Verbos abundantes Segundo CUNHA/CINTRA, p. 384, «ABUNDANTES são os verbos que possuem duas ou mais formas equivalentes». Mas, depois, os mesmos autores (ibid.) resumem a aplicação do conceito de abundância, na prática, aos verbos com duplo (ou até triplo) particípio: «De regra, essa abundância ocorre no particípio. Assim, o verbo aceitar apresenta os particípios aceitado, aceito e aceite; o verbo entregar, os particípios entregado e entregue; o verbo matar, os particípios matado e morto». Ora, aquele «de regra», no início da segunda citação do parágrafo precedente, não quer dizer 'sempre' mas antes 'em princípio'… Então, quais são os outros tipos de verbos abundantes, se é que existem? Os autores citados continuam a laborar na mesma imprecisão, mais adiante (cit., p. 441), quando retomam o tema: Vimos que são chamados ABUNDANTES os verbos que possuem duas ou mais formas equivalentes. Vimos também que, na quase totalidade dos casos1, essa abundância ocorre apenas no PARTICÍPIO, o qual, em certos verbos, se apresenta com uma forma reduzida ou anormal ao lado da forma regular em -ado ou -ido. Vendo bem, e ao contrário do que aí se sugere, a abundância não ocorre, segundo quanto expõem os mesmos autores nos dois lugares distintos que transcrevi, «na quase totalidade dos casos» mas na totalidade dos casos, tout court… Portanto, ou os verbos abundantes são os verbos com duplo/triplo particípio, e basta, ou os verbos com duplo/triplo2 particípio são um tipo de verbos abundantes (talvez o mais representativo, mas não o único, porém), entre outros tipos – e, então, será necessário especificar quais são esses outros tipos… Na verdade, há outros tipos de verbos abundantes, e não só os de duplo/triplo particípio. Dever-se-á proceder, portanto, a uma tentativa de sistematização completa e rigorosa dos verbos abundantes, e uma primeira tentativa disso é a que apresentamos em seguida: 1. Verbos com duplo/triplo particípio Para a sua descrição, dentro de cada uma das três conjugações, e para as normas de selecção da forma regular ou da forma irregular do particípio, v. CUNHA/CINTRA, PP. 441-23. 1 Sublinhados nossos. Na verdade, o único verbo com triplo particípio que conhecemos (e também o único referido por CUNHA/CINTRA) é aceitar. Sobre o uso de cada uma dessas três formas, v. o artigo de José Pedro Machado, aqui como ANEXO 1. 3 Aqui como ANEXO 2. 2 1 2. Verbos com duas formas distintas para a 1.a pess. sing. di Ind. Pres., consoante o significado a atribuir ao verbo – Parece existir somente um verbo para esta categoria, o verbo saber: Como sucede também em italiano, saber tanto pode assumir uma acepção mais propriamente cognitiva como uma acepção meramente perceptiva ou, mais particularmente, gustativa: Ele sabe muitas coisas, Esta sopa sabe a cenoura. O que convém especificar (e não há gramática, dicionário comum ou dicionário de verbos que o refira, que saibamos) é que, na 1.a pess. sing. do Ind. Pres., se empregarmos o verbo na sua acepção gustativa, a forma a seleccionar não é sei mas saibo4. É claro que a 1.a pess. sing. do Ind. Pres. de saber, na sua acepção gustativa, não terá uma taxa de ocorrência muito elevada, nos discursos quotidianos (o que poderá explicar, até certo ponto, a pouca ou nenhuma atenção de que tem sido alvo, por parte dos estudiosos): mas o seu uso não é, por isso, menos provável – sendo até, em certas circunstâncias, decididamente incontornável: – A minha namorada não me quer dar um beijo porque diz que eu saibo a alho. – A certa altura, de surpresa, lambe-me o braço e diz que saibo a sal… E os exemplos não têm que implicar necessariamente uma situação de conotações (mais ou menos) eróticas: – Fala a tainha: «Os pescadores desprezam-me porque (dizem que) saibo a lodo». – O ogre comeu os meus companheiros todos, mas a mim só me trincou uma orelha e largou-me logo: dizia que eu saibo mal… Nota: Convém ainda destacar o facto de que é mesmo essa forma "desprezada" da 1.a pess. sing. do Ind. Pres. que está na base do tema do Conj. Pres. do verbo (sempre que eu saiba, saibas, saiba, etc., seja o verbo empregue na acepção cognitiva ou na gustativa). 3. Verbos com duas realizações alternativas para a 1.a pess. sing. do Ind. Pres. e para todo o Conj. Pres. – Que saibamos, só há um verbo para esta categoria, ouvir – sobre cuja conjugação se remete para o documento Verbos da 3.a Conjugação, pp. 2-3. 4 Na sua acepção gustativa, o Ind. Pres. de saber conjuga-se, pois, exactamente como o de caber. 2 4. Verbos com duas realizações alternativas para as 3 pess. s sing. s do Ind. Pres. e do Conj. Pres. e para a 3.a pess. pl. do Ind. Pres. e do Conj. Pres. – São os casos de negociar, premiar5 e – com mais dúvidas sobre a efectiva dupla possibilidade de realização6 – comerciar, incendiar7, obsequiar, presenciar, sentenciar. 5. Verbos com duas realizações alternativas para a 2.a e a 3.a pess. s sing. s e para a 3.a pess. pl. do Ind. Pres. – São os casos de construir, destruir e reconstruir, assim como de (des)entupir, sobre os quais se remete para o documento Verbos da 3.a Conjugação8. Verbos "de fronteira" Há ainda verbos – ou melhor, pares de verbos – que, sem serem propriamente abundantes, constituem formas alotrópicas do mesmo verbo de base, obedecendo a flexão de cada um dos membros desses pares a um modelo conjugacional diverso. São os casos, por exemplo, de premer/premir e dos defectivos eroder/erodir9. A circunstância de se poder conjugar estes verbos de modo regular – negocio, negocias, premio, premias, etc. – ou, então, como se fossem verbos da 2.a conjugação, como recear, parece depender da realização fonética do -i prétemático: se este é sentido como semi-vocálico –/'/, como /'/ (não interessa que se escreva recear, o som desse -e- é sempre -i, e -i semivocálico, isto é, //) –, então o verbo é conjugado como recear, efectivamente (negoceio, negoceias, premeio, premeias, etc.); se o -i pré-temático é sentido como uma vogal plena – /'/, etc., então a conjugação segue o modelo regular. 6 V. a tal propósito as pp. 421-2 de CUNHA/CINTRA e a p. 74 de MONTEIRO/PESSOA, reproduzidas em seguida como ANEXO 3. 7 O qual parece operar hoje, como selecção "exclusivista", justamente a contrária dos restantes verbos aqui enunciados na sua companhia: com efeito, parece que hoje são sentidas como aceitáveis só as formas que mantêm o -i pré-temático – comercio, obsequio, presencio, sentencio, etc. –, enquanto que para incendiar parecem ser sentidas como aceitáveis, agora, só as formas com o ditongo pré-temático -ei: incendeio, etc. 8 Note-se que (des)entupir ou segue a conjugação regular (ainda que o recurso a tal opção seja hoje bastante raro, como se expõe na nota 6 do documento Verbos da 3.a Conjugação) ou se inscreve no modelo de conjugação irregular descrito no documento Verbos da 3.a Conjugação como o tipo B. 3b (i. e., à maneira de subir). 9 Sobre este par de verbos, v. A nota 9 do documento Verbos da 3.a Conjugação. 5 3 4