Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 112 Física Atómica e Nuclear Notas de Aula 7 Átomos Multilelectrónicos Os átomos multielectrônicos são átomos constituídos por mais de dois electrões. Começaremos por discutir as propriedades dos sistemas quânticos constituídos de várias partículas idênticas, como é o caso dos electrões, o que nos levará ao princípio de exclusão de Pauli. Este princípio é fundamental para a determinação da estrutura de átomos multielectrónicos. A seguir estudaremos os átomos com mais de um electrão no estado fundamental, e a sua descrição sistemática fornecida pela tabela periódica dos elementos. A mecânica quântica explica completamente a tabela periódica, que constitui a base da química inorgânica e de grande parte da química orgânica e da física do estado sólido. Posteriormente estudaremos os estados excitados de alta energia dos átomos multielectrónicos, que participam na emissão de raios - X por esses átomos. 7.1 Partículas Idênticas Nesta secção vamos estudar a descrição quântica de um sistema constituído de duas ou mais partículas idênticas, como é o caso dos átomos multielectrónicos. Como é que a Mecânica Quântica descreve um sistema constituído de duas ou mais partículas idênticas? É uma discussão que conduzirá a fenómenos quânticos que não têm absolutamente quaisquer análogos clássicos. Vamos estudar a natureza desta questão pelo seguinte exemplo. Supomos uma caixa com dois electrões. Estes dois electrões, que são duas partículas idênticas, movem-se livremente dentro da caixa, podendo colidir com as paredes da caixa e ocasionalmente colidir um com o outro. A trajectória de cada um desses electrões, segundo a descrição clássica, é bem definida, de modo que a observação contínua do sistema nos permite distinguir os dois electrões, mesmo que se trate de partículas idênticas. Uma forma de acompanhar o desenvolvimento desse sistema, sem perturbá-lo, é filmando-o. Se num determinado quadro do filme rotulamos de 1 a imagem de um dos electrões e de 2 a do outro electrão, podemos acompanhar o movimento dos electrões através dos quadros subsequentes e seremos sempre capazes de distinguir o electrão 1 do electrão 2. O procedimento está ilustrado na Figura 7.1. Acontece que não podemos rotular os electrões. Os electrões são partículas idênticas, o que significa que um dado electrão é exactamente o mesmo que qualquer outro. No entanto na física clássica partículas idênticas podem ser distinguidas umas das outras através de procedimentos que não afectam o seu comportamento, e assim é possível identificar cada partícula separadamente. Na mecânica quântica, isto não pode ser feito porque o princípio da incerteza impede uma observação contínua do movimento dos electrões. Os fotões utilizados na iluminação da cena para a filmagem, por exemplo, interagem com os electrões significativamente e imprevisivelmente. Os comportamentos dos electrões são seriamente afectados por qualquer tentativa de distingui-los. Uma maneira mais formal de dizer a mesma coisa é: na mecânica quântica a extensão finita das funções de onda associadas aos electrões pode ocasionar uma sobreposição entre elas de modo a tornar-se difícil dizer qual função de onda está associada a que electrão. Um bom Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 113 exemplo é o caso do átomo de hélio, que é um átomo com dois electrões. As funções de onda desses dois electrões se sobrepõem em todos os estados quânticos e por isso não há maneira de distingui-los. Existe uma sobreposição entre as funções de onda associadas ao electrão e ao protão de um átomo de hidrogénio. Mas isto não conduz a nenhuma dificuldade para distinguir as duas partículas uma vez que o electrão e o protão não são partículas idênticas – podem ser distinguidas porque têm diferentes massas, cargas, etc. Figura 7.1. Em cima temos uma sequência de 10 quadros de um filme de dois electrões movendo-se numa caixa. Em baixo temos uma sobreposição ampliada dos 10 quadros representados acima, que mostra as trajectórias dos electrões. Portanto podemos observar que existe uma distinção fundamental entre as descrições clássicas e quânticas de um sistema constituído de partículas idênticas. Resultados mensuráveis obtidos por cálculos da mecânica quântica não devem depender da possibilidade de identificação de partículas idênticas. Vamos expressar através das funções próprias, que são responsáveis pela descrição de sistemas quânticos, a expressão matemática das ideias qualitativas desenvolvidas anteriormente. Comecemos por considerar duas partículas idênticas, numa caixa. Estas partículas podem ser dois electrões, dois protões, duas partículas alfa, dois átomos de hélio, etc. para simplificar vamos considerar desprezável a interacção entre elas, portanto colidirão com as paredes mas não entre si. Mesmo com estas simplificações os resultados que desenvolveremos a seguir serão bem gerais. A equação de Schrödinger independente do tempo para o nosso sistema de duas partículas, em três dimensões será: 2 2 T 2 T 2 T 2m x12 y12 z12 2 2 T 2 T 2 T 2 2 m y22 z22 x2 VT T ET T (7.1) onde m é a massa de cada partícula, x1, y1, z1 , as coordenadas da partícula1 e x2 , y2 , z2 as coordenadas da partícula 2. Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 114 Escrevendo a equação dessa forma corremos o risco de violar o requisito quântico de indistiguibilidade. Veremos que de facto isto ocorre, mas que será possível contornar o problema. Faremos isso procurando certas combinações lineares de funções próprias, o que leva a predições mensuráveis independentes da atribuição de índices. Na equação de Schrödinger independente do tempo (7.1), consideraremos: T x1,..., z2 = função própria para todo o sistema. ET = energia total para todo o sistema . VT x1 ,..., z 2 = energia potencial para todo o sistema. Como estas partículas não interagem entre si, elas movem-se independentemente e a energia potencial do sistema total corresponde a soma das energias potenciais de cada partícula e que representa a sua interacção com as paredes da caixa . Assim: VT x1,..., z2 V x1, y1, z1 V x2 , y2 , z2 (7.2) Utilizando a técnica de separação de variáveis, verificamos que para a energia potencial (7.2), existem soluções do tipo: T x1,..., z2 x1, y1, z1 x2 , y2 , z2 (7.3) que satisfazem duas equações de Schrödinger de uma partícula, idênticas e independente do tempo. A função própria total está escrita como um produto de duas funções próprias, descrevendo o movimento independente das partículas. Cada uma das funções próprias precisa de três números quânticos para especificar a forma matemática da sua dependência em relação às três coordenadas espaciais. Além disso cada uma requer mais um número quântico para especificar a orientação do spin da partícula. Designaremos de , ou , ou os números quânticos espacial e de spin de uma das partículas. Assim teremos para cada partícula: x1 , y1 , z1 1 e x2 , y2 , z2 2 (7.4) Assim a função própria total T x1 ,..., z2 , para o caso em que a partícula 1 se encontra está no estado , e a partícula 2 se encontra no estado é: T x1 ,..., z2 1 2 (7.5) Assim a função própria total T x1 ,..., z2 , para o caso em que a partícula 1 se encontra está no estado , e a partícula 2 se encontra no estado é: T x1 ,..., z2 1 2 Notas de Aula 2004/05 (7.6) Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 115 Agora veremos se grandezas mensuráveis, calculadas com estas funções próprias totais, dependem da atribuição dos índices das partículas. A grandeza mensurável mais simples é a função densidade de probabilidade. Então, teremos para (7.5) e (7.6): T T 1 2 1 2 (7.7) T T 1 2 1 2 (7.8) e Como as duas partículas idênticas são indistinguíveis, se permutarmos as suas coordenadas não modificamos a quantidade mensurável, que no caso é a função densidade de probabilidade. Permutando os índices de (7.7): T T 1 2 1 2 2 1 2 1 1 2 2 1 (7.9) onde as setas indicam que a expressão da esquerda transformou-se na expressão da direita, quando 1 muda para 2 e 2 muda para 1. Vemos claramente que a densidade de probabilidade da direita não é igual a densidade de probabilidade original. Assim uma nova rotulagem das partículas modifica de facto a função densidade de probabilidade. O mesmo ocorre para (7.8). Concluímos que estas funções próprias não são aceitáveis para descrever correctamente o sistema de duas partículas idênticas. Entretanto é possível construir uma função própria que satisfaça a equação de Schrödinger independente do tempo de maneira que não modifique a quantidade mensurável, e neste caso a função densidade de probabilidade, quando permutamos as coordenadas das partículas. Temos duas maneiras de fazer isso. Vamos considerar as seguintes combinações lineares das funções próprias (7.5) e (7.6): S 1 1 2 1 2 2 (7.10) denominada de função própria simétrica. A 1 1 2 1 2 2 (7.11) denominada de função própria anti-simétrica. Assim, a energia total fica independente do estado de cada partícula, se as partículas forem idênticas, e também, qualquer uma das funções, T 1 2 ou T 1 2 são soluções da equação de Schrödinger independente do tempo, com Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 116 o mesmo valor próprio ET , que corresponde a energia total do sistema. Como essa equação é linear em T , implica em que as duas combinações lineares, S e A , das duas formas de T , são também soluções. Como correspondem ao mesmo valor de ET , são funções degeneradas. Este fenómeno chama-se degenerescência de troca, porque a diferença entre as duas funções próprias está relacionada com a troca das coordenadas das partículas. O factor 1/ 2 assegura que S e A estão normalizadas se as duas funções T estiverem normalizadas. Calculando a densidade de probabilidade para S e A , os valores não se alteram na troca de partículas. Podemos verificar que isso acontece para qualquer grandeza mensurável, analisando o efeito de troca das partículas sobre as próprias funções próprias. Assim: S 1 1 1 2 1 21 2 1 2 1 S 2 2 2 2 1 (7.12) A 1 1 1 2 1 21 2 1 2 1 A 2 2 2 2 1 (7.13) Observamos que S não se altera com a permutação, mas que A fica multiplicada por -1. São estas propriedades que dão origem aos seus nomes. Para a densidade de probabilidade utilizando S e A , teremos: S S S S 1 2 2 1 (7.14) e A A 12 A A A A 1 2 2 1 (7.15) respectivamente. Então, para as duas funções totais, simétrica e anti-simétrica, as funções densidade de probabilidade não se alteram quando fazemos uma permutação das partículas. Não se pode contestar quanto ao facto de aparecer o sinal menos em A , uma vez que não é uma quantidade mensurável. Pode-se mostrar que qualquer quantidade (grandeza física) mensurável que pode ser obtida a partir de funções próprias totais simétricas ou anti-simétricas não é afectada por uma troca de partículas. Assim as funções próprias S e A dão uma descrição correcta de um sistema constituído de duas partículas idênticas. Embora os índices 1 e 2 apareçam nas expressões de S e A , este facto não viola os requisitos de indistiguibilidade porque o valor de qualquer quantidade mensurável obtida a partir das funções próprias é independente da atribuição de índices. Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 117 7.2 Princípio de Exclusão de Pauli A partir do estudo dos níveis de energia dos átomos, em 1925, Pauli enunciou o seguinte princípio: Em um átomo multielectrónico nunca pode haver mais de um electrão ocupando o mesmo estado quântico. Esta é uma condição fraca do princípio de exclusão de Pauli. A partir da análise dos dados experimentais, Pauli estabeleceu que o princípio de exclusão representa uma propriedade dos electrões e não, especificamente, de átomos. O princípio de exclusão aplica-se em qualquer sistema contendo electrões. Vamos agora supor, a função própria total anti-simétrica definida em (7.11), no caso em que as duas partículas estão no mesmo estado quântico , espacial e de spin. Então fazemos em A : A 1 1 2 1 2 1 1 2 1 2 0 2 2 (7.16) Concluímos então que, se duas partículas são descritas pela função própria total antisimétrica, elas não podem ter os mesmos números quânticos espacial e de spin. Generalizando para o caso de muitos electrões, todas as funções próprias totais antisimétricas têm propriedades coerentes com as exigências do princípio de exclusão de Pauli. Isto implica que existe uma expressão alternativa para o princípio de exclusão: Um sistema constituído de vários electrões deve ser descrito por uma função própria total anti-simétrica. Esta condição especificada pelo segundo enunciado do princípio de exclusão é mais forte do que o primeiro enunciado porque, satisfaz a esta condição e também está de acordo com as exigências da indistinguibilidade, que impõe funções próprias totais de simetria definida: ______________________________________________________________________ Exemplo 7.1. Determine a forma da função própria total anti-simétrica normalizada de: a) Um sistema de dois electrões e um sistema de três electrões no qual as interacções entre eles são desprezáveis. b) Um sistema de muitos electrões nas mesmas condições da alínea a). c) Um sistema de muitos fotões. Resolução: a) A função total de dois electrões é do tipo A , que também pode ser escrita na forma do determinante de Slater: A 1 1 2 1 1 2 1 2 2 2! 1 2 Escrevendo as três partículas em forma de determinante fica: Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 118 1 2 3 1 1 A 1 2 3 = 1 2 3 1 2 3 3! 3! 1 2 3 + 1 2 3 1 2 3 1 2 3 1 2 3 Cada função própria é uma solução da equação de Schrödinger independente do tempo, e consequentemente a combinação linear também é solução. b) Para N electrões, podemos desenvolver o determinante: A 1 2 ... N 1 2 ... N ... ... ... ... 1 2 ... N c) Para o caso de três fotões. A função de onda própria total para três fotões corresponde a função de onda obtida anteriormente mas com todos os sinais positivos. Assim: 1 1 2 3 1 2 3 3! 1 2 3 1 2 3 1 2 3 ______________________________________________________________ ________ S Assim como acontece no caso dos electrões, as características de simetria de outros tipos de partículas são estabelecidas experimentalmente. A Tabela 7.1 mostra a característica de simetria de vários tipos de partículas. Figura 7.2. Característica de simetria de várias partículas. Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 119 7.3 Forças de Troca e o Átomo de Hélio Agora vamos estudar uma propriedade incomum das partículas indistinguíveis. Consideramos dois electrões em um sistema em que podemos ignorar as interacções entre eles. A função própria total para este sistema é: A 1 1 2 1 2 2 (7.17) Para a presente discussão vamos escrever as variáveis espaciais e de spin separadamente. Assim: (função própria total) = (função própria espacial) (função própria de spin) Faremos com que ambos os factores tenham uma simetria definida em relação à troca de partículas. A anti-simetria da função própria total será obtida de duas formas, a saber: T antisimétrica espacial spin simétrica ou antisimétrica T anti-simétrica espacial spin anti-simétrica (7.18) simétrica onde: espacial S 1 a 1 b 2 b 1 a 2 2 (7.19) A 1 a 1 b 2 b 1 a 2 2 (7.20) simétrica espacial anti- simétrica Aqui a, b representam o conjunto dos três números quânticos espaciais. É importante observar que as funções próprias espaciais são contínuas (Tabela 2.2 do Capítulo 2b) enquanto que as funções próprias de spin são discretas. Para o caso de dois electrões, que não interagem entre si, as funções de spin são poucas, cada electrão tem duas orientações de spin possíveis, havendo somente quatro estados de spin possíveis para o sistema, e consequentemente quatro funções próprias de spin possíveis. Pelo facto de serem poucos os estados, nós podemos especificar as suas formas. Estas funções próprias de spin para o sistema têm simetrias definidas: uma será anti-simétrica e as outras três serão simétricas. No caso da função anti-simétrica, temos: 1 1 / 2,1 / 2 1 / 2,1 / 2 . Esta função anti-simétrica é uma anti-simétrica 2 combinação linear dos símbolos 1/ 2,1/ 2 que especifica um estado onde as componentes z dos spins tem valores, em unidade , de +1/2 para o electrão 1 e –1/2 para o electrão 2, menos um símbolo 1/ 2,1/ 2 que especifica um estado onde as componentes z são –1/2 para o electrão 1 e +1/2 para o electrão 2. Devido ao sinal Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues Física Atómica e Nuclear – Capítulo 7. Átomos Multilelectrónicos. 120 menos entre os símbolos, a combinação linear é anti-simétrica, numa troca de símbolos entre os dois electrões, de maneira que o primeiro símbolo se converte em 1/ 2,1/ 2 e o segundo símbolo em 1/ 2,1/ 2 , e aparece um sinal menos em toda a combinação linear. Existe três possibilidades de funções de spin simétricas: 1 simétrica 1 / 2,1 / 2 , simétrica 1/ 2,1/ 2 1/ 2,1/ 2 2 simétrica 1/ 2,1/ 2 . Sua simetria é óbvia, uma vez que para cada troca de símbolos, a função não muda. Não manipularemos estes símbolos e utilizaremos os vectores de estado definidos anteriormente. Vimos na equação (6.71 do Capítulo 6b) que as funções 1 0 próprias de spin são os spinores próprios: e . 0 1 O estado assimétrico pode ser obtido considerando o determinante de Slater, corresponde à: (1) 1 2! (1) A ( 2) 1 (1) ( 2) (1) ( 2) ( 2) 2 (7.21) Portanto a função própria de spin anti-simétrica é: A 1 (1) ( 2) (1) ( 2) 2 (singleto) (7.22) Esta função própria descreve o estado chamado singleto. Existem três funções próprias de spin simétricas possíveis: 1S (1) ( 2 ) 0S 1 (1) ( 2) (1) ( 2) 2 (tripleto) (7.23) S1 (1) ( 2) Estas três funções próprias descrevem os chamados estados tripleto. Todas as quatro funções próprias de spin estão normalizadas. Uma interpretação física dos estados de singleto e tripleto pode ser obtida calculando-se, para cada estado, o módulo S e a componente z, Sz do momento angular total de spin: S S1 S 2 (7.24) onde S1 e S 2 correspondem ao momento angular de spin de cada electrão. Notas de Aula 2004/05 Ana Rodrigues