1 Reflexões sobre Antropologia e Comunicação: Ethos Romântico do Jornalismo enquanto um estudo de caso Cláudia Lago Gostaria de iniciar essa comunicação pedindo desculpas antecipadas por fragilidades inerentes à forma como estruturei o texto. Ao saber que participaria do grupo Antropologia e Comunicação, inicialmente com o intuito de falar sobre minha própria pesquisa, que em teoria trafega entre esses dois campos, uma sensação incômoda atingiume: a falta de reflexão sistematizada sobre essa confluência. Se é certo que meu trabalho, vinculado ao campo da comunicação, porém matizado pela antropologia, realiza-se nessa área indistinta, também é certo que isso acontece quase que por instinto, ou por herança. Propus então, e foi aceito, que dedicasse parte desta comunicação a tentar sistematizar um pouco melhor essa intersecção. A tarefa, se levada a cabo com a seriedade que merece, seria por si só uma outra tese. Resumí-la a estas páginas, portanto, é simplificá-la e garantir esquecimentos e lacunas. Peço pois, desculpas antecipadas por esse inconveniente. Iniciando propriamente o trabalho, creio ser necessário traçar alguns parâmetros para, de alguma forma, mapear o encontro das disciplinas. A meu ver podemos iniciar verificando o que conforma as diferentes disciplinas, suas discussões e significações internas, para daí traçar paralelos e perceber cruzamentos. E já aí encontramos particularidades interessantes, já que antropologia e comunicação, dentro da noção de campo disciplinar1 encontram-se em momentos bastante distintos, a primeira com suas regras de pertencimento e estatuto epistemológico instituídos – em que pesem as constantes redefinições a que se sujeita - e a segunda em fase de, digamos assim, plena busca de autonomia frente aos outros campos. Tudo isso em um tempo que em se postula a necessidade do cruzamento dos saberes. 1 Atenho-me aqui às noções de campo e de autonomia conforme postuladas por Pierre Bourdieu (1983, 1987, 1989, 1990) 2 Dilemas Antropológicos Começando pela tentativa de definir a antropologia, para então perceber suas discussões privilegiadas, suas especificidades, creio que podemos concordar com Clifford Geertz, quando avalia que “uma das vantagens da antropologia como empreitada acadêmica, é que ninguém, nem mesmo os que a praticam, sabe exatamente o que ela é”, o que engendra uma constante “crise de identidade” (2001: 86). No entanto, o próprio autor reconhece que, apesar de não existirem respostas fáceis para identificar as especificidades antropológicas, todos que a praticam sabem que há uma diferença entre seus trabalhos e os trabalhos realizados por sociólogos, filósofos, psicólogos, historiadores, etc. Ou seja, a Antropologia é alguma coisa palpável, mesmo que não facilmente definível. Outro dado importante identificado por Geertz é o paradoxo do “boom”antropológico atual, em que a situação de “angústia” que sempre acompanhou antropólogos na hora de definir seu trabalho, e que faz o autor afirmar que “Não há nada de particularmente novo nessa situação. Ela existe desde os primórdios desse campo, quando quer que eles tenham ocorrido”(idem: 87), conviva com um aumento do prestígio da disciplina junto às suas “irmãs” sociais nunca antes experimentado. Procurando ajuda nos textos de outros autores encontro algumas pistas que ajudam a identificar a antropologia e situar a ‘angústia’de seus postulantes. A antropologia nasceu, como enunciou Lévi-Strauss, dentro de “um empreendimento que renova e expia a Renascença, com o fim de levar o humanismo a alcançar a medida da humanidade.” (1975:222) Em um encontro singular entre o antropólogo e o ‘nativo’, um “confronto de diferenças” (Mariza Peirano, 1992), opera-se a química através da qual se produz o conhecimento antropológico. Essa equação elaborada em torno das vivências de pesquisador e pesquisado é o que, para a autora, concede à antropologia “seu caráter distinto entre os outros ramos do conhecimento: de todas as ciências, ela é, sem dúvida, a única a fazer da subjetividade mais íntima um meio de demonstração objetiva”( idem: 216). Ou seja, é um encontro singular em que desde cedo procurou-se “apreender o ponto de vista dos nativos, seu relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo” (Malinowski, 1976:38) uma das marcas distintivas do empreendimento antropológico. 3 Creio que foi essa situação idealizada, a do encontro com um ‘outro’ cultural (e geograficamente) distante, feita por intermédio de um trabalho de campo onde o observador deveria tentar apreender o ponto de vista do observado, juntamente com a internalização do conceito de ‘cultura’ que ajudaram a organizar a antropologia enquanto disciplina autônoma. Uma outra característica, forjada nesse embate travado entre um observador e sociedades diferentes da sua de origem, foi a tentativa, epistemologicamente pertinente para épocas anteriores à atual, de se atingir uma totalidade. As sociedades estudadas eram totalidades que poderiam ser alcançadas por intermédio de fatos sociais totais, como o Kula de Malinowski. Essa tradição, mesmo que hoje impraticável, deixou suas marcas indeléveis, pois persistimos, de uma forma ou de outra, ao identificar o fazer antropológico, no uso de noções que tratam ou se referenciam em um “trabalho de campo”(Peirano,1992), que é “altamente descritivo” (Durham, 1986), que remonta à uma tradição que buscava as “sociedades enquanto totalidades” (Evans-Pritchard,1975), que pressupõe a aquisição de conhecimento por meio de uma singular experiência com a ‘alteridade’, com o ‘outro’. Como bem exemplificou DaMatta: “Afinal, tudo é fundado em alteridade na Antropologia: pois só existe antropólogo quando há um nativo transformado em informante. E só há dados quando há um processo de empatia correndo de lado a lado” (1978:34). O resultado desse encontro singular é preferencialmente uma ‘etnografia’, em que pesem as inúmeras definições para tal2, um registro descritivo da vida e das organizações sociais de nossos “outros”. E, apesar da virada para a pesquisa em “sociedades complexas” “... o trabalho de campo junto a sociedades numericamente pequenas (ou a setores espacialmente circunscritos de sociedades maiores), de tradição cultural não-ocidental, e seu resultado típico, a monografia etnográfica, continuam a ser a referência clássica da antropologia e, ouso dizer, a raiz de sua autonomia como disciplina” (Viveiros de Castro, 1990:2). Um método levado tão a sério, que fez com Lévi-Strauss, avaliando as conseqüências pessoais do trabalho de campo comentasse, talvez com um certo exagero: “Suas (do antropólogo) condições de vida e trabalho o separam fisicamente do seu grupo durante longos períodos; pela brutalidade das mudanças a que se expõe, ele adquire uma 2 Particularmente gosto da definição de etnografia enquanto “descrição densa” de Geertz. 4 espécie de desenraizamento crônico; nunca mais se sentirá ‘em casa’ em nenhum lugar e ficará psicologicamente mutilado”. (Lévi-Strauss, 1993). Sobre as crises antropológicas propriamente ditas, ou sobre as angústias do campo antropológico, como quer Geertz, pouco podemos falar que seja novidade. Já na década de 60, Lévi-Strauss chamava a atenção para a questão da perda do objeto da antropologia, preconizando: “A antropologia deverá transformar-se na sua natureza mesma, e confessar que há, de fato, uma certa impossibilidade, de ordem tanto lógica quanto moral, de manter como objetos científicos (cuja identidade o cientista poderia mesmo desejar que fosse resguardada) as sociedades que se afirmam como sujeitos coletivos e que, como tais, reivindicam o direito de se transformar”( Lévi-Strauss, 1962:25). Estudando os reflexos dessas modificações Peirano (1982) identifica que, na década de 60, em resposta a uma nova configuração do tradicional binômio antropólogo/nativo, sujeito/objeto, ao mesmo tempo em que se discutiu a necessidade de repensar a disciplina (Leach, 1974) ou de se incorporar dentro dos domínios lícitos da antropologia o estudo de sociedades complexas, desenvolveram-se novas concepções, mais ligadas ao método antropológico do que ao seu objeto. Já nas décadas de 70-80, o que pareceu traduzir as preocupações antropológicas foi a definição dos objetivos da antropologia surgindo, então, definições do tipo da antropologia interpretativa, que tem como um de seus expoentes o já citado Geertz (1978). Posteriormente a antropologia passou a debater-se com vertentes desse processo, chegadas até nós principalmente pelos chamados etnógrafos pós-modernos que, acreditando subverter as relações de poder instituídas no campo entre antropólogo/nativo, reagiram à chamada etnografia clássica, aquela realizada por antropólogos ocidentais em contato com nativos de terras geográficas e culturalmente distantes, criticando também o papel do autor no texto etnográfico. A crítica pós-moderna, em que pesem suas limitações, é um bom termômetro do tipo e da amplitude de questionamentos que estão colocados para a antropologia desde há algum tempo. Se bem que acredite que hoje, assumindo a necessidade de auto-reflexão, boa parte dos pesquisadores que realizam pesquisas empíricas para consubstanciar suas teorizações, não endossam desconstruções tão demolidoras. 5 A já vulgarizada noção da perda do objeto é também analisada por Geertz (2001) que, no entanto, não acredita ser essa a dificuldade “mais importante”, apesar de ser “a mais sentida e mais comentada”. Para ele, a principal questão refere-se à perda do “isolamento das pesquisas”, entendido enquanto o isolamento dos antropólogos em seu campo (sua “concha”). Isolamento esse que talvez explique o exagero contido na citação de Lévi-Strauss. O resultado dessas perdas é a ênfase no método “que, pelo menos desde Malinowski, é considerado o princípio e o fim da antropologia social” (2001:89). E, para Geertz, é exatamente essa definição da antropologia em função de um estilo de pesquisa “particular, coloquial e informal, radicado num conjunto específico de habilidades improvisadas e pessoais” (idem:90) que acarreta uma série de dificuldades, a começar pelas discussões sobre a agudeza e propriedade do método3. Um outro aspecto é, a partir da constatação de que a antropologia nasce, como afirma Geertz, “cheia de conflitos, eternamente em busca de meios para escapar de sua condição, eternamente sem conseguir encontrá-los” (idem:93), situar essa característica no momento atual, em que se opera um esforço de auto-reflexão nas ciências humanas como um todo, e talvez pela antropologia em particular. Nesse sentido, “... o que está em jogo é a perda da capacidade explicativa das ciências humanas pelo colapso da distinção entre a teoria e seu objeto” (Montero, 1992:29). Creio que a análise que realiza Anthony Giddens (1991) sobre esse momento, o da crise da razão dentro da Modernidade é pertinente e ajuda a perceber que o constante estado de alerta em que vive a antropologia, apesar de ter contornos definidos por sua história, se enquadra também dentro do estado de alerta próprio da Modernidade. Segundo Giddens, na Modernidade, ao substituir-se as “reivindicações da tradição pelas da razão”, em vez de se garantir ao homem mais certezas, subverteu-se a equação entre razão e conhecimento certo, fazendo com que a reflexividade, que para o autor é constitutiva da Modernidade, volte-se contra a própria razão. Em relação ao conhecimento científico essa situação cria um paradoxo: A implantação do primado da razão constituiu a ciência enquanto voz legítima, que suplantou as fronteiras inicialmente colocadas - o 3 A análise de Geertz é bem mais extensa e aprofundada. Ficarei nesse ponto por entender que ele é o que melhor se relaciona ao objetivo inicial do trabalho, qual seja, pensar sobre as relações Antropologia/Comunicação. 6 discurso científico passou a invadir a vida social, reconstituindo-a e a si mesmo-, mas engendrou também a “reflexividade indiscriminada... que inclui a reflexão sobre a natureza da própria reflexão”. Com isso: “Em ciência, nada é certo e nada pode ser provado, ainda que o empenho científico nos forneça a maior parte da informação digna de confiança sobre o mundo a que podemos aspirar”(1991: 46). Essa característica se acentuaria nas ciências sociais onde “... temos que acrescentar ao caráter inconstante de todo conhecimento baseado empiricamente a “subversão”que vem da reentrada do discurso científico social nos contextos que ele analisa” (1991:47). Assim, o discurso das ciências sociais circula dentro e fora dos espaços em que se produz, reestruturando “reflexivamente seu objeto, ele próprio tendo aprendido a pensar sociologicamente. A modernidade é ela mesma profunda e intrinsecamente sociológica”(1991:49). (Ou antropológica e psicológica, se desejarmos...) Em outras palavras, as questões levantadas acerca do fazer antropológico se dão em um contexto de suspeita sobre todo modo de conhecimento. A antropologia não é a única a voltar suas baterias reflexivas contra si mesmo. Mas, precisamente por ter uma tradição em questionar o que está sendo atualmente questionado (a possibilidade de um saber total, generalizado, a falta de trabalhos empíricos substanciais que possam servir às teorizações de peso que já existem, por exemplo) e um excesso de auto-reflexão, tenha muito a oferecer nesse momento. Assim, a aparente fragilidade antropológica, relacionada à clareza dos limites (espaciais, temporais, subjetivos) de suas pesquisas, é o que pode ser de valia para as outras disciplinas com as quais dialoga. Pelo menos é o que parece se analisarmos a intersecção entre antropologia e comunicação, que me parece se dar em duas direções: a captura, por parte da primeira, do ‘objeto’ constituído da segunda e a captura, por parte da segunda, dos métodos tradicionais da primeira. Esses cruzamentos aparentemente têm se realizado sem no entanto originar discussões sobre suas condições de operacionalização e reflexões sobre a natureza de um possível diálogo, às vezes resumindo-se a uma apropriação de um sobre os ‘domínios’ do outro. É importante observar que o grau em que isso se dá parece variar conforme as características da disciplina. A antropologia, com uma tradição de auto-reflexão sobre suas práticas (ampliada pela necessidade de adequar seu método a objetos diferentes do tradicional), geralmente garante espaços em suas pesquisas para analisar as relações em que 7 se efetiva seu fieldwork. Já a comunicação, com reflexões esparsas e difusas, parece-me pouco incorporar desse tipo de reflexão 4. Creio no entanto, ser necessário primeiro identificar algumas especificidade desse outro campo, para podermos pensar melhor sobre as intersecções entre ambos. Desafios da Comunicação Daniel Bougnoux (1999), num livro introdutório às chamadas Ciências da Informação e da Comunicação (o que já indica uma junção de campos), identifica que as disciplinas ditas “da comunicação” não configuram um conjunto dado e fechado de problemas, teorias ou dados empíricos. Ao contrário, marcam-se pela interdisciplinaridade5 e correm, portanto, o risco de “parecer-se com o vestíbulo de uma grande casa ou com alguma ante câmara: passantes encontram-se e discutem, mas ninguém vem trabalhar ou residir aí de modo duradouro, as coisas sérias são feitas noutra parte”.(1999:7). A comunicação, entendida a partir de seu estatuto disciplinar aparece, penso, como um campo em construção do ponto de vista da autonomização frente a outros saberes e da institucionalização de suas práticas. Isso em um momento em que seu crescimento, fruto da centralidade que adquire seu ‘objeto’ na atualidade é inegável, tanto do ponto de vista dos interesses quanto das pesquisas. Sobre essas questões cabe algumas considerações básicas. A primeira sobre o caráter do ‘objeto’ das ciências da comunicação. Qual é ele? Afinal, qualquer processo social envolve comunicação, portanto, a rigor, nossa disciplina tem uma abrangência infinita. Apesar disso, creio que é mais comum relacioná-la aos estudos da mídia e aos processos culturais que envolvem a produção e recepção desses. Mesmo assim, o campo é extremamente abrangente. Em relação ao seu estatuto disciplinar, creio que o forte são as discordâncias – tanto do ponto de vista local como diferenças entre países e regiões -, frutos provavelmente da juventude do campo enquanto disciplina específica e autônoma. No Brasil, segundo Wilson 4 Essas generalizações obviamente deixam de lado inúmeros trabalhos que são exceção à regra. No entanto, se me sinto desconfortável em relação às generalizações feitas sobre a antropologia, a leitura de comunicações de pesquisadores do campo da comunicação que refletem sobre seu estatuto epistemológico deixa-me mais à vontade para assumir esses pressupostos. 5 Muitas vezes termos como interdisciplinaridade/multidisciplinaridades/transdisciplinaridade, são utilizados como se fossem sinônimos, embora não o sejam. 8 Gomes6, coordenador da área de Ciências Sociais Aplicadas I e representante da área de Comunicação junto à Capes, a comunicação, em que pese seu crescimento em volume de trabalhos, ensino e pesquisa, principalmente por meio dos cursos de pós-graduação, ainda tem um longo caminho a percorrer até que se consolide como campo científico e acadêmico. A falta de pesquisas de ponta, a dependência quase que exclusiva de bibliografia estrangeira ou de outras áreas do conhecimento e o desconhecimento sobre o que já foi pesquisado – a dificuldade de estabelecer conhecimento cumulativo – são apontados por Gomes como obstáculos a serem superados nesse sentido. Menciono essas particularidades porque, com os esforços para consolidação vêm junto desconfianças frente aos outros campos do saber. Como pontua Eduardo Meditsch em palestra proferida no IV Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (2001) e depois reproduzida no Observatório da Imprensa7 “ao se desvincular de sua origem profissional, a área de comunicação não consegue alcançar a outra margem, não consegue se legitimar como disciplina científica diferenciada, não concebe um corte epistemológico inédito, não constrói um corpo teórico original, não desenvolve metodologias próprias, seque consegue delimitar o seu objeto de estudo”.. O que para alguns é uma dificuldade a ser superada, para outros, no entanto, é uma característica intrínseca ao campo da comunicação, que se constrói em um momento em que seu objeto passa a atrair a atenção cada vez maior das ciências ao redor, dada sua centralidade. É exatamente nesse contexto que, como aponta Maria Immacolata V. Lopes (2000) transparece uma insatisfação generalizada e uma necessidade de reformular as pesquisas e orientações. Baseando-se no Relatório da Comissão Gulbenkian para Reestruturação das Ciências Sociais, Lopes acredita que “a divisão interna das ciências sociais em múltiplas disciplinas resultou principalmente de decisões institucionais que quase sempre mantiveram laços fracos com o debate propriamente epistemológico”. Além disso, defende a necessidade de “institucionalização transdisciplinar 8 dos estudos de comunicação”, observando-se o rigor teórico-metodológico. E aponta para o paradoxo de 6 “O estado da arte dos cursos brasileiros de pós-graduação em comunicação” In: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação. Entrevista concedida a Sônia V. Moreira. Vol. XXIII, n° 2, junho/dezembro de 2000. 7 In:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/da0205200113.htm http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/da090520012.htm 8 A autora, de acordo com o Relatório Gulbenkian (citado na bibliografia), opera uma distinção significativa entre os conceitos interdisciplinar x transdisciplinar. Não a reproduzo aqui por absoluta falta de espaço. 9 uma ciência que tenta se instituir estabelecendo especificidades no momento em que a regra é a fragmentação e a interface das diversas perspectivas. Convivência Fecunda Com a antropologia ampliando seu raio de ação para sociedades ‘complexas’ e a comunicação buscando métodos e teorias alhures, não é de se estranhar que ambas se cruzem em inúmeros momentos. Como já mencionei, acredito que, do ponto de vista da antropologia, esse cruzamento se dá pela constatação de que a comunicação e seus processos são pródigos em oferecer ‘objetos’ para pesquisas que se situam no sub-campo da ‘sociedade complexa’. Nesse sentido, inúmeros trabalhos vinculados institucionalmente à antropologia, têm sido realizados e sua diversidade é representativa da abrangência como a disciplina apropria-se do ‘objeto’ comunicação. Como são trabalhos claramente antropológicos, não necessariamente refletem sobre as interfaces entre o campo da antropologia e o campo da comunicação 9, pontuando parte de suas reflexões àquelas caras à antropologia, e que tentei identificar rapidamente na primeira parte deste trabalho. Correndo o risco de esquecer contribuições importantes, exemplifico com pesquisas de Everardo Rocha (1984), Isabel Travancas (1992) e João Batista Torres (1994), que conheço mais amiúde. Para a comunicação, no entanto, a antropologia é uma das ciências que fornece métodos e teorias, mesmo que isso se dê sem que se pensem sobre essas relações e apropriações, pois em inúmeros momentos o que acontece é a mera apropriação indébita sem maiores reflexões sobre os ajustes requeridos nesses casos. Ou, nas palavras de Eduardo Meditsch (2001) “subsiste (a área de comunicação), desta maneira, avançando sobre os domínios das disciplinas vizinhas, como antropologia, sociologia, política, psicanálise, economia, filosofia, etc, sem submeter os resultados de suas pesquisas ao julgamento de quem de direito... que poderiam avaliar a propriedade e o rigor de sua utilização” (2001:3 de 4). Em que pesem críticas que podem ser feitas a Meditsch sobre as conclusões que decorrem de sua análise, que não cabem aqui, ou à falta de legitimidade que 9 A necessidade dessa reflexão, todavia, talvez deva partir do sentido contrário: de trabalhos vinculados ao fluido campo da comunicação, que se apropriam das “prerrogativas” antropológicas. 10 confere aos comunicólogos para julgar seus próprios pares, também duvidosa, sua fala não deixa de espelhar um sentimento que vez por outra atravessa o campo da comunicação. Mas prossigamos. Adotando o ponto de vista do campo da comunicação 10, já que desejo pensar propriamente a interface, acredito que um dos momentos mais profícuos em que essa ocorre, fugindo inclusive à regra da não reflexão sobre as apropriações, se dá nos chamados estudos etnográficos da mídia, que agrupam dentro dessa nomenclatura pesquisas as mais diversas. Oriundo da incorporação, durante a década de 80, do chamado paradigma interpretativo, o estudo etnográfico da mídia “pode ser visto como uma das tentativas mais úteis de superar o impasse criado pelos paradigmas dualistas” (Drotner, 1997:168) e nasce dentro de um quadro de interesse pelos estudos qualitativos aplicados à comunicação11. Observando que esse tipo de pesquisa “deve ser visto como parte de mudanças nas estruturas internacionais de mídia e nas culturas cotidianas que a mídia ajuda a alimentar e a nutrir” (idem:185), Drotner defende que ele seja tomado como “uma alternativa epistemológica a outras formas de estudos qualitativos e não como sua extensão”, proposta que acopla, a meu ver, esses estudos à essência da etnografia, conforme realizada pelos antropólogos. Outro ponto defendido pela autora, e que parece ter herdado dos dilemas antropológicos, é a necessidade de reflexividade constante acerca do método. Postulando que a popularidade da etnografia relaciona-se à “etnificação das sociedades modernas” Drotner acredita que as perspectivas etnográficas “oferecem uma alternativa a dois paradigmas dominantes nas artes e nas ciências” que eu nomearia por meio da dualidade apocalípticos/integrados, cunhada por Umberto Eco12. É interessante perceber que pesquisadores que incorporam a etnografia a seus estudos também incorporam dilemas do campo antropológico. Infelizmente não dá para mapear aqui nem parte dessa inquietação. Mas, além dos trabalhos de Drotner, que também discutem o alcance e os usos da etnografia, cito Thomas Tufte, que discute a 10 Como hoje encontro-me do lado dos estudos da comunicação, partirei desse ponto de vista. O ensaio de Kirsten Drotner dá uma dimensão bastante ampliada dos inúmeros tipos de estudos etnográficos de mídia, bem como das matrizes teóricas que os geraram. Além de Drotner, é interessante verificar trabalhos de James Lull, um dos precursores, David Morley e Roger Silverstone e Len Ang. 12 É minha opinião que trabalhamos freqüentemente com polaridades nas pesquisas da comunicação. Ao fim e ao cabo, essas polaridades são variáveis sobre um mesmo tema, qual seja, as formas como nos posicionamos (ou como grupos se posicionam) frente à mídia, sua produção e seu consumo. 11 11 (im)possibilidade de generalizações a partir desses estudos e (contaminado pela antropologia) o etnocentrismo dos pesquisadores que os levam a cabo... Um estudo de caso: influências antropológicas sobre uma pesquisa dentro do campo da comunicação Realizo nesse momento a primeira reflexão mais aprofundada sobre a intersecção desses dois campos em meu trabalho, já que ela não seria necessária na elaboração da tese propriamente dita. Com uma certa surpresa, descubro que o ‘olhar’ (vamos chamá-lo assim) antropológico perpassa a constituição de toda a pesquisa, a começar pelo fato de ser quase que uma continuação de um problema construído teoricamente com e pelo fazer antropológico. Minha pesquisa, parte integrante do processo de doutoramento junto ao programa de pós-graduação de Ciências da Comunicação, na área de concentração jornalismo, dentro do núcleo de pesquisa de jornalismo e cidadania da ECA/USP, não é um exemplo clássico da confluência entre antropologia e comunicação, na medida em que não utiliza, por exemplo, a idéia da etnografia. No entanto, apresenta contornos a meu ver bastante antropológicos, sobre um determinado ponto de vista, fruto com certeza de minha anterior vinculação a esse campo. Pois foi dentro dele (e às suas regras sujeita) que realizei minha primeira pesquisa sistematizada, vinculada ao mestrado de Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Tanto no mestrado, quanto agora no doutorado, o universo de pesquisa é o jornalismo, entendido enquanto um campo social marcado por disputas pela legitimidade 13. No presente trabalho, o objetivo teórico é a construção de um romântico adjetivado, a partir da comparação de um romântico substantivado, datado e de características próprias, estabelecendo daí possíveis articulações do primeiro com o campo jornalístico. Antes de tentar traduzir o que pretendo cm isso, gostaria de estabelecer seus antecedentes, que estão intimamente relacionados com o fazer antropológico, objetivo primeiro desta comunicação. A começar pelo fato desse esforço reflexivo ter sido herdado da antropologia contemporânea. 13 Novamente recorro aos conceitos de Pierre Bourdieu. 12 Pois bem, as bases para a tomada do jornalismo enquanto tema de análise remontam ao olhar desenvolvido sobre esse universo, nos tempos da Faculdade de Comunicação Social, isso há cerca de 15 anos. Na época, eu sentia em relação ao jornalismo um tipo de estranhamento, que mais tarde identifiquei com a metodologia antropológica: a possibilidade de transformar o familiar em exótico e o exótico em familiar 14. Esse estranhamento, que com o passar dos anos transformou-se em um deslocamento e uma busca constante de ruptura com o senso comum dentro do campo, levou a indagar sobre as relações entre o fazer jornalístico e o que se diz sobre esse fazer. Foi portanto a antropologia que deu forma às minhas indagações – estruturas sobre as quais se assentam as pesquisas. Na época, confesso que possuía uma visão bastante maniqueísta sobre meu objeto de estudo: não percebia diversas sutilezas dentro do jornalismo, cuja compreensão fui incorporando à medida em que passei a construí-lo enquanto tema de estudo. E, ao não perceber essas sutilezas, também não me sentia nem um pouco preparada para o exercício da profissão pois, ao estranhar, precisava entender. Por esse motivo, afastei-me das redações e passei a freqüentar novamente os bancos escolares, desta feita na pós-graduação. Naquele momento, tratava-se de descobrir caminhos para pesquisar os aparentes paradoxos entre a práxis cotidiana dos jornalistas, influenciada por coerções sociais de todo o tipo (simbólicas, econômicas), e as idealizações sobre a profissão. Os passos subseqüentes foram uma forma de tentar responder a essa questão primeira, que passou a ser cada vez mais complexificada, num primeiro momento pela tentativa de abandonar as explicações através das dicotomias determinações sociais x vontades individuais, ou poder econômico x o que se produz no jornalismo. E, da mesma forma que (no dizer de Drotner), a antropologia pode fornecer subsídios para questionar as polaridades inerentes ao campo da comunicação, eu fui procurar nela os instrumentos adequados para uma pesquisa auto-reflexiva15. 14 Conforme Gilberto Velho (1987). Essa constatação foi feita a posterior. Na época confesso que o mote foi uma desconfiança generalizada em relação aos estudos sobre jornalismo, que me pareciam por demais áridos e vinculados aos produtos do campo, principalmente jornais impressos. Além disso tinha um projeto pessoal de retornar a Florianópolis, minha terra natal e as opções de pós-graduação, a meu ver, conduziam para a antropologia. Até porque tomei contato com a bibliografia básica exigida nos processos de seleção para os mestrados de humanas e foi com a antropologia que imediatamente me identifiquei. 15 13 Com essas indagações parti para a pesquisa que culminou em uma dissertação com feições antropológicas, a começar pelo título “Românticos e Burocráticos: pontos para uma etnografia do campo jornalístico paulistano”. O contato com a perspectiva de pensar o campo jornalístico tendo como ferramenta o romantismo, portanto, remonta àquela época. O romantismo apareceu pela primeira vez na fala dos informantes, ( minha ‘tribo’ para usar um jargão antropológico - jovens que ocupavam posições de prestígio em redações de veículos impressos na capital). Identifiquei em suas falas uma recorrência constante a “algo” que categorizavam como romântico, ou romantismo, no jornalismo. Um “algo” que também era visível nas falas dos informantes mais velhos, outra ‘tribo’ que seria ‘comparada’ aos meus ‘nativos’ por excelência. Além disso, o romantismo aparecia nos textos metalingüísticos produzidos pelo campo. Essa recorrência colocava o jornalismo como missão, elegia a reportagem como atividade paradigmática dentro do campo, atribuía ao jornalismo, e por extensão ao jornalista, um fundamental papel social na defesa das instituições democráticas e da cidadania, por exemplo, e aludia a uma determinada relação com a retratação do real. Na dissertação interpretei esse romântico como uma “lógica de legitimação” dentro do campo jornalístico, que era invocada conforme as necessidades dos agentes. Uma lógica de legitimação que se contrapunha a outra, a burocrática, que pregava, por sua vez, um comprometimento do jornalista com um certo “profissionalismo”. Ou, como formulei na conclusão da dissertação: “Em contraposição à essa lógica de legitimação burocrática, proponho a utilização de outra categoria/lógica de legitimação: o jornalismo Romântico, que sempre esteve colocado em termos de alusões: de uma forma ou de outra, em todos os discursos... aparecem referências a um jornalismo que permanece enquanto ideário” (Lago, 1995: 141) Mas, preocupada que estava em identificar como os jovens se articulavam no campo jornalístico paulistano, mesmo tendo essa recorrência se tornado crucial, não tive tempo hábil (nem fôlego), para trabalhá-la. Acabou, portanto, entrando de contrabando na dissertação, assumindo um peso desmedido em relação à sua explicitação teórica 16. 16 De todas as questões levantadas pela banca em torno da dissertação, creio que a mais contundente referiu-se ao desequilíbrio entre a importância que dei ao romântico e a falta de um esforço de pesquisa que sustentasse esse lugar. 14 Mas foi um peso desmedido que de certa forma se justificava, pois pensava na época, e penso ainda agora, que esse Romântico está profundamente vinculado aos mecanismos que conformam o próprio jornalismo. Compreendê-lo, portanto, é um dos caminhos para se compreender aspectos desse universo. Dois anos após a finalização do mestrado, prestei concurso para o doutorado na ECA/USP, para retomar questões apenas levantadas em meu primeiro encontro sistematizado com o jornalismo. O objetivo, desta feita, é indagar sobre esse algo, o romântico, começando por construí-lo de forma que possa ser operacionalizado empiricamente. Ou, assumindo as palavras de Max Weber, “a nossa tarefa será agora formular, tão claramente quanto possível, o que percebermos de maneira confusa...” (2000), estabelecendo ao mesmo tempo relações desse Romântico construído com o campo jornalístico. Então, voltemos às alusões que primeiro identificaram o romantismo. Elas apareciam tanto junto a jornalistas mais jovens, melhor integrados às exigências do trabalho em grandes empresas, quanto aos jornalistas mais velhos, com trajetórias e encontros com o jornalismo diferentes dos primeiros. Como exemplo desse segundo aspecto cito a fala de uma jornalista sobre seu ingresso na profissão, em fins da década de 70: “Eu peguei o jornalismo romântico com sentido social. Era o trabalho que se fazia, tendo em vista, um pouco de olho na repercussão que aquilo tivesse, ou na interferência que o seu trabalho, a sua matéria, podia ter na realidade. Eu posso mudar o rumo de um caso policial com a minha matéria. Eu posso mudar o rumo da história, da política, com uma série de matérias ou investigação, na qual o jornal invista, etc.” (Lago, Cláudia. 1995:129). Da mesma forma, jornalistas com menor tempo de carreira, também falavam sobre um certo romantismo: “... desmontei logo de cara uma coisa romanceada que as pessoas têm no jornalismo...” (idem:120). Essa recorrência passou a ser observada também em meta textos sobre a profissão, produzidos por jornalistas enquanto coletas de testemunhos e mesmo em textos produzidos por jornalistas pesquisadores, tentando dar conta do universo jornalístico. Como exemplo desse último item, menciono a conclusão de Jorge Cláudio Ribeiro em seu ensaio Sempre 15 Alerta: “Dentro de um campo profissional marcado pelo romantismo, o acaso pode significar um chamado superior, ao qual a pessoa não resiste” (grifo meu; 1994:201). Mais recentemente, Scherner de Oliveira (2000), em uma dissertação que investiga a memória de militantes da imprensa alternativa no Rio Grande do Sul, refere-se seguidamente ao aspecto romântico do ofício do jornalista, como na passagem em que contrapõe as “contradições e tensões dos jornalistas, vistas por muitos como romântica e que, nos últimos tempos, vêm sendo submetidas à lógica do capital-informação” (2000:18). Ou na indagação “a profissão de jornalista ainda pode ser considerada romântica, mesmo atrelada a questões de dominação econômica, política e também tecnológica?” (idem:19). Scherner pressupõe, na verdade, a existência de um viés romântico do jornalismo e, de certa forma, atrela-o a atitudes de contestação que levaram seus informantes a vincularem-se à imprensa alternativa. Penso que a utilização do termo “romântico” e suas variáveis, é uma constante para designar, nomear, identificar, pelos atores do campo jornalístico, características de seu universo. O jornalismo era, foi, está, ou deveria estar, marcado pelo romantismo, dependendo do ponto de vista de quem enuncia o termo. A partir dessa constatação, inúmeras perguntas podem ser feitas. Em primeiro lugar, o significado preciso do romântico para quem o utiliza. E, nesse ponto inicial, já algumas variáveis se impõem: Existe um único significado para o romântico? Se não, quais as diferenças de significados? As possíveis diferenças estão relacionadas a que fatores? E, mais importante: o que o romântico designa tem paralelo com a práxis jornalística? Até que ponto explica essa práxis? Como se relaciona a ela? É nesse contexto que situo a constante utilização de um certo romântico para explicar o jornalismo. Essa, se não pode ser tomada como linear, com certeza pode servir de ponto de partida para investigar nexos dentro desse universo marcado pelos paradoxos. Afinal, uma recorrência tão intensa necessariamente significa algo. Mesmo que esse algo esteja mais oculto pela própria recorrência do que clarificado por ela. Prosseguindo, percebi que o romântico como termo para designar relações dos profissionais com o jornalismo foi recebido enquanto dado de pesquisa de duas formas contrastantes: como algo a ser defendido e como algo a ser condenado. Mas uma 16 particularidade foi observada, o emprego do termo apareceu sempre conectado a uma ruptura temporal. Era romântico algo que se fazia (sentia, defendia, pensava) no passado. Ele designava um jornalismo aparentemente distante no tempo, (sem que essa distância fosse precisada). Um jornalismo diferente do professado hoje em dia. Em termos de forma o romantismo indicava um jornalismo voltado para a prática da reportagem, investigativa e profunda - enquanto atividade paradigmática -, com maior vinculação à pureza de estilo do que à agilidade na produção de notícias. Tipicamente, no sentido weberiano, seria algo como aquele jornalismo professado por profissionais conectados à necessidade de apurar a veracidade dos fatos, de bem informar o público, dispostos a abdicar de quase tudo em nome dos valores mais altos de sua missão, pois que o jornalismo é entendido enquanto uma missão. Outro aspecto em relação ao romântico merece ser levantado: sua ocorrência no discurso de profissionais com tempos de inserção distinto dentro do jornalismo. Ora, se o romântico identifica uma ruptura, ser mencionado por jornalistas de diversas faixas etárias indica sua apreensão indiscriminada, sua existência transcendendo um grupo específico. E, se aceitarmos que jornalistas não existem enquanto grupo social homogêneo “o que existe são jornalistas diferentes segundo o sexo, a idade, o nível de instrução, o jornal, o meio de informação” (Pierre Bourdieu, 1997:30), a alusão ao romântico (mesmo que de forma distinta, bem entendido), por um conjunto diferenciado de jornalistas indica que essa recorrência faz parte do conjunto simbólico que permeia o campo. A partir dessas pressuposições, passei a formular hipóteses iniciais que norteiam a pesquisa, a principal é de que é possível identificar e conceituar um certo romântico e relacioná-lo ao jornalismo. Após leituras e reflexões, penso que ele tem que ser identificado não como uma lógica de legitimação, conforme fiz anteriormente, mas sim como um ethos que perpassa de uma forma ou de outra o campo jornalístico. Aqui, uma clara concessão à antropologia. Para analisar esse romântico que atribui características ora a um tipo de jornalismo, ora a um tipo de jornalista, tentarei estabelecer uma comparação com um romantismo substantivo, datado, que me permita identificar categorias de análise 17. Outra opção teórico- 17 Refiro-me ao Movimento Romântico que teve seu auge entre o final do século XVIII e início do XIX, e que influenciou decisivamente a sensibilidade ocidental. 17 metodológica, foi a de analisar como esse romântico então construído aparece na produção acadêmica do sub-campo jornalístico. Para tanto, recolho como corpus de análise comunicações apresentadas nos dois últimos anos em grupos de trabalhos de jornalismo dos dois encontros principais do campo da comunicação (Compós e Intercom). E, como não poderia deixar de ser, tenho ido a esses encontros e exercitado uma espécie de pesquisa participante, confesso que sem o rigor próprio requerido para realizar uma etnografia (que não é o objetivo). Se o objetivo não é realizar uma pesquisa propriamente antropológica, volto a frisar que as questões próprias do campo da antropologia perpassam todo o trabalho. Principalmente porque volto meu olhar para o específico, o particular, o que poucos remontam como significante para tentar pensar as complexas relações dentro do jornalismo 18. E faço isso mantendo a desconfiança frente à possibilidade de generalizações desmedidas. Além disso, não posso deixar de constatar que preocupações manifestas em diversas ocasiões, como no relatório que apresentei com vistas à qualificação, são de tradição bastante antropológica. Assim é que reputo como fundamental a reflexão sobre “a condição de duplicidade do pesquisador” que tem sua identidade marcada pela pertença ao universo jornalístico, uma “condição especial que merece ser problematizada, não como impeditivo de pesquisa, mas como um dado que deve ser pesado conjuntamente às escolhas teórico-medotológicas” (In: Lago, 2001: 53). Conclusão: A meu ver o entrecruzamento Antropologia/Comunicação pode ser extremamente profícuo se o primeiro, e seu método, voltado por excelência para a micro observação puder iluminar a amplitude e a complexidade dos fenômenos da comunicação, que não podem ser interpretados à luz de teorias por demais totalizantes. Esse contato é bastante interessante dentro da comunicação, um campo ainda em construção, transdisciplinar, marcado por uma 18 Quando menciono isso, estou sendo literal. Cansei de ouvir colegas pesquisadores questionarem a possibilidade de interpretar o jornalismo recorrendo ao romântico – da mesma forma que anteriormente ouvia colegas antropólogos questionarem a possibilidade de que eu estudasse jornalistas, porque compartilhava com eles a identidade profissional. Tanto que minha dissertação foi graciosamente batizada de antropologia do umbigo... Ao fim e ao cabo, acho que cada campo guarda seus tabus, especifica suas proibições, geralmente à luz do que é originalmente feito. A utilização de metodologias/teorias/olhares ‘estrangeiros’ tem inúmeros percalços. 18 história de polaridades. Por outro lado, a dinâmica própria do campo da comunicação – e a centralidade de seu objeto para a vida social global - obrigam o entrecruzamento dessas análises marcadas pelo vínculo com o local/particular/específico a conceitos vinculados aos aspectos mais contextuais aos quais estamos sujeitos. Dessa forma, o entrecruzamento entre antropologia e comunicação pode iluminar a complexidade do segundo e, ao mesmo tempo, garantir ao primeiro a possibilidade de inserir suas análises às amplas e abrangentes redes de relações que permeiam a ‘sociedade global’. No entanto, se esses desdobramentos são interessantes, aparentemente os dois campos limitam-se a se tocar, não produzindo um verdadeiro diálogo. Talvez isso aconteça pela sujeição das pesquisas aos seus estatutos disciplinares, definidos em função não de debates epistemológicos, mas sim de institucionalizações. A saída me parece ir na direção de um intercâmbio acerca das questões que conformam os campos, suas semelhanças e diferenças, suas especificidades. A construção de hábitos de pesquisa que se pautem mais pela necessidade de diálogo real e entrecruzamentos do que pelo simples cumprimento das disposições próprias de cada campo de saber. Essa não é uma proposição fácil, pois por mais que falemos em transdiciplinaridades, diálogos, etc, sua prática mostra-se bastante incipiente e desigual. Percebo isso por minha própria pesquisa, na qual a antropologia aparece ligada a questões fundamentais – provavelmente é a tradição antropológica que forneceu o maior número de perguntas a serem respondidas, além de matrizes teóricas importantes-, sem que a elaboração dessa “interferência” tenha sido até então sequer cogitada. 19 Bibliografia BOUGNOUX, Daniel. Introdução às ciências da comunicação. Bauru, Edusc, 1999. BOURDIEU, Pierre. La reproducion, élements pour une théorie du systéme d’enseignement. Paris: Ed. de Minuit, 1970 ________________ Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. ________________ A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva,1987. ________________ O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, 1989. ________________ Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. ________________ L’Emprise Du Journalisme. In: Actes de La Reserch in Sciences Sociales. Paris: Ed. de Minuit, mai/1994 nº 101/102. 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