
O texto do art. 230 pressupõe a distinção correntia entre presunções
legais (praesumptiones iuris) e presunções comuns ou simples (praesumptiones
hominis) também chamadas judiciais, porque na prática adquirem relevância
memórias, t.I, p.17 e ss., e em Temas de Direito Processual, Sétima Série. São Paulo, 2001, p.39 e ss.).
Sobre a origem do art. 332, remetemos ao nosso escrito Códice di procedura civile dello Stato
delia Città dei Vaticano come fonte storica dei diritto brasiliano. In: Studi in onore di Vittorio Denti.
Pádua, 1994, v.I, p.9, ou in Temas cit., Quinta Série. São Paulo, 1994, p.194-195.
9 Não deparamos pronunciamento algum no sentido contrário. Cf., ao propósito, entre outros:
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 34.ed. São Paulo, 2003, v.I, p.271 e 280; THEODORO JÚNIOR,
Humberto. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro, 2003, v.III, t.II, p.395-396; NADER,
Paulo. Curso de Direito Civil, Parte Geral. Rio de Janeiro, 2003, p.591-592; TEPEDINO, Gustavo;
BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado. Rio de
Janeiro; São Paulo; Recife, 2004, v.I, p.432; VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Parte Geral. 5.ed.
São Paulo, 2005, p.639; RIZZARDO, Arnaldo. Parte geral do Código Civil. Rio de Janeiro, 2003, p.688 e
690; DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. São Paulo, 2004, p.39; ARAGÃO,
Moniz de. Regras de prova no Código Civil. Rev. For., v.376, p.53; OLIVEIRA, Carlos Santos de. Da
prova dos negócios jurídicos. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). A parte geral do novo Código Civil. Rio
de Janeiro; São Paulo, 2002, p.431.
10 Dela tratamos ex professo noutro trabalho, em que procuramos mostrar como se articulam e que
significação têm, interpretados em conjunto, os arts. 232 e 231: La negativa de la parte a someterse
a una perícia médica (según el nuevo Código Civil brasileno) (comunicação ao XXII Congresso
Argentino de Direito Processual, de 2003, publicada na Rev. de Proc., n.113.
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por obra do juiz. Conjuga-se a regra com a do art. 227, caput (reprodução
quase literal, reitere-se, do art. 401 do Código de Processo Civil), que
restringe a admissibilidade da prova exclusivamente testemunhal aos
“negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário
mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados”. Também a
disposição do art. 230, pois, tem incidência limitada à área dos negócios
jurídicos. Salvo na distinção pressuposta por esse artigo, nenhuma das duas
normas se reveste de interesse geral para o presente estudo.
Não se descobre no estatuto civil (nem no processual, apesar de seu
gosto por tal gênero de disposições) uma definição de presunção. Outras
legislações têm-na formulado; entre as mais singelas, ressalta a do
bicentenário Código Civil francês, art. 1.349: “Les présomptions sont des
consequences que la loi ou le magistrat tire d’unfait connu à unfait inconnu”
(traduzido quase ao pé da letra no art. 2.727 do códice civile italiano: “Le
presunzioni sono le conseguenze che la legge o il giudice trae da unfatto
noto per risalire a unfatto ignorato”). O texto põe em relevo a
supramencionada classificação das presunções em legais e comuns ou
judiciais.
A designação de “presunções legais”, porém, é equívoca: abrange
fenômenos de variável substância. Como esperamos haver deixado claro em
escrito que já data de mais de duas décadas11, as presunções legais relativas
(praesumptiones iuris tantum) constituem regras especiais de distribuição do
onus probandi12, ao passo que as presunções legais absolutas (praesumptiones
iuris et de iure) nada têm que ver com a prova, e esgotam no plano do direito
material seu significado e sua função. Recapitulando em apertada síntese o
que ali se expôs: quando a lei consagra uma presunção absoluta – seja
porque entenda maior a probabilidade de que as coisas se hajam passado de
certa maneira, seja porque leve em conta a particular dificuldade que se
encontraria em demonstrar que elas assim realmente se passaram –, o que na
verdade faz é tornar irrelevante, para a produção de determinado efeito
jurídico, a presença deste ou daquele elemento ou requisito no esquema
fático13. Se não existisse a presunção, seria indispensável, para que se
As presunções e a prova. In: Temas. Op. cit., Primeira Série. 2.ed. São Paulo, 1988, p. 55 e ss.
Sublinha-o a doutrina alemã: vide, em sede monográfica, LEIPOLD. Beweislastregeln und gesetzliche
Vermutungen. Berlim, 1966, p.99-100; na mais recente literatura, ROSENBERG; SCHWAB; GOTTWALD.
Zivilprozessrecht. 16.ed. Munique, 2004, p.783.
13 Cf. LEIPOLD. Op. cit., p.102-104. Na doutrina brasileira contemporânea, acentua corretamente
DINAMARCO, Cândido. Op. e vol. cit., p.125, que, “ao interferir na estrutura da disciplina jurídico11
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produzisse o efeito, o concurso de x, y e z; estabelecendo uma presunção
absoluta em relação a z, a lei faz depender a produção do efeito somente do
concurso de x e y. Dizer que, nesse caso, não se admite a prova da inexistência
de z é usar fórmula oblíqua para expressar que semelhante prova nenhuma
influência teria, já que, com z ou sem z, a situação jurídica seria a mesma. A
rigor, a existência ou inexistência de z fica fora do thema probandum como
fora dele fica a prova de todo e qualquer fato irrelevante: no processo, não
devem praticar-se atos inúteis.
Exemplo típico era a disposição do art. 550 do antigo Código Civil,
verbis: “Aquele que, por 20 (vinte) anos, sem interrupção, nem oposição,
possuir como seu um imóvel, adquirir-lhe-á o domínio, independentemente
de título e boa-fé que, em tal caso, se presume, podendo requerer ao juiz que
assim o declare por sentença, a qual lhe servirá de título para transcrição no
Registro de Imóveis”. Noutras palavras: para consumar-se a aquisição por
usucapião, bastam a posse e o tempo: não se necessita de título nem de boafé. O novo Código, com melhor técnica, prescinde do expediente da
presunção e diz com simplicidade no caput do art. 1.238: “Aquele que, por 15
(quinze) anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel,
adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo
requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título
para o registro no Cartório de Registro de Imóveis”14.
O atual art. 212 alude à presunção, no inciso IV, em termos genéricos,
sem especificação alguma. Contudo, à vista do que acima ficou dito, mais
vale excluir desde logo de nossas cogitações, na análise da enumeração, toda
e qualquer referência às presunções legais absolutas – assunto, vale repetir,
inteiramente estranho à matéria da prova. Não só: tampouco as presunções
legais relativas merecem figurar no elenco das provas. Com efeito: o fato
presumido não precisa ser provado (Código de Processo Civil, art. 334, n°
IV); o contrário sim, mas obviamente de outro modo. Fica, pois, entendido
material de um instituto, a presunção absoluta somente produz o efeito de definir os fatos aptos a
constituir, impedir, modificar ou extinguir direitos e obrigações”; mas equivoca-se em equiparar
as presunções absolutas às ficções legais (p.116-117): vide a distinção que expusemos no trab. cit.
em a nota 9, supra, p.64-66.
14 É estranhável que THEODORO JÚNIOR, Humberto. Ob. e vol. cit., p.406, ainda enxergue presunção
no art. 1.238; PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 3.ed. Rio de Janeiro, 1971, t.XI, p.137,
negava-lhe a existência no próprio art. 550 do estatuto de 1916. Ainda mais estranhável é ver
perdurar em obras contemporâneas a arqui-superada concepção da coisa julgada como presunção
absoluta de verdade: assim RODRIGUES, Sílvio. Op. e vol. cit., p.278; VENOSA, Silvio de Salvo. Op.
cit., p.651.
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que doravante, quando nos referirmos a presunções, teremos em vista
unicamente as comuns, simples ou judiciais (praesumptiones hominis).
4 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A ENUMERAÇÃO DO ART. 212
Não é encontradiça, nas legislações estrangeiras, disposição como a do
art. 212, que contenha enumeração das provas em tese admissíveis. Nas leis
que pudemos consultar, o que disso mais se aproxima é o art. 1.316 do
Código Civil francês, aliás situado em capítulo que se intitula,
restritivamente, “De lapreuve des obligations et de celle du payemenf”15 aí se
lê que “les regies qui concernent lapreuve littérale, lapreuve testimoniale, les
présomptions, l’aveu de lapartie et le serment, sont expliquées dans les
sections suivantes”. Trata-se, indiretamente, de uma enumeração, aliás como
tal incompleta, já que – mesmo a abstrair-se da questão das provas atípicas –
é sensível a omissão de duas figuras tradicionais: a perícia e a “descente sur
les lieux” (correspondente à nossa inspeção judicial)16. No direito brasileiro,
todavia, é tradicional a inclusão, nas leis, de disposição enumerativa: ela
existia no art. 136 do estatuto civil de 1916 e, antes, no art. 138 do
Regulamento n° 737, de 1850. O novo Código ateve-se à tradição.
Para aferir criteriosamente o valor da enumeração do art. 212, é
necessário fixar de antemão algumas noções básicas. A função da prova no
processo consiste em proporcionar ao juiz conhecimentos de que ele precisa
a fim de reconstituir mentalmente os fatos relevantes para a solução do
litígio. De ordinário, cada parte terá apresentado sua versão; ao órgão
judicial incumbe averiguar se e em que medida espelham a realidade essas
versões normalmente contraditórias, ou quando nada divergentes. Para
tanto, há de valer-se das provas, uma vez que, por bem conhecidas razões de
política legislativa, não lhe é dado invocar, na fundamentação da sentença, o
conhecimento direto e pessoal que porventura tenha: não pode, por
exemplo, afirmar que assistira da janela de sua casa ao acidente de trânsito e,
por isso, está convicto de que o responsável foi o réu. Por conseguinte, com
ressalva das exceções legais (v.g., fatos notórios: Código de Processo Civil,
art. 334, n° I), as provas constituem as pontes através das quais os fatos
passam para chegar, primeiro, aos sentidos, depois à mente do juiz (nihil est
in intellectu quod prius nonfuerit in sensu).
15
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Em sentido crítico quanto à localização, VINCENT; GUINCHARD. Op. e lug. cit. (supra, nota 2).
Observação também colhida em VINCENT; GUINCHARD. Ibid.
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De onde podem partir essas pontes? À evidência, de tudo quanto seja
acessível aos comuns sentidos humanos – já que, ainda a admitir-se (como
pessoalmente admite o autor destas linhas) a possibilidade de uma revelação
sobrenatural, nenhum ordenamento jurídico moderno autorizaria o juiz a
pô-la como fundamento da decisão. Logo, os pontos de partida concebíveis
são: outras pessoas, coisas e fenômenos naturais (sucessão de dias e noites,
precipitações atmosféricas, modificações do solo ou da paisagem devidas a
movimentos tectônicos e assim por diante) ou artificialmente provocados
(v.g., uma reação química em laboratório). Em terminologia rigorosa, a esses
pontos de partida é que se deve aplicar, a nosso ver, a designação de fontes de
prova17.
Como passam das fontes ao órgão judicial as informações de que ele
precisa? Colher provas significa essencialmente, para o juiz, exercitar seus
sentidos em relação às outras pessoas, às coisas e aos fenômenos. Os mais
importantes são, à evidência, a visão e a audição: por exemplo, o juiz vê os
documentos (espécie do gênero coisas) e ouve os depoimentos das
testemunhas e das próprias partes (as quais, em regra, igualmente vê). Mas
de jeito algum fica excluída, embora menos freqüente, a hipótese de que ele
adquira informações por outros sentidos: provando um líquido, apalpando
um objeto, utilizando o próprio olfato para verificar a intensidade das
emissões de uma oficina. Pode empregar-se aqui, com maior propriedade, a
expressão meios de prova para designar os pontos de passagem entre as outras
pessoas, as coisas, os fenômenos, de um lado, e a mente do juiz, de outro – a
não ser que se prefira reservá-la para a operação psíquica que capta os dados
sensoriais e os transmite à mente18.
A expressão, no entanto, tem sido usada equivocamente na doutrina: por exemplo, escrevia
CHIOVENDA. Principii di diritto processauale civile. Nápoles, 1865 (reimpressão), p.812: “Sono mezzi
di prova lefonti da cui ilgiudice trae i motivi di prova”(destaques do original). Estaríamos de
acordo com a exemplificação: “A pessoa da testemunha, os lugares inspecionados”, entendendose que podem funcionar como fontes, nestes, as pessoas e coisas encontráveis e os fenômenos
observáveis. Já não nos inclinamos a subscrever a identificação, pelo menos aparente, entre fontes
e meios de prova: vide, infra, o nosso texto. Entre nós, DINAMARCO, Cândido. Op. e vol. cit. (supra,
nota 4), escreve que “fontes de prova são pessoas ou coisas das quais se possam extrair informações
capazes de comprovar a veracidade de uma alegação” (grifos do autor); parece que os fenômenos
(naturais e artificialmente provocados) foram incluídos, a nosso ver forçadamente, no conceito de
“coisas”.
18 Consoante fazia CARNELUTTI, que, em todas as hipóteses apontadas até agora em nosso texto, via
na percepção o verdadeiro meio de prova: vide La prova civile. 2.ed. Roma, [s.d.] (1949), passim,
espec. p.66 e ss., 79, 234. Em sentido crítico, porém, TARUFFO. La prova dei fatti giuridici. Nozioni
17
20
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É fácil advertir que a enumeração do art. 212, como todas as outras que
se encontram em disposições legais, peca ostensivamente pela
heterogeneidade19. Nos três primeiros incisos, ela engloba referências a
pessoas (inciso III: testemunha), a coisas (inciso II: documento), a atos (item I:
confissão); nos dois últimos, menciona a presunção (entenda-se: a presunção
simples, comum ou judicial) e a perícia. Acerca desta, faremos sem demora
algumas observações; para a presunção, guardaremos o item subseqüente.
Cingindo-nos por ora aos três primeiros incisos, logo se percebe que a
confissão não poderia figurar ao lado da testemunha e do documento. A
aceitar-se a definição do art. 348, 1ª parte, do Código de Processo Civil (“Há
confissão, quando a parte admite a verdade de um fato, contrário ao seu
interesse e favorável ao adversário”), assim como a respectiva divisão em
judicial e extrajudicial (art. 348, 2ª parte), bem se vê que esta se corporifica
num documento (cf. o art. 353), enquanto aquela se contém de ordinário no
depoimento pessoal da parte (art. 349, caput, in fine), excepcionalmente em
peça processual, com lavratura de termo nos autos (art. 349, caput, 2ª alínea)
e de novo se recai, em última análise, na figura do documento.
Parece claro que a confissão não está para os sentidos do juiz na
mesma relação que um documento. A fonte da prova, a rigor, não é a
confissão, e sim a parte que confessa (quando presta seu depoimento), ou o
documento em que ela admite o fato contrário ao seu interesse e favorável ao
adversário. O juiz ouve (depoimento pessoal) ou vê (documento) as palavras
da parte, que admite o fato. Fonte da prova é a parte; meio de prova (pelo
qual a fonte se comunica com o órgão judicial) é o depoimento pessoal do
confitente ou o documento que contém a confissão.
Há mais. O art. 212 coloca lado a lado a confissão e a testemunha,
como se houvesse analogia entre uma e outra. Na verdade, num caso
estamos diante do conteúdo da informação; no outro, diante da pessoa que
informa. Analogia existe, sim, entre os informantes (parte/testemunha) e
entre as informações (confissão/conteúdo do depoimento da testemunha).
Se quis falar em confissão, deveria o art. 212 falar em depoimento da
testemunha, não em testemunha tout court. E inversamente: se quis falar em
testemunha, deveria falar em parte, não em confissão.
generali. In: CICU; MESSINEO; MENGONI. Trattato di diritto civile e commerciale. Milão, 1992, v.H1, t.2,
seção 1, p.427-428.
19 No mesmo sentido, DIDIER JR. Fredie. Op. cit., p.37.
21
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O que ficou dito já basta para evidenciar quão imperfeita é a
enumeração do art. 212. Não leva em conta a diferença entre fontes e meios
de prova, e põe em pé de igualdade figuras diversas na substância e na
função que exercem. Mais patente ficará a imperfeição à luz do que se vai
expor nos itens subseqüentes.
5 – INSPEÇÃO JUDICIAL E PERÍCIA
O art. 212 faz menção expressa à perícia (inciso V); silencia acerca da
inspeção judicial, entretanto regulada nos arts. 440 a 443 do Código de
Processo Civil.
Mal se justifica a desigualdade de tratamento, desde que se atente na
similitude substancial entre ambas.
Com efeito. Já se disse que pessoas e coisas podem servir de fontes de
prova, mediante o exercício, pelo juiz, de seus sentidos. Aqui, porém, se
impõe uma distinção. Em certos casos, o juiz vê o que alguém lhe mostra
(ex.: documento) ou ouve o que alguém lhe diz (ex.: depoimento de
testemunha): não é ele que dirige de propósito a visão ou a audição a
determinado alvo, ainda que por iniciativa sua lhe haja chegado à presença a
coisa ou a pessoa. Outros casos são marcados pelo traço de uma essencial
intencionalidade: o juiz, para ver, olha; para ouvir, escuta. Acrescente-se que o
objeto visado pode consistir num fenômeno, e que outros sentidos (olfato,
tato, paladar) são exercitáveis, conquanto menos amiúde, mas sem prejuízo
da feição intencional.
Pois bem. Às vezes, basta para fornecer a informação desejada o
exercício pessoal, pelo próprio juiz, do sentido pertinente. Comparece ele ao
local do acidente e vê que a estrada faz ali curva perigosa; aproxima-se da
oficina e ouve o ruído que produz o funcionamento da máquina, ou sente o
mau odor que ela emana – e assim por diante. Outras vezes, para captar a
informação, torna-se necessário algo mais: um conhecimento científico ou
técnico que o juiz não tem, ou a utilização de métodos especializados, cujo
manejo requer preparação também especializada, para revelar, na pessoa, na
coisa ou no fenômeno, a realidade só perceptível por meio deles. É então que
tem lugar a perícia, qualificada com acerto como “meio de integração da
atividade do juiz”20.
20
CARNELUTTI. Op. cit., p.91. Menos exato parece identificar na perícia, em termos genéricos, um
“sucedâneo da inspeção judicial” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.654): antes resulta do art.
22
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Em qualquer hipótese, fonte de prova será sempre a pessoa, a coisa ou
o fenômeno. Meio de prova será, conforme o caso, a inspeção judicial ou a
perícia – a menos, vale repetir, que se adote a opção carneluttiana e se
identifique o meio de prova na percepção, direta na primeira figura, indireta
na segunda21. Seja como for, visto que mencionou a perícia, deveria o art. 212,
por questão de coerência, mencionar também a inspeção judicial.
6 – AS PRESUNÇÕES
Voltemos os olhos, de novo, para as presunções: simples, comuns ou
judiciais (praesumptiones hominis), como são aquelas a que se refere, usando o
substantivo no singular, o inciso IV do art. 212. Do que ficou até agora já
ressalta, com ofuscante nitidez, que a referência à presunção, no elenco legal,
só faz agravar a heterogeneidade da enumeração. Ela quase nada tem em
comum com os outros elementos arrolados. Não é fonte de prova, como o
documento e a testemunha; nem meio de prova, no sentido em que o é a
perícia22. Tampouco seria exato afirmar que nela o juiz recebe a informação
pelo exercício de um sentido, como sucede no caso da confissão. Decerto, a
presunção ministra ao órgão judicial o conhecimento acerca de um fato; mas
ela o faz de maneira absolutamente peculiar: mediante raciocínio23 feito a
partir do indício.
Essa característica da presunção justifica a qualificação, que se lhe
atribui, de prova indireta, por oposição às chamadas provas diretas, como o
documento e o depoimento da testemunha. É evidente que tal classificação
não se confunde com a distinção entre percepção direta e percepção indireta, à
qual se aludiu no item anterior. Igualmente claro é que a qualificação de
prova indireta, atribuída à presunção, se baseia na função que ela exerce no
iter cogitivo do juiz24. A nota característica reside aqui em que a aquisição do
conhecimento se opera em duas etapas: primeiro, o juiz toma conhecimento
441 do estatuto processual (“Ao realizar a inspeção direta, o juiz poderá ser assistido de um ou
mais peritos”) que ela pode funcionar como complemento ou adminículo da inspeção.
21 Ao propósito, vide ainda a luminosa exposição de CARNELUTTI. Op. cit., p. 85 e ss.
22 Para mais extensa elaboração, vide BARBOSA MOREIRA. Trab. cit. em a nota 10, supra, p.57-58.
23 Deduzione, no dizer de CARNELUTTI. Op. cit., p.81 e ss.; inferenza, para TARUFFO. Ob., vol. e t. cit.,
p.430. Em todo caso, nunca “indução”, como equivocadamente diz o defeituoso (também noutros
aspectos) texto do art. 239 do Código de Processo Penal: “Considera-se indício a circunstância
conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência
de outra ou outras circunstâncias”.
24 E “funzionale e relazionale”, nas palavras de TARUFFO. Ob. e lug. cit.
23
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do indício, para em seguida passar deste à presunção. Daí dizer-se que o
indício funciona como fato probante (factum probans), enquanto a presunção
é o fato a ser provado (factum probandum). Não se afigura clara a razão pela
qual o art. 212 do novo Código Civil deixou de arrolar o indício junto com a
presunção: se esta merecia um lugar na enumeração, por que não aquele25?
Convém sublinhar que o indício pode provir de qualquer fonte
(pessoa, coisa, fenômeno) e chegar ao conhecimento do juiz por qualquer
meio de prova. Retomemos o exemplo do incêndio (supra, n° 2):
perfeitamente se concebe que da presença de Tício, a empunhar um archote,
nas imediações do prédio incendiado, pouco antes do sinistro, tenha ciência
o juiz pelo depoimento de pessoa ouvida como testemunha, ou por uma
fotografia (documento), ou até pela confissão do próprio Tício. Caso já se
cuidasse do fato relevante, em si, para a decisão, encerrada estaria a
atividade probatória; o que interessa afinal, porém, não é simplesmente
saber que Tício se encontrava nas aludidas circunstâncias, e sim se foi ele
quem ateou fogo ao prédio. Se por certo prisma o indício já é ponto de
chegada, mais importante ele se torna como ponto de partida26.
Na passagem do indício à presunção, conta o juiz com o auxílio das
chamadas “regras de experiência”27, a que se refere o art. 335 do Código de
Processo Civil, verbis: “Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz
aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do
que ordinariamente acontece e ainda as regras de experiência técnica,
ressalvado, quanto a esta, o exame pericial”. A redação é um tanto obscura,
Mais de uma lei inclui o indício entre os meios de prova: o Capítulo VI do Título “Das provas”, no
Código de Processo Civil de 1939, tinha como rubrica “Das presunções e dos indícios”. Refere-se a
estes, como “médios de prueba”, o Código de Procedimiento Civil colombiano, art. 175.
Sustentava tal posição, compreensivelmente, DEVIS ECHANDÍA, principal autor do código: vide
Compendio de pruebas judieiales. Antodo por Alvarado Velloso. Santa Fe, [s.d.] t. II, p.301-302; cf., a
noção de meios de prova exposta pelo autor: "'métodos aceptados en eada ley procesal como
vehículo de la prueba: por ejemplo, el testimonio, el documento, el indicio, la confesión, la
inspección por el juez mismo, el dictamen de peritos” (t. I, p. 156).
26 Sobre essa dupla feição do indício, remetemos ainda o leitor ao trab. cit. em a nota 10, supra, p.5859. Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.652: “O indício é o ponto de partida de onde, por
inferência, chega-se a estabelecer uma presunção” (grifado no original).
27 Erfahrungssãtze, na linguagem jurídica alemã: registramos o ponto por que foi na Alemanha que
primeiro se sistematizou a matéria, sobretudo por obra de STEIN, cuja clássica monografia Das
private Wissen des Richters foi traduzida para o espanhol por ANDRÉS DE LA OLIVA SANTOS, sob o
título El conocimiento privado del juez. Pamplona, 1973 (vide espec. p.23 e ss.). Tivemos ocasião de
tratar do assunto no artigo Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. In:
Temas, cit., Segunda Série. 2.ed. São Paulo, 1988, p. 61 e ss.
25
24
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principalmente porque, ao traduzir-se o texto italiano do códice di procedura
civile do Estado do Vaticano, cujo art. 78 é a fonte histórica do texto
brasileiro, se omitiu parte indispensável para a boa compreensão da norma.
Eis o teor da disposição inspiradora: “giudice, nei casi in cui non siano
statuite norma giuridiche particolari per la deduzione dei fatto da provare dal
fatto percepito, applica le regole di esperienza comune, date dal
Vosservazione di quanto comunemente avviene, e le regole di esperienza
técnica, salva, in questo ultimo caso, lafacoltà di cui all’art. 121”. Pusemos
em destaque, na transcrição, o trecho que elucida o significado da alusão às
“normas jurídicas particulares”. O Código vaticano quis deixar claro que o
recurso às “regras de experiência comum” só é legítimo quando não exista
alguma “norma jurídica particular” a que deva obedecer o juiz na passagem
do fato conhecido (“fatto percepito”) isto é, do indício ao fato que se quer
provar (“fatto da provare”), a saber, à presunção28.
Sob a etiqueta de “regras de experiência”, na verdade, costumam
reunir-se proposições muito diversas. Tamanha é a diversidade, que se torna
dificílimo estabelecer uma tipologia abrangente. Costumam ser enfiadas pêlemêle nesse escaninho desde proposições que têm sólido fundamento
científico (o calor dilata os corpos metálicos; a água corre naturalmente do
plano superior para o inferior; a gestação do ser humano dura em média 267
dias) ou que expressam um dos chamados princípios fundamentais da razão
especulativa (nada pode ser e não ser ao mesmo tempo; tudo que acontece
tem uma causa), até simples juízos mais ou menos generalizados em certos
meios, com apoio no denominado “senso comum”, ou a rigor em meros
preconceitos sem base empírica (as pessoas desta ou daquela nacionalidade
ou etnia têm maior propensão para envolver-se em negócios ilícitos; as
testemunhas do sexo masculino merecem mais crédito que as do sexo
feminino)29. Ao longo desse amplo espectro, acham lugar verdades
matemáticas (a soma dos ângulos internos do triângulo é igual a 180°),
Cf., ARAGÃO, Moniz de. Exegese do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro, [s.d], v.IV, t.1, p.114115. Melhor que a do nosso texto é a do art. 141 do Código General del Proceso uruguaio: “A falta
de regias legates expresas, para inferir del hecho conocido el hecho a probar, el tribunal aplicará
las regias de experiência común extraídas de la observación de lo que normalmente acaece”.
29 Nessa ordem de idéias, não seria fora de propósito recordar ditados populares, do gênero “cão
que ladra não morde”, “depois da tempestade vem a bonança”, “o uso do cachimbo faz a boca
torta” e por aí além. Cf. as observações fortemente críticas de TARUFFO. Ob., vol. e t. cit., p.194-195,
onde se sublinha que, com freqüência, “e massime d’esperienza esprimono solo rozze general
izzazioni, generiche tenderize, opinioni e pregiudizi diffusi, alia cui base sta la cultura dei senso
comune senza alcuna convalida o confer ma di tipo scientifico”.
28
25
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sentenças relativas às artes (o movimento impressionista teve início na
segunda metade do Século XIX), a atividades profissionais (os militares em
serviço vestem uniforme), a costumes negociais (ninguém exige recibo do
pagamento da passagem de ônibus), sociais (o uso da gravata é obrigatório
para os homens em cerimônias oficiais), religiosos (os muçulmanos não
comem carne suína), culturais (a linguagem empregada em ocasiões
informais é menos atenta que a de trabalhos acadêmicos às regras
gramaticais) ou observáveis no quotidiano “ordinário” (a freqüência às
praias da Zona Sul do Rio de Janeiro aumenta muito nas manhãs
ensolaradas dos domingos de verão).
Como bem se compreende, o valor do indício varia extremamente de
acordo com a proposição que fornece a base para a presunção judicial. Será
decisivo, se se trata de proposição que não comporta dúvida: por exemplo, o
álibi é indício negativo de absoluta força persuasiva: caso fique provado que
o réu se achava noutra cidade, no preciso momento em que ocorreu o
acidente, qualquer juiz concluirá com segurança que ele não pode havê-lo
provocado, consoante se alega, por imperícia na condução do veículo. Com
efeito, ninguém pode estar em dois lugares distintos ao mesmo tempo.
Noutras hipóteses, a significação do indício é apenas relativa, ou até muito
baixa: se recordarmos o exemplo do incêndio, dificilmente conceberemos
uma regra de experiência dotada de credibilidade bastante, segundo a qual
as pessoas munidas de archotes costumam atear fogo aos prédios em cuja
proximidade se encontram. Parece óbvio que poderia haver várias
explicações para a presença de Tício naquelas circunstâncias. Dito isso, não
fica excluído que o órgão judicial possa fundar-se, para decidir, num único
indício, conquanto sejam provavelmente raras, na prática, as hipóteses em
que isso se justifica.
7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
O quanto se expôs é suficiente para justificar o juízo desfavorável
expresso nas primeiras palavras deste trabalho. O Título “Da prova”, no
novo Código Civil, não faz qualquer contribuição digna de nota à
sistematização da matéria; ao contrário, deixa-a mais desordenada que antes.
A impressão de desordem é particularmente forte à vista da
enumeração do art. 212. Ainda na perspectiva (atécnica) que parece haver
adotado, mostra-se arbitrária e lacunosa. Mistura alhos com bugalhos e
esquece distinções fundamentais, como a que deveria levar em conta no
26
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tocante a presunções, para não induzir os menos familiarizados com o
assunto a supor genérica, abrangente de todas as espécies, a menção feita no
inciso IV. Muito preferível teria sido renunciar à pretensão enumerativa:
num quadro normativo em que, para gregos e troianos – perdão, para
civilistas e processualistas –, continua a viger o princípio da não-taxatividade
(supra, n° 2 e, aí, nota 9), o melhor alvitre consistiria em deixá-lo reinar a
plena luz, sem ameaçar toldá-lo com enumerações como a do art. 212, que
em nada ajudam e podem atrapalhar.
No confronto com o Código de Processo Civil, os acréscimos
importantes não dizem aqui respeito à prova, senão à forma – assunto do
qual, diga-se de passagem, não tinha mesmo de tratar o diploma de 1973.
Estão eles nos parágrafos do art. 215 e foram mutuados, na grande maioria,
da Lei n° 6.952, de 06.11.1981. Curiosamente, afastando-se do diploma de
1916 (onde o capítulo pertinente se intitulava “Da forma dos atos jurídicos e
da sua prova”), a rubrica do Título que vimos examinando, no de 2002,
omite a referência à forma, que todavia assume, na substância, maior relevo.
Por questão de justiça, antes de concluir o trabalho, registrem-se dois
pontos, os únicos, salvo engano, em que o texto do novo Código mostra
progresso em relação ao Código de Processo Civil. Primeiro: a dicção do art.
213, caput, do estatuto civil, consoante a qual “não tem eficácia a confissão se
provém de quem não é capaz de dispor do direito a que se referem os fatos
confessados”, afigura-se mais exata do que a do art. 351 do diploma
processual (“Não vale como confissão a admissão, em juízo, de fatos
relativos a direitos indisponíveis”). A hipótese é realmente de eficácia, não
de validade; o texto mais antigo devia ser lido como se dissesse que a
confissão, no caso indicado, não produz efeitos. Segundo: o art. 214 corrige o
deslize em que incorrera o legislador de 1973, ao empregar, no art. 352, o
particípio “revogada”, a propósito da coação viciada por “erro, dolo ou
coação”. Agora, se diz, com melhor técnica, que, “se decorreu de erro de fato
ou de coação” (não se sabe por que foi desprezado o dolo), a confissão “pode
ser anulada” (art. 214)30. Não será muito; mas antes pouco do que nada.
30
Cuidamos de assinalar a correção no devido tempo: vide o art. cit. em a nota 4, supra, p.190.
27
A TUTELA DO CONSUMIDOR DIANTE DAS
NOÇÕES DE PRODUTO E SERVIÇO
“DEFEITUOSOS”. A QUESTÃO DO TABACO
L UIZ G UILHERME M ARINONI *
1 – A “APRESENTAÇÃO DO PRODUTO”, “O USO E OS RISCOS QUE
DELE RAZOAVELMENTE SE ESPERAM” E “A ÉPOCA EM QUE FOI
COLOCADO EM CIRCULAÇÃO”
É importante analisar o significado de produto e serviço seguros para
a venda, o qual, na realidade, se confunde com o de “segurança
legitimamente esperada”, já que não há como esperar uma segurança
absoluta.
Diz o art. 12, § 1º, do CDC que, para definir um produto como
defeituoso – e que assim não oferece a segurança que legitimamente dele se
espera –, devem ser levadas “em consideração as circunstâncias relevantes,
entre as quais: I – sua apresentação; II – o uso e os riscos que razoavelmente
dele se esperam; e III – a época em que foi colocado em circulação”.
Quando se pensa na apresentação do produto, imagina-se a forma
externa de sua apresentação ao público, não importando o produto em si
mesmo. Assim, no que diz respeito aos produtos que exigem informações,
cabe atentar aos escritos que o acompanham. Lembre-se que o art. 8º do CDC
afirma que, nos casos de riscos normais e previsíveis, o fornecedor tem o dever
de dar “informações necessárias e adequadas” e, na hipótese de produto
industrial, ao fabricante cabe prestar essas informações “através de impressos
apropriados que devem acompanhar o produto”. Além disso, o art. 9º, quando
trata dos “produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos”, diz
que o fornecedor tem o dever de “informar, de maneira ostensiva e adequada, a
respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de
outras medidas cabíveis em cada caso concreto”.
*
Professor Titular de Direito Processual Civil da UFPR. Advogado em Curitiba.
29
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No que diz respeito à publicidade e à embalagem do produto, importa
verificar se o fornecedor, na ânsia de elevar as qualidades do produto, não
deixou de informar sobre os seus riscos. De outro lado, não há como ignorar
que o CDC, ao utilizar a expressão “informação ostensiva” diante dos
produtos potencialmente nocivos e perigosos, teve a intenção de exigir, em
relação a eles, maiores evidências e detalhes na informação.
Deixe-se claro que a “informação” deve advertir sobre a utilização do
produto e sobre os seus riscos1. Portanto, não basta apenas informar como
usar o produto, mas também o que pode ocorrer diante do seu uso. Nesse
sentido, não é suficiente advertir o que, em regra, pode acontecer, mas sim
tudo o que possa vir a ocorrer, desde que razoavelmente previsível diante do
dever de segurança do fornecedor ou do fabricante, vale dizer, do seu dever
de prever o que pode prejudicar o consumidor.
A idéia de informação necessária, adequada e apropriada quer dizer o
óbvio: a informação deve ser realizada no idioma nacional, de forma
compreensível ao público a que se destina, contendo descrições que possam
ser compreendidas pelo homem dotado de conhecimento comum, e não
apenas pelo especialista em determinado ramo do conhecimento, como o
médico. No caso de produto industrial, previsto no parágrafo único do art. 8º
do CDC, as informações deverão ser prestadas por meio de impressos
apropriados, que devem acompanhar o produto. Porém, como já dito, no
caso de produtos potencialmente nocivos ou perigosos, o CDC alude a dever de
informar de “maneira ostensiva”. É o caso da venda de material radioativo ou
de agrotóxicos. Frise-se que a informação deve considerar o padrão do
consumidor a que se destina. Isso não pode deixar de ser levado em conta
quando o público consumidor não é formado por pessoas “esclarecidas” ou
“alfabetizadas”, sob pena de se considerar adequada uma informação que
não atinge o público-alvo, ou que somente atingiria o consumidor de outra
camada cultural ou social ou mesmo de outra região, estado ou país.
O art. 12, § 1º, do CDC diz, ainda, que a análise de defeito do produto
deve considerar o “uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam”. Quer
dizer que, para a definição de produto sem segurança, não importa apenas o
fim a que se destina, mas também o uso que o consumidor dele pode fazer,
desde que razoavelmente esperado.
1
FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil. São Paulo: RT, 2002, p.147.
30
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O fornecedor e o fabricante não podem descurar do uso que o
consumidor pode fazer do produto, ainda que esse uso fuja da finalidade a
que o produto se dirige. O que interessa é que tal uso seja razoavelmente
previsível. É previsível que a caneta esferográfica possa ser levada à boca, e
por isso a caneta produzida com material tóxico que possa trazer danos à
saúde do consumidor não está de acordo com o dever de segurança. Nesse
caso, a caneta não pode mais ser comercializada, e assim deve ser retirada do
mercado. É que esse produto, quando utilizado em condições previsíveis,
traz riscos à saúde que não podem ser considerados “normais e previsíveis”,
na dicção do art. 8º do CDC.
Frise-se que risco “normal e previsível” é algo completamente diferente
de uso previsível. O risco normal e previsível é o risco aceitável, ao passo que
o uso previsível é o que, diante do dever de segurança do fornecedor ou do
fabricante, pode ser suposto como possível de acontecer. Se do uso previsível
de um produto pode decorrer risco que não pode ser aceito, o produto não
pode sequer ser admitido como “potencialmente nocivo ou perigoso” (como
o agrotóxico ou o material radioativo, que apenas exigem informação
“ostensiva”), pois é “produto de alto grau de nocividade ou periculosidade”,
nos termos do art. 10 do CDC. De forma que, se é previsível que crianças
podem utilizar fogos de artifício, a sua venda é admitida porque o risco é
aceito, devendo a informação tomar em consideração o fato de que esse
produto pode ser utilizado pelas crianças. Ou seja, nesse caso a informação,
além de ostensiva, por ser o produto potencialmente perigoso (art. 9º do
CDC), deve levar em conta aqueles que podem utilizá-lo, isto é, as crianças2.
Ora, isso é um uso evidentemente previsível. Entretanto, porque o risco é
aceito, o que deve importar é o dever de informar. Se o risco não fosse aceito,
2
CHRISTOPH FABIAN afirma que “os perigos previsíveis não são apenas aqueles que resultam do uso
adequado. Eles abrangem também os perigos de utilizações erradas que podem naturalmente ou
facilmente acontecer. Um exemplo são os fogos de artifício. Facilmente caem nas mãos de crianças”
(O dever de informar no direito civil, cit., p.149) Ao que parece, quando FABIAN fala em “utilizações
erradas que podem naturalmente ou facilmente ocorrer” quer aludir a um uso previsível, ainda
que inadequado, e quando pensa em perigo previsível supõe um risco aceito. Note-se que uso e
risco são duas coisas distintas, pois o risco é uma decorrência do uso. Pode haver uso previsível
gerador de risco aceitável (normal) ou não. De qualquer forma, a excelente obra de FABIAN não
deixa de salientar, em relação ao exemplo que nos ocupa, que “o fornecedor deve tomar as
precauções adequadas contra o seu uso por crianças” (O dever de informar no direito civil, cit.,
p.149).
31
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e o uso previsível, o produto deveria ser retirado do mercado, cabendo ação
de remoção do ilícito3.
Por outro lado, quando se percebe, no desenvolvimento do consumo
de um produto, que ele passou a ser utilizado de modo distorcido, tornandose nocivo ou perigoso, há que se agravar o dever de informação ou, se for o
caso, determinar a retirada do produto do mercado. Pense-se no remédio
que passou a ser utilizado como tóxico ou naquele que passou a ser usado
como provocador de abortos.
Além disso, é necessário atentar para os produtos complexos e para os
produtos associados. Os primeiros são formados pelo produto principal e um
acessório, destinado a tornar o produto principal mais agradável ou sedutor
ao consumidor. Os segundos são os produtos que podem ser associados a
outros, visando a uma utilização mais eficaz. Nesse último caso, os produtos
podem ser separados e têm vida útil autônoma.
Como exemplo de produto complexo, tem-se a venda de chocolates
contendo brindes, destinados a seduzir as crianças para a compra do
produto principal. Se a venda de ovos de Páscoa contendo pequenos brindes
em seu interior pode trazer risco à saúde, diante do fato de que tais brindes,
quando da abertura desses ovos, podem ser projetados contra os olhos das
crianças, somente podem existir, em princípio, duas saídas: I) se o risco for
aceito, o produtor deve informar que o brinde pode atingir o consumidor
quando da abertura do ovo; II) se o risco não for aceito, e o produto, com
essa complexidade, for reputado perigoso, tal produto não poderá ser
comercializado e, aquele que já foi exposto à venda, deverá ser retirado de
circulação. Porém, considerando-se que o produto, nesse caso, além de ser
dirigido às crianças, não exige, enquanto alimento, informações minuciosas,
é certamente muito provável que o seu consumidor não vá atentar para as
informações sobre o perigo do brinde colocado no interior do ovo de
chocolate. Além disso, como o ovo de chocolate não depende do brinde para
ser comercializado, é completamente irracional aceitar que, para que o
produtor possa seduzir a criança de modo mais eficaz, seja aceito o risco à
sua saúde. Portanto, nesse caso não há como pensar nem mesmo em
3
Sobre as tutelas inibitórias e de remoção do ilícito, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica
processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004; MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória.
4.ed. São Paulo: RT, 2006; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo
Civil, Processo de Conhecimento. 7.ed. São Paulo: RT, 2008, v.2.
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incremento do dever de informar, sendo imprescindível a proibição da
comercialização do produto.
Sublinhe-se, aliás, que, se uma criança sofreu dano nos olhos em razão
da projeção do brinde posto no ovo de chocolate, não há como descartar a
responsabilidade do produtor, que obviamente feriu o seu dever de
segurança ao colocar no mercado um ovo de chocolate que apela às crianças
por meio de um brinde que se transforma em arma lesiva. Tal proceder deve ser
considerado até mesmo imoral, pois, ao lembrar uma maneira de seduzir a
criança, esquece da legítima expectativa de segurança do consumidor.
Nessa hipótese, não há que pensar em uso inadequado, ou mesmo uso
por consumidor inadequado, mas sim no uso do produto pelo seu próprio
destinatário e de maneira plenamente adequada. O uso do produto foi
totalmente razoável e previsível. O dano e o risco é que não podem ser
aceitos.
Com a expressão produtos associados, deseja-se fazer referência aos
produtos que têm o seu uso combinado com outros. É freqüente, para se
combater uma doença com maior eficácia, a necessidade de utilização de um
remédio associado a outro. Se dessa associação podem advir efeitos
colaterais, os produtores de cada um dos remédios devem informar sobre o
perigo de sua associação ou combinação. Aliás, e aí o caso não é de
“combinação científica” de um remédio com outro, o produtor também
possui o dever de informar sobre a nocividade da associação do seu produto
com o álcool.
Além disso, diz o inciso III do § 1º do art. 12 do CDC que, para a
definição de produto defeituoso, deve ser considerado o momento de sua
introdução no mercado. A definição da época em que o produto foi colocado
em circulação, no que diz respeito às tutelas inibitória e de remoção do
ilícito4, importa para a compreensão do chamado dever de vigilância. O
dever de segurança não se extingue com a introdução do produto no
mercado, mas prossegue ainda que o produto já esteja sendo utilizado pelo
comprador. Isso porque o desenvolvimento da tecnologia pode evidenciar
um perigo que não poderia ter sido constatado à época do ingresso do
produto no mercado. Ademais, a utilização do produto pode gerar um
4
Sobre as tutelas inibitórias e de remoção do ilícito, ver MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica
processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004; MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória.
4.ed. São Paulo: RT, 2006; MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo
Civil, Processo de Conhecimento. 7.ed. São Paulo: RT, 2008, v.2.
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perigo que não esteja dentro das expectativas de segurança do consumidor, e
por isso deva ser tido como um “perigo anormal”.
Nessas situações, descoberto o perigo, o produtor deve informar o
consumidor, por meios de comunicação que se presumam eficazes, para que
o produto passe a ser utilizado com determinado cuidado, ou para que o
produto seja conduzido às oficinas do produtor para certas modificações
técnicas, ou ainda para que o produto não mais seja usado. Nesses casos, o
produto era defeituoso no instante em que foi posto no mercado, só que o
estado da tecnologia não permitia tal constatação, ou não se tinha
considerado que o uso normal pudesse acarretar um perigo legitimamente
não esperado.
Contudo, como diz o § 2º do art. 12 do CDC, “o produto não é
considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido
colocado no mercado”. Assim, como escreve CALVÃO DA SILVA, “o
automóvel fabricado e posto em circulação há alguns anos com freios
hidráulicos, sem cintos de segurança e faróis de nevoeiro não se torna
defeituoso só porque ulteriormente aparece melhorado com o sistema de
frenagem ABS, cintos de segurança, faróis de nevoeiro, balão de ar que abre
em caso de acidente grave, etc. O critério decisivo é o de que o produto
satisfaça as legítimas expectativas de segurança do grande público no
momento da sua emissão no comércio, sem que do seu aperfeiçoamento
ulterior possa inferir-se a existência de defeito naquele momento”5. Nesses
casos, o produto não é defeituoso no momento em que entrou em circulação.
Se um remédio, no momento em que foi posto em circulação, não
podia ser dito nocivo à saúde, porém mais tarde, em razão do
desenvolvimento da tecnologia, constata-se que é causador de câncer, ele
evidentemente deve ser retirado de circulação. No caso em que se descobriu,
em virtude do avanço tecnológico, que um produto de consumo duradouro
no tempo foi introduzido com defeito no mercado, é racional que o produtor
pague as despesas de informação, de modificação ou provenientes da sua
retirada do mercado. Nessa situação, não importa se o fornecedor agiu, ou
não, com culpa, pois se trata de uma “questão de confiança decepcionada”6.
5
6
SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor. Coimbra: Almedina, 1999, p.634.
Cf. FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil, cit., p.153.
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2 – “O MODO DE FORNECIMENTO DO SERVIÇO”, “O RESULTADO E OS
RISCOS QUE RAZOAVELMENTE DELE SE ESPERAM” E “A ÉPOCA DE
SEU FORNECIMENTO”
Na mesma linha do referido art. 12 do CDC, estabelece o seu art. 14, §
1º, que, para a conclusão de que um serviço é defeituoso, devem ser levadas
em conta “as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – o modo de seu
fornecimento; II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi fornecido”.
Todo serviço deve ser acompanhado das informações sobre sua
utilização e seus riscos. Sua propaganda, se evidentemente pode realçar suas
qualidades, não pode escamotear os seus riscos. Tudo deve ser passado de
forma clara e compreensível ao leigo, considerando sempre o nível de
educação do provável público consumidor.
Além disso, todo serviço deve corresponder ao resultado e aos riscos
que dele se esperam. Tal resultado, como é óbvio, é o prometido pela
natureza do serviço, levando-se em conta, especialmente, a sua publicidade e
as informações que o acompanham. No que diz respeito ao risco, deve ser
considerado se o serviço, por sua natureza, deve gerar riscos normais e
previsíveis, ou se existe um serviço potencialmente nocivo ou perigoso. Nos
dois casos, como é evidente, as informações deverão ser adequadas, mas no
segundo, de acordo com a dicção do art. 9º do CDC, elas deverão também
ser “ostensivas”.
Por fim, como igualmente acontece em relação ao produto, a definição
de defeito não pode deixar de considerar “a época em que foi fornecido”.
Assim, se o desenvolvimento da tecnologia demonstrou que o serviço pode
ser fornecido de maneira mais perfeita, isso não significa que, no momento
em que foi fornecido ao consumidor, apresentava defeito. De modo que o
consumidor de um serviço de fruição duradoura no tempo não pode, apenas
porque foi descoberta uma técnica mais avançada, pretender que o serviço
passe a lhe ser prestado conforme a nova tecnologia. Contudo, se essa
tecnologia demonstrar que o serviço, da forma como vinha sendo prestado,
pode gerar riscos que até então não haviam sido imaginados, existirão três
alternativas: se o risco for aceito, o fornecedor deverá informar o
consumidor; se o risco não for aceito, e bastar a readequação do serviço ou
de sua prestação, o serviço poderá continuar a ser prestado com as devidas
35
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alterações; se o risco não for aceito, e não for mais possível prestar o serviço,
ele deverá ser interrompido.
Nessas hipóteses, o fornecedor deve arcar com as despesas para as
informações e para as alterações necessárias e, ainda, no último caso,
devolver a quantia que o consumidor eventualmente houver pago de forma
adiantada pelo serviço. Isto não se confunde com ressarcimento do dano.
Trata-se, isso sim, de se dar integral cumprimento ao dever de vigilância e à
base do contrato de consumo, que é a confiança depositada pelo consumidor
no fornecedor.
Lembre-se que, se a relação de consumo se estabelece em determinado
momento, isso acontece porque o consumidor tem confiança no produto ou
no serviço que lhe é oferecido. Portanto, se a segurança que se espera do
produto ou do serviço desaparece em determinado instante, diante do
desenvolvimento da tecnologia, o fornecedor tem o dever de fazer o possível
para que a segurança esperada pelo consumidor volte a se instalar. Nessa
perspectiva, como o desenvolvimento da ciência é algo desejado e
ineliminável, e a venda se funda em um voto de confiança na segurança do
produto ou do serviço, o fornecedor deve sempre estar acordado para o seu
dever de segurança (ou para o seu dever de vigilância), correndo os riscos do
desenvolvimento.
3 – DEMAIS CIRCUNSTÂNCIAS QUE DEVEM SER CONSIDERADAS. EM
ESPECIAL A QUESTÃO DO TABACO
Os arts. 12, § 1º, e 14, § 1º, do CDC deixam claro que, para a definição
de produto e serviço defeituosos, devem ser consideradas não apenas as
circunstâncias expostas acima – enumeradas de forma exemplificativa nesses
artigos –, mas também outras “circunstâncias relevantes”.
Isso porque o legislador sabe que é impossível enumerar todas as
circunstâncias que devem ser tomadas em conta pelo juiz. Assim, preferiu
enumerar as mais importantes, deixando ao julgador a ponderação das que
apareçam como relevantes diante do “caso concreto”. Trata-se, mais uma
vez, de uma opção pela “justiça do caso concreto”, perante a impossibilidade
de se prever, em abstrato, o que deve ser analisado pelo juiz. Ou melhor, não
há como antever, em abstrato, o que importa para a definição de legítima
expectativa de segurança sem considerar a natureza do produto e do serviço
e o perfil do consumidor, os quais variam de acordo com o caso concreto.
36
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Lembre-se, em primeiro lugar, que o dever de informar se altera
conforme o produto ou o serviço possa produzir riscos normais e previsíveis
ou seja potencialmente nocivo ou perigoso. Além disso, as expectativas de
segurança do consumidor variam conforme a natureza do produto ou do
serviço.
Segundo o art. 220, § 4º, da CF, a propaganda comercial de tabaco,
bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a
restrições legais, e conterá, sempre que necessário, advertências sobre os
malefícios decorrentes de seu uso. Por outro lado, diz o art. 196 da CF que a
saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos.
Por lógica, se o Estado tem o dever de proteger a saúde e a segurança
da população, não há como aceitar que ele possa autorizar a venda de um
produto que reconhece nocivo ou perigoso, sem que essa autorização esteja
fundada na necessidade de proteção da própria sociedade.
Não há dúvida que os medicamentos devem conter informações
ostensivas a respeito dos males que a sua utilização, ainda que normal, pode
gerar. Se um medicamento, que causa efeito nocivo, é fundamental para
tratar de certa doença, a sua venda somente poderá ser feita mediante
controle médico, além de ter que trazer informações adequadas e ostensivas a
respeito dos malefícios que o seu uso pode ocasionar.
Quanto aos agrotóxicos, a informação também deve ser ostensiva, uma
vez que os riscos que esses produtos podem trazer, quando considerados os
benefícios que podem proporcionar, são tidos como aceitáveis. Em relação às
bebidas alcoólicas, alguém poderia afirmar que a nocividade do seu
consumo não pode legitimar a sua venda, uma vez que a sua utilização não é
imprescindível ao desenvolvimento da sociedade. Acontece que, diante
desse último caso, é novamente necessária a distinção entre aceitabilidade do
risco e uso previsível. O consumo de bebidas alcoólicas, quando feito de forma
moderada, não gera um risco de prejuízo inaceitável. Nesse caso, é o uso
inadequado do produto que pode trazer males à saúde. Se o risco não está no
consumo, mas sim na forma do consumo, o produto somente poderá ser
comercializado quando acompanhado de restrições ao seu uso por menores
e de informações a respeito dos prejuízos à saúde que o seu uso inadequado
pode trazer.
37
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No que diz respeito ao tabaco, a nocividade não advém da forma do
consumo, mas sim do próprio consumo. O cigarro, diz o Ministério da Saúde, é
causador de câncer, gera impotência sexual, etc. Isso quer dizer que o Estado
já reconheceu de maneira expressa a nocividade do tabaco. Perceba-se que o
Estado, ao prestar informações ao consumidor, não diz apenas – nem poderia –
que o uso imoderado do cigarro pode ser prejudicial à saúde.
Há, para dizer o mínimo, uma gritante contradição entre o dever do
Estado de proteger a saúde e a informação de que o cigarro causa câncer de
pulmão. Diante da obviedade de que o Estado tem o dever de proteger a saúde,
as informações de que o cigarro provoca câncer, inseridas de maneira tímida
nos comerciais em que os produtores de tabaco procuram seduzir o
consumidor, somente podem ser vistas como um escárnio aos direitos básicos da
população.
Na verdade, se a Administração Pública reconhece a alta periculosidade
ou a alta nocividade de um produto, e ainda assim permite a sua venda, sem que
esse perigo ou nocividade seja legitimado por estar tutelando outro bem
digno de proteção, o ato da Administração Pública carece de fundamentação, e
assim não precisa ser acatado pelo juiz, que então fica com a possibilidade de
proibir a venda do produto. Isso por uma razão simples: o dever de proteção
é incumbência do Estado, e, portanto, também do juiz, que não pode ficar em
uma posição de assistente dos desvios e das omissões da Administração.
Quando esta reconhece a alta nocividade do produto, é completamente
irracional a autorização do seu consumo sem que a proteção de outro bem
possa justificá-la.
Seria possível argumentar que, se o art. 220, § 4º, da CF afirmou que a
propaganda de tabaco deve conter advertências sobre os malefícios
decorrentes de seu uso, a sua comercialização estaria admitida pela própria
Constituição. Acontece que nenhuma norma que faz juízo técnico pode
deixar de se submeter à questão do desenvolvimento da tecnologia.
De qualquer forma, a norma constitucional não disse que o cigarro não é
altamente nocivo, mas sim que a sua propaganda deve conter advertências sobre o
seu uso. Quando o art. 220, § 4º, da CF regulamentou a propaganda do
cigarro, impondo informações ao consumidor, ele obviamente teve a
intenção de dar proteção à população, exatamente porque não havia “certeza
científica” quanto ao seu grau de nocividade. Melhor explicando: o objetivo
dessa norma não foi garantir a comercialização do tabaco, mas sim proteger a saúde
38
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do consumidor. Por isso frisou a necessidade de sua propaganda conter restrições e
advertências.
Aliás, considerando-se o princípio da precaução, é certo concluir que em tal
momento a comercialização do cigarro foi privilegiada em relação à saúde do
consumidor. Atualmente, reconhecida pela ciência e pelo Estado a nocividade
do tabaco, não há outra alternativa a não ser proibir a sua comercialização. A
menos que o Estado se negue a proteger o consumidor, ou melhor, suponha
que é melhor arrecadar impostos com a comercialização do cigarro do que
proteger a saúde das pessoas. Aliás, é preciso frisar que existem estudos que
demonstram que tal arrecadação é ilusória, diante dos gastos públicos com
doenças provocadas pelo consumo de cigarro.
E não se diga que é preciso considerar uma norma constitucional que
liberou a comercialização do cigarro – embora o inverso deva ser óbvio. Como já
adiantado, essa norma, diante de determinado momento do
desenvolvimento científico, impôs deveres ao produtor diante da
propaganda de cigarro, deixando clara a intenção de proteger a saúde do
consumidor. Se o passar do tempo demonstrou que o cigarro provoca câncer,
etc., não há necessidade de combater a norma constitucional, uma vez que essa
não disse que o cigarro pode ser vendido ainda que cause câncer (como é óbvio), mas
apenas que a propaganda de cigarro deve sofrer restrições. Ou seja, não há
incompatibilidade entre a norma que, em determinado momento do desenvolvimento
da ciência, impõe restrições à propaganda de um produto e deveres de informação ao
seu produtor e a norma que, em outro estágio do desenvolvimento da tecnologia, veda
a sua comercialização diante da conclusão técnica de que o produto é “altamente
nocivo”. Tais normas se apóiam em situações fáticas completamente distintas.
É fácil concluir, assim, que a lei infraconstitucional pode – e deve – proibir a
comercialização do cigarro. Ora, se a aludida norma constitucional impõe ao
Estado o dever de estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à
família a possibilidade de se defenderem (entre outras coisas) de
propagandas de produtos nocivos à saúde (art. 220, § 3º, II, da CF), além do
dever de o produtor de tabaco advertir, nas suas propagandas, “sobre os
malefícios decorrentes do seu uso” (art. 220, § 4º, da CF), o que a lei
infraconstitucional não pode é eliminar os deveres impostos ao Estado e ao produtor
de tabaco, pois aí sim estaria violando normas constitucionais de proteção do
consumidor e da saúde.
Diante de um direito fundamental – no caso os direitos fundamentais
do consumidor e à saúde –, o Estado não pode se esquivar do seu dever de
39
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proteção. Perante esse dever, há o que CANARIS7 chama de imperativo de
tutela, isto é, a necessidade de tutela ou de proteção do direito fundamental.
Essa tutela incumbe, em princípio, ao legislador, que deve editar a norma de
proteção, realizando a denominada proteção ou tutela normativa. Contudo,
quando o legislador descumpre o seu dever de proteção, surge uma situação
de omissão de tutela ou de proteção. Não obstante, essa omissão pode ser
questionada perante o Poder Judiciário, quando o juiz deverá verificar, em
face do direito fundamental, se realmente houve omissão de proteção por parte
do legislador. Se a conclusão for positiva, caberá ao magistrado suprir a
omissão na proteção do direito fundamental, concedendo a tutela jurisdicional. Isso
porque, como já dito, o dever de proteção é incumbência do Estado, e não apenas do
legislador.
Não se pense que o juiz, nesse caso, estará assumindo o lugar do
legislador. É que o dever de proteção normativa decorre do direito
fundamental. Quando o legislador deixa de proteger um direito
fundamental, há simplesmente violação do direito fundamental, a qual pode
ser corrigida pelo Poder Judiciário. Imaginar que o juiz não pode corrigir tal
violação é o mesmo que supor que o Estado-legislador não tem “obrigações”
para com os particulares. Na verdade, a conseqüência de que o Estado tem o
dever de proteger um particular contra o outro é a de que a violação desse
dever pode ser corrigida pelo Poder Judiciário. Separação de poderes, como
é óbvio, não é o mesmo do que “carta branca” para a violação dos direitos
7
CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003, p.56 e ss.
40
LIQUIDAÇÃO E EXECUÇÃO DEPOIS DA LEI
11.232/2005: REFLEXÕES SOBRE O ÂMBITO DE
APLICAÇÃO DO ART. 475-B NO
CUMPRIMENTO DAS SENTENÇAS
INDIVIDUAL E COLETIVA *
L UIZ R ODRIGUES W AMBIER * *
E VARISTO A RAGÃO S ANTOS * * *
Sumário: 1 – As dificuldades inerentes ao período de transição
entre modelos e a delimitação do objeto do texto; 2 – A Lei
11.232/2005 e a mudança meramente topográfica que propiciou
aos mecanismos de liquidação; 3 – O perfil do art. 475-B no texto
da Lei 11.232/2005; 4 – A determinação do valor por meros
cálculos, ainda no contexto da Lei 8.898/1994; 5 – Cont.: o
deslocamento do contraditório da liquidação para os embargos
(com efeito suspensivo) como um dos pontos fundamentais
dessa mudança; 6 – O modelo anterior foi textualmente
transposto para o art. 475-B: sua aplicação precisa ser adaptada
ao novo contexto; 7 – O art. 475-B na execução da sentença
coletiva: primeira visão; 8 – Cont.: o art. 475-B não tem lugar na
execução da sentença coletiva; 9 – Conclusão.
1 – AS DIFICULDADES INERENTES AO PERÍODO DE TRANSIÇÃO ENTRE
MODELOS E A DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO TEXTO
Passamos por um momento de transição. De mudança de paradigmas.
Não apenas no âmbito estrito do Direito (em decorrência dessas constantes
Este trabalho foi originalmente escrito para integrar obra coletiva publicada em homenagem ao
Professor José Manoel de Arruda Alvim Netto.
** Doutor em Direito pela PUC/SP. Mestre em Direito pela UEL. Professor no curso de mestrado em
Direito da UNAERP e no curso de especialização em Direito Processual Civil da PUC/SP. Exprofessor nos cursos de graduação, especialização e mestrado da UEPG. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Membro do Instituto Ibero-Americano de Direito
Processual. Advogado.
*** Mestre pela PUC/PR. Doutorando pela PUC/SP. Advogado.
*
41
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reformas processuais, por exemplo), mas, principalmente, no plano
sociocultural. Por isso, acaba sendo inevitável que essa transitoriedade no
plano social também apareça refletida, em maior ou menor grau, no (e pelo)
Direito de nossa época. Um lampejo dessa transição, em nosso sentir, é a
clara expectativa social, já captada pelo legislador, sobretudo nos últimos
anos, no sentido de que o sistema jurídico (especialmente o órgão judicial,
enquanto núcleo desse sistema1) deixe de ter como objetivo a mera
composição formal dos interesses que lhe são submetidos a análise e opere
no sentido de proteger e satisfazer, em termos substanciais, esses mesmos
interesses.
Em certo sentido chega a ser emblemática a mudança de rota do
legislador: o juiz deixa de meramente “pôr fim ao processo” quando
sentencia (como se, com esse ato, pudesse “lavar as mãos” em relação ao
papel institucional para o qual foi chamado a exercer também dali em
diante) e deverá dirigir ativamente um processo, cuja integração das
atividades jurisdicionais bem dá a dimensão de que agora, sem escusas, sua
preocupação primeira (apesar de algumas amarras que ainda lhe são
impostas) precisa realmente ser a de atuar no sentido de tentar entregar (em
termos concretos, efetivos, substanciais) a proteção postulada pela parte no
pedido inicial. Isso, porém, é assunto para uma outra oportunidade.
O que nos move aqui é essa mencionada substituição de paradigmas
ou, pelo menos, no plano estrito do Direito, a opção por um novo modelo de
estrutura procedimental e alguns dos reflexos que essa mudança irradia sobre o
papel da liquidação de sentença e, mais especificamente, do mecanismo de sua
execução (= cumprimento) baseado em cálculo formulado pelo próprio credor (CPC,
art. 475-B).
Não costuma ser imediata a percepção desanuviada dessas mudanças,
mesmo porque toda transição de paradigmas, como percebe BOAVENTURA
DE SOUZA SANTOS, é sempre semicega e semi-invisível2. Por isso é comum
que vivamos e operemos já sob um novo modelo, mas nem o enxerguemos
(ou resistamos a enxergá-lo), pois continuamos atuando segundo os valores
do modelo (ou paradigma) anterior. Mais do que isso: temos a tendência
natural de até tentar encaixar a nova realidade nos moldes a que estávamos
acostumados. A começar porque esse certo continuísmo gera alguma
sensação de segurança, além de muitas vezes ser, em última análise, mais
cômodo mantermos as coisas mais ou menos como já estavam.
1
2
Cf. LUHMANN, Niklas. A posição dos tribunais no sistema jurídico. AJURIS, n.49, p.160.
SANTOS, Boaventura de Souza. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. 5.ed.
São Paulo: Cortês, 2001, p.15.
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O fato, portanto, é que não deixa de ter até certo grau de naturalidade
nos flagrarmos buscando interpretar a lei nova (ou, principalmente, um
novo regime jurídico, como há pouco ocorreu com a execução da sentença)
pelos moldes antigos. O problema é que, por mais natural que seja essa
nossa tendência, ela pode ganhar contornos negativos dentro do sistema do
Direito, especialmente em razão da rigidez dogmática que lhe caracteriza.
Aquilo (por exemplo, uma alteração legislativa) que deveria representar um
avanço do sistema, ou não “emplaca” ou a demora em absorvê-lo lhe altera a
pertinência prática ou, o que é pior, acaba sendo simplesmente neutralizado
naquilo que tinha de novo.
O regime do cumprimento de sentença, de maneira geral, e a
liquidação de sentença, de forma mais específica, parecem estar cada vez
mais expostos a esse risco.
Neste texto concentraremos nossa atenção no papel, por assim dizer,
revitalizado que a liquidação de sentença passa a ter nesse novo contexto. Isto
é, sua perceptível relevância para, de maneira geral, preparar o adequado
cumprimento da sentença que tutela direito individual e sua
indispensabilidade para execução da sentença coletiva (especialmente daquela
que tutela direitos individuais homogêneos). Como conseqüência imediata
disso, parece inafastável a necessidade de (re)analisarmos (com os olhos
voltados para o novo modelo e não para o antigo) o âmbito de aplicação do
art. 475-B do CPC. Isto é, de verificarmos até que ponto continua sendo
legítimo permitir-se o início do cumprimento da sentença sem liquidação e
simplesmente baseado em cálculos do próprio credor.
2 – A LEI 11.232/2005 E A MUDANÇA MERAMENTE TOPOGRÁFICA QUE
PROPICIOU AOS MECANISMOS DE LIQUIDAÇÃO
O primeiro passo para isso é reconhecermos que a Lei 11.232/2005,
apesar de ter criado um novo regime jurídico para a execução das sentenças
que fixam a obrigação de pagar, não trouxe inovações propriamente
substanciais aos mecanismos de liquidação. Na verdade, o que de mais
relevante (e visível) propiciou foi a alteração topográfica (e, portanto,
essencialmente formal) dos dispositivos que disciplinam os instrumentos de
liquidação: do Livro II do CPC (arts. 603 a 611) foram remanejados para o
Livro I e ali organizados junto aos dispositivos que tratam do processo de
conhecimento (art. 475-A a 475-H).
Em sua substância, porém, a estrutura dos mecanismos de liquidação
permaneceram rigorosamente os mesmos (arbitramento e artigos – CPC,
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arts. 475-C e 475-E). É certo que a liquidação agora não acontece mais em
uma relação processual autônoma, isto é, diferente tanto do processo de
conhecimento que a antecedeu quanto do de execução que a sucederá. Todas
essas atividades foram unificadas e organizadas naquilo que, ainda por falta
de melhor denominação, muitos têm chamado de “processo sincrético”.
Apesar disso, continua exigindo instauração por meio de provocação do
credor interessado (CPC, art. 475-A, § 1º), o que em boa medida acaba por
obrigar o intérprete a uma “ginástica” hermenêutica: embora parte de um
mesmo processo preservaria sua natureza de ação autônoma; em
conseqüência disso, a intimação do advogado para responder ao pedido
liquidatório traz em si, na verdade, o conteúdo e os ônus de um legítimo ato
de citação; conseqüentemente, a decisão interlocutória que a resolve precisa ser
vista, em essência, como uma sentença, embora submetida a recurso de
agravo por vontade do legislador3.
O fato é que as enormes similitudes com o regime anterior tornam
inevitável a percepção de que, na prática, muito pouco realmente se alterou
de essencial. Talvez a operação desse novo modelo engendrado pela Lei
11.232/2005 se tornasse até mais simples (e algo efetivamente mais distinto
do que aquilo que se praticava no regime revogado) se se conferisse também
ao órgão judicial a possibilidade de iniciar as atividades tendentes a definir o
quantum do seu comando condenatório: pelo menos essa discussão em torno
da natureza da liquidação (como fase desse novo processo ou ainda a ação
autônoma de antigamente) ficaria bastante arrefecida, o que terminaria por
atingir, também, outros dos seus vários aspectos ainda à espera de melhor
definição.
3 – O PERFIL DO ART. 475-B NO TEXTO DA LEI 11.232/2005
Ao lado das modalidades de liquidação, o que também permaneceu
idêntico foi a possibilidade de se dispensar a instauração de qualquer
procedimento específico para apuração do quantum quando, nos termos do
art. 475-B, “a determinação do valor depender apenas de cálculo aritmético”.
Nessa circunstância, cabe ao próprio credor elaborar a conta e com ela
instruir o pedido de execução da sentença. Daí ser majoritário o
posicionamento da doutrina no sentido de que não se trata, rigorosamente,
de uma terceira modalidade de liquidação. O título judicial já apresenta os
elementos essenciais que o tornam “líquido”, bastando ao credor reuni-los
em uma planilha de cálculo.
3
A esse respeito, por todos, WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento.
3.ed. São Paulo: RT, 2006.
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Por isso, e já que nessa fase da reforma processual o legislador estava
reorganizando os dispositivos, não seria de todo incongruente se retirasse
essa previsão do capítulo da liquidação e o alocasse naquele destinado ao
cumprimento da sentença. Tal dispositivo é muito mais afeito à execução do
que, propriamente, à liquidação
De todo modo (e aqui começamos tangenciar o núcleo deste nosso
trabalho), esse dispositivo (reprodução praticamente literal do antigo art.
604) foi originariamente pensado para operar em outro regime jurídico: o do
processo de execução autônomo e cuja reação do executado, por meio dos
embargos, estava compulsoriamente dotada de efeito suspensivo.
O que nos interessa a partir daqui é justamente averiguar se e em que
medida o novo contexto no qual foi reproduzida a possibilidade de
determinação do valor da condenação pelas mãos do próprio credor alteralhe o âmbito de abrangência. Isto é, se apesar da transposição literal do
dispositivo do Livro II para o Livro I as novas feições da execução de
sentença não exigiria que o órgão judicial passasse a aplicá-lo, no mínimo,
com maior rigor ou de maneira mais seletiva (por exemplo, quando a
determinação do valor realmente dependa de simples cálculos e não, como
cada vez mais se tem visto no plano empírico, toda vez que o título judicial
simplesmente não preveja, de maneira explícita, a necessidade de prévia
liquidação).
4 – A DETERMINAÇÃO DO VALOR POR MEROS CÁLCULOS, AINDA NO
CONTEXTO DA LEI 8.898/1994
Comecemos esse nosso percurso relembrando que, na redação
originária do CPC e até o ano de 1994, eram três as modalidades de
liquidação: cálculo do contador, arbitramento e artigos. Foi na primeira fase
dessa reforma processual (Lei 8.898/1994) e em sintonia com o
posicionamento há muito majoritário da doutrina4 que se aboliu a liquidação
4
Já em 1969, por exemplo, ainda durante as discussões que antecederam o CPC de 1973, EGAS
DIRCEU MONIZ DE ARAGÃO (Sugestões ao novo Código de Processo Civil. In: Estudos sobre a
reforma processual. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1969, p.90) opinava sobre a
desnecessidade da chamada liquidação por cálculos, os quais poderiam ser tranqüilamente
elaborados pelas próprias partes e independeriam da atividade do contador judicial. Nesse
mesmo sentido, ALCIDES DE MENDONÇA LIMA (Comentários ao Código de Processo Civil. 5.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1987, item 1.318, p.563) não tinha dúvidas de que se tratava de “um desperdício
de esforços e de atividade”, acreditando ser muito mais produtivo que o próprio credor já “fizesse
o cálculo e indicasse os dados da operação na inicial respectiva” e “se nada fosse impugnado, o
juiz homologaria o cálculo oferecido pelo credor”.
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por cálculo elaborado pelo contador e permitiu-se que a execução da
sentença fosse iniciada sem esse prévio acertamento judicial e com base em
cálculos apresentados pelo próprio credor.
É interessante perceber que a motivação maior desse posicionamento
da doutrina, encampado a partir daquele momento também pelo legislador,
era agilizar o trâmite processual. No lugar de procedimento que ensejava a
remessa dos autos ao auxiliar do juízo e precisava ser encerrado por sentença
(apelável, etc.), mais condizente até com o dia-a-dia forense era justamente
autorizar o início da execução, se realmente apenas de meros cálculos se
precisava para quantificar o crédito. Fosse a lacuna essencialmente
aritmética, e como lembrou ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, seria “difícil haver
interpretações antagônicas: é ou não é”5.
Na própria exposição de motivos da Lei 8.898/1994 (entre cujas
modificações estava o do antigo art. 604), destacava-se a certa trivialidade
imanente às hipóteses que poderiam dar ensejo a esse cálculo formulado
pelo próprio credor. Exemplificavam-se lá com situações um tanto quanto
corriqueiras, tais como o mero cômputo de “aluguéis, rendimentos,
honorários, pensões, correção monetária, juros, etc.”. Apesar disso, nessa
própria exposição se percebe não ter o legislador ignorado que tal prática
(embora realmente apta a tornar mais célere o trâmite processual) também
acabava por dar maior margem a equívocos (intencionais ou não) da parte
credora. Para essas situações, apontou-se ali, de maneira um tanto quanto
peremptória, diga-se de passagem, “que se o executado achar incorreto o
cálculo, irá impugná-lo em embargos do devedor por excesso de execução
(CPC, art. 741, inc. V)”.
5 – CONT.: O DESLOCAMENTO DO CONTRADITÓRIO DA LIQUIDAÇÃO
PARA OS EMBARGOS (COM EFEITO SUSPENSIVO) COMO UM DOS
PONTOS FUNDAMENTAIS DESSA MUDANÇA
Esse é o ponto que gostaríamos de destacar: o contraditório em torno
do valor do crédito, que precederia a execução da sentença na antiga
liquidação por cálculo (e que ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, por exemplo,
não dispensava que acontecesse antes da execução, nem mesmo quando
5
A esse respeito, com remissão a outros autores e reconstituindo, com mais vagar, o ambiente que
precedeu e que circundou a reforma do CPC de 1994 nesse ponto, sugerimos o trabalho de um
dos autores deste texto. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed.
São Paulo: RT, 2006, item 4.1 e ss.
LIMA, Alcides de Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense,
1987, item 1.318, p.563.
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sugeria outro procedimento em seu lugar6), na primeira parte da reforma foi
como que transferido para a fase dos embargos do devedor. Como essa reação
do executado contava com efeito suspensivo compulsório, na prática não
havia maiores inconvenientes (prejuízos) nessa postergação.
Manifestando-se antes mesmo dessa alteração do antigo art. 604,
CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO já sugeria que, iniciando-se desde logo a
execução, ficaria, então, “a ‘liquidação’ do credor sujeita à censura pelo juiz
na própria execução ou fiscalização pela parte contrária, em eventuais
embargos”7.
Emblemática dessa necessidade de se postergar para os embargos do
devedor o contraditório que, rigorosamente, deveria ter acontecido antes
mesmo do início da execução é, em nosso sentir, a opinião de VICENTE
GRECO FILHO, manifestada logo após a reforma. Para esse ilustre
processualista, a liquidação por cálculo do contador teria sido substituída
por aquilo que denomina de liquidação por cálculo do próprio credor. A
primeira fase de procedimento aconteceria com a tão-só apresentação da
memória de cálculos já no bojo da inicial da execução, ficando remetida para
os embargos (hoje a impugnação) a oportunidade de contraditório do
devedor8.
Em relação a esse último aspecto (contraditório da liquidação
postergado para os embargos), pode-se dizer que a doutrina era
praticamente unânime. Embora o entendimento prevalecente nesses
posicionamentos sempre tenha sido o de que a possibilidade de o credor
iniciar a execução, com base em seus cálculos aritméticos, não é uma
modalidade de liquidação, a nota comum em todos era a de que, como o
objetivo dessa alteração foi o de “acelerar” ou “desobstruir” o acesso à
execução, a reação do devedor contra esses cálculos deveria ser
redirecionada para os embargos9.
ALCIDES DE MENDONÇA LIMA (Comentários ao Código de Processo Civil. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense,
1987, item 1.318, p. 563) propunha adoção de procedimento no qual o próprio credor “fizesse o
cálculo e indicasse os dados da operação na inicial respectiva [para que, em seguida] e sobre a
mesma o devedor se manifestasse”. Os autos seriam remetidos ao contador apenas “se houvesse
divergência que o juiz não pudesse resolver”. Em resumo: propunha a instauração do
contraditório em torno do valor do crédito antes de iniciar-se a execução.
7 DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução Civil. 6.ed. São Paulo: Malheiros,1998, item 361, p.531.
8 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 9.ed. São Paulo: 1995, v.3, p.45.
9 De acordo com DONALDO ARMELIN (Informativo IASP, n.19, p.9.), por exemplo, “a eliminação do
processo de liquidação por cálculo, que se efetivará pelo exeqüente na própria inicial da execução
por quantia certa, sempre que depender apenas de cálculos aritméticos, remanescendo o eventual
questionamento a respeito de seu resultado para ser suscitado pela via dos embargos de
6
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Não se demorou a perceber que exigir do devedor a constrição
patrimonial apenas para reagir contra equívocos que deveriam ter sido
acertados antes da execução não era algo legítimo10. Aliás, aí começavam a
surgir discussões a respeito da aptidão, para essa correção, da ainda
incipiente figura da exceção de pré-executividade11.
Isso obrigou o legislador a uma segunda reforma, não muito tempo
depois (Lei 10.444/2002), para possibilitar que o próprio órgão judicial, de
ofício, se valesse do contador para conferir cálculo cujo resultado, ao menos
na aparência, já revelasse exceder os limites do título judicial. Caso essa
verificação realmente apurasse algum excesso, mas o exeqüente dele
discordasse, a constrição patrimonial ficaria momentaneamente limitada ao
valor encontrado pelo contador.
devedor”. Substancialmente nesse mesmo sentido, entre vários: ALVIM, José Eduardo Carreira.
Liquidação de Sentença e a Lei 8.898/94. RePro, 77, jan./mar. 1995, p.66; NOBRE JUNIOR, Edilson
Pereira. O Novo Perfil da Liquidação de Sentença. RT, v.707, p.16; CÂMARA, Alexandre Freitas.
Lineamentos no Novo Processo Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p.128-129; ARRUDA, Antonio
Carlos Matteis de. Ainda a nova disciplina da liquidação de sentença. Informativo IASP, n.21, p.9;
UBALDO, Edson. As Modificações no Processo de Execução. Florianópolis: Obra Jurídica, 1995;
PERALTA, Francisco Antonio Zem. A Liquidação de Sentença depois da Lei 8.898/94. São Paulo: LTr,
1995, p.26; GONÇALVES, Benedito. O art. 128 da Lei 8.213/91 diante da nova sistemática de
liquidação de liquidação de sentença. RT, v.712, p.22-23.
10 Nesse sentido, v. um dos autores deste ensaio, LUIZ RODRIGUES WAMBIER (Liquidação de Sentença.
2.ed. São Paulo: RT, 2000, p.170 e 176) que, pelo menos desde a 2ª edição do seu Liquidação de
Sentença (2000), já observava que ao se exigir a penhora como pré-requisito para se discutir o
cálculo do credor “se estaria cometendo flagrante violação do princípio do devido processo legal,
inserido no art. 5º, inc. LIV, da CF”, mesmo porque “a exatidão do cálculo que instrui o pedido de
execução, no nosso entender, é matéria de ordem pública, que pode (e deve) ser conhecida de
ofício pelo juiz, também pode ser conhecida por ele depois do alerta dado pela parte, sem que,
para tanto, seja necessário o oferecimento de embargos”. Esse mesmo entendimento aparece, em
sua substância e já atualizado para o contexto criado pela Lei 11.232/2005, no seu livro Sentença
Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, p.224-231.
11 Cf. ARMELIN, Donaldo. A nova disciplina da liquidação de sentença. In: TEIXEIRA, Sálvio de
Figueiredo (Coord.). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p.664;
DINAMARCO, Cândido Rangel. As três figuras da liquidação de sentença. In: WAMBIER, Teresa
Arruda Alvim (Coord.). Atualidades sobre a liquidação de sentença. São Paulo: RT, 1996, item 10,
p.23-26; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Anotações sobre a liquidação de sentença após a reforma do
CPC. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Atualidades sobre a liquidação de sentença. São
Paulo: RT, 1996, p.60-66; BUENO, Cássio Scarpinella. O art. 604 do Código de Processo Civil
comporta exceção de pré-executividade? In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Atualidades
sobre a liquidação de sentença. São Paulo: RT, 1996, p.121-150; TALAMINI, Eduardo. A determinação
do valor do crédito por simples cálculo. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Atualidades
sobre a liquidação de sentença. São Paulo: RT, 1996,p.171-182; MOREIRA, Alberto Camiña. Defesa sem
Embargos do Executado. São Paulo: Saraiva, 2001, item 18.6, p.154-160.
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Tal possibilidade logo se revelou de duvidosa eficácia, não apenas
porque as avaliações dos contadores judiciais se mostram equivocadas com
alarmante freqüência, mas sobretudo porque procurava harmonizar, pela
simples e pontual alteração legislativa, elementos em si mesmos de dificílima
conjugação, quer no plano teórico, quer no prático. Ao mesmo tempo em que
inegavelmente conferia ao juiz a possibilidade de esboçar alguma
investigação, dentro da própria execução e com auxílio do contador judicial, a
respeito do montante do direito de crédito apresentado pelo exeqüente,
também procurava preservar a eficácia abstrata da execução (decorrente do
título executivo que a lastreava), ao manter qualquer discussão sobre esse
direito fora de seus limites (isto é, preservando-a deslocada para dentro da
ação de embargos). Paralelamente a isso, ainda procurava contornar,
parcialmente (já que continuava exigindo a garantia do juízo, mas limitada
ao valor encontrado pelo contador), a violência que se revelava sujeitar o
devedor a constrição patrimonial apenas para impugnar valores cujo
acertamento, rigorosamente, deveria ter precedido a atividade executiva.
Tudo isso, porém, a despeito mesmo de sua duvidosa eficiência
prática, inegavelmente estava em harmonia com o desenho do sistema
processual da época: o processo autônomo de execução, o caráter abstrato do
título executivo e, conseqüentemente, a necessidade de a reação do
executado acontecer por meio de outra ação (no caso, a de embargos). Tudo
permeado pela perspectiva da paralisação compulsória da execução pelo
oferecimento dos embargos12.
6 – O MODELO ANTERIOR FOI TEXTUALMENTE TRANSPOSTO PARA O
ART. 475-B: SUA APLICAÇÃO PRECISA SER ADAPTADA AO NOVO
CONTEXTO
Esse mesmo mecanismo, todavia, foi reproduzido, em termos
praticamente literais, no art. 475-B, §§ 3º e 4º. Embora, como visto acima,
pensado a partir de uma realidade (o processo autônomo de execução de
sentença), foi transposta para outra (o cumprimento da sentença reunida em
um mesmo processo).
12
É interessante observar que um dos autores deste texto, ao lado de TERESA ARRUDA ALVIM
WAMBIER (Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de Processo Civil. 2.ed. São Paulo: RT,
2002, p.234), ao opinarem, à época, sobre a melhor acepção a ser dada ao dispositivo, tinham
claramente como pano de fundo para tanto a paralisação automática da execução pelos embargos:
“A penhora se faz no valor a ser encontrado pelo contador e assim de considera estar garantido o
juízo para efeito de apresentação de embargos (já que o legislador presumiu que, em casos assim,
o executado queira discutir valores). Apresentados e recebidos os embargos, a execução ficará paralisada,
isto é, não prossegue”.
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Em nosso sentir, essa transposição exigia adaptações que, como não
foram feitas, agora e dentro do possível, precisarão ser alcançadas por meio
da interpretação da lei.
Não é demais lembrar que, no atual regime, o devedor não é mais
apenas cientificado para, num determinado prazo, cumprir (= pagar) a
obrigação fixada no título, sob pena de ter seu patrimônio penhorado. Muito
menos continua preservada para si a perspectiva de que, pelo simples
oferecimento dos embargos, já conseguirá suspender execução
eventualmente irregular.
Como a reação do executado não está mais compulsoriamente dotada de efeito
suspensivo, esse, em nosso sentir, é o elemento-chave que sobreleva em
importância a necessidade de acertamento prévio do valor do crédito e,
conseqüentemente, a parcimônia com que se deve permitir a adoção do art.
475-B do CPC. Diferentemente do que acontecia antes da Lei 11.232/2005,
agora mesmo após a penhora, suspender ou não o curso da execução será
medida que ficará ao alvedrio do órgão judicial e que terá por base a
percepção de verossimilhança na impugnação do executado.
Isso quer dizer que deixa de existir aquela possibilidade
(expressamente consignada até na exposição de motivos da lei que
introduziu em nosso sistema o modelo agora reproduzido no art. 475-B) de
se postergar para os embargos do devedor o contraditório em torno do valor
do crédito proposto exclusivamente pelo credor.
Em contrapartida e com a desburocratização da liquidação de sentença
(não se trata de mais de processo autônomo; é resolvida por decisão
agravável e assim por diante), esta emerge como procedimento importantíssimo,
não apenas para preparar a execução de pagar quantia, mas como para conferir a essa
atividade a excepcionalidade que lhe é característica.
Ou seja, ressurge não mais como aquele instrumento anacrônico e cuja
adoção, na prática, apenas retardaria a satisfação do direito13, mas como
13
Por detrás da opção legislativa que fez surgir, primeiramente, o art. 604 do CPC, facilmente se
percebe a busca de alternativas, sempre compatíveis com o sistema, para abreviar o trâmite
processual. A instauração de processo de liquidação passou a ser relegado apenas para as
situações em que se revelasse como etapa absolutamente indispensável. Nas demais,
especialmente naquelas em que a obrigação fixada no título não se apresentava propriamente
líquida, mas era possível forçar-se o início da execução mediante a apresentação de cálculos pelo
próprio credor, a liquidação era evitada.
Realmente, há tempos, antes da Lei 11.232/2005, a liquidação se apresenta como procedimento de
eficácia bastante duvidosa no plano da efetivação dos direitos. A parte credora era submetida a
verdadeiro processo (resolvido por sentença e para cuja apelação era recebida no duplo efeito,
etc.) e, mesmo após a apuração do quantum devido por força da condenação, ainda assim a parte
50
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procedimento mais ágil e, portanto, vital para preparar o equilíbrio da
execução que o sucederá. Isto é, verdadeira etapa de acertamento, em nosso
sentir importantíssima sempre que a obrigação a ser executada não se revele
rigorosamente líquida (isto é, passível de determinação por cálculos
aritméticos realmente simples).
O contexto em que está inserido art. 475-B, em nosso entendimento,
exige que o órgão judicial tenha postura mais criteriosa. Admitir-se o
processamento de execução mesmo quando a obrigação não se apresente
rigorosamente quantificável por simples cálculo (o que tem sido algo cada vez
mais comum), trará consigo o inevitável risco de desprestigiar o novo regime
de cumprimento da sentença como, ao mesmo tempo, acreditamos que
também terá o efeito perverso de, no mínimo, roubar a eficiência que dele
poderá ser extraída.
O desprestígio virá do aumento das chamadas “execuções injustas”: o
devedor será intimado a pagar obrigação em valor equivocado (como em
boa parte das vezes se apresenta o cálculo unilateralmente elaborado pelo
devedor ou até aquele revisto pelo contador judicial) e o instrumento de que
disporá para reagir contra isso não terá, como regra, o condão de suspender
a expropriação de seu patrimônio; já a ineficiência surgirá, sobretudo, das
inúmeras medidas, ortodoxas ou não, de que precisará lançar mão o
executado como forma de reagir eficazmente contra essa execução injusta: a
exceção de pré-executividade para impedir a aplicação da multa e/ou a
penhora e os recursos decorrentes de seu eventual não-acolhimento; o
agravo de instrumento contra a decisão que não atribuir efeito suspensivo à
impugnação; medidas cautelares ou até o próprio mandado de segurança
devedora poderia reagir contra a execução forçada, suspendendo automaticamente seu curso
mediante o oferecimento de embargos.
Por isso é que, como verdadeiro subterfúgio para abreviar essa seqüência de procedimentos pouco
produtivos em prol do credor, passou-se a admitir, de maneira cada vez mais elástica, o início da
execução mediante cálculos do próprio exeqüente. Mesmo que a situação concreta,
rigorosamente, exigisse alguma atividade prévia do juízo no sentido de acertar o valor a ser
cobrado pela execução, essa verificação era postergada para os embargos do devedor.
Como sob qualquer circunstância assistia ao devedor a possibilidade de suspender o curso da
execução mediante o oferecimento dos embargos, o contraditório, que deveria ter sido instaurado
e exercido no processo para liquidação do valor da obrigação, acabava sendo postergado para
essa outra fase. Os embargos, assim, como vimos acima, terminavam por fazer as vezes de instrumento de
liquidação, já que o acertamento judicial do valor da obrigação, que deveria ter ocorrido antes do
início dos atos executivos, na prática acabava sendo realizado ali. Como isso não trazia maiores
prejuízos ao devedor, salvo a indisponibilização de parcela de seu patrimônio, o órgão judicial
conseguia, no plano empírico, queimar etapas para satisfação do direito reconhecido no título
judicial.
51
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para viabilizar a obtenção desse efeito no plano dos Tribunais e tudo o mais
que a criatividade dos advogados e a necessidade do caso concreto
permitirem e/ou exigirem.
Percebendo-se o que, em nosso sentir, se apresenta como sendo a
possibilidade de nosso sistema contar com mecanismos de liquidação de
sentença “desburocratizados” (= revitalizados) pela reforma, ou tudo isso
poderá ser evitado ou, pelo menos, essa necessidade de reação do devedor
ficará bastante minorada com a individualização prévia da obrigação a ser
cumprida por meio da força.
Em nosso sentir, essa fase prévia de acertamento, enquanto atividade
verdadeiramente preparatória da execução, ou evitará o cumprimento
coercitivo da sentença (é bastante crível que o devedor pague a obrigação
após seu quantum ter sido certificado pelo órgão judicial mediante prévio
contraditório) ou esvaziará os meios de reação de que poderá se valer o
devedor caso ainda assim resista ao cumprimento da ordem judicial.
Por razões até mais fortes, acreditamos que o disposto no art. 475-B não
se aplica ao processo coletivo relacionado com direitos individuais
homogêneos, fazendo com que a prévia liquidação tenha sua importância
multiplicada (tornado-se indispensável) enquanto fase de preparação da
execução dessa sentença coletiva.
7 – O ART. 475-B NA EXECUÇÃO DA SENTENÇA COLETIVA: PRIMEIRA
VISÃO
De início, não percamos de vista a necessária distinção entre o
“processo civil clássico” (= processo individual) e o “processo civil coletivo”,
bem como, e especialmente, a subsidiariedade do primeiro em relação ao
segundo14. Isso quer dizer que, embora ainda careçamos de uma
14
Há algum tempo a doutrina procura delinear as diferenças entre esses sistemas (o individual e o
coletivo). Esse esforço tem sido marcado pelo objetivo de caracterizar que o processo coletivo não
é uma categoria do processo civil, mas, sim, um novo ramo do direito processual, com berço e
natureza constitucionais (Cf. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro:
Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003, item 1.1, p.17). Enquanto as expressões
“processo civil” ou “processo penal” serviriam para designar o processo destinado a viabilizar a
tutela dos interesses puramente individuais, o termo “processo coletivo” seria a denominação
própria do ramo do direito processual destinado à proteção dos direitos/interesses coletivos (cf.
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: Um novo ramo do direito
processual. São Paulo: Saraiva, 2003, item 1.1, p.17).
O fato é que a distinção entre o processo civil e o processo coletivo, enquanto espécies do gênero
“direito processual”, parece, hoje, algo irreversível. Revelam-se cada vez mais nítidas as
diferenças e especificidades entre ambos, especialmente a partir da perspectiva de seus princípios
52
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sistematização (= codificação) legislativa própria e específica destinada a
disciplinar a tutela dos interesses coletivos em geral, o (micro)sistema acaba
sendo formado pela reunião de alguma legislação esparsa, da LACP, do
CDC e, subsidiariamente, também pelo CPC15. Em relação a esse último e
como seus institutos são moldados para as necessidades do processo individual,
deverão ser sempre interpretados de modo a amoldarem-se aos princípios
fundamentais do processo coletivo.
Dizemos isso porque, de acordo com o CDC e “em caso de
procedência do pedido [de proteção para direitos individuais homogêneos],
a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos
causados” (CDC, art. 95, g.n.). Em outro espaço, um dos autores deste texto
já teve a oportunidade de observar que, em nosso (micro)sistema processual
coletivo, “a condenação sempre será genérica, não havendo qualquer
possibilidade, diante da lei posta, de os legitimados obterem sentença que
contenha condenação cujo quantum já esteja definido”16. Aliás, há expressiva
corrente doutrinária (que em nosso sentir ganha ainda mais força depois da
Lei 11.232/2005) que defende a própria impossibilidade jurídica de pedido
condenatório coletivo que não seja genérico17.
O problema com a sentença coletiva (e aqui mantemos nosso foco
concentrado naquela que tutela direitos individuais homogêneos) é que a
“iliquidez”, por assim dizer, ultrapassa a barreira da quantificação da
condenação. Esse comando judicial, além de não individualizar o valor do
e institutos fundamentais (cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Direito Processual Coletivo. In: LUCON,
Paulo Henrique dos Santos (Coord.). Tutela Coletiva. São Paulo: Atlas, 2006, p.302-308). Até
anteprojeto para codificação própria do processo coletivo já foi esboçado (de autoria de ADA
PELLEGRINI GRINOVER). Como um dos autores deste texto já teve a oportunidade de escrever em
outro espaço, trata-se de um novo sistema processual, vigente concomitantemente e em paralelo
ao do CPC (WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo:
RT, 2006, item 7.1.1, p.291). Dessa concomitância, porém, é ainda inafastável o risco de surgirem
interpretações que nem sempre representam a melhor leitura, especialmente dos mecanismos
processuais disponibilizados pelo nosso ordenamento ao processo individual.
15 O que queremos com isso significar, aproveitando, para tanto, a correta e sintética observação de
ELTON VENTURI (Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, item 2.7, p.41), é que dois
cuidados devem ser tomados pelo operador do processo coletivo: a) o caminho a ser seguido,
para definição do direito aplicável, deve ter como ponto de partida o CDC. Naquilo em que esse
for omisso, serve-se do contido na LACP e, por final, caso ainda persista a lacuna, aplicam-se as
normas do CPC, por expressa previsão do art. 90 do CDC.
16 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, item
7.2.1, p.371.
17 Cf. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda; ALVIM, Thereza Arruda; ALVIM, Eduardo Arruda;
MARINS, James. Código do Consumidor Comentado. São Paulo: RT, p.432. No mesmo sentido,
VENTURI, Elton. Execução da Tutela Coletiva. São Paulo: Malheiros, 2000, item 6.2, p.126.
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crédito de cada um dos possíveis beneficiários da tutela, também não
individualiza esse beneficiário da obrigação. Ou seja, o início de toda e
qualquer atividade executiva individual, relacionada com aquela
condenação, exigirá dois acertamentos prévios por parte do órgão judicial: a)
verificar a legitimidade do credor individual para beneficiar-se da tutela
coletiva; b) acertar o valor que lhe é individualmente devido.
8 – CONT.: O ART. 475-B NÃO TEM LUGAR NA EXECUÇÃO DA SENTENÇA
COLETIVA
Logo depois da Lei 11.232/2005, um dos autores deste texto sustentou
ser possível que o órgão judicial, excepcionalmente, mesmo em processo
coletivo por meio do qual se tutelasse direito individual homogêneo,
prolatasse sentença “líquida”. Isto é, quantificável por simples cálculo na
própria execução individual a ser iniciada por parte de cada ente
legitimado18. Esse posicionamento é revisto aqui.
Antes do regime do cumprimento da sentença, existiam em nosso
Judiciário execuções individuais de sentença coletiva, tratando de interesses
individuais homogêneos, iniciadas sem prévia liquidação: cada credor
ajuizava individualmente sua execução, apresentando, com a inicial, os
documentos que comprovassem sua titularidade e os cálculos traduzindo
em cifras o montante de seu direito19.
Apesar de procedimento tecnicamente incorreto, essa prática foi de
certo modo tolerada justamente porque os questionamentos em torno da
legitimidade do exeqüente e/ou do valor cobrado por meio da execução
eram sempre transferidos para a ação de embargos. Qualquer irregularidade
nesses segmentos poderia ser ali discutida e corrigida sem que a execução
tivesse prosseguimento. Ou, em outras palavras, sem que o valor depositado
WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença Civil: Liquidação e Cumprimento. 3.ed. São Paulo: RT, 2006, item
7.2.3, p.373.
19 Isso aconteceu no Paraná, na cidade de Curitiba, em ações civis públicas nas quais foi concedida
tutela coletiva condenando instituições financeiras ao ressarcimento das diferenças de correção
monetária nas aplicações de caderneta de poupança, geradas por planos econômicos na segunda
metade da década de 1980. Embora essas sentenças não individualizassem nem os valores e
tampouco seus beneficiários, entendeu-se que as execuções individuais dispensariam prévia
liquidação: cada interessado iniciaria a execução individual, apresentando-se como um dos
beneficiários da tutela e trazendo consigo, na própria inicial da execução, os demais elementos
que permitissem a quantificação de seu crédito.
Apesar da mudança do regime jurídico para execução das sentenças condenatórias, essa prática
tem sido mantida pelo Judiciário paranaense, o que nos parece, com o devido respeito e pelas
razões que expomos neste texto, algo incompatível com o atual regime do cumprimento de
sentença.
18
54
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em garantia do juízo fosse repassado às mãos daquele que se apresentou
como credor.
Como vimos linhas acima, isso mudou com o regime de execução
instituído pela Lei 11.232/2005 e os principais reflexos dessas alterações
também já foram apontados nos itens anteriores. A execução individual da
tutela coletiva não poderá ter início sem que ao menos o órgão judicial
certifique-se de que aquele que se apresenta como exeqüente é, realmente, o
titular do crédito assegurado na sentença e, também, que o valor postulado
em cobrança corresponde ao montante total do direito de crédito postulado.
Se essa postura era, por assim dizer, tolerável no regime anterior,
tornou-se incompatível com o procedimento instituído pela Lei 11.232/2005.
Relembremos que no novo regime o devedor é meramente intimado a
cumprir a obrigação, isto é, a pagá-la sob pena de multa. Mesmo após a
penhora ou, em outras palavras, mesmo após garantir a satisfação da
obrigação executada, o meio de reação de que dispõe não tem efeito
suspensivo, cuja atribuição fica ao inteiro alvedrio do órgão judicial. Ou seja,
prosseguindo-se a execução, a mesma será definitiva e os recursos
depositados/penhorados serão levados pelo credor.
A incompatibilidade (empírica e dogmática) está justamente aí: no
plano prático, é plenamente factível que sem o acertamento prévio
propiciado pela liquidação o sucumbente da ação coletiva fique à mercê de
falsos credores e/ou de créditos em valores equivocados, sem meios de
reação eficientes para defender-se; no jurídico, terá contra si iniciada
execução de sentença, cujo título não aponta o credor e tampouco essa falta
terá sido suprida por qualquer atividade prévia do juízo. Então, terá de
valer-se de sucedâneos de defesa, tais como a exceção de pré-executividade
ou o próprio mandado de segurança, para tentar evitar o prejuízo que lhe
traria o simples prosseguimento da execução nos termos programados pelo
novo regime.
É fenômeno notório que das deficiências do sistema (como ocorria
antes) ou de sua má aplicação (como parece estar ocorrendo agora)
inevitavelmente forjam-se alternativas com o objetivo de fazer frente a essas
distorções. A conseqüência disso, porém, é conhecida e sentida por todos
nós: a paulatina perda de operatividade do sistema em direção ao seu
engessamento.
Tratando-se de sentença condenatória genérica, mais do que nunca a
satisfação agora precisa ser antecedida, necessariamente, pela liquidação. Por meio
desse procedimento, o órgão judicial não apenas acertará o valor do crédito
55
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em si, mas, mais do que isso, estabelecerá o nexo de causalidade entre o
dano individualmente sofrido e a providência coletivamente tutelada.
Antes da Lei 11.232/2005, essa necessidade era minorada ou
obscurecida, no plano empírico, pela possibilidade que o credor tinha de
oferecer embargos com efeito suspensivo. O contraditório que, formalmente,
deveria ter sido instaurado e exaurido em prévia liquidação acabava sendo
transferido, na prática, para a ação de embargos. Agora isso não é mais
possível. O devedor deve cumprir a obrigação sob pena de multa e toda a
discussão a respeito da titularidade do crédito e/ou do montante da
obrigação não pode mais ser suscitada sem a suspensão automática da
execução.
Por isso, se antes era até admissível que se transferisse o contraditório
da liquidação da sentença para a ação de embargos do devedor, no atual
regime isso não é mais possível.
Na verdade, nossa maneira de enxergar o atual regime e a sugestão
que damos para operá-lo simplesmente se amolda com ainda mais precisão
àquilo que já orientava a jurisprudência do STJ (maio de 2006): “A despeito
de ser conhecida como um processo executivo, a ação em que se busca a
satisfação do direito declarado em sentença de ação civil coletiva não é propriamente
uma ação de execução típica. As sentenças proferidas no âmbito das ações
coletivas para tutela de direitos individuais homogêneos, por força de
expressa disposição do CDC (Lei 8.078/1990, art. 95), são condenatórias
genéricas. Nelas não se especifica o valor da condenação nem a identidade dos
titulares do direito subjetivo. A carga condenatória, por isso mesmo, é mais
limitada do que a que decorre das demais sentenças condenatórias. Sobressai
nelas a carga de declaração do dever de indenizar, transferindo-se para a
ação de cumprimento a carga cognitiva relacionada com o direito individual
de receber a indenização. Assim, a ação de cumprimento não se limita, como nas
execuções comuns, à efetivação do pagamento. Nelas se promove, além da liquidação
do valor se for o caso, o juízo sobre a titularidade do exeqüente em relação ao direito
material, para somente então se passar aos atos propriamente executivos”20,21 (g.n.).
20
21
STJ – Embargos de Divergência em REsp nº 691.563-RS, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 26.06.2006.
Esse posicionamento também é defendido, no plano doutrinário, por TEORI ALBINO ZAVASCKI
(Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. 2.ed. São Paulo: RT, 2007,
item 7.8.2, p.199), para quem a sentença condenatória do art. 95 do CDC “não tem eficácia
executiva. Para alcançá-la, terá de ser complementada por outra, da qual resultem identificados os
elementos faltantes da norma jurídica individualizada. Essa atividade de complementação se dá
em fase processual autônoma, denominada, em geral, de liquidação de sentença”.
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A opinião de SÉRGIO SHIMURA não é diferente da nossa. Manifestandose já sobre o regime instituído pela Lei 11.232/2005, observa que “tratandose de ação coletiva, relativamente à defesa de direitos individuais homogêneos, a
sentença será sempre genérica para permitir que cada lesado proceda à
liquidação dos danos experimentados (art. 95 do CDC)”22. Assim e da
perspectiva do título executivo, lembra que “sendo genérica, a decisão é
certa mas ilíquida” (g.n.). Portanto, conclui que no novo regime “a fase
executiva se dá mediante instauração de novo processo, com a liquidação
individual de cada lesado, seguindo-se o respectivo cumprimento da
sentença liquidanda”.
A partir de 24.06.2006, portanto, em nosso sentir, não há mais qualquer
espaço para se admitir que o cumprimento da sentença coletiva que
disponha sobre direitos individuais homogêneos aconteça sem prévia
liquidação, apenas com base na afirmação e nos cálculos daquele que se
apresenta como credor. Ou seja, o cumprimento dessa sentença, em nosso
sentir, não é compatível com o disposto no art. 475-B do CPC.
Para que o devedor possa ser instado a pagar a obrigação, sob pena de
multa, necessariamente o órgão judicial precisa acertar, em procedimento
prévio, a titularidade do credor e o valor a ser cobrado. Como a reforma
“desburocratizou” os procedimentos de liquidação disponibilizados pelo
sistema processual, tudo poderá ocorrer de maneira objetiva e expedita.
Ao receber o pedido do credor e como ainda não existem elementos
que autorizem o cumprimento da obrigação pela execução forçada,
determinará a intimação do advogado do devedor para que se manifeste a
respeito da titularidade do postulante e do valor do crédito pelo mesmo
pretendido (arts. 475-A, § 1º, e 475-E). Estabelecido e exercido o contraditório
em torno desses pontos, ambos serão resolvidos por meio de decisão
interlocutória (art. 475-H). Após esse acertamento, então aí sim estarão
reunidas as condições mínimas indispensáveis para execução: obrigação
líquida sendo exigida por credor individualizado (= certo) em relação ao
título executivo. Depois de intimado, ao devedor restará cumpri-la, sob pena
de multa, na forma do art. 475-J. No jargão constitucional, esse é o “devido
processo legal” para execução da sentença que dispõe sobre direitos
individuais homogêneos.
22
SHIMURA, Sérgio. A Execução da Sentença na Reforma de 2005. In: WAMBIER, Teresa Arruda
Alvim (Coord.). Aspectos Polêmicos da Nova Execução de Títulos Judiciais: Lei 11.232/05. São Paulo:
RT, 2006, v.3, p.580-582.
57
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Além desse, porém, outro fator, bem mais pragmático, ainda merece
ser considerado. Observado esse procedimento, pouco ou nada restará ao
devedor para resistir ao cumprimento da sentença. Mesmo que reaja por
meio da impugnação, serão muito excepcionais as hipóteses que poderão vir
a ser arroladas como aptas a paralisar essa execução. Na prática, respeitada a
prévia liquidação, fica esvaziada a própria possibilidade de reação do
devedor.
Caso contrário, porém, admitir-se a execução coletiva sem prévia
liquidação será o mesmo que se admitir seja o executado não apenas
submetido a cumprir condenação em favor de quem nem mesmo ainda teve
sua legitimidade certificada pelo órgão judicial e, o que é pior, para cobrança
de dívida cuja individualização do valor também não foi previamente
acertada. Na verdade, se terá de admitir ainda mais: que além dessa
incerteza em torno da legitimidade ativa e do valor cobrado, ao devedor
franqueie-se alternativa bastante precária para o exercício de sua defesa, já
que a suspensão dos atos executivos fica ao inteiro critério do órgão judicial.
9 – CONCLUSÃO
De tudo isso, por mais tentadora e até premente que possa se
apresentar a predisposição de interpretar as regras de execução de modo a
delas extrair o maior rendimento possível à satisfação dos interesses do
credor, deve ser tido como inafastável o princípio de que toda e qualquer
execução deve transcorrer da maneira menos gravosa para o devedor. No
cumprimento da sentença, seja individual ou coletiva, o prévio acertamento
do valor da obrigação quando esse realmente não se apresente quantificável
por simples operação aritmética representa, em nosso sentir, o mínimo
exigível para uma execução justa e equilibrada.
Pelo que expusemos acima, acreditamos que, no atual contexto, revelase indispensável buscar-se um (re)equilíbrio mais adequado entre liquidação
e execução, a partir do qual a própria atividade executiva não apenas
ganhará em eficiência como retomará mais do seu caráter verdadeiramente
excepcional, como, aliás, eficiente e excepcional deverá ser, sempre, o emprego
da força pelo Estado.
58
LIQUIDAÇÃO E CUMPRIMENTO
DA SENTENÇA
M ARIÂNGELA G UERREIRO M ILHORANZA *
Sumário: Breve escorço introdutório; 1 – Liquidação da sentença;
2 – Do cumprimento da sentença e da impugnação; 2.1 Da
(des)necessidade de intimação pessoal do devedor para
cumprimento da sentença no prazo de 15 dias nas execuções
alicerçadas em título executivo judicial; 2.1.1 Do termo a quo para
a contagem do prazo de 15 dias para a incidência da multa de
10% a que alude o artigo 475-J; 2.2 Da execução provisória; 3 –
Dos honorários advocatícios no cumprimento da sentença; 4 –
Considerações finais.
B REVE E SCORÇO I NTRODUTÓRIO
Em apertada síntese, a Lei nº 11.232/2005 trata, especialmente, do
cumprimento da sentença que condena o devedor ao pagamento de quantia.
A inserção da fase do cumprimento da sentença, dentro do processo de
conhecimento, traz à tona a assertiva de ARAKEN DE ASSIS1 de que há
falsidade na rígida tripartição das funções – cognição, execução e cautelar –
em estruturas autônomas e separadas, dizendo, ainda, que em todo processo
haverá cognição, uma vez que, sem cognição, o Poder Judiciário não teria
como atingir seus objetivos. Nesse ponto, diz BARBOSA MOREIRA2:
Mestre em Direito Processual Civil pela PUCRS. Especialista em Direito Processual Civil pela
PUCRS. Advogada em Porto Alegre/RS. Coordenadora Editorial da Editora Notadez. Professora
da ULBRA.
1
ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.6.
2
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Cumprimento” e “Execução” de sentença: necessidade de
esclarecimentos conceituais. Revista Jurídica, n.346, p.11, ago. 2006.
*
59
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“Convicção assente nos meios jurídicos é a de que a novidade
capital introduzida pela Lei nº 11.232, de 02.11.2005, consiste na
junção das atividades jurisdicionais cognitiva e executiva,
eliminando-se a diferenciação formal entre o processo de
conhecimento e o processo de execução, ressalvadas as hipóteses
do art. 475-N, parágrafo único, do Código de Processo Civil e a de
ser devedora a Fazenda Pública.”
Destarte, mesmo que inexistente, na prática, essa divisão das funções
jurisdicionais, não poderia o legislador elaborar um projeto de lei em que
não fossem previstas regras gerais aplicáveis a todas as funções
jurisdicionais. Com efeito, diversamente, as reformas trazidas rechaçaram a
arquitetura inicial do Código de Processo Civil, pois como a lei não prevê
uma parte geral de regras aplicáveis às funções jurisdicionais previstas no
diploma legal, acabou-se por dissolver regras comuns no Livro do Processo
de Conhecimento3. A bem da verdade, observa-se que a Lei nº 11.232/2005
dá lugar a um processo de natureza mesclada: junto à cognição efetiva-se o
julgado4. Nesse mesmo sentido, ADA PELLEGRINI GRINOVER5 atesta que “a
efetivação dos preceitos contidos em qualquer sentença civil condenatória se
realizará em prosseguimento ao mesmo processo em que for proferida”.
A Lei nº 11.232/2005, criada com o intuito de trazer agilidade à práxis
hodierna e, especialmente, à execução de título executivo judicial, acabou
por trazer inúmeros problemas tanto de ordem prática quanto de ordem
doutrinária6. Tendo em vista a existência de inúmeras questões suscetíveis de
dúvidas, por razões metodológicas, optou-se por examinar, neste tópico,
cada uma dessas questões em itens diferenciados.
ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3.
MITIDIERO, Daniel Francisco. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução:
Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3.
5
GRINOVER, Ada Pellegrini. Cumprimento da sentença. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes. Execução Civil
e Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006, p.19.
6
OVÍDIO enxerga avanços com o advento da Lei nº 11.232/2005. Diz o autor que a maior virtude da
lei em comento é que: “A partir de agora, todas as sentenças – ressalvada a indicada exceção – ou
serão execuções reais, quando digam respeito a pretensões à entrega de coisa certa, ou serão
preponderantemente mandamentais; quando não, em certas hipóteses, igualmente execuções
reais, as pretensões que digam respeito ao cumprimento das obrigações de fazer ou não fazer,
segundo o prevê o § 5º do art. 461. Aproximamo-nos, portanto, das formas peculiares à tutela
interdital. Este, a nosso ver, é um ganho expressivo no caminho da publicização do direito
processual civil”. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. Sentença condenatória na Lei 11.232. Revista
Jurídica, n.345, p.20, jul. 2006.
3
4
60
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1 – LIQUIDAÇÃO DA SENTENÇA
A partir do advento da Lei nº 11.232/2005, é vedada a prolação de
sentença ilíquida concernentemente às ações de procedimento comum
sumário previstas no artigo 275, II, alíneas d e e, do Código de Processo Civil,
ou seja, a lei veda a prolação de sentença ilíquida concernentemente às ações
de indenização por danos causados em acidente de veículo de via terrestre e
às ações de cobrança de seguro relativas aos danos causados em acidente de
veículo, exigindo, portanto, que o juiz, se necessário, fixe de plano o valor
devido conforme preceitua o artigo 475-A, § 3º. Segundo ensina TESHEINER7:
“Deve-se, porém, repudiar a idéia de que a prolação de sentença
ilíquida gere nulidade, o que viria em prejuízo de quem sofreu o
dano, exatamente a parte a quem a Lei quer favorecer; a omissão da
sentença pode ser suprida, por arbitramento judicial, a qualquer
tempo, para fins de execução.”
Nas hipóteses em que houver a necessidade de liquidação, a mesma
pode ser realizada na pendência de recurso8 e, nesse caso, a liquidação será
processada em autos apartados, cabendo ao liquidante instruir o pedido de
liquidação com cópias das peças processuais pertinentes, uma vez que os
autos originais são remetidos ao tribunal, segundo dispõe o artigo 475-A, §
2º. Em que pese a liquidação de sentença ser processada em autos apartados,
a mesma não constitui novo processo, razão pela qual não se procede à
citação pessoal do requerido, mas sim à intimação da parte na pessoa de seu
advogado (art. 475-A, § 1º). Aliás, mister frisar que nem a liquidação por
artigos constitui novo processo.
Pois bem, quando a determinação do valor a ser liquidado depender
apenas de simples cálculo aritmético, ou seja, em não sendo hipótese de
liquidação por artigos ou por arbitramento, cabe ao próprio credor
providenciar o cálculo e o anexar apresentando memória discriminada e
atualizada do cálculo em comento. Todavia, se, porventura, a elaboração da
memória do cálculo depender de dados existentes em poder ou do devedor
ou ainda de terceiros, o juiz, mediante requerimento expresso do credor,
7
8
TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença – Regime introduzido pela Lei 11.232/2005.
Revista Jurídica, n.343, p.18-19, maio 2006.
Nesse sentido, os magistérios de GUILHERME RIZZO AMARAL e DAISSON FLACH. AMARAL,
Guilherme Rizzo. Estudos de Direito Intertemporal e Processo. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p.25; FLACH, Daisson. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução:
Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.48.
61
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poderá requisitá-los, fixando, ainda, prazo de 30 dias para que se cumpra a
diligência. Contudo, se o devedor não apresentar os dados requeridos pelo
juiz, reputar-se-á correto o cálculo apresentado pelo credor: artigo 475-B, §§
1º e 2º.
De igual forma, poderá o juiz determinar que o contador judicial
proceda ao cálculo, em lugar do credor, em duas hipóteses distintas: a)
quando a memória apresentada pelo credor, aparentemente, exceder os
limites da decisão exeqüenda; b) nos casos de assistência judiciária, bem
como se desconfiar do que foi por ele apresentado, conforme preleciona o
artigo 475-B, § 3º. Destarte, se o credor discordar com o cálculo apresentado
pelo contador do juízo, proceder-se-á à execução pelo valor por ele
pretendido, mas a penhora terá por baliza o valor apontado pelo contador:
art. 475-B, § 4º.
No que tange à liquidação por arbitramento, far-se-á esta em duas
hipóteses legais: I – quando determinado pela sentença ou convencionado
pelas partes ou II – quando assim o exigir a natureza do objeto posto em
causa na liquidação: art. 475-C. Após apresentado o laudo pelo perito
nomeado pelo juiz, caberá às partes manifestar-se no prazo de dez dias,
sobrevirá a decisão judicial ou, ainda, se necessário, haverá a designação de
audiência: art. 475-D, parágrafo único. Desta decisão judicial, por tratar-se de
decisão de mérito, cabe agravo de instrumento9.
Já a liquidação por artigos ocorrerá naquelas hipóteses em que houver
a necessidade de alegar e provar fato novo: art. 475-E. Mas o que é fato
novo? Leciona ANTONIO CARLOS MATTEIS DE ARRUDA que fato novo “é
aquele que resulta da obrigação e que não foi objeto de iudicium no
provimento sob liquidação, ou, então, que surgiu durante ou após a
demanda condenatória”. Por expressa determinação legal, a liquidação por
artigos é regida pelo procedimento comum, art. 475-F, sendo o prazo para a
resposta de 15 dias a contar da data da intimação da parte adversa na pessoa
do seu advogado, ou com citação pessoal, se caso for, sendo expressamente
vedada, em sede de liquidação por artigos, a rediscussão da lide ou, ainda, a
modificação da sentença que a julgou: art. 475-G; tal ressalva deixa clara a
preocupação do legislador em preservar a autoridade da coisa julgada. A
decisão do julgamento da liquidação por artigos tecnicamente é a sentença,
9
Segundo entendimento de TESHEINER. TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença –
Regime introduzido pela Lei 11.232/2005. Revista Jurídica, n.343, p.19, maio 2006.
62
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mas o recurso cabível é o de agravo de instrumento, por expressa previsão
legal, conforme prevê o artigo 475-H.
2 – DO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA E DA IMPUGNAÇÃO
Atualmente, há duas diferentes sistemáticas para o cumprimento da
sentença: o cumprimento da sentença tanto pode se dar por força dos artigos
461 e 461-A do Código de Processo Civil, em se tratando de obrigação de
fazer, obrigação de não fazer e obrigação de entrega de coisa; tanto pelos
artigos 475-J, 475-L e 475-M, quando a obrigação for de pagar quantia.
Porém, pode ocorrer que existam casos em que seja possível o cabimento das
duas formas de execução, como, por exemplo, nos casos de crédito por
alimentos, onde é admitida tanto a prisão do devedor quanto a penhora.
Nas obrigações de fazer, não fazer e de entrega de coisa, foi rechaçado
o processo de execução autônomo no que toca a títulos executivos judiciais.
A efetivação do julgado se dá por conta do que determinam os artigos 461 e
461-A do Código de Processo Civil. Após a condenação do réu, é expedido
mandado para o cumprimento da ordem, sendo, ainda, cominada multa
diária. Almeja-se a efetivação da tutela específica ou a obtenção de
resultados práticos equivalentes, e, nesse intuito, diferentes medidas podem
ser adotadas como, e.g., a remoção de pessoas e coisas, desfazimento de
obras, impedimento de atividade nociva. Relativamente à multa, a questão
discutida diz respeito “ao momento em que o crédito resultante da
incidência da multa – seja ela fixada em antecipação de tutela, seja em
sentença ou acórdão – passa a ser exigível”10. Para GUILHERME RIZZO
AMARAL11, entendimento com o qual se faz coro, a execução do crédito
decorrente da incidência de multa, em caráter provisório, deve ocorrer a
partir da sentença de procedência até o seu trânsito em julgado
“após o que a execução passará a ter caráter definitivo, o que
não significa que o valor em execução não possa vir a ser reduzido
ou até mesmo suprimido, dado o caráter acessórios das astreintes e
o fato de as mesmas não ficarem cobertas pelo manto da coisa
julgada”.
AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução:
Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.84.
11 AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (org.). A nova execução:
Comentários à Lei nº 11.232, de 22 de Novembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.87.
10
63
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Já no cumprimento da sentença por força dos artigos 475-J, 475-L e
475-M, quando a determinação do valor da condenação depender apenas de
cálculo aritmético, tal cálculo pode ser efetuado tanto pelo credor quanto
pelo devedor, havendo, inclusive, casos em que este é quem detém os dados
necessários para efetuá-lo, motivo por que não há que se subordinar o início
do prazo à apresentação de cálculo pelo vencedor. Quanto à impugnação,
calha referir que a mesma substitui os antigos embargos do devedor. A
impugnação é uma forma de defesa que o devedor deve utilizar para
contrapor-se ao requerimento executivo. Quanto à natureza jurídica, a
impugnação não é um instrumento de defesa por via de exceção12, mas sim
uma ação incidental13 de oposição à execução similar aos antigos embargos à
execução de sentença14, oportunidade em que “o executado veicula por ação
sua reação contra a execução”15.
A impugnação16 somente poderá versar sobre as matérias elencadas
nos incisos do artigo 475-L, ou seja, somente versará sobre: falta ou nulidade
da citação caso o processo tenha corrido à revelia; inexigibilidade do título;
penhora incorreta ou avaliação errônea; ilegitimidade das partes; excesso de
execução; qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação,
Em sentido contrário, entendendo que a impugnação constitui instrumento de defesa (exceção),
ver, por todos, WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel
Garcia. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil – 2. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2006, p.151; CÂMARA, Alexandre Freitas. A nova execução de sentença. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, p.125; SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de 2005 do Código de Processo Civil. São Paulo:
Saraiva, 2006, p.60; DIDIER JUNIOR, Fredie. Impugnação do Executado (Lei Federal nº
11.232/2005). Revista Jurídica, n.354, p.31, abr. 2007.
13 No tópico, assevera VANDERLEI ARCANJO DA SILVA que a impugnação vem a ser “decisão
interlocutória apta a permitir o prosseguimento da fase executiva, o que, de acordo com as lições
acima mencionadas, atribui a ela a natureza de mero incidente”. SILVA, Vanderlei Arcanjo da.
Impugnação ao cumprimento da sentença: controvérsias e repercussões. Revista Jurídica, n.355,
p.75-76, maio 2007.
14 Nesse sentido, ver por todos, ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p.314; ARRUDA ALVIM, José Manoel de. A natureza jurídica da impugnação prevista na Lei
11.232/2005 – A impugnação do devedor instaura uma ação incidental, proporcionando o
exercício do contraditório pelo credor; exige decisão, que ficará revestida pela autoridade de coisa
julgada. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos da nova execução 3 – de títulos
judiciais – Lei 11.232/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.44-50.
15 ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.314.
16 Para LUIZ GUILHERME AIDAR BONDIOLI, tanto a impugnação quanto os embargos à execução
funcionam como “mecanismo de controle da nulidade dos atos processuais”. Assevera, ainda, o
autor que o controle de nulidade fulcrado no inciso I do artigo 475-L do Código de Processo Civil
“tem aptidão para a desconstituição do título executivo judicial, o que lhe atribui função
rescindente e o aproxima da ação rescisória”. BONDIOLI, Luiz Guilherme Aidar. Nulidades
processuais e mecanismos de controle. Revista de Processo, n.145, p.45-47, mar. 2007.
12
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como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde
que superveniente à sentença. A impugnação não tem efeito suspensivo,
pode anteceder a penhora e a decisão da impugnação, por força legislativa,
será atacável via agravo de instrumento, salvo quando importar extinção da
execução, caso em que caberá apelação.
2.1 Da (Des)Necessidade de Intimação Pessoal do Devedor para
Cumprimento da Sentença no Prazo de 15 Dias nas Execuções
Alicerçadas em Título Executivo Judicial
Uma das questões que mais têm suscitado o salutar debate acadêmico
concerne à (des)necessidade de intimação pessoal do réu para o
cumprimento voluntário da sentença que o condene ao pagamento de
quantia17, no caso do artigo 475-J do CPC. Concernentemente à necessidade
ou não de intimação pessoal do réu para o cumprimento voluntário da
sentença, houve uma omissão18 legislativa e, tendo em vista tal omissão, a
doutrina dividiu-se em duas grandes correntes. Por um lado, a corrente
encabeçada por LUIS WAMBIER, TERESA WAMBIER, JOSE MEDINA19 e LUIZ
MANOEL GOMES JUNIOR20 defende que é imprescindível a intimação pessoal
do devedor para que se inicie a contagem do prazo de 15 dias a que se refere
Nesse particular, LUIZ WAMBIER entende que: “A primeira alteração estrutural relevante,
decorrente do art. 475-J do CPC, está na eliminação da separação entre processo de conhecimento
e de execução, já que as atividades voltadas à condenação e à execução passam a ocorrer no
mesmo processo. Na verdade, o novo art. 475-J do CPC corrigiu anomalia que havia no sistema
processual civil brasileiro. (...) A regra do art. 475-J do CPC, assim, ao unificar
procedimentalmente as ações condenatória e de execução, encontra-se em sintonia com as
modificações processuais realizadas na última década”. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Algumas
considerações sobre o cumprimento da sentença que determina o pagamento de quantia em
dinheiro, de acordo com a Lei nº 11.232/05. Revista Jurídica, n.343, p.12-13, maio 2006.
18 A existência de omissão legislativa, no tópico em tela, também é o entendimento defendido por
ANA LAURA GONZÁLEZ POITTEVIN e VIVIAN RIGO. A multa no cumprimento da sentença e outros
aspectos da Lei nº 11.232/05. In: MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto;
TESHEINER, José Maria Rosa (Coords.). Instrumentos de Coerção e outros temas de direito processual
civil – estudos em homenagem aos 25 anos de docência do Professor Dr. Araken de Assis. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, no prelo.
19 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves
Comentários à Nova Sistemática Processual Civil – 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.141 e
ss.; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia.
Sobre a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art.
475-J do CPC (inserido pela Lei 11.232/2005). Disponível em: <http://w w w . t e x . p r o . b r >.
Acesso em: 10 jul. 2006.
20 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Cumprimento de decisão judicial que fixou a multa. In: BRUSCHI,
Gilberto Gomes. Execução Civil e Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006, p.339.
17
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o artigo 475-J do Código de Processo Civil. De outro lado, a corrente
encabeçada por ERNANE FIDELIS DOS SANTOS21 e GUILHERME RIZZO22 defende
que basta a intimação do procurador para que se inicie a contagem do prazo
de 15 dias a que se refere o artigo 475-J do Código de Processo Civil. Vamos
examinar a cinca.
Intimar, segundo PONTES DE MIRANDA23, “é fazer saber, comunicar”.
Nesse mesmo viés, THEODORO JÚNIOR24 ensina que a intimação dos atos
processuais tem duplo objetivo, ou seja, o primeiro objetivo é “o de dar
ciência de um ato ou termo processual” e o segundo objetivo é “o de
convocar a parte a fazer ou abster-se de fazer alguma coisa”. Ainda segundo
THEODORO JÚNIOR, “é da intimação que começam a fluir os prazos para que
as partes exerçam os direitos e faculdades processuais”. Já MITIDIERO25, por
seu turno, entende que “o objeto da intimação é dar ciência a alguém dos
atos e termos do processo”. Seja como for, o importante é destacar que o
prazo de 15 dias, para que o condenado cumpra, voluntariamente, os termos
da condenação deve ser contado de acordo com o que preceitua o artigo 184
do Código de Processo Civil, ou seja, exclui-se o dia do início e inclui-se o dia
do fim.
LUIZ WAMBIER, TERESA WAMBIER, JOSÉ MEDINA e GOMES JUNIOR
defendem a necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da
sentença que condene ao pagamento de quantia. Logo, para tais
doutrinadores, a intimação deve ocorrer na pessoa do réu e não mediante
seu advogado, uma vez que o caráter coercitivo da multa a que aduz o artigo
475-J poderia ser ineficaz caso a intimação fosse dirigida ao advogado e não
à parte26,27. De fato, não se olvida que existam atos processuais cuja intimação
SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reforma de 2005 do Código de Processo Civil: execução dos títulos
judiciais e agravo de instrumento. São Paulo: Saraiva, 2006, p.54.
22 AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro. (Coord.). A nova execução:
comentários à Lei n° 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.92 e ss.
23 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1974, t.III, p.297.
24 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 20.ed. Rio de Janeiro: Forense,
1997, v.I, p.269.
25 MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica,
2005, t.II, p.358.
26 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre a
necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J
do CPC (inserido pela Lei 11.232/2005). Disponível em: <www.tex.pro.br>. Acesso em: 10 jul.
2006.
21
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na pessoa do advogado não se justifica, uma vez que tais atos processuais
devem ser praticados pela própria parte. Nesse ínterim, LUIZ MARINONI e
SÉRGIO CRUZ ARENHART28 defendem que diante da prática de atos
personalíssimos da parte a via adequada é a da intimação pessoal e direta da
parte e não de seu advogado. Ora, se o cumprimento da obrigação não é ato
cuja realização dependa de advogado, mas sim de comportamento
personalíssimo da parte; o ato de cumprimento ou descumprimento do
dever jurídico é algo que unicamente será exigido da parte, e não de seu
procurador, sendo esta, portanto, a hipótese prevista no art. 475-J, caput, do
Código de Processo Civil29, segundo o entendimento de LUIZ WAMBIER,
TERESA WAMBIER e JOSÉ MEDINA30.
Para a corrente doutrinária encabeçada por ERNANE DOS SANTOS e
GUILHERME RIZZO, inexiste a necessidade de intimação pessoal do réu para o
cumprimento da sentença que condene ao pagamento de quantia. Portanto,
para esta corrente, intimadas as partes, mediante seus procuradores, ocorre a
abertura do prazo de 15 dias a que se refere o artigo 475-J do Código de
Processo Civil. Assim, uma vez que o devedor já foi chamado a juízo durante
a fase de cognição, torna-se obsoleta nova citação na fase de cumprimento da
sentença, bastando, portanto, a intimação do devedor em nome de seu
advogado. GUILHERME RIZZO31 ensina que a condenação da parte
sucumbente, que, a partir de então, passa a ser retratada como devedora,
pode se dar tanto na sentença de 1º grau quanto nas decisões subseqüentes,
sendo que o artigo 475-J não faz propalada referência ao trânsito em julgado
de tais decisões. Nesse passo, enquanto não transitar em julgado a sentença
GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Cumprimento de decisão judicial que fixou a multa. In: BRUSCHI,
Gilberto Gomes. Execução Civil e Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006, p.339.
28 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 2.ed.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.132.
29 BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários
sistemáticos às Leis nºs 11.187, de 19.10.2005, e 11.232, de 22.12.2005. São Paulo: Saraiva, 2006, v.I,
p.73.
30 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Sobre a
necessidade de intimação pessoal do réu para o cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J
do CPC (inserido pela Lei 11.232/2005). Disponível em: <http://w w w . t e x . p r o . b r >. Acesso
em: 10 jul. 2006.
31 AMARAL, Guilherme Rizzo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro (Coordenador). A nova execução:
comentários à Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.92 e ss.;
AMARAL, Guilherme Rizzo. Sobre a desnecessidade de intimação pessoal do réu para o
cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC. Disponível em:
<http://w w w . t e x . p r o . b r >. Acesso em: 10 jul. 2006.
27
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ou acórdão, o cumprimento voluntário só se dará por provocação do credor
e intimação específica do devedor, caso em que estará diante da hipótese de
cumprimento provisório da sentença. Ademais, conforme bem observa o
autor32, o dispositivo ora objeto de análise não informa a necessidade de
intimação específica para cumprimento voluntário da sentença, fazendo,
unicamente, menção no que tange à “condenação” do devedor e seu
eventual descumprimento. Pois bem, ocorrendo o trânsito em julgado da
sentença (ou do acórdão), diz GUILHERME RIZZO ser desnecessária a
intimação do devedor para cumpri-la, bastando a simples ocorrência do
trânsito em julgado para que se inicie o prazo de 15 dias para o cumprimento
voluntário.
No mesmo sentido, afirma THEODORO JÚNIOR que o devedor deve
cumprir a obrigação no prazo legal, com o intuito de evitar a multa de 10%, a
qual independe de citação ou intimação do executado33. ERNANE DOS
SANTOS34 entende que o prazo de 15 dias somente tem início com o trânsito
em julgado da decisão, ainda que esta seja impugnada por recurso que não
tenha efeito suspensivo, sendo desnecessária a intimação pessoal do
devedor35. Após examinarmos as duas correntes em seus diversos
argumentos e pontos de vista, sustenta-se a desnecessidade de intimação
pessoal do devedor para o cumprimento voluntário da sentença que
condene ao pagamento de quantia. Inclusive, hodiernamente, o devedor
dispõe de 15 dias, a contar do trânsito em julgado, para pagar, e somente
AMARAL, Guilherme Rizzo. Sobre a desnecessidade de intimação pessoal do réu para o
cumprimento da sentença, no caso do art. 475-J do CPC. Disponível em:
<http://w w w . t e x . p r o . b r >. Acesso em: 10 jul. 2006.
33 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 39.ed. Rio de Janeiro: Forense,
2006, v.II, p.51.
34 SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reformas de 2005 do Código de Processo Civil: execução dos títulos
judiciais e agravo de instrumento. São Paulo: Saraiva, 2006, n.28, p.56.
35 No tópico, assevera TESHEINER: “O trânsito em julgado ocorrerá, na maioria dos casos, em outra
instância, motivo por que se poderia sustentar que o termo inicial do prazo fixado para
pagamento seria o da intimação do despacho de ‘cumpra-se’, quando do retorno dos autos. Mas
isso implicaria a concessão de um prazo, que pode estender-se por vários meses, a um devedor já
condenado porque deve e porque em mora. Note-se que não se trata de depósito, que deva ser
autorizado pelo juiz, mas de pagamento, que independe de autos. Nos casos em que a falta deles
torne difícil, para o devedor, a elaboração de um cálculo mais exato, resta-lhe a solução de efetuar
pagamento parcial, caso em que a multa de dez por cento incidirá sobre o saldo (artigo 475-J, §4°).
Essa dificuldade, acaso existente, será, na maioria dos casos, imputável à desídia do próprio
devedor, que não se muniu de cópias necessárias de atos do processo. Excepcionalmente, a multa
poderá ser relevada, em caso de provimento parcial do recurso, em termos tais que o cálculo se
torne impossível sem consulta aos autos”. TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença –
Regime introduzido pela Lei 11.232/2005. Revista Jurídica, n.343, p.22, maio 2006.
32
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após o decurso deste prazo é que incidirá a multa de 10%36. No que toca à
jurisprudência, existem entendimentos nos mais diversos sentidos:
“Processual Civil – Agravo no Agravo de Instrumento – Recurso
Especial – Art. 475-J do CPC – Intimação do Devedor na Pessoa de
Seu Patrono – Ausência de Negativa de Prestação Jurisdicional –
Ausência de Prequestionamento – Fundamentação Deficiente – Acórdão
Recorrido em Consonância Com a Jurisprudência do STJ – Dissídio Não
Demonstrado – Rejeitam-se corretamente os embargos declaratórios
se ausentes os requisitos da omissão, contradição ou obscuridade.
O prequestionamento dos dispositivos legais tidos por violados
constitui requisito específico de admissibilidade do recurso
especial. Não se conhece do recurso especial na parte em que se
encontra deficientemente fundamentado. Não se conhece do
recurso especial quando o acórdão recorrido está em consonância
com a jurisprudência do STJ. Súmula 83/STJ. A comprovação do
dissídio jurisprudencial requer o confronto analítico a evidenciar a
similitude fática entre o acórdão recorrido e o julgado paradigma.
Agravo no agravo de instrumento não provido” (STJ – AgRg-Ag
965.762 – RJ – 3ª T. – Relª Min. Nancy Andrighi – DJ 30.04.2008)
(grifo nosso).
“Processual Civil – Cumprimento de Sentença – Art. 475-J do CPC –
Intimação – Quando se tratar de satisfação de título executivo judicial, o
art. 475-J do CPC compromete pessoalmente o sucumbente ao
cumprimento da sentença em 15 dias, sob pena de multa. Assiste,
portanto, razão aos agravantes no que alegam ter sido
indevidamente dirigida a intimação, ademais porque, não bastasse
a literal disposição da nova lei, a satisfação do crédito pelo próprio
36
ELAINE MACEDO aduz que esta última reforma do Código de Processo Civil, no que toca à multa
do artigo 475-J, “vem no sentido de agravar a situação do credor. Pois pela lei velha (a
reformada), decorrido o prazo de quinze dias, isto é, trânsita a sentença em julgado
(desimportando se esse trânsito ocorresse em primeiro grau ou depois do julgamento em sede de
apelo, mas no decurso dos primeiros quinze dias após o respectivo julgamento), o credor podia,
desde logo, no 16º dia, promover a execução, requerendo a citação do devedor para pagar no
prazo de 24 horas, pena de penhora. Em suma, 15 dias até o trânsito e mais 24 horas. Com a
reforma, 15 dias até o trânsito, mais 15 dias (com ou sem intimação conforme o entendimento
doutrinário das duas posições, e, no futuro próximo, jurisprudencial) para cumprimento
espontâneo e só depois expedição de mandado de penhora e avaliação”. MACEDO, Elaine
Harzheim. O cumprimento da sentença e a multa do art. 475-J do CPC sob uma leitura
constitucional da Lei nº 11.232/05. Revista da Ajuris, n.104, p.88, dez. 2006.
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devedor visa a acelerar o cumprimento da tutela jurisdicional (TRF
2ª R. – Ag 2007.02.01.006270-3 – 7ª T. – Rel. Desemb. Fed. Sergio
Schwaitzer – DJ 21.07.2008) (grifo nosso).
“Sentença – Cumprimento – Ação de Cobrança – Indeferimento do
pedido de intimação da executada para pagamento do débito, em
atendimento ao disposto no artigo 475-J do CPC. Procedida a
penhora e elaborado o auto respectivo pelo oficial de justiça, será o
executado intimado, de imediato, na pessoa de seu advogado, nos termos do
artigo 475, “J”, § 1º, do CPC. Na falta de advogado, será intimado o
representante legal, ou ele próprio pessoalmente, consoante estabelecido
pelo dispositivo sob análise. Aplicação da Lei nº 11.232/2005 ao
processo, pois o cumprimento da sentença teve início durante sua
vigência. Aberta a fase de cumprimento da sentença, nada impedia
o pagamento da verba devida, posto que decorrente da
improcedência da ação. Possibilidade de incidência da multa, como
conseqüência do inadimplemento. Recurso desprovido” (TJSP – AI
7.101.585-1 – Araraquara – 15ª CDPriv. – Rel. Desemb. Manoel
Mattos – DJ 27.03.2007) (grifo nosso).
Enfim, após criterioso exame tanto jurisprudencial quanto doutrinário,
calha referir que defender a posição de necessidade de intimação pessoal do
réu para cumprir voluntariamente a sentença transitada em julgado não
apenas acarreta em má resolução do conflito entre efetividade, celeridade e,
principalmente, segurança jurídica como, também, acarreta retrocesso
processual e de nada, portanto, teria adiantado a reforma trazida pela Lei nº
11.232/2005.
2.1.1 Do termo a quo para a contagem do prazo de 15 dias para a
incidência da multa de 10% a que alude o artigo 475-J
As dificuldades doutrinárias aos operadores do direito trazidas pela
Lei nº 11.232/2005 estão longe de acabar, pois se, por um lado, há embaraços
em determinar a (des)necessidade de intimação pessoal do réu para o
cumprimento da sentença que condene ao pagamento de quantia, por outro
lado, há, ainda, o embaraço de determinar o início da contagem do prazo de
15 dias para a incidência da multa de 10%, deixando, assim, novamente,
omissa a legislação, o que nos faz concordar, de plano, com as felizes
70
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palavras de ANA LAURA GONZÁLES POITTEVIN e VIVIAN RIGO37, que ensinam
que tal omissão deu “margem a que vozes ecoassem nos mais diversos
tons”. Aliás, JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER38 há muito apontou o
desencadeamento de controvérsia na doutrina quanto ao termo a quo do
prazo de 15 dias. LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART39,
com propriedade, assim sumulam a questão telada: “O art. 475-J não diz a
partir de quando deve ser contado o prazo para o pagamento voluntário da
quantia fixada na condenação. Limita-se a dizer que, não efetuado o
pagamento no prazo de 15 dias, o valor da condenação deve ser acrescido da
multa de 10%. Na verdade, como a regra não esclarece quando tem início o
cômputo do prazo de 15 dias, também não se tem por certo o instante em
que a multa deverá incidir”.
ARAKEN DE ASSIS40, por exemplo, defende que existe um lapso de
espera de 15 dias, contados da data em que a condenação se tornou exigível,
e que, após findar tal prazo de 15 dias, a multa de 10% é aplicada
automaticamente. Para o autor, a multa incide tanto nos casos de decisão
com trânsito em julgado como nos casos em que exista pendência de
julgamento de recurso sem efeito suspensivo. De outra banda, de acordo
com o magistério de SCARPINELLA BUENO41, se houve a interposição de
recurso, o lapso inicial do prazo em questão terá início somente após a
intimação das partes acerca da baixa dos autos, bastando, inclusive, que a
intimação se dê na pessoa dos advogados das partes em questão.
Destarte, em verdade, o termo a quo para a contagem do prazo de 15
dias tem início a partir do momento em que a sentença se torna exeqüível,
seja porque transitou em julgado, seja porque impugnada por recurso
destituído de efeito suspensivo, fazendo-se coro, portanto, com os
POITTEVIN, Ana Laura González; RIGO, Vivian. A multa no cumprimento da sentença e outros
aspectos da Lei nº 11.232/05. In: MILHORANZA, Mariângela Guerreiro; PORTO, Sérgio Gilberto;
TESHEINER, José Maria Rosa (Coord.). Instrumentos de Coerção e outros temas de direito processual civil
– estudos em homenagem aos 25 anos de docência do Professor Dr. Araken de Assis. Rio de Janeiro:
Forense, 2007, p.24.
38 TESHEINER, José Maria Rosa. Execução de Sentença – Regime introduzido pela Lei 11.232/2005.
Revista Jurídica, n.343, p.21, maio 2006.
39 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil – Execução. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, v.3, p.238.
40 Assis, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 212.
41 Bueno, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil: comentários
sistemáticos às Leis nºs 11.187, de 19.10.2005, e 11.232, de 22.12.2005. São Paulo: Saraiva, 2006, p.78.
37
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ensinamentos de ARAKEN DE ASSIS42 e ATHOS CARNEIRO43. A jurisprudência,
por seu turno, não está pacificada, existindo, portanto, decisões nos mais
diversos sentidos, conforme arestos a seguir colacionados:
“Agravo de Instrumento – Cumprimento de Sentença – Auto de
Penhora – Intimação – Necessidade – Conforme disposto no art. 475-J, §
1º, do CPC, o prazo de 15 dias para apresentação de impugnação pela parte
executada começa a fluir da intimação do auto de penhora. Recurso
provido” (Agravo de Instrumento nº 70019294776, 2ª Câmara
Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relatora: Catarina Rita
Krieger Martins, Julgado em 03.07.2007) (grifo nosso).
“Agravo de Instrumento – Cumprimento de Sentença – Pagamento do
Valor Devido pelo Executado – Diferença Apontada pelo Credor –
Penhora Online – Decisão que determinou a expedição de mandado de
pagamento sem dar ciência ao devedor do auto de penhora, a fim de marcar
o início do lapso temporal para oferecimento de impugnação. Malferida a
regra prevista no artigo 475-J, § 1°, do CPC, a decisão merece reforma.
Provimento do recurso” (TJRJ – Agravo de Instrumento
2007.002.04666 – 5ª Câmara Civel – Rel. Desemb. Roberto Wider – J.
12.06.2007) (grifo nosso).
Execução de Sentença – Lei 11.232/05 – Art. 475-J do CPC – Termo
Inicial do Prazo Para Cumprimento da Sentença – 1. Ainda que não
expresso no art. 475-J do CPC, o termo inicial para cômputo do prazo de
15 dias, ali estabelecido, para cumprimento voluntário da obrigação
decorrente de sentença, é a intimação da parte, através de seu patrono e
pela imprensa oficial, da decisão que contenha condenação líquida e certa –
descontado apenas o prazo recursal, se a decisão for passível de recurso que
suspenda sua executividade. 2. Exigir a intimação pessoal do devedor
para cumprimento da obrigação não é interpretação que se extrai
da Lei 11.232/05, cujo intuito foi justamente conferir maior
coercitividade, efetividade e celeridade à execução de sentença.
Recurso que se nega seguimento” (TJRJ – AI 2007.002.02413 – 16ª C.
Cív. – Rel. Desemb. Marcos Alcino A. Torres – J. 03.05.2007).
Divergências jurisprudenciais à parte, em verdade, ocorrendo o
trânsito em julgado da sentença ou do acórdão (independentemente de
42 Assis, Araken de. Cumprimento de Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.212.
43 Carneiro, Athos Gusmão. Nova execução. Para onde vamos? Vamos melhorar. Revista de
Processo, n.123, p.118.
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intimação pessoal do devedor), passa-se a contar o prazo de 15 dias para o
cumprimento voluntário da condenação. Caso o devedor não cumpra
voluntariamente os preceitos da condenação, haverá a incidência da multa
de 10%, retornando a iniciativa do processo ao credor, para que requeira, ou
não, a instauração do procedimento de cunho executivo44.
2.2 Da Execução Provisória
O artigo 475-O contempla a hipótese de execução provisória. A
execução provisória “é uma modalidade de execução só admitida em caso de
título executivo judicial”45, quando há a pendência de apelação com efeito
devolutivo.
A execução provisória está condicionada ao requerimento do credor.
Destarte, sobrevindo anulação ou reforma da sentença em que se fundou, a
execução provisória fica sem efeito, hipótese em que voltam as partes ao
status quo, caso em que o exeqüente responde objetivamente pelos danos
causados.
Mesmo que provisória a execução, ainda assim a novel legislação em
vigor permite a alienação de bens do executado, bem como o levantamento
de depósito em dinheiro pelo exeqüente, desde que seja prestada caução,
real ou fidejussória, em valor arbitrado pelo juiz; porém, a caução pode vir a
ser dispensada pelo juiz, nos casos em que a causa versar sobre crédito de
natureza alimentar ou decorrente de ato ilícito, desde que seja observado o
limite de 60 vezes o salário mínimo. Para ATHOS CARNEIRO46, o § 2º do art.
475-O ampliou as hipóteses de dispensa da caução. Nesse ínterim, a caução
também poderá ser dispensada quando houver pendência de agravo de
Para não passar in albis, importante trazer o posicionamento de CARLOS ALBERTO ALVARO DE
OLIVEIRA, para quem: “A multa introduzida pelo art. 475-J só pode ser aplicada se o trânsito em
julgado da sentença condenatória ocorreu depois da vigência da nova lei, dado o seu caráter
penitencial. E isso porque, no tocante às normas revestidas desse caráter, vigora o princípio da
irretroatividade das sanções agravadas ou inovadas, as quais não incidem, assim, sobre os atos
praticados antes da vigência da nova lei”. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro (Coord.). A nova
execução: comentários à Lei nº 11.232, de 22 de dezembro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.292293.
45 CARREIRA ALVIM; José Eduardo; CABRAL; Luciana Gontijo Carreira Alvim. Cumprimento da
Sentença. Curitiba: Juruá, 2006, p.108.
46 CARNEIRO, Athos Gusmão. Do ‘cumprimento da sentença’, conforme a Lei 11.232/2005. Parcial
retorno ao medievalismo? Por que não?. Revista da Ajuris, n. 102, p.72, jun. 2006.
44
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instrumento47 junto ao Supremo Tribunal Federal ou junto ao Superior
Tribunal de Justiça, à exceção de quando da dispensa de caução possa,
manifestamente, resultar risco de grave dano de difícil ou incerta reparação.
Sobre o assunto em tela, GUILHERME AMARAL48 entende que: “Não tendo sido
realizado o ato de levantamento de depósito ou expropriação de bens até a
entrada em vigor da nova lei, então qualquer caução eventualmente prestada
poderá ser dispensada, nos termos do novel artigo 475-O, § 2º, II”. Por
último, importante mencionar que não cabe execução provisória contra a
Fazenda Pública, segundo assevera ATHOS CARNEIRO49.
3 – DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA
A Lei 11.232/05 quedou silente acerca da possibilidade de honorários
advocatícios na fase do cumprimento da sentença. Tendo em vista tal
silêncio do legislador, mister se faz a análise da necessidade ou não da
fixação de honorários nessa “fase processual”. Ora, para a instauração do
cumprimento da sentença, aprioristicamente, o advogado do credor
promove o requerimento do cumprimento, oportunidade em que instrui seu
pedido com a memória discriminada e atualizada de cálculo. Ao devedor,
nessa fase, se quiser se defender, poderá promover a impugnação ao
cumprimento da sentença. E ao credor é dada a prerrogativa de responder a
tal impugnação. Em verdade, todas estas atividades técnicas são
desempenhadas por advogados. Há labor advocatício técnico pelos
profissionais contratados tanto pelo devedor quanto pelo credor. Nesse
diapasão, não há como ser rechaçada a possibilidade de o advogado auferir
honorários na fase do cumprimento da sentença. Ademais, cristalino está
que, mesmo após a prolação da sentença, a atividade jurisdicional não resta
esgotada, eis que, na prática, falta a efetivação do julgado. Por outro lado, a
lei dispõe que os honorários advocatícios são fixados nas execuções.
DANIEL ROBERTO HERTEL eclarece que nas hipóteses de pendência de agravo de instrumento, “a
ratio legis, nesse caso, é que o executado está manejando praticamente o último recurso cabível
para impugnação da decisão. A probabilidade de não-obtenção de êxito nesse recurso é grande,
motivo pelo qual o Legislador, primado pela celeridade e efetividade processuais, entende que a
caução pode ser dispensada na execução provisória. A despeito dessa previsão, obviamente,
havendo risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação, poderá o magistrado exigir a
prestação da caução, exatamente conforme determinado no art. 475-O, § 2º, inc. II, in fine, do
CPC”. HERTEL, Daniel Roberto. A execução provisória e as inovações da Lei nº 11.232/05. Revista
Jurídica, n.348, p.62, out. 2006.
48 AMARAL, Guilherme Rizzo. Estudos de Direito Intertemporal e Processo. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p.30.
49 CARNEIRO, Athos Gusmão. Cumprimento da Sentença Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.98.
47
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Portanto, seja utilizado o termo “cumprimento”, seja utilizado o termo
“execução”da sentença, fato é que devidos são os honorários advocatícios.
Em recente decisão acerca do tema, nesse sentido se manifestou o STJ
nos autos do REsp 987.38850. Em seu voto, a Ministra Fátima Nancy Andrighi
afirma: “... Acrescente-se, ainda, que o art. 475-I do CPC é expresso em
afirmar que o cumprimento da sentença, nos casos de obrigação pecuniária,
se faz por execução. Ora, se haverá arbitramento de honorários na execução
(art. 20, § 4º, do CPC) e se o cumprimento da sentença se faz por execução
(art. 475, I, do CPC), outra conclusão não é possível, senão a de que haverá a
fixação de verba honorária na fase de cumprimento da sentença. No mais, o
fato da execução agora ser um mero ‘incidente’ do processo não impede a
condenação em honorários, como, aliás, ocorre em sede de exceção de préexecutividade, na qual esta Corte admite a incidência da verba. Confiram-se,
nesse sentido, os seguintes precedentes: REsp 737.767/AL, 3ª Turma, Rel.
Min. Castro Filho, Rel. p/acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de
22.05.2006; REsp 751.400/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de
19.12.2005; e AgRg no REsp 631.478/MG, 3ª Turma, minha relatoria, DJ de
13.09.2004. (...) Tudo isso somado – embora cada fundamento me pareça per
se bastante – leva à conclusão de que deve o juiz fixar, na fase de
cumprimento da sentença, verba honorária, nos termos do art. 20, § 4º, do
CPC.”
4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
ARAKEN DE ASSIS51, ao fazer vigoroso estudo sobre o método em
processo civil, com ênfase nas lições de KARL POPPER, aponta que: “Uma das
questões fundamentais da metodologia jurídica implica iluminar e resolver
como o juiz aplica a lei ao caso que lhe é submetido”. Conforme ARAKEN DE
ASSIS52:
“(...) o conhecimento se alcança pela tentativa e pela eliminação
do erro. Ante uma teoria, que não passa de uma hipótese de
trabalho, o progresso é obtido pela refutação, ou seja, submetendoCumprimento de Sentença – Honorários Advocatícios – Cabimento. São devidos honorários
advocatícios no pedido de cumprimento de sentença. (STJ – REsp 987.388-RS – Proc.
2007/0126133-6 – 3ª T. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJ 26.06.2008).
51 ASSIS, Araken de. Doutrina e Prática de Processo Civil Contemporâneo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, p.42.
52 Aut. cit., op. cit. p.44.
50
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a a testes de crescente dificuldade, até que, finalmente, ela não
corresponde a um problema e fica superada por outra mais
abrangente.”
Trazendo este último ensinamento de ARAKEN DE ASSIS para o estudo
das reformas do Código de Processo Civil, mergulha-se na investigação
metodológica das reformas: qual melhor método a utilizar? Reforma parcial
ou reforma total da legislação? Na exposição de motivos do Código de
Processo Civil de 1973, Lei nº 5.869/1973, o então Ministro da Justiça,
ALFREDO BUZAID, faz uma alentada reflexão que se inicia através de uma
indagação: “Revisão ou Código novo?” Consoante se vê, desde os auspícios
do Código anterior, as reformas processuais são objetivo de debates no
mundo jurídico. Nessa linha de idéias, ALFREDO BUZAID53 passa a descrever
os motivos pelos quais optou por uma nova legislação em vez de somente,
parcialmente, reformar o Código de Processo Civil de 1939, e, nesse
diapasão, elucida: “O grande mal das reformas parciais é o de transformar o
Código em mosaico, com coloridos diversos que traduzem as mais variadas direções”
(grifo nosso).
Ao ler esta passagem de BUZAID sobre a reforma parcial, fica no ar a
pergunta: se vivo estivesse, como estaria reagindo BUZAID às recentes
reformas parciais do Código de Processo Civil de 1973? Em verdade, o
Código de Processo Civil não se transformou em um “mosaico com
coloridos diversos”, mas, pior, se transformou, como bem sugestiona
DINAMARCO54, em uma grande colcha de retalhos, remendada, com cores
diferenciadas que não combinam entre si, perfazendo, assim, um
aglomerado de tecido disforme e sem ordenação. Verifica-se, portanto e de
plano, nos dizeres de ARAKEN DE ASSIS55, “a hipertrofia” e o “conseqüente
desequilíbrio estrutural do CPC”, uma vez que “reformas parciais
transformam a lei em caleidoscópio com as mais diferentes e contraditórias
orientações”.
BUZAID, Alfredo. Exposição de motivos do Código de Processo Civil. In: Código de Processo Civil e
Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2006, p.1.
54 CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, quando da promulgação das Leis nºs 10.352/2001, 10.358/2001 e
10.444/2002, chamou a atenção para o “perigo de uma colcha de retalhos”: “(...) as Reformas não
se pautam por preocupações concentradamente sistemáticas, o que gera o risco de alojar no
Código disposições mal costuradas entre si, sem a indispensável coordenação orgânica, funcional
e mesmo conceitual. Exemplos dessa falha são a disciplina da tutela antecipada e do processo
monitório”. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma da Reforma. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2003,
p.38.
55 ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3.
53
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Assim, o Código de Processo Civil perdeu não só a sua ordenação
inicial, mas, também, a sua unidade. As últimas reformas afastaram a
estrutura inicial do Código de Processo Civil, verificando-se, assim, um
completo desequilíbrio estrutural. Mesmo que inexistente, na prática, a
divisão das funções jurisdicionais (processo de conhecimento, processo de
execução e processo cautelar), não poderia o legislador elaborar um projeto
de lei em que não fossem previstas regras gerais aplicáveis a todas as
funções jurisdicionais, uma vez que tal atitude carece de lógica e
sistematização processual56.
Ora, voltando à metáfora57 da colcha de retalhos, calha dizer que,
atualmente, o colorido do Código de Processo Civil é um matizado com
nuança destoante, com tonalidades antagônicas, onde, por exemplo, entre
inúmeros problemas, sobrevivem normas que se referem a institutos
jurídicos revogados pela última reforma processual. Exemplificando: foram
revogados, pela Lei nº 11.232/2005, os artigos 589 e 590 do Código de
Processo Civil, que se referiam à carta de sentença. Destarte, em que pese a
eliminação da carta de sentença do ordenamento processual civil brasileiro,
outros dispositivos do Código continuam prevendo a referida carta (v.g.
artigo 521 e artigo 484). ARAKEN DE ASSIS58, com peculiar visão crítica sobre
as recentes reformas do Código de Processo Civil, ao abordar a questão da
sobrevida da carta de sentença em determinados dispositivos do Código,
observa:
“No entanto, conforme só ocorre nas reformas parciais e
erráticas empreendidas no último decêndio entre nós, o
sepultamento da carta de sentença seja prematuro. O defunto
soergue-se do túmulo na parte final do artigo 521, prevendo-se aí a
extração da ‘respectiva carta’ na hipótese de o juiz (nos casos
legalmente admissíveis) receber a apelação tão-só no efeito
Nesse mesmo sentido, é o magistério de ARAKEN DE ASSIS. ASSIS, Araken de. Cumprimento da
Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.3.
57 A metáfora da colcha de retalhos jamais poderia ser desenvolvida no sentido de metáfora
patchwork, pois o patchwork é um trabalho artístico, feito com retalhos de pano, onde impera a
ordenação de cores e tamanho dos retalhos... Já a metáfora da colcha de retalhos é aqui utilizada
no intuito de demonstrar um trabalho não ordenado e, aliás, nada artístico, onde apenas juntamse pedaços de retalhos desordenadamente sem qualquer preocupação com combinação de cores e
matizes.
58 ASSIS, Araken de. Cumprimento da Sentença. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.163.
56
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devolutivo, e no art. 484, segundo o qual a execução de sentença
estrangeira ‘far-se-á por carta de sentença’.”
De outra banda, calha trazer, também, a questão da execução dos
alimentos ante o advento da Lei nº 11.232/2005. O legislador quedou silente
no que tange à execução dos alimentos, com base em título executivo
judicial, após a promulgação da Lei nº 11.232/2005. O silêncio legislativo é
aqui visto como omissão legislativa e, tendo em vista tal omissão, vem sendo
questionado se os atos de cumprimento da sentença alcançam os encargos de
natureza alimentícia, uma vez que inexistiu revogação expressa e, muito
menos, qualquer alteração no Capítulo V do Título II do Livro II do CPC,
que trata “Da Execução de Prestação Alimentícia”. Em contrapartida, de
igual forma, inexistem referências à obrigação alimentar nas novas regras de
cumprimento da sentença, inseridas nos Capítulos IX e X do Título VIII do
Livro I: “Do Processo de Conhecimento”: artigos 475-I a 475-R do Código de
Processo Civil. Portanto, tendo em vista a não-revogação dos artigos e a
inserção de novos dispositivos legais, ante a reforma parcial do Código de
Processo Civil, opera-se o conflito de leis no tempo: duas leis regulando a
mesma matéria ao mesmo tempo. Então, aos operadores do direito resta,
somente, a dúvida: nas execuções de prestações alimentícias fundadas em
título executivo judicial, se aplicam as novas regras do cumprimento da
sentença ou continua-se a executar o julgado com base no artigo 732 (já que o
mesmo não foi revogado pela Lei nº 11.232/2005)? MARIA BERENICE DIAS59
soluciona o problema da seguinte forma:
“Os alimentos podem e devem ser cobrados pelo meio mais ágil
introduzido no sistema jurídico. O crédito alimentar está sob a
égide da Lei 11.232/05, podendo ser buscado o cumprimento da
sentença nos mesmos autos da ação em que os alimentos foram
fixados (CPC, art. 475-J). Houve mero descuido do legislador ao
não retificar a parte final dos arts. 732 e 735 do CPC e fazer
remissão ao Capítulo X do Título VII: ‘Do Processo de
Conhecimento’. A falta de modificação do texto legal não encontra
explicação plausível e não deve ser interpretada como intenção de
afastar o procedimento mais célere e eficaz logo da obrigação
alimentar, cujo bem tutelado é exatamente a vida. A omissão, mero
59
DIAS, Maria Berenice. Execução dos Alimentos e as Reformas do CPC. Disponível em:
<http://www.tex.pro.br>. Acesso em: 24 dez. 2006.
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cochilo ou puro esquecimento, não pode levar a nefastos
resultados.“
ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS60 entende que pode ser aplicado tanto o
artigo 475-J quanto o artigo 732 para que se proceda à execução de alimentos:
“A execução de prestação alimentícia pode ser feita de maneiras
diversas, inclusive na forma comum, seguindo, agora, o art. 475-J,
mas com a possibilidade de se aplicar a antiga regra do art. 732,
parágrafo único, com permissão de levantamento mensal das
importâncias depositadas, haja ou não impugnação, não sendo de
se permitir qualquer efeito suspensivo.”
Seja como for, o exemplo da revogação dos artigos 589 e 590 através do
advento da Lei nº 11.232/2005 e o exemplo do silêncio do legislador sobre o
rito da execução de alimentos após a promulgação da Lei nº 11.232/2005
somente ilustram a falta de metodologia das reformas parciais do Código de
Processo Civil. Portanto, melhor seria uma reforma geral da legislação do
que a atual e problemática reforma parcial61; afinal, as emendas parciais
exigem uma convergência de idéias e estudos que nem sempre se opera
(como agora ocorreu com a promulgação da Lei nº 11.232/2005, que
desestabilizou a estrutura inicial do Código de Processo Civil). Enfim, sobre
as reformas parciais, faz-se coro com as observações de ALFREDO BUZAID62 ao
optar por uma reforma geral em 1973.
SANTOS, Ernane Fidélis dos. As reforma de 2005 do Código de Processo Civil: execução dos títulos
judiciais e agravo de instrumento. São Paulo: Saraiva, 2006, p.94.
61 Todavia, MAURO CAPPELLETTI, ao enfrentar o tema das reformas processuais na Itália, afirma que:
“In conclusione: no alla pseudo-riforma, che non serve praticamente a nulla, anzi à dannosa
perché fa perdere altro tempo e offre incondate illusioni. Si, invece, ad una riforma anche parziale
e sperimentale, che rapra infine, e d’urgenza, le aule della giustizia alla gente che ne ha bisogno e
che, oggi, ne è esclusa a causa di una situazione divenuta ormal tragica di inefficienza,
disorganizzazione e ritardo”. CAPPELLETTI, Mauro. Parere iconoclastico sulla riforma del processo
civile. In: Giurisprudenza, Dottrina e Legislazione. Torino: Unione Tipográfico – Editrice Torinese,
1969, p. 87, Serie 7ª, v. XXI.
62 Nesse sentido, diz BUZAID: “Mas a pouco e pouco nos convencemos de que era mais difícil
corrigir o Código velho que escrever um novo. A emenda ao Código atual requeria um concerto
de opiniões, precisamente nos pontos em que a fidelidade aos princípios não tolera transigências.
E quando a dissensão é insuperável, a tendência é de resolvê-la mediante concessões que não raro
sacrificam a verdade científica a meras razões de oportunidade. [...] Propondo uma reforma total,
pode parecer que queremos deixar abaixo as instituições do Código vigente, substituindo-as por
outras inteiramente novas. Não. Introduzimos modificações substanciais a fim de simplificar a
estrutura do Código, facilitar-lhe o manejo, racionalizar-lhe o sistema e torná-lo um instrumento
dúctil para a administração da justiça”. BUZAID, Alfredo. Exposição de motivos do Código de
Processo Civil. In: Código de Processo Civil e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2006, p.1-2.
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