sociologia jurídica

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SOCIOLOGIA JURÍDICA
Coleção Direito, Política e Cidadania, 25
Enio Waldir da Silva
SOCIOLOGIA JURÍDICA
Ijuí
2012
 2012, Editora Unijuí
Rua do Comércio, 1364
98700-000 – Ijuí – RS – Brasil –
Fone: (0__55) 3332-0217
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Editor: Gilmar Antonio Bedin
Editor-Adjunto: Joel Corso
Capa: Elias Ricardo Schüssler
Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí
S586s
Silva, Enio Waldir da.
Sociologia jurídica / Enio Waldir da Silva. – Ijuí : Ed.
Unijuí, 2012. – 304 p. – (Coleção direito, política e cidadania ; 35).
ISBN 978-85-7429-987-7
1. Sociologia. 2. Ciências sociais. 3. Direito. 4. Cidadania.
I. Título. II. Série.
CDU : 301
301:34
Editora Unijuí afiliada:
Associação Brasileira
das Editoras Universitárias
A Coleção Direito, Política e Cidadania é uma iniciativa editorial do Departamento de Estudos Jurídicos da Unijuí e da Editora Unijuí, voltada
à publicação de textos que privilegiam a pesquisa jurídica interdisciplinar e a reflexão crítica sobre o direito e suas relações com as diversas
ciências humanas e sociais. O objetivo da Coleção é disponibilizar, aos
leitores interessados, um conjunto de publicações que contribuam para
qualificar o debate sobre os principais temas da área e que auxiliem no
desenvolvimento da cidadania.
Conselho Editorial
Dr. José Eduardo Faria (USP – SP)
Dr. Darcísio Corrêa (Unijuí – RS)
Dr. Gilmar A. Bedin (Unijuí – RS)
Dr. Luiz Ernani Bonesso de Araújo (UFSM – RS)
Dra. Odete Maria de Oliveira (UFSC – SC)
Dr. Sergio Augustin (UCS – RS)
Dra. Claudia Rosane Roesler (Univali e Cesusc – SC)
Dr. Leonel Severo Rocha (Unisinos – RS)
Dr. Arno Dal Ri Júnior (Fondazione Cassamarca de Treviso – Itália)
Dr. José L. Bolzan de Morais (Unisinos – RS)
Dra. Silvana Winckler (Unochapecó – SC)
Dr. Otávio C. Fischer (Universidade Tuiti do Paraná e Unicemp – PR)
Dr. Celso L. Ludwig (UFPR-PR)
Dra. Maria Claudia Crespo Brauner (UCS – RS)
Dra. Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (UCS-RS)
Dra. Sandra Regina Leal (Faplan – RS)
Dra. Sandra Regina Martini Vial (Unisc – Unisinos)
Comitê Editorial
Dr. Doglas Cesar Lucas
Msc. Fabiana Padoin
Msc. Patricia Borges Moura
Msc. Sérgio Luiz Leal Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO...................................................................................9
INTRODUÇÃO: Sociologia e a Sociologia Jurídica............................15
CAPÍTULO 1
AFIRMAÇÃO E ESTRUTURAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA...29
Trabalho e Sociedade........................................................................31
Pensamento Social............................................................................39
CAPÍTULO 2
A MODERNIDADE – A JUDICIALIZAÇÃO
DAS RELAÇÕES SOCIAIS..................................................................51
Razão Positivista e Sistema Social...................................................65
A Direito Funcionalista e Moral Social ..........................................72
Direito, Racionalidade e Legitimidade . ........................................89
CAPÍTULO 3
RAZÃO CRÍTICA, DIREITO E LIBERDADE ............................101
A Revolução Social e a Ordem Justa.............................................103
Direito como Concretização dos Entendimentos Coletivos........115
Direito e o Pensamento Alternativo..............................................132
CAPÍTULO 4 . .....................................................................................155
TEMAS DE SOCIOLOGIA JURÍDICA ATUAL............................155
O Direito como Sistema Autopoiético...........................................160
Direitos Culturais............................................................................194
Direito e Movimentos Sociais........................................................216
Direito, Conflitualidade e Violência..............................................237
Direito, Mídia e Tecnologia na Sociedade Global........................271
REFERÊNCIAS...................................................................................281
Saiba Mais........................................................................................294
Textos de Boaventura de Sousa Santos:........................................302
Títulos das Obras no Google. <www.google.br>..........................303
APRESENTAÇÃO
A Sociologia Jurídica tem uma história nos cursos de Graduação
em Direito e Sociologia da Unijuí. Por meio dela procuramos pensar o
Direito para além da “teoria pura”, no sentido de que a norma jurídica
não pode ser tratada de forma isolada ou separada dos contextos sociais
que lhe dão origem e fundamento. São os homens, como seres sociais
concretos, que produzem as estruturas jurídicas de regulação da vida
social, considerando os interesses e os lugares que efetivamente ocupam
na sociedade.
A sociedade humana pode ser definida de várias formas; todas elas,
no entanto, partem da totalidade como princípio geral. O Direito, assim
como a economia, a política, a cultura, é parte que só adquire significado
(ou concreticidade) quando devidamente inserido na totalidade. Não
significa que a parte não seja também um “sujeito” que produz a vida
social. Compreender a especificidade das estruturas jurídicas na produção
da vida social é a tarefa da Sociologia Jurídica.
A história da Sociologia é um campo de intensa luta social. A
multiplicidade de leituras (possíveis) da sociedade produz sujeitos
portadores de diferentes projetos de sociedade. Isto ocorre em todos os
campos específicos da Sociologia. Isso, contudo ,isto é mais evidente
nas chamadas teorias clássicas da Sociologia – Comte/Durkheim, Marx e
Engels e Weber. Cada uma expressa uma leitura diferente da sociedade,
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Suimar João Bressan
com repercussão no mundo da política. Pode-se afirmar que os grandes
confrontos sociais nos séculos 19 e 20 tiveram a inspiração nas teorias
sociológicas citadas.
Esta breve introdução é necessária para contextualizar o livro do
professor Enio Waldir da Silva. Trata-se de uma obra de cunho didático,
que servirá de base para o componente curricular de Sociologia Jurídica
dos cursos de Graduação da Unijuí. Uma obra didática sempre se constrói com uma linguagem mais acessível, considerando que os leitores
(alunos) não são ainda especialistas nas temáticas desenvolvidas. Ela não
pode, contudo, perder o rigor teórico, sob pena de não contribuir para o
processo de produção de conhecimento.
O livro Sociologia Jurídica está estruturado em quatro capítulos.
O primeiro – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica – discute as
questões gerais e introdutórias da temática do livro: a relação ente sociedade e Direito. A recuperação de momentos importantes da História da
humanidade a partir de categorias sociológicas básicas, como trabalho,
classe social e Estado, torna possível a visualização da função social do
Direito e, ao mesmo tempo, evidenciar sua historicidade. As estruturas
jurídicas mudam com a mudança do seu substrato social, e esta é uma
tese fundamental da Sociologia Jurídica.
O segundo capítulo – A Modernidade – Judicialização das Relações
Sociais – reconstrói os processos teóricos e sociais de constituição das
relações jurídicas a partir das relações sociais. Tendo como pano de
fundo o processo de constituição da Sociologia, avalia a própria relação
entre Direito e sociedade que se constitui como campo específico de
investigação. Destacam-se Comte e Durkheim como fundadores de
uma corrente importante do pensamento sociológico: o positivismo.
Reafirma-se a grande e valiosa contribuição de Durkheim para o entendimento do Direito como fato social. O autor da Divisão do Trabalho
Social demonstra que a fonte do Direito está na sociedade mediante a
Apresentação
11
construção relacional dos conceitos de solidariedade mecânica e Direito
Penal e solidariedade orgânica e Direito Restitutivo. Formas diferentes
de sociabilidade produzem formas diferentes de Direito.
Outro autor analisado neste capítulo é Max Weber. Suas reflexões
instigantes a partir do conceito de racionalização do mundo ocidental
são fundamentais para a formação da Sociologia Jurídica. Weber aborda a
economia, a política, a cultura e o Direito como tipos de relações sociais
que tendem a ser envolvidas pelo processo de racionalização. Esta é a
grande transformação do mundo ocidental que Weber designou como
“desencantamento do mundo”. O Direito moderno afirma-se como um
tipo de ação social racional com relação afins. A dimensão substantiva
tende a ser dominada pela dimensão lógico-formal.
Durkheim e Weber contribuem de forma decisiva para que o
Direito se torne uma das práticas fundamentais de legitimação da ordem social moderna. Durkheim percebe o poder do direito de produzir
solidariedade (ou integração social), identificado por ele como o processo
constituinte do homem como ser social. Na modernidade o problema
da integração social desloca-se da manutenção das semelhanças para
o desenvolvimento das diferenças geradas pela divisão do trabalho.
A situação de anomia que vive o mundo moderno será superada pelo
desenvolvimento pleno do Direito Restitutivo. A leitura de Weber dos
problemas da modernidade não é contraditória à de Durkheim, na medida
em que entende o Direito como a ação humana que articula a dominação
legal racional. O “império da lei” é a grande força coatora que integra os
homens e consensualiza seus interesses.
O terceiro capítulo – razão crítica, direito e liberdade – expõe a
formação do pensamento social crítico, teoricamente elaborado por Karl
Marx e Friedrich Engels. O materialismo histórico assentou as bases para
pensar criticamente o capitalismo e o papel do direito na sua reprodução,
ou seja, o direito como a forma jurídica da dominação de classe. Como o
próprio Marx afirmou na XI Tese sobre Feuerbach que “os filósofos nada
mais fizeram do que interpretar de diverso modo o mundo; mas trata-se,
12
Suimar João Bressan
antes, de transformá-lo”, a sua teoria é também um apelo à transformação
radical da sociedade, sustentando que o capitalismo gerou os sujeitos da
sua própria destruição: os trabalhadores assalariados.
O capítulo também aborda outros autores de pensamento crítico,
notadamente Jürgen Habermas e Boaventura de Sousa Santos. Para o
primeiro, a emancipação humana está ligada ao desenvolvimento das
ações comunicativas, ressaltando o papel do Direito na concretização do
entendimento coletivo, produzido na esfera pública e pelos processos
democráticos. Importante também é a contribuição do eminente sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, negando a possibilidade de
emancipação humana sob o capitalismo. A sua reflexão resgata a ideia
do pluralismo jurídico, enfatizando os direitos humanos, a partir de uma
perspectiva multicultural, como elemento fundamental para a conquista
da autonomia dos homens.
O quarto capítulo – Temas da Sociologia Jurídica Atual – propõe uma
atualização do debate sobre a relação Direito e sociedade. Um aspecto
relevante refere-se à capacidade explicativa das teorias sociológicas
clássicas, considerando que a sociedade vive um momento de grandes
transformações. Em certa medida as duas dimensões fundamentais do
capitalismo atual - global e informacional – foram genericamente detectadas pelas teorias clássicas. Muitos autores entendem que os fundamentos
da sociedade não mudaram, apenas adquiriram novas configurações,
determinando, assim, a atualidade dos clássicos.
O esforço da teoria sociológica é compreender as novas dimensões
da vida social, como as novas formas de exclusão social, de violência e
criminalidade, a sociedade do risco, a comunicação. Por exemplo, o desemprego sempre foi estrutural, porém a sua forma atual parece evidenciar que a busca do pleno emprego é uma ilusão. Mesmo com elevados
índices de crescimento econômico, o desemprego mantém-se alto. É
claro que se criaram novas condições de empregabilidade, determinadas
Apresentação
13
pela dimensão informacional – tecnologias inteligentes – dos processos
sociais, mas também de exclusão. Como isso impacta na ordem jurídica
é uma pergunta recorrente na Sociologia Jurídica.
Uma resposta significativa tem sido elaborada por inúmeros sociólogos: as transformações sociais causadoras da reestruturação produtiva,
da globalização dos mercados, da crise do Estado-Nação e da crise da
identidade nacional provocam uma crise profunda no paradigma formalista do Direito. O Direito Positivo (estatal) e as instituições judiciais
da modernidade estão em desacordo com as novas relações sociais, por
isso não conseguem mais ser um instrumento de regulação dos conflitos.
As soluções não convencionais ampliam a crise do Direito Positivo e o
impasse se aprofunda.
É neste contexto que surgem autores que questionam a modernidade em seus fundamentos, como é o caso de Niklas Luhmann e Alain
Touraine. Este sociólogo francês, com importante presença no estudo
dos movimentos sociais na América Latina, abandonou o paradigma da
modernidade, definido a partir da dimensão social. Em seu entendimento, estamos vivenciando o “fim do social e todos os fenômenos de
decomposição social e de dessocialização”; um novo paradigma está em
construção, centrado no sujeito e nos direitos culturais.
Niklas Luhmann é mais radical: a partir da teoria dos sistemas autopoiéticos – a sociedade seria um deles – critica o conceito de sociedade
como uma estrutura sistêmica de órgãos e funções interdependentes tal
como os funcionalistas a definiram. Nesse sentido, o Direito seria um sistema autopoiético, autorreferente e operacionalmente fechado, tal como
a economia, a política, a ciência, a educação e a cultura. Cada sistema
autopoiético opera com o seu próprio código, portanto não depende do
outro para sua existência. As sociedades mais desenvolvidas já teriam
alcançado uma diferenciação funcional, de tal modo que os sistemas,
que antes as compunham de forma integrada e interdependente, agora
são autônomos ou (autopoiéticos).
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Suimar João Bressan
Outra dimensão fundamental para compreender o Direito é a sua
relação com as mídias e as tecnologias inteligentes. Qual o papel dos
meios de comunicação de massa na sociedade atual? E sobre as instituições judiciais? Seguramente não podemos considerá-los apenas como
meios de divulgação de informações. Mais do que isso, tem-se constatado
que se trata de uma nova instituição, em que as dimensões econômica,
política e cultural se fundem, constituindo um novo sujeito. Este novo
sujeito tem poder de articulação do conjunto do sistema econômico (ele
mesmo é um ator econômico), de formulação da agenda política e de
formação da opinião pública. Não há dúvida, portanto, que este poderoso
sujeito interfere nas instituições judiciais.
Percebe-se que o debate – que faz parte da história da Sociologia
– se intensificou. Por isso, a Sociologia é um campo do conhecimento
científico indispensável para a compreensão da vida social, sua estruturação, seus movimentos e possibilidades de transformação. Por extensão,
a compreensão da normatividade jurídica atual não se esgota com o desenvolvimento e institucionalização da ciência do Direito; a Sociologia
Jurídica é o contraponto crítico fundamental, pois – vale insistir – não há
Direito sem sociedade ou onde há sociedade também há Direito.
É para ajudar a desbravar nosso mundo humano, contraditório e
cheio de armadilhas que este livro foi escrito: ele nos instiga a construir
caminhos.
Suimar João Bressan
Professor de Sociologia e Ciência Política – DCJS – Unijuí
INTRODUÇÃO:
Sociologia e a
Sociologia Jurídica
Estudar a sociedade, sociabilidades e as relações sociais tornou-se
uma determinação ética de quem está estudando na universidade e para
quem está buscando a fortificação de sua cidadania, o rigor da cultura
jurídica e posturas racionais mais coerentes. Torna-se ainda mais imprescindível aos indivíduos que buscam ocupar lugares sociais nos quais se
condensam interesses coletivos.
Quem nos fornece as melhores abordagens metodológicas e teóricas para este estudo é a Sociologia. Como uma das Ciências Sociais
emergentes nos tempos modernos, a Sociologia criou sua autonomia ao
fundamentar sua abordagem em metodologia clara, em construir conceitos específicos, em fazer demonstrações de suas descobertas e em
criar teorias sociais. Estas descobertas, fundamentadas no rigor reflexivo,
auxiliaram na criação de muitas instituições sociais e assessoram muitos
procedimentos de indivíduos que procuram atender os interesses das
populações, pois além de estudar e sistematizar estes interesses (organizálos e expressá-los) a Sociologia também orientou ações de grupos que
buscavam autonomia e direitos sociais. Dificilmente estudantes e pesquisadores da Sociologia deixaram de se tornar militantes de causas sociais,
pois não se contentam em entender as causas dos problemas humanos e
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Enio Waldir da Silva
não contribuir para a solução deles. Dados de estudos epistemológicos
mostram que quem procura estudar a Sociologia são indivíduos preocupados com a situação das vivências sociais (suas e as dos outros) e que
estão procurando um mundo mais justo. Podemos afirmar, então, que a
Sociologia se tornou a ciência das populações e das instituições e foi criada
justamente com a perspectiva de resolver seus problemas.
Além disso, a criação da Sociologia possibilitou a afirmação do
caráter social da condição humana, constituiu-se em um conhecimento
da sociedade que incide sobre ela, exercendo uma ação decisiva na
produção e reprodução da sociedade, no sentido da conservação ou da
transformação das relações sociais. É, também, um ato social porque seus
conceitos não são apropriados apenas pelo sociólogo, mas por todos os
sujeitos intérpretes dos problemas humanos. A institucionalização da
Sociologia permitiu a pesquisa de temáticas diversas, estabelecendo várias especialidades, compondo o que hoje denominamos como Ciências
Sociais particulares ou campos teóricos: rural, urbana, trabalho, direito,
religião, cultura, política, economia, a natureza, a história, a comunicação, a assistência social, etc. Mesmo que cada ciência tenha um campo
particular, elas possuem uma identidade e um fundamento comuns: a
existência social do homem. Como Ciências Sociais precisam enfrentar
os mesmos problemas metodológicos que caracterizaram a história da
Sociologia (Bressan, 2003).
Trataremos mais tarde dos fenômenos que influenciaram na origem da Sociologia, mas é importante destacar aqui que ela vai nascer
como um reflexo dos problemas sociais resultantes do processo de consolidação da modernidade, expresso em três transformações:
1 – A generalização do processo de produção de mercadorias (Revolução
Industrial);
2 – A formação do Estado moderno (Revolução Francesa de 1789);
3 – Da nova cultura a partir dos valores da liberdade, da racionalidade e
da ciência (Idealismo Alemão).
Introdução
17
Nestes contextos os iniciantes da Sociologia poderiam ser assim
destacados: Charles de Montesquieu (1689-1755), Auguste Comte
(1796-1857), Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917) e
MaxWeber (1864-1920), embora não possamos negligenciar estudos
realizados por outros pensadores sociais da época, como Charles de
Montesquieu (1689-1755), Friedrich Engels (1820-1895), Saint-Simon
(1760-1825), Stuart Mill (1806-1873), Condorcet, Herbert Spencer
(1820-1903) e Wilfredo Pareto, Harriet Maritineau (1802-1876), Ernest
Mach (1834-1916), Wilhelm Dilthey (1833-1911), etc., que enunciaram
os temas básicos da Sociologia, sua metodologia, e os detalharam de
forma ampla na aplicação do entendimento das mudanças abrangentes
que ocorreram nas sociedades humanas, nos modos de construir materialmente as sociedades ocidentais, na forma de sua organização, na
maneira de pensá-las e nas mudanças nas vidas das pessoas no decorrer
dos últimos três séculos.
Neste sentido, devido à complexidade dos interesses que movem
os sujeitos ao estudo da Sociologia, faz-se necessário destacar os seus
possíveis conceitos. Um dos conceitos mais aceitos de Sociologia é de
que ela se constitui em uma ciência que estuda as relações sociais, entretanto
não há um consenso quanto a seu conceito. Silva (2008a) recolheu as
seguintes possíveis definições:
–A Sociologia é uma ciência que estuda as relações sociais que são, ao
mesmo tempo, produtos e produtoras da sociedade;
–... é um conjunto de conceitos, de métodos e de técnicas de investigação produzidos para explicar os elementos potencializadores da vida
social;
–... é um estudo sistemático da realidade social do homem...
–... é o estudo das mediações produtoras dos potenciais das práticas;
–... é uma construção teórica, resultado do esforço de compreender a
sociedade em sua realidade objetiva e subjetiva;
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Enio Waldir da Silva
–... é o estudo das formas de como o homem passa de um resultado
da estrutura estruturada para uma estrutura estruturante, ou seja, o
estudo das condições que produzem os lugares sociais ocupados pelo
homem;
–... é o estudo de como o homem entende a sociedade, como ele a aceita,
a legitima ou a transforma;
–... é o estudo que pode levar o homem a ser livre por entender o seu
lugar no processo histórico;
–... é o estudo da própria vontade do homem em conhecer-se e a conhecer sua sociedade;
–... é o estudo das razões que impulsionam o mundo prático e dos resultados destas...
Apesar destas definições, é mais fácil compreender a Sociologia
pelos objetivos pelos quais a ela se recorre: procurar potenciais reflexivos capazes de alargar a compreensão dos processos humanos e adquirir
uma base de conhecimentos que leve a entendimentos das forças que
compelem o homem ao controle destas forças, dando-lhes significados
e orientando-as para a construção da vida individual e coletiva, justa e
solidária. Estas forças, como observa Norbert Elias (1970), são forças
sociais exercidas pelas pessoas sobre outras pessoas e sobre elas mesmas
(aquilo que liga uma pessoa a outra...). Geralmente, as explicações sobre
estas forças têm por base as representações que se formam sobre elas.
Isso faz com que o próprio pensador não se exclua daquilo que está pensando. Além de interpretar as forças que agem sobre as pessoas, nos seus
grupos e sociedades empiricamente observáveis, também interpreta os
discursos e pensamentos relativos a estas forças e assim vai produzindo
seus próprios conceitos mais adequados ao entendimento das vivências
humanas.
É isto que queremos mostrar: a Sociologia é uma ciência dedicada
a compreender as interações, as ligações ou as teias que conectam os
indivíduos entre si, os indivíduos aos grupos, os grupos entre si e estes
19
Introdução
com a sociedade como um todo. Esta rede produz potenciais orientadores
de sociabilidades e identifica as sociedades. Assim, o todo está na parte
e a parte está no todo, ou seja, os indivíduos são produtos e produtores
da sociedade, os Outros estão contidos no Eu (o eu é multideterminado
– pela família, natureza, cultura...), como indica o esquema a seguir.
SAPIENS
DEMENS
CULTURA
ETHOS
Religião
Trabalho
HUMANIDADE DA
VIDA
Mídias
Família
Natureza
©Anthropos Consulting
Escola
Os Outros
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A figura anterior mostra algumas das mais importantes implicações
deste conceito de que a Sociologia aborda as relações sociais: este objeto
específico é importante de ser compreendido mais cientificamente.
Quer dizer: quando nascemos já existia a sociedade. Fomos preparados
para entrar para ela. Posteriormente agimos de acordo com a estrutura
estruturada. A família é o ponto de partida de nossa socialização. É ali
que começamos nossas relações sociais, criamos os laços sociais mais
profundos de nossa existência. Por isso muitas justificativas de nossas
ações e entendimentos podem ser encontramos na nossa trajetória familiar. A estrutura de nossa personalidade, as potências afetivas de nossa
vida, a valorização do outro, o respeito ao trabalho e a ordem social, etc.,
encontram-se na família, pois são produto e produtora da sociedade. Já a
escola é onde aprendemos nossas potencialidades simbólicas e culturais
e adquirimos capacidade para o controle objetivo do mundo expresso
20
Enio Waldir da Silva
na escrita. Ali, os elementos racionais e universais da existência humana tomam novo sentido e somos pugnados para o social, o coletivo, a
ordem social, a autoridade e a força da ciência... Estes dois espaços são
fundamentais para entendermos as formas de ligações entres as pessoas,
as redes que os conectam entre si e ao mundo social e assim seguem
os estudos da Sociologia buscando compreender empiricamente a implicações da cultura, da economia, da natureza, da mídia, do Estado, da
religião na constituição da dimensão social dos indivíduos.
Estes estudos foram se ampliando cada vez mais ao longo do tempo. A preocupação com o conhecimento científico surge no momento
em que se percebe que o homem é um ser social que não se basta a si
mesmo e que possui uma relação de dependência e complementaridade
com a natureza, com os outros homens e com os esforços em ampliar
seu entendimento do mundo que o envolve (ciência – pensamento
sistematizado). O ser humano se distingue das demais espécies porque
nem tudo o que ele faz surge de sua estrutura genética, nem se desenvolve automaticamente em sua relação com a natureza, mas necessita
de aprendizado de uma série de atividades fundamentais para sua
sobrevivência e reprodução. A construção desse aprendizado se faz por
meio da relação com outros seres humanos. A partir dessa relação ele
começa a instituir a sociedade como sua forma de existência. Ele passa
a entender que sua vida e seu aprendizado se constroem na relação e é
essa relação que se transforma em experiência vivida e é transmitida às
gerações posteriores.
Essas experiências construídas, refletidas e simbolizadas, coletivamente, fornecem ao ser humano a capacidade de entender a natureza,
compreender a si mesmo e construir sua história. Essa capacidade de
buscar o significado das coisas que o cercam fez o ser humano produzir
cultura e elaborar as próprias ciências, uma delas a Sociologia. Alguns
pesquisadores dizem que a humanidade triunfou diante dos outros animais devido à mobilidade da força de sua inteligência capaz de modificar
o ambiente natural e criar outro ambiente adequado a sua existência,
Introdução
21
concretizado em vilas, aldeias e cidades. Foi quando agiu em grupos e
com atividades solidárias que notamos as mais grandiosas realizações.
Quando concorreu entre si vemos os desastres, as guerras e a violência
destrutivas.
Inteligentemente o ser humano aperfeiçoou seu modo de viver
em grupo, criando normas, regras e regulamentos que permitiram interações mais intensas. Inicialmente suas ações eram determinadas pelo
instinto de vida. O encontro com outros diferentes provocou ações mais
planejadas e combinadas.
A organização humana em sociedades, a capacidade de intervenção do homem na natureza aumentaram. Suas criações são chamadas de
culturas e estas foram aos poucos se separando das atividades práticas e
ao mesmo tempo possibilitando orientações de ações.
Nossas escolhas, nossas ações são orientadas pelo lugar que ocupamos na estrutura social. Quando entendemos como se forma esta estrutura
e como fomos preparados para viver dentro dela mais podemos orientar de
modo criativo nossas ações e mais liberdade teremos. Assim, a Sociologia
é uma ciência da liberdade, pois permite que se crie uma vida coletiva
de modo regulado estruturado e sempre em aperfeiçoamento.
Nos últimos tempos tem crescido o interesse em entender a
densidade das relações sociais que estão produzindo conflitualidades
para além dos sistemas de controle existentes. É a este assunto que
vamos nos dedicar daqui para a frente, denominado de Sociologia Jurídica, reconstruindo os elementos que tornaram o Direito uma ciência
e uma prática da sociedade, as crises e as críticas a ele dedicada e por
último nos dedicaremos a mostrar as pesquisas atuais da Sociologia que
ajudam a entender os processos regulatórios e emancipatórios presentes
na sociedade.
As pesquisas sociológicas procuram explicar os problemas sociais
e apontar soluções para eles. Grande parte destes problemas refletem
no Direito e, muitas vezes, este, o Direito, se torna parte dos problemas.
22
Enio Waldir da Silva
Ou seja, a Sociologia Jurídica aponta a realidades sociais que envolvem
o Direito, as normas, as leis e as estruturas jurídicas; estuda as crenças e
descrenças dos grupos na validade do Direito e mostra como este orienta
as condutas humanas.
Podemos dizer inicialmente que a Sociologia Jurídica faz a tradução da relação que existe entre a ação e a estrutura social, entre liberdade
e regulação social.Os aspectos regulatórios e emancipatórios da sociedade, que a Sociologia Jurídica estuda são todos aqueles elementos cujas
funções são assegurar o controle social: Estado, Judiciário, Ministério
Público, polícia, exército, prisões, burocracia, lei e instituições (criadas
para um setor: ex. meio ambiente, comércio internacional, estatutos de
profissões, remédios, energias)... Aspectos emancipatórios são as ações
de indivíduos em seus mais variados aspectos, a cultura, o esporte, a
arte, a ciência, etc... então a Sociologia Jurídica estuda as relações entre
indivíduos e as leis, a sociedade e o Direito, a liberdade e obediência
às leis.
No caso específico da Sociologia Jurídica, o que interessa aqui é
contribuir para entender o Direito como um dos fatos sociais mais pertinentes da atualidade histórica, constituído de elementos – forças capazes
de constituir a sociedade, consolidar convivências humanas e organizar
o todo social, tarefas de todo cidadão. Ou melhor, se não soubermos
como funciona o poder e quem o detém, dificilmente conseguiremos
propor mudanças e atuarmos na construção de uma sociedade mais justa. A cidadania é a expressão do nosso compromisso, do nosso dever em
participar da organização da sociedade em que vivemos, e o direito de
usufruir dos resultados da participação nas ações coletivas. Só podemos
ser livres se desatarmos as amarras do poder hegemônico que negamos,
mas para tanto é preciso saber que sociedade queremos.
A sociedade é resultado do complexo de relações sociais em forma
de teias, de redes ou nexos, as instituições, os indivíduos, a cultura, os
comportamentos, as normas e os valores compartilhados.
Introdução
23
Foram os sociólogos que distinguiram mais amplamente o conceito
de sociedade desta compreensão de que ela era um nome coletivo para
muitos indivíduos. Eles entendiam que a sociedade tem uma identidade que lhe é característica e que transcende os indivíduos que a ela
pertencem. Trata-se de uma coletividade organizada que se mantém por
vínculos cooperativos para garantir a sobrevivência, para perpetuar-se,
partilhando uma cultura sob as orientações de estruturas institucionais.
Como é possível perceber, todas as definições apresentadas são amplas
e geraram muita controversa (Silva, 2008a).
Em uma formação social, os grupos, os setores ou as classes estabelecem relações de força. Os vencedores asseguram para si instrumentos
que permitem controlar o poder/espaço por um determinado tempo, a
ponto de impedir os resistentes de vencê-los. A hegemonia do grupo
vencedor está em fazer valer a sua vontade como se fosse de todos e
de garantir instrumentos de manutenção, ou seja, pode até existir a
contestação, a discordância, mas estes são obrigados à conivência com
quem detém a força. Ou seja, somos levados a entrar para uma sociedade pelos mecanismos de socialização existentes e só com muito esforço
reflexivo conseguiremos entender as forças que nos compelem à ação,
às formas de pensar.
Nenhuma sociedade funciona sem que o comportamento da
maior parte das pessoas possa ser prevista ou controlada, uma vez que os
indivíduos não são autossuficientes. O ser humano interioriza as normas
moldadas pelos grupos existentes anteriormente e depois exterioriza-as
em suas ações e pensamentos. A coerência entre interiorização e exteriorização vai depender dos processos de socialização instalados na
sociedade capazes de fazer a coerção e a coação para que os indivíduos
aprendam ao longo do tempo os comportamentos aceitos e quais os que
seriam reprovados. Estas diferenças se concretizam nos papéis sociais
(funções) assumidos.
24
Enio Waldir da Silva
Quando as pessoas seguem aquilo que lhes foi ensinado aprovar
diz-se que temos a ordem social. A disciplina de uma sociedade repousa
na rede de papéis de acordo com a qual cada pessoa aceita certos deveres
em relação aos demais e exige, por sua vez, certos direitos. Quanto mais
se motiva condutas recíprocas de indivíduos, quanto mais se fizer com
que eles se abstenham de certos atos que, por alguma razão, são considerados nocivos à sociedade, e se fizer com que executem outros que,
por alguma razão são considerados úteis à sociedade, mais civilizados
somos e mais ordem teremos (Kelsen, 2005).
É neste processo que a Sociologia entende que entra o Direito, pois
é nele que se percebe as relações sociais constituidoras da sociedade. No
Direito, há sempre referências às relações sociais que se desenvolvem
em sociedade, e da mesma forma, onde existem relações sociais pode
ser encontrado o Direito. Em cada momento, em cada povo o Direito
determina o modo de ser da sociedade, o perfil da estrutura básica é
resultado da ação do Direito, que exerce a função do controle social e
é condicionado pelas crenças religiosas, pelas convicções éticas, pelas
ideologias, os costumes, os interesses econômicos, políticos, culturais,
os avanços técnicos e científicos, etc. (Dias, 2009, p. 22).
Ao pesquisar empiricamente as ações características de grupos
sociais, a Sociologia foi consolidando métodos que contribuíram para
que a própria ciência jurídica fosse se tornando um estudo sistematizado
e autônomo. Assim, desde os primeiros cursos de Direito a Sociologia
contribuiu para dar rigor às compreensões sobre o social. Os estudos
sociojurídicos possuem sempre um caráter interdisciplinar, em que se
pressupõe a colaboração equilibrada entre juristas e sociólogos que
compreendem não apenas o Direito em sentido estrito, mas também os
modos de regulação de conflitos que dele se aproximam ou com ele se
relacionam. Isso requer a compreensão de que há uma interação objeto/
sujeito e noção de que as realidades sociais podem ser diferentemente
representadas nas teorias, necessitando diálogos entre elas.
Introdução
25
Para sintetizar podemos destacar o seguinte conceito da Sociologia
Jurídica: é um ramo especializado da Sociologia que busca compreender as expressões das relações sociais presentes na organização
normativa da sociedade. Ou seja, estuda:
–As realidades sociais no entorno da ordem jurídica;
–As relações sociais efetivamente registradas/concretizadas na sociedade;
–As aproximações e os distanciamentos entre a regulação e as vivências
sociais;
–O lugar e o papel do Direito na sociedade;
–As possíveis respostas que a sociedade fornece aos sistemas regulatórios;
–A cultura jurídica dos agentes sociais e dos cidadãos da sociedade
civil;
–As estruturas regulatórias e as ações;
–As forças das regras e a legitimidade destas;
–Como são construídas as leis, quais os interesses em jogo nessa construção;
–Os espaços estruturais do jurídico;
–As estruturas para garantir o acesso ao jurídico e à Justiça;
–As relações sociais entre os sujeitos do Direito;
–Os impactos sociais da ação do jurídico, etc.
Então, a Sociologia Jurídica procura entender as relações entre
liberdade e regulação, compreender como ocorre a relação entre a
sociedade e o Direito, como uma sociedade se organiza para criar sua
vida jurídica e como esta passa a refletir na sociedade. Pressupomos,
pois, que o comportamento social é resultante das repostas que as
pessoas dão a vários fenômenos complexos que somente podem
26
Enio Waldir da Silva
ser analisados no contexto do ambiente no qual sua socialização se
realizou. É este o peso empírico que a Sociologia carrega: estudar os
comportamentos dos indivíduos em seus aspectos internos e externos1
conforme os contextos que estão sempre em mudança.
À medida que os indivíduos vão continuamente se adaptando,
como seres sociais, às exigências do grupo de convívio, o seu comportamento torna-se parecido ao dos outros membros e as expectativas
de comportamento são possíveis de serem estudadas, de serem padronizadas e mesmo controladas. O controle, a padronização nunca são
completos e nem os estudos são exatos, pois a conduta humana é bem
mais do que simples respostas aos estímulos externos e internos, uma
vez que lhe é possível planejar ações visando a algum objetivo.
Quando os estudos do homem enquanto ser social começaram a
se ampliar percebeu-se que seria possível verificar algumas tendências
que se confirmavam. Daí resultou a cultura de que todos precisamos
de regras para nossas condutas que sejam claras, conhecidas e ajustadas ao grupo. E assim teve origem o controle social que muitas vezes
entrou em choque quando um grupo tenta impor a outros o seu modo
de ver, de sentir o mundo a sua volta.
Para entender melhor este momento de afirmação da cultura jurídica vamos fazer uma rápida revisão da evolução da sociedade descrita pela
Sociologia e depois retornaremos ao contexto da modernidade, período
histórico de intensas demanda por controle social. Antes, porém, vamos
ver esta excelente descrição da Sociologia Jurídica criada por Souto:
Conforme Souto (1981), ao lado dos elementos considerados externos ao comportamento temos os outros, objetos, conhecimentos e do mundo interno como as substâncias
químicas, as pressões e distensões mecânicas de nosso organismo.... a fome, a sede, o
sono, por exemplo, são expressões dos estímulos provocados pelo meio interno. E isso
não é objeto necessariamente da Psicologia, mas a Sociologia pode se valer de saberes
de outras ciências (Souto; Souto, 1981).
1
Introdução
27
O fenômeno jurídico pode ser percebido como norma ou como conduta.Tanto numa visualização como noutra, norma e conduta jurídica se
implicam, pois conduta jurídica é sempre normada e a norma sempre
se refere à conduta social. A norma jurídica se origina de uma conduta
humana específica. Por isso o direito é fenômeno claramente social...
se o jurídico é fato social este é preocupação constante da Sociologia
Jurídica. Esta estuda este em sua correlação com a realidade social...
A perspectiva sócio-científica do jurídico tem-se afirmado internacionalmente de forma clara e progressiva, e não pode ser ignorada por
um país em desenvolvimento como o Brasil. Com efeito a expansão
das sociedades e de seus problemas de contato social, o aumento
da comunicação interna e externa, as necessidades da vida nacional
e internacional, tudo parece demandar um tipo de controle social
adaptável à sociedade: um controle menos formal, menos dogmático,
mais dinâmico, que corresponda à rápida mudanças ocorrida dentro
das sociedades particulares e à natureza da sociedade internacional,
que permanece sendo, em grande escala, uma sociedade informal
(Souto; Souto, 1981, p. 13).
CAPÍTULO 1
AFIRMAÇÃO E
ESTRUTURAÇÃO DA
CULTURA JURÍDICA
A sociedade iniciou quando os homens, permeados pelas necessidades humanas, tiveram de assentar-se sobre um território, produzir
alimentos, construir seu hábitat e assegurar suas vidas. Esses diferentes
processos foram chamados de formalização da natureza, ou humanização
da natureza. Como não podia fazer isso de modo individual, o homem
uniu-se a outros que tinham os mesmos interesses, formou famílias e
iniciou atividades coordenadas para transformar a natureza. Essas ações
coordenadas foram chamadas de trabalho e os pactos formados para
viverem juntos foram denominados de normatização do coletivo (leis). A
primeira forma organizativa e normatizada foi a família, que além de ser
fruto da organização bio-lógica, tornou-se a forma elementar, básica e
inicial da vida em sociedade. Em torno dela e para sua defesa criaram-se
muitas disposições culturais e se aumentou a capacidade de trabalho.
Veremos primeiramente a evolução do trabalho do homem e em seguida
a institucionalização dos entendimentos sobre a ordem social.1
Trabalho e Sociedade
Segundo Cristiano da Paixão Araújo Pinto, pode-se ilustrar a transição
das formas arcaicas de sociedade para as primeiras civilizações da
Antiguidade mediante três fatores históricos:
a) o surgimento das cidades cuja origem pode-se situar no Paleolítico,
na Mesopotâmia. Pode-se dizer que o processo de destribalização teve
início no século IV a.C., tendo-se notícia da formação de cidades nos
anos 3100-2900 a.C., na Baixa Mesopotâmia, isto é, região designada
por Suméria, nas margens do Rio Eufrates, mais próxima ao Golfo
Pérsico. No período histórico imediatamente subseqüente (dinástico
primitivo 2900-2334 a.C.) menciona-se a formação de outras cidades,
entre as quais Nipuur e Ur;
Este texto foi adaptado de Silva, Enio Waldir. Sociedade, política e cultura. Ijuí, RS: Ed.
Unijuí, 2008.
1
32
Enio Waldir da Silva
b) a invenção e domínio da escrita, estreitamente ligada ao surgimento
das cidades, cujas primeiras manifestações (cuneiformes) se deram
na Mesopotâmia, por volta de 3100 a.C e
c) o advento do comércio e, numa etapa posterior, da moeda metálica,
por um sistema de trocas de mercadorias e venda em mercados ou
na navegação. Na clássica lição de Engels,2 a origem do comércio
localiza-se na divisão do trabalho gerada pela apropriação individual
dos produtos antes distribuídos no seio da comunidade; com a retenção do excedente, a criação de uma camada de comerciantes e
a atribuição de valor a determinados bens, o homem deixa de ser
senhor do processo de produção. Inaugura-se, então, ainda segundo
Engels, uma assimetria no interior da comunidade, com a introdução
da distinção rico-pobre... Porém, falar em um direito arcaico ou primitivo implica, contudo, ter presente uma diferenciação da pré-história
e da história do direito e ainda, quanto aos horizontes de diversas
civilizações, no sentido de precisar o surgimento dos primeiros textos
jurídicos com o aparecimento da escrita, tudo dependendo do grau
de evolução e complexidade de cada povo... o direito arcaico pode
ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que
o gerou. Se a sociedade da pré-história fundamenta-se no princípio
do parentesco, nada mais a considerar do que a base geradora do
jurídico encontra-se, primeiramente, nos laços de consangüinidade,
nas práticas do convívio familiar de um mesmo grupo social, unido
por crenças e tradições (Tavares).3
A interpretação da sociedade pode ser feita pelo estudo do modo
como o homem organizou-se para o trabalho. Neste caso, nas comunidades primitivas o “trabalho” era visto como uma resposta do ser humano
às suas necessidades básicas: fome, abrigo, vestimenta, defesa, etc., não
podendo ser separado dos demais aspectos da vida social: ritos, mitos,
festas, artes, sistema de parentesco, entre outros. Ele não tinha valor em
si, ou seja, separado dos demais aspectos da vida social (Rotta, 2006).
Engels, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 3. ed. São
Paulo: Global, 1986.
2
O Direito nas Sociedades Primitivas: Algumas Considerações. Disponível em: <www.
fmd.pucminas.br/virtuajus/ano1_08_2003>.
3
33
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
Embora tendo diversidade, a maior parte das sociedades tribais
praticava uma separação do trabalho por sexo e idade. Dividiam as tarefas
para dar conta das necessidades e para garantir o processo de aprendizagem e reprodução do grupo.4
O esquema a seguir mostra a evolução das formas organizativas
do homem:
REUNIÃO
DEDE
FAMILIAS
- FPM
REUNIÃO
FAMILIAS
- FPM
GENS
GENS
GENS
GENS
GENS
GENS
REUNIÃO
DEDE
GENS
- CLÃS
REUNIÃO
GENS
- CLÃS
G G
G G
G G
CLÃS
CLÃS
G G
G G
CLÃS
CLÃS
G G
1
1
As ações dos sujeitos resumiam-se na busca de alimentos e no suprimento de necessidades. Quando ocorreu a escassez de alimento alguns
grupos se deslocaram para longe e outros ficaram próximos, assentados
em territórios. Ali formaram os primeiros grupos humanos, cujo centro
se dava em torno das atividades da mãe: a Família Poligâmica Matriarcal
– FPM. A união para defesa gerou as Gens (união da FPM). A estratégia
de manutenção, reprodução e defesa levou às clãs... depois se formaram
as tribos, e sucessivamente os impérios... É neste último momento que
se passou da FPM para a FMP – Família Monogâmica Patriarcal, e com
ela a complexificação da sociedade em classes sociais
Rotta, Edemar, citado por Silva, 2008a.
4
34
Enio Waldir da Silva
As atividades de trabalho estavam em harmonia com o processo
natural. Conheciam profundamente o meio em que habitavam e procuravam aproveitar sua capacidade de trabalho para usufruir, da melhor
maneira possível, dos recursos proporcionados pela natureza.
As técnicas utilizadas eram simples, mas davam conta das necessidades do trato com a natureza. Isso não quer dizer que não houvesse
inovação. O trabalho era, acima de tudo, uma atividade social, pois estava
voltado para o bem da coletividade e não para um processo de acumulação, sendo desenvolvido de forma coletiva.
No momento em que o trabalho passa a ser visto como atividade
autônoma e ser orientado para a acumulação, tem-se o rompimento com
as sociedades tribais e a transição para a formação dos reinos e impérios
que vão dar origem às grandes civilizações da Antiguidade: os persas, os
egípcios, os gregos, os romanos, etc. Temos aí a sociedade escravista.
REUNIÃO DE CLÃS - TRIBOS
TRIBOS
TRIBOS
TRIBOS
REUNIÃO TRIBOS - IMPÉRIOS
FMP – FAMILIA MONOGAMICA
PATRIARCAL
T
T
T
T
T
T
As disputas entre os diferentes povos levaram os vencedores a se
apossarem das riquezas dos vencidos: terras, animais e pessoas. O direito
de conquista submete o vencido à condição de escravo (Grécia e Roma)
ou de pagador de tributos (persas e egípcios).
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
35
Opera-se aí uma nova divisão do trabalho que vai substituir a
divisão por sexo e idade. É a divisão entre trabalho braçal e trabalho
intelectual. O trabalho manual, de quem labuta na terra, e o intelectual,
que planeja e ordena a vida social.
– Trabalho braçal: que exige a força bruta e reduzida habilidade; atividade passiva e sujeita ao ritmo da natureza, típica dos agricultores e
escravos;
– Trabalho manual: cuja ênfase recai sobre o fazer, o ato de fabricar, de
criar alguma coisa por meio do uso de instrumentos ou das próprias
mãos. É o trabalho do artesão, do escultor, em que o produto pode
permanecer para além da vida de quem o fabrica;
– Trabalho intelectual (práxis): é a atividade que tem a palavra como
seu principal instrumento. O trabalho livre, dos cidadãos, dedicado a
discutir os assuntos da vida pública (negócios públicos: administração,
gestão, poder, artes, Filosofia, etc.) e a dispor, da melhor maneira
possível, os produtos postos à disposição pelas outras formas de trabalho.
Essa divisão era vista como um processo natural, decorrente
da competência das pessoas, por uma superioridade ou inferioridade
natural.
A condição de escravo, independentemente do ofício a que era
submetido, gerava uma submissão natural ao seu senhor, a quem deveria
servir até a morte ou a conquista da liberdade. O escravo poderia ser
vendido, trocado, alugado, etc. É nesse sentido que se produz uma visão
negativa do trabalho, visto como castigo e sofrimento; com a desagregação dos grandes impérios, desencadeia-se um retorno ao meio rural e
às atividades agrárias. A escravidão vai cedendo lugar à servidão. Uma
relação de mútuos direitos e obrigações entre o servo e o seu senhor. O
senhor não é mais proprietário do trabalhador, mas da terra e dos instrumentos de trabalho e os arrenda ao trabalhador em troca de obrigações
que este deve prestar-lhe.
36
Enio Waldir da Silva
Estabelece-se uma relação contratual; as relações servis acabam
produzindo uma sociedade com espaços definidos e funções determinadas na divisão do trabalho; essa divisão era entendida como natural
e legitimada por um discurso religioso; a produção do feudo servia para
atender às suas necessidades. O excedente era consumido em festas ou
trocado com feudos vizinhos. A tecnologia utilizada era simples e seu
avanço muito lento. Estava ligada ao mundo prático da vida e ao ciclo
da natureza. Isto é muito próprio do feudalismo.
Apesar de as atividades dominantes estarem ligadas à terra,
havia o desenvolvimento de outras atividades que, aos poucos, foram
conquistando espaço e gerando profissões reconhecidas e organizadas,
as corporações de ofício. A partir delas, porém, já vamos ter uma nova
forma de organizar o trabalho que vai rompendo com o modo dominante
do contrato e preparando as relações assalariadas.
FEUDALISMO
CONTRATOS
• -SENHORES
• -VASSALOS/CLERO
• -SERVOS
SERVIÇOS
PRODUTOS
TRIBUTOS
SEDE/CIDADE
A crise do feudalismo, na Europa, vai proporcionar o maior desenvolvimento das atividades urbanas, em especial do comércio e artesanato,
levando à afirmação de uma nova compreensão de trabalho.
A desagregação do feudalismo na Europa está ligada a um conjunto
de fenômenos: esgotamento das terras e das tecnologias, aumento da
população, crises de fome e doenças, desenvolvimento do comércio e das
atividades urbanas, etc. O desenvolvimento do comércio e das atividades urbanas vai gerar um novo grupo social composto por comerciantes
e artesãos que precisam afirmar o seu trabalho como a origem dos bens
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
37
que vão se acumulando. Assim, passam a gerar um sentido positivo ao
trabalho e a demandar novas teorias que possam justificar esse sentido
positivo. As teorias liberais vão dar sustentação a essa compreensão.
Locke atribuiu ao trabalho a fonte de toda a propriedade. Adam
Smith afirmou que o trabalho é a fonte de toda a riqueza. Marx, embora
não concordando com as ideias liberais, consolidou essa compreensão
ao referir o trabalho como fonte de toda a produtividade e a expressão
da própria humanidade do homem.
As novas ideias afirmaram a compreensão positiva do trabalho, que
passa a ser visto como a fonte de riqueza de uma Nação. A capacidade
de acumular riquezas passou a depender da aptidão de trabalho e não
apenas da posse de recursos naturais, da balança comercial favorável ou
do acúmulo de metais preciosos por processos de exploração colonial.
Assim tem início o capitalismo.
O domínio de atividades urbanas ligadas ao comércio e ao artesanato vai desencadear também uma intensificação do ritmo tecnológico,
principalmente nessas áreas; os comerciantes e artesãos aliam-se aos
reis e fortalecem seu poder, contrapondo-se à nobreza e ao clero e preparando uma consequente conquista de ascensão ao poder do Estado; o
desenvolvimento das cidades vai gerar um mercado de trabalho urbano
submetido a novas regras, cada vez mais orientadas para o assalariamento,
para a separação entre o trabalho e os meios de produção e para o cultivo
de uma “ética do trabalho” (Rotta, 2006).
CLASSES FUNDAMENTAIS
•
PROPRIETÁRIOS X NÃO-PROPRIETÁRIOS
BURGUESIA
SOCIEDADE POLITICA
PROLETARIAO
SOCIEDADE CIVIL
38
Enio Waldir da Silva
O ambiente urbano prepara a consolidação da ideia de que é com
o trabalho que a pessoa tem possibilidade de ascender socialmente,
superando as visões antigas, baseadas em laços de sangue, de hereditariedade e de títulos.
Função do trabalho no capitalismo: lucrar/acumulação; fonte de
riqueza –individual e coletiva; fonte da liberdade; força da competição;
universalização do cidadão; moral profissional; força do mercado. É nesse
contexto que começam aparecer estudos sociológicos sobre: condições
de vida, legislação trabalhista, saúde, mortalidade infantil, moradia,
formação profissional, composição racional, salário, jornada de trabalho,
gestão de mão de obra, trabalho das mulheres, crianças e idosos, acidentes de trabalho, exclusão, sofrimento no trabalho, organização urbana,
assistência ao trabalhador e sua família, papel do Estado, conflitos entre
patrões e empregados, resistências individuais e coletivas, associações
e sindicatos de trabalhadores, etc. O que vai assegurar a estruturação da
vida moderna pode ser interpretado pelo esquema a seguir:
Fontes para a ordem Moderna
•
ESTRUTURA/BASE
Elite
Burocratas
Classe Média
Operários
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
SUPERESTRUTURA
Ciência
Educação
Direito
Estado
Indústria
Comércio
Mercado
A Propriedade
A Competição
O Positivismo
Fortalece-se a compreensão dos direitos da pessoa no trabalho,
aumentam as leis trabalhistas, crescem os movimentos sociais e sindicatos
(patronais/trabalhadores); criam-se instituições do trabalho; o trabalho
abstrato amplia-se; aplica-se a ciência para efetivar o resultado do trabalho com taylorismo/fordismo; muitos países fazem alianças nacionais
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
39
– imperialismo do capital – para organização do trabalho, etc. Enfim,
muda o comportamento das pessoas, inclusive são treinadas em escolas
para agir no trabalho, com o trabalho – uma ação encadeada... Quem se
adaptou criou uma nova moral... foi convencido que pelo trabalho cresce
na vida... se salva.... não é vagabundo, vadio, etc... Inclusive diversas leis
emergem para regular o trabalho... cidades inteiras foram organizadas em
torno do trabalho do homem... a “ética” justifica as diferenças sociais, as
posições dos ricos, a moral, a valoração... inclusive o fascismo vai pregar o
trabalho como fim último do homem (lavoro, lavoro, lavoro), invertendo
seu sentido.
Vamos agora recuperar a trajetória do pensamento social que
expressou a evolução do Direito ou, no mínimo, influenciou esta evolução.
Pensamento Social
Na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de
controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar
os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito
ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão
social (Wolkmer)5.... a comparação das crenças e das leis demonstra que
as famílias grega e romana foram constituídas por uma religião primitiva, que estabeleceu o casamento e a autoridade paterna, fixou os graus de
parentesco, consagrou o direito de propriedade e o direito de herança. Esta
mesma religião, por haver difundido e ampliado a família, formou uma
associação maior, a cidade, e nela reinou do mesmo modo que reinava na
família. Desta se originaram todas as instituições como todo o direito privado
O direito nas sociedades primitivas. In: Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte:
Del Rey, 2001. p. 20.
5
40
Enio Waldir da Silva
dos antigos. Foi dela que a cidade extraiu seus princípios, suas regras, seus
usos e sua magistratura [...] É mister, pois, estudar antes de tudo, as crenças
destes povos (Coulanges).6
A origem do Direito está, como referimos, lá no momento em que
o homem começou a viver em grupo e sentiu necessidade de controlar
as condutas humanas (Souto; Souto, 1981). O pensamento sobre o social,
no entanto, surge mais tarde, depois dos mitos, dos totens, das religiões
e junto com a Filosofia. Nasceu com estas perguntas: Como poderíamos
programar as causas da ação humana, especialmente aquelas condutas
relacionadas a sua vida coletiva? Como a vivência junto poderia aprimorar
a civilização e como um homem pode ser o complemento da construção
do outro?
Os estudos sobre a política mostram que o primeiro ato político
do homem foi aquela ação que cometeu em relação aos outros ou da expectativa que tinha em relação à ação dos outros. Com as aproximações
humanas a política passou a se constituir em atos especificamente criados
para a vida coletiva. Foi necessário, portanto, criar um saber específico
sobre estes temas, para entender a confluência de forças existentes em
uma comunidade que orientam a vida coletiva.7
No início dos estudos políticos a preocupação estava em definir
como o homem poderia ser mais político que a sua dimensão natural,
ou seja, o homem é um ser político por natureza, mas como ele poderia
adquirir capacidades para agir de modo universal, pela coletividade e para
coletividade de modo a tornar cada vez mais justa a vida em sociedade.
A esquematização das respostas poderia ser assim apresentada:
Refere-se a Coulanges, Fustel. A cidade antiga. 2. ed. São Paulo: Edipro, 1999. p. 13-14.
Citado por Fernando Horta Tavares. Disponível em: <www.fmd.pucminas.br/virtuajus/
ano1_08_2003>.
6
Silva, Enio Waldir. Sociedade, Política e Cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008a.
7
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
41
JUSTIÇA SOCIAL
NECESSIDADES PRIMORDIAIS:
NATURAIS: ALIMENTO –AFETO
SOCIAIS: MEDOS (MORTE) E
DESEJOS (SER FELIZ)
AÇÃO FUNDAMENTAL:
O TRABALHO E A EDUCAÇÃO
TRANSFORMAR A NATUREZA –
ALIMENTO E CASA
CONHECIMENTO E FÉ
Os elementos deste esquema poderiam ser entendidos como os
passos da evolução da organização política. Parte da criação do pensamento social foi para justificar maneiras de administrar o espaço universal
público (chamado de polis, cidade, sociedade). No centro do espaço
público está o Estado: a instituição fruto da razão humana e a mais
complexa para assegurar a vida coletiva. Ele tornou-se um lugar no qual
se condensou grande parte das intenções de controle social e para onde
atividades coletivas se voltavam para conflitos sociais e as disputas dos
grupos. Passou a ser a expressão estruturada do poder, tendo elementos
coativos e coercitivos, e se colocou acima de todas as outras instituições
reconhecidas: a família, a escola, a empresa, a religião...
42
Enio Waldir da Silva
ESTADO
EXPRESSÃO ESTRUTURADA DO PODER COLETIVO
COERÇÃO
COAÇÃO
2
1
1
3
2
3
4
4
5
5
5
5
4
Coação: Todos os elementos sociais que atuam no convencimento à ordem social.
Coerção: Todos elementos de força que obrigam o indivíduo a seguir a ordem
social.
A história política do homem passa pela história do Estado, das
doutrinas sobre melhor governo, das instituições criadas para assegurá-lo
e pelos movimentos sociais para conquistá-los. Podemos esquematizar
assim a história do pensamento sobre as relações sociais constituídas
juridicamente:
EVOLUÇÃO DA ORDEM SOCIAL
ROMANOS
MODERNIDADE
GREGOS
CULTURA JURÍDICA
ATUAL
CRISTÃOS
PÓS-MODERNIDADE
Assim, iniciamos no século 6º a.C. a perceber os registros sobre
regras do coletivo e segundo Châtelet (1984), a cultura política do
mediterrâneo europeu tem como uma das fontes a civilização grega
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
43
clássica. O conjunto de invenções institucionais, literárias, artísticas,
científicas, teóricas e técnicas, condensadas na forma política da cidade
(polis), destaca a grandeza desta civilização que teve seu período de ouro
entre o século 6º a.C. e o século 1º a.C. A origem dessa forma política
de vivência está nos acordos feitos pelas populações em conflito, pois
precisam criar regras para o jogo das vivências sociais. Drácon e Sólon
foram os primeiros legisladores do Ocidente ao enunciarem ideias sobre
a participação de cada um na gestão da cidade, nas decisões das questões
de interesses coletivos, bem como a forma de arbitragem dos conflitos e
a punição dos crimes e dos delitos.
A lei passou a ser a orientadora das pessoas, e poderia ser obedecida sem temor, como era a obediência por medo de quem obedecia a
um outro, um senhor. Com textos claros e conhecidos e que tornavam
públicos os julgamentos, a lei era como um princípio de organização
política e, por isso, talvez, a invenção política mais notória da Grécia
clássica (Châtelet, 1984, p. 14).
Se a lei é alguma coisa de alma, de razão, a cidade é algo concreto
e espaço onde vivem os homens, em sua cotidianidade e em sua forma
histórica, como animal político (Aristóteles – A Política). Ou seja, para os
gregos a sociabilidade é produzida pela natureza, no entanto é preciso
ordená-la para que a virtude do homem possa realizar-se em sua plenitude. A cidade é uma comunidade consciente, uma organização fundada
não sobre a força bruta, não sobre interesses passageiros, mas sim uma
forma política que expressa a essência humana, a possibilidade da justiça e da satisfação dos desejos legítimos dos indivíduos.8 A estrutura da
sociedade pode ser descrita como no quadro a seguir:
Silva, Enio Waldir. Sociedade, política e cultura. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2008a.
8
44
Enio Waldir da Silva
•
A ordem Gregos Clássicos
ESTRUTURA/BASE
SÁBIO
GUE RRE IRO
Trabalhadore
s
•
•
•
•
•
•
•
•
•
SUPERESTRUTURA
Filosofia/Educação
Ação Política/Cidadã
Lei/Justiça
Cidade/Ágora
República/Estado
Democracia
Arte da Guerra
Beleza/esporte
Já os romanos colocaram em prática muitas ideias políticas dos
gregos. De uma forma ou de outra, elas estão presentes nas instituições
mais sólidas, como é o caso do Direito, do Império e da República.
O Direito Romano tinha por base a Lei das Doze Tábuas e se
instituía tendo como objeto primeiro a família. O cidadão, o homem livre,
é o pater familias, senhor absoluto da casa, cabe-lhe representar junto
aos juízes quando julgar que ele próprio, os seus ou suas propriedades
sofreram algum dano, bem como exigir reparação e penas adequadas.
Mais tarde o Direito se estende aos peregrinos; depois a todos os que
adquirirem cidadania. O Direito Romano espalhou-se pelo mundo entremeado pelos caminhos do império. Mesmo reduzindo o espaço territorial
o Direito ficou onde foi o império, pois era fruto de racionalidades e se
enraizou como uma forma de ordenação do mundo, regulamentando o
que é e o que não é, e, ainda, propondo um dever-ser (Châtelet, 1984,
p. 23).
Políbio (200-125 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.) foram os principais
pensadores sociais que trataram de descrever como deveria ser o Império
Romano, mostrando que era uma comunidade que tinha sua unidade
baseada num vínculo jurídico e numa ordem política bem determinada.
Roma é a cidade ecumênica que guarda as maiores semelhanças com a
cidade ideal descrita pelos gregos. O imperador e seus cônsules estavam
no topo, eram os governantes, representavam o cérebro governamental;
mais abaixo estavam os guerreiros que defendiam a cidade, mantendo
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
45
sua glória simbólica; bem embaixo estão os artesãos e os agricultores,
que proveem as necessidades materiais da cidade. A estrutura social
pode ser assim descrita:
•
Lei e Ordem para os Romanos
ESTRUTURA/BASE
Cesar/Império
Guerreiros/Legiões
•
•
•
•
•
•
•
•
SUPERESTRUTURA
A República
A Cidade de Roma
O Direito
A Arte da Guerra
O Senado
O Consulado
Artes e Ofícios
Cidadãos/estrangeiros
O problema da sucessão de César (César deveria preparar seu
herdeiro), a quebra da cultura de onipotência do imperador (vindo de
Cristo), a expansão territorial (conquistaram mais território do que podiam
controlar) e o aumento da centralidade da Igreja Católica cristã levaram
a um enfraquecimento e à dispersão do Império Romano. Nos anos 300
d.C. o cristianismo virou religião oficial do império. O fim do império
deu-se em 410. Inicia-se, então, uma nova fase de compreensão sobre
o social e o modo de conceber a ordem social, as noções de liberdade,
responsabilidade e ação histórica. Serão o cristianismo e o islamismo que
irão marcar duradouramente as ideias e os costumes posteriores.
Essa nova ordem social é justificada nas proposições filosóficas
de Santo Agostinho (354-430). Sua obra, carregada de expressões políticas, foi A Cidade de Deus. Seguiu-se a compreensão de que tudo o que
existe é criação de Deus ou por sua vontade. Os preceitos teológicos do
Deus Único e a concepção do homem como uma criatura de Deus vão
se afirmando pela Idade Média, quando foram fundadas cidades cristãs
baseadas num vínculo religioso e não nos vínculos jurídicos. Assim, as
ideias aristotélicas de ação política vão ser redirecionadas para demarcar
46
Enio Waldir da Silva
os deveres e os direitos da cristandade. A dimensão histórica e explicativa agora não é mais natural, mas fruto da ordem divina: Deus criou o
homem. Este ato foi o começo. A morte não é o fim, mas a ressurreição.
O espaço entre o nascer e o ressuscitar é da provação em que o cristão
paga ao Criador a dívida pela criação. O modo de pagar é rezando e trabalhando, conforme pode ser representado no quadro a seguir:
FIM: RESSURREIÇÃO
CÉU - DEUS
PROVAÇÃO
INÍCIO A CRIAÇÃO
TRABALHAR
ORAR NA IGREJA
PAGAR O DÍZIMO
INFERNO - DIABO
Os representantes de Deus na Terra orientavam a vida coletiva e
individual e vão encomendando a alma dos fiéis. Se fizerem como mandam vão para o céu; se não o fizerem, irão para o inferno. O crime passa
a ser chamado de pecado. O modo como vai sendo medido o pagamento
da dívida divina é pela presença do homem nos sacramentos da Igreja e
pelo depósito do dízimo.
A Igreja, a exemplo do Império Romano e da cultura grega, vai
garantir algumas estruturas para se afirmar: o Direito Canônico, as ordens religiosas e o exército de Cristo. Uma série de pensadores cristãos
(chamados de Santos) deram o contorno desta nova forma de entender
o mundo (Boécio 480-521; Santo Anselmo 1033-1099; Santo Abelardo
1079-1142; Santo Tomás de Aquino 1225-1274; São Boaventura 12211274; Duns Scot 1265-1308; Gulherme de Occam 1290-1349; Nicolau de
Cusa 1401-1464; Marcílio de Pádua 1275-1313...). A estrutura do poder
nesse período poderia ser assim imaginado:
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
47
Fé
Fé e
e Ordem
Ordem Social
Social Teocrática
Teocrática
•• ESTRUTURA/BASE
ESTRUTURA/BASE
Deus/Papa
Deus/Papa
Padres
Padres/ /Igreja
Igreja
••
••
••
••
••
••
••
••
SUPERESTRUTURA
SUPERESTRUTURA
A
APalavra
PalavraSagrada
Sagrada
A
AFé
Fé
O
ODireito
DireitoCanônico
Canônico
A
AEvangelização
Evangelização
As
AsOrdens
OrdensReligiosas
Religiosas
As
AsCerimônias
Cerimônias
A
APreparação
Preparaçãop/
p/Céu
Céu
Comunidade
Comunidadede
deFiéis
Fiéis
Nos reinos vão se desenvolvendo noções novas e elaboram-se
técnicas de gestão que substituem as hierarquias tradicionais por relações contratuais. O desenvolvimento do comércio e dos negócios torna
indispensável uma moralização da atividade mercantil; e o estatuto do
sujeito mercantil vai se ampliando na medida em que ele vai participando
do bem-estar da comunidade ou usa as riquezas adquiridas para o bem
comum. A cidade profana amplia-se e se enche de regras e princípios
e o poder de governar passa a ser cada vez mais cobiçado. Os múltiplos
abalos do período de 1400-1500 irão radicalizar essa orientação, inclusive
passando a ser denominado de Renascimento.
Um dos reforços para a emergência dessa nova fase histórica que
se convencionou chamar Modernidade, em que prevalece no poder
coletivo a dimensão racional, jurídica e científica das relações sociais, é
Martinho Lutero. Em 1517 ele vai expor mais de 90 teses denunciando o
poder da Igreja de Roma. Havia tráfico de indulgências para obter ganhos
materiais e exercer pressões morais sobre seus fiéis. Isto reforça o poder
dos príncipes nos reinos e faz explodir a Reforma, uma tendência que
contestava o poder da Igreja: a inspiração dos reformadores é, ao mesmo
tempo, teológica, moral e política. Teológica, porque se fundamenta no
cristianismo primitivo com o dogma de que a essência da religião está
na fé e não na idolatria de imagens e riquezas; Moral, porque se opõe à
corrupção do alto clero, mais preocupado com o poder e o luxo, esquecen-
48
Enio Waldir da Silva
do a caridade e a piedade, e Política, porque a palavra de Deus, a Bíblia,
passa a ser experimentada em sua dimensão prática, na língua dos povos
que a leem. Os espaços que deveriam ser da Igreja e os que deverão ser
do Estado têm forte expressão nas palavras de Lutero:
Meu reino não é deste mundo”. Tomando a palavra de Cristo ao pé
da letra, Lutero deixa de certo modo o campo livre para a onipotência
do Estado no mundo terreno; confere-lhe o monopólio da decisão e da
repressão. Deixa-se ao cristão a possibilidade de intervir pela palavra
e pelo exemplo, a fim de que sejam respeitados os mandamentos de
Deus e afirmada a força espiritual da comunidade dos fiéis... Lutero,
Münzer e Calvino (1536-1559) vão ser reformadores que colaboram
para a afirmação das realidades nacionais e o poder do Estado e
abrir um importante capítulo do pensamento político moderno: o
das relações entre comunidades religiosas e o Estado convertido em
potência laica, capítulo que é freqüentemente, ao mesmo tempo, o
das relações entre exigências morais e necessidade política (Châtelet,
1984, p. 43).
Nos esquemas a seguir vamos sintetizar a visão sociológica sobre
a história do pensamento social e a visão sobre a evolução das normas
sobre o coletivo:
CONCEPÇÕES DE MUNDO NAS TRÊS FASES HISTÓRICAS DO
PENSAMENTO SOCIAL
Concepções
HOMEM
Grego Clássico
É um ser político
que pensa e entende
suas necessidades e
as formas de satisfazê-las. Quanto mais
estende suas ideias e
as concretiza na ação,
mais poder tem.
SOCIEDADE É criação humana,
uma estrutura que
resulta da justa ideia
e da disposição de
viver juntos de modo
civilizado.
Teocratismo Cristão
É criatura de Deus, dependente de Sua vontade e tem
uma dívida com seu Criador.
Quanto mais pagar essa dívida
(rezar e trabalhar: ir à Igreja e
pagar o dízimo), mais chance
tem de ser perdoado e voltar
ao seu Criador (Céu).
É o conjunto dos fiéis que
contribuem para o sucesso
da Igreja; é a rede de relações
religiosas que cumprem as
ordens divinas e lugar de
provação.
Modernidade
É um ser natural criador: pensa,
fala e age (trabalha). Por convenção
ou pacto, obedece a uma ordem
criada por ele: Direito, Estado e
Ciência.
É a organização criada pelo homem para melhor desenvolver e
potencializar sua natureza: pensarciência; falar – contratos/pactos;
agir – trabalhar/usar seu corpo.
Assim é o conjunto dos indivíduos/
instituições dispostos de forma
mais ou menos lógica para se
viver bem.
Capítulo 1 – Afirmação e Estruturação da Cultura Jurídica
49
ESQUEMAS SOBRE A EVOLUÇÃO DO DIREITO9
Interpretação possível do texto de Fernando Horta Tavares: O Direito nas sociedades
primitivas: algumas considerações, 2003.
9
CAPÍTULO 2
A MODERNIDADE
– A JUDICIALIZAÇÃO
DAS RELAÇÕES SOCIAIS
Nesta parte propomos a estudar as dimensões científicas das
abordagens da ordem social, a necessidade destas e as constelações
compreensivas que influenciaram na formatação da cultura jurídica que
marcam a historicidade atual.
A idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação
de que o homem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma
correspondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada mais
eficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organização da
sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animada pelo interesse,
mas também pela vontade de se liberar de todas as opressões. Sobre o
que repousa essa correspondência de uma cultura científica, de uma
sociedade ordenada e de indivíduos livres, senão sobre o triunfo da
razão? Somente ela estabelece uma correspondência entre a ação
humana e a ordem do mundo, o que já buscavam pensadores religiosos, mas que foram paralisados pelo finalismo próprio às religiões
monoteístas baseadas numa revelação. É a razão que anima a ciência
e suas aplicações; é ela também que comanda a adaptação da vida
social às necessidades individuais ou coletivas; é ela, finalmente,
que substitui a arbitrariedade e a violência pelo Estado de direito
e pelo mercado. A humanidade, agindo segundo suas leis, avança
simultaneamente em direção à abundância, à liberdade e à felicidade
(Touraine, 1994, p. 9).
Ao pesquisar empiricamente as ações características de grupos
sociais, a Sociologia foi consolidando métodos que contribuíram para
que a própria Ciência Jurídica fosse se tornando um estudo sistematizado
e autônomo. Assim, desde os primeiros cursos de Direito a Sociologia
contribuiu para dar rigor às compreensões sobre o social. Os estudos
sociojurídicos possuem sempre um caráter interdisciplinar, em que se
pressupõe a colaboração equilibrada entre juristas e sociólogos que
compreendem não apenas o Direito em sentido estrito, mas também os
modos de regulação de conflitos que dele se aproximam ou com ele se
relacionam. Isso requer a compreensão de que há uma interação objeto/
sujeito e noção de que as realidades sociais podem ser diferentemente
representadas nas teorias, necessitando diálogos entre elas.
54
Enio Waldir da Silva
Para entendermos porque somos hoje tão dependentes das determinações jurídicas presentes na sociedade precisamos reconstituir as
fontes que deram bases a essas necessidades de judicialização das relações
sociais na cultura jurídica moderna. Ela tem bases no mundo da produção
e arrastaram o desenvolvimento da vida urbana, do tráfego comercial nacional e internacional, da produção manufatureira, da atividade bancária,
etc. Nos centros europeus aparece cada vez mais o saber econômico, que
passa de uma técnica de gerir patrimônios de famílias ou encher cofres
de reinos para as ciências complexas que medem, proveem e preveem
os atos de produção, circulação e consumo em espaços territoriais agora
chamados de nação, a economia política.
A sociedade moderna consiste na crescente submissão das mais
diversas esferas da vida pública e privada à calculabilidade, à impessoalidade e à uniformidade características do formalismo burocrático sob
o regime de dominação tipicamente racional-legal, como afirma Max
Weber (1999a). A modernidade se definiu a partir de dois componentes:
O primeiro princípio é a crença na razão e na ação racional: a ciência e a
tecnologia, o cálculo e a precisão, a aplicação dos resultados da ciência a
campos cada vez mais diversos de nossa vida e da sociedade, passam ser
componentes necessários, e quase evidentes, da civilização moderna. O
segundo princípio fundador da modernidade é o reconhecimento dos direitos
do indivíduo, isto é, a afirmação de um universalismo que dá a todos os
indivíduos os mesmos direitos. A ação racional e o reconhecimento de
direitos universais a todos os indivíduos.
No que tange à formação das ideias modernas acerca do Estado e
do Direito é o legado clássico do pensamento greco-romano e às transformações trazidas pela Igreja Romana Ocidental. A Filosofia grega, a
República, o Direito Romano e Direito Canônico são raízes históricas
mais antigas que deram origem aos valores político-jurídicos e às instituições modernas dos séculos 14 e 16. Juntos (e misturados) também
provocaram os fenômenos de dissolução das instituições até então hegemônicas (Igreja Romana), o aumento do poder real com o surgimento
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
55
das monarquias nacionais (França, Inglaterra), o enfraquecimento do
papado, a emergência do reformismo filosófico, o aparecimento cultural
do humanismo renascentista e a secularização da política... reproduzindo
as condições para o desenvolvimento de uma cultura jurídica no interior
das relações histórico-sociais da sociedade moderna europeia.
Segundo Wolkmer (2005), muitos pensadores conseguiram captar a
dinâmica destas mudanças estruturais e mostrar que elas desencadearam,
conjuntamente com o complexo e plural sistema herdado de legalidade
(Direito Romano, Canônico, Germânico, Feudal e Mercantil), as bases
fundantes da moderna cultura jurídica europeia. Em verdade, nesse
horizonte de continuidades e de rupturas em que se forja os pensamentos políticos e jurídicos modernos, é que se destacam, com muita força
e criatividade, os movimentos do Humanismo Jurídico e da Reforma
Protestante.1
No âmbito da economia agrário-senhoril, o Direito serviu para
a instituição da produtividade econômica de mercado livre, pela sistematização do comércio por meio das trocas monetárias e pela força de
trabalho assalariado, constituindo-se no capitalismo como um conjunto
de práticas comerciais, ao empreendimento individualista e competitivo,
bem como ao afã de lucro ilimitado, ao cálculo previsível e ao procedimento administrativo racionalizado (Weber, 1999a). Um novo grupo social
diferente do clero e da nobreza vai se apropriando dos meios produtivos,
impondo uma hegemonia de valores e ideias ao controlar os instrumentos
políticos: a burguesia. Com a riqueza acumulada e concentrada nos meios
urbanos passam a dar as coordenadas para a vida prática e profissional
os prestigiados que começa a aparecer: médicos, advogados, contadores,
administradores...
Ver artigo de Wolkmer na Revista Seqüência, n. 50, p. 9-27, jul. 2005 e em sua obra:
Cultura Jurídica Moderna, Humanismo Renascentista e Reforma Protestante. In: Revista
Sequëncia, n. 50, p. 9-27, jul. 2005.
1
56
Enio Waldir da Silva
A “alma” burguesa começa a ser reconhecidas em todos os cenários
onde o dinheiro era seu fim, as empresas seu meio. A nova virtuosidade deste grupo que parecia estar acima de todos os outros grupos
passa a ser velada e interpretada como se fosse o máximo entendimento humano. Crescem seus asseclas intelectuais que se instalam
na administração das esferas públicas e vão dar roupagem científica
às suas vontades e desejos, como foi a doutrina do liberalismoindividualista. Assim, o liberalismo torna-se a manifestação mais
autêntica de uma ética individualista, voltada basicamente para a
noção de liberdade e que está presente em todos os aspectos da
realidade, desde o filosófico até o social, o econômico, o político, o
religioso etc. (Wolkmer, 2005).
Ideias não bastavam, era preciso a estruturação do poder que
efetivasse e mantivesse as classes dominantes: O Estado, o Direito, a
burocracia, a escola passaram a ser redimensionados para garantir esta
nova ordenação. Segundo o sociólogo Max Weber, o Estado moderno
materializou uma associação humana institucionalizada, detendo o
“monopólio da coação física legítima”, fundado na economia capitalista
mercantil, na burocracia de agentes profissionais e na construção de uma
legalidade formal e racionalizada. O poder agora passa a estar centralizado
no Estado Nacional, liberal e representativo, que gerencia as leis do livre
mercado e das relações privadas competitivas.2 Esta nova organização é
fortalecida pelas descobertas científicas (racionalismo), pelas explorações
nas novas terras descobertas (colonialismo) e pelo envolvimento das pessoas nas novas atividades produtivas (industrialismo), tudo necessitando
ser garantido por uma cultura jurídica.
A unidade política, a elite cultural, instituições eficazes, a hierarquia da autoridade, a técnicas documentais, processuais e notariais, além
de um ensino escolar organizado, passaram a fazer parte deste horizonte
vislumbrado para a nova cultura jurídica, para a consciência de viver com
bases em relações jurídicas. Claro está que a nascente ciência jurídica
Idem Wolkmer, 2005.
2
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
57
moderna não só se revela como produção de uma específica formação
social e econômica, mas principalmente consolida-se no processo de
junção histórica entre a legalidade estatal e a centralização burocrática.
O ápice teórico de convergência entre a unicidade do poder político e a
nova ordenação do Direito pode ser encontrado na filosofia política de
pensadores da época, como Thomas Hobbes. Certamente, assinala-se
que Hobbes não é apenas um dos construtores do moderno Estado
absolutista, mas igualmente um dos primeiros intérpretes a identificar
o Direito como manifestação do Direito do soberano. Tratava-se da
tendência, que acabará sendo predominante, do Direito identificado
com a legislação posta pela autoridade revestida do poder máximo e,
ainda mais, o Direito como criação do Estado. Assim, um dos traços
marcantes do Direito Moderno emergente entre os séculos XVI e
XVII está na íntima relação do Direito com o poder estatal e na sua
identificação com a lei escrita. Trata-se da instrumentalização do
jurídico como significação dos interesses da burguesia e da dinâmica
produtiva capitalista (Wolkmer, 2005).
Assim, destes fenômenos emergiram de modo acelerado outras
necessidades, tais como: o processo de secularização de atitudes e dos
modos de compreender a natureza humana, a origem e o funcionamento das instituições sociais e os motivos do comportamento humano; o
processo de racionalização que projetou, na esfera da ação coletiva, a
ambição de conhecer, explicar e dirigir o curso dos acontecimentos, das
relações dos homens com o universo às condições de existência social.
O programa moderno estava embasado no desenvolvimento implacável
das ciências objetivas, das bases universalistas da ética e de uma arte
autônoma. Seriam, então, libertadas as forças cognitivas acumuladas,
tendo em vista a organização racional das condições de vida em sociedade. Os proponentes da modernidade cultivavam ainda a expectativa
de que as artes e as ciências não somente aperfeiçoariam o controle das
forças da natureza, como também a compreensão do ser e do mundo, o
progresso moral, a justiça nas instituições sociais e até mesmo a felicidade humana.
58
Enio Waldir da Silva
Percebia-se então que a ampliação da judicialização das relações
sociais no período histórico da Modernidade se justificava para: regular
as práticas econômicas em franca expansão; garantia da paridade nos
negócios; afirmar a nação como espaço de produção e distribuição; prever e prover ações planejadas; garantir a impessoalidade no trato com as
questões coletivas e nas relações sociais; uniformidade nos tratamentos
pessoais (burocracia); garantir o direito da pessoa, da propriedade, do lucro
e da acumulação; enfraquecer o controle da Igreja e admitir necessidade
de outra centralidade social; garantir a secularização da política; regular
as concorrências; fortalecer o mercado como lugar de trocas; garantir a
organização empresarial e industrial; controlar as imigrações e migrações
populacionais; fortalecer as profissões e divisão do trabalho social, garantir
o comércio internacional...
A base para a realização dos objetivos do projeto da modernidade
seria garantido, no plano histórico, pelo equilíbrio entre os vetores societários de regulação e emancipação. As forças regulatórias englobariam as
instâncias de controle e heteronomia. De outro lado, as forças emancipatórias expressariam as alternativas de expansão da personalidade humana,
oportunizando rupturas, descontinuidades e transformações.
Nas suas conotações mais positivas, o conceito de modernidade
indica uma formação social que multiplicava sua capacidade produtiva,
pelo aproveitamento mais eficaz dos recursos humanos e materiais, graças
ao desenvolvimento técnico e científico, de modo que as necessidades
sociais pudessem ser respondidas com o uso mais rigoroso e sistemático
da razão
Neste sentido, discorre Boaventura de Sousa Santos (2004):
O projecto sócio-cultural da modernidade é um projecto muito rico,
capaz de infinitas possibilidades e, como tal, muito complexo e
sujeito a desenvolvimentos contraditórios. Assenta em dois pilares
fundamentais, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. São
pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três princípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado,
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
59
cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio
do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; pelo princípio
da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de
Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três
lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte
e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a
racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.
O programa da modernidade fundar-se-ia na estabilidade dos referidos pilares, assegurada pela correlação existente entre os princípios
regulatórios e as lógicas emancipatórias. Sendo assim, a racionalidade
ético-prática, que rege o Direito seria relacionada ao princípio do Estado, uma vez que o Estado moderno era concebido como o detentor do
monopólio de produção e aplicação das normas jurídicas. A racionalidade
cognitivo-instrumental, por seu turno, seria alinhada ao princípio do
mercado, porquanto a ciência e a técnica afiguravam-se como as molas
mestras da expansão do sistema capitalista.
A dinâmica da Sociologia está ligada ao contexto seu surgimento:
emergiu do interior do pensamento social da modernidade chamado de
muitas formas: racionalismo, iluminismo, jusnaturalismo, evolucionismo, contratualismo, constitucionalismo, idealismo, etc., que partia do
pressuposto de que o homem é o centro de todas as coisas; de que o
homem é o principal ser natural capaz de pensar, falar, agir e usar seu
corpo do modo que mais lhe convier. Assim, para esta compreensão,
bastava criarmos forças capazes de ordenar estas potências naturais para
criar outra potência artificial – positivar o existente que o submeteria (o
social submeteria o natural). Ou seja, a principal potência que deveria
ser bem preparada seria o pensamento, pois este coordenaria as outras,
as palavras e a ação (diziam os racionalistas, iluministas e idealistas – as
ideias iluminarão o mundo).
Esta compreensão levou à recuperação de outra potência histórica
necessária para ordenar o mundo: a quarta potência se tornou imprescindível, a potência da escrita, ou seja, não basta saber pensar, saber
60
Enio Waldir da Silva
falar ou saber agir ordenadamente (racionalmente), era preciso colocar
tudo isso por escrito no papel, para que todos possam seguir as melhores orientações (afirmavam os contratualistas, os constitucionalistas, os
jusnaturalistas). Assim, para preparar as ideias e escrever o melhor delas
era preciso institucionalizar a educação, que também era uma herança
da cultura ocidental, ou melhor, já havia muitas experiências de educação escolarizada, mas agora ela faz parte do mundo social e vai se tornar
universal, atingir a todos os sujeitos, pois precisam ser preparados para
viverem o social, sair do natural. Para assegurar que estas potências
sejam desenvolvidas foram redimensionadas e fortalecidas mais duas
potências sociais, o Estado e o Direito (Sousa Santos, 2004), além das
que já existiam.
RAZÃO/CIENCIA
EDUCAÇÃO
DIREITO/ESTADO
H
AÇÃO
Isso que se passava nos contornos do pensamento social se enterrou
no mundo prático e vai ser chamado de alta modernidade.
Antecedentes igualmente notáveis estão nas teorias contratualistas
de T. Hobbes, J. Locke e J. J. Rousseau. Do desenvolvimento de temas
destas filosofias sociais depreendem-se concepções significativas acerca
das funções que o Direito assumiria em decorrência do contrato social.
As principais conclusões giravam em torno da garantia dos direitos naturais de liberdade, vida e propriedade. Montesquieu, por outro lado,
usa a estratégia de aplicar o princípio da causalidade física à sociedade.
O autor afasta as concepções normativas do fato jurídico, explicando o
Direito enquanto fenômeno social inserido em um contexto históricosocial particular, adotando uma visão empírica e relativista do Direito.
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
61
Montesquieu introduzia novos elementos na reflexão sobre o
Direito Positivo e sobre suas relações com o Direito Natural. Este novo
“espírito” consistia em procurar o conjunto de relações que as leis podem
ter com as condições climáticas e geográficas, os tipos de vida, a religião,
o comércio e os costumes, e não só tratar de desvendar as relações que
as leis podem ter entre si e com a intenção do legislador. Relacionava o
Direito com todos os elementos do contexto político, social, econômico
e cultural, assim como com o entorno físico e geográfico. O resultado
era já uma Sociologia Jurídica, só que revestida com a linguagem do
século 18.3
O impacto destes estudos deveu-se mais às situações de perplexidade que se via na época: rejeitava-se uma ordem social, mas não se sabia
qual ordem iria lhe substituí-la. A intelectualidade mostra-se preocupada
com a situação de desordem e entrega-se à missão de restabelecer a
“ordem e a paz”. Para isso, sente a necessidade de conhecer as leis que
regem o funcionamento da sociedade, sua organização, as relações dos
grupos, etc. Intui, portanto, uma “ciência da sociedade” que pudesse dar
respostas àquilo que passou a denominar de “crise moral”. Os primeiros
sociólogos propõem revalorizar determinadas instituições que, segundo
eles, desempenhariam papel fundamental na integração e na coesão da
vida social. A jovem ciência, a Sociologia, assumia a tarefa de repensar o
problema da “ordem social”, enfatizando as instituições, a autoridade, as
leis e normas de conduta, procurando descobrir onde havia se perdido a
coesão social e indicar como esta poderia ser reconstituída.
A nova ciência adota uma postura reformista, buscando legitimar
intelectualmente a nova ordem estabelecida, encontrar uma solução para
os problemas que se apresentavam. Contra os que pregavam a volta ao
passado, queriam a volta da monarquia (os “restauradores”), estavam os
Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de; Rojo, Raúl Enrique. Sociedade, direito, justiça.
Relações conflituosas, relações harmoniosas? Revista Sociologias, Porto Alegre: UFRGS,
ano 7, n. 13, p. 16-34, jan./jun. 2005.
3
62
Enio Waldir da Silva
“positivistas”,4 que propunham restabelecer a ordem como condição para
a continuidade do progresso desencadeado pela revolução econômica,
política, social e cultural por que passava a sociedade europeia. Para eles,
a raiz dos problemas estava na falta de uma classe, grupo ou instituição
que conduzisse o processo de mudança preservando a ordem por meio
da autoridade. Propunha a união dos industriais com os cientistas para
formar uma elite esclarecida capaz de conduzir os rumos da sociedade.
A tarefa da Sociologia seria ajudar esta “elite” a detectar os problemas e apontar as soluções que seriam postas em prática pela liderança
política estabelecida no poder do Estado. Assim estaria restabelecida a
normalidade social e criadas as condições para o progresso. Na sequência
dos positivistas (dedicado a fundamentar uma moral social), os funcionalistas (dedicados a entender a sociedade a partir das funções exercidas pelos
indivíduos) reafirmavam a ideia de que a nova realidade surgida havia
alterado o equilíbrio social em função da falta de regulamentação jurídica
das novas profissões surgidas com a revolução industrial. Era necessário
que estas profissões organizassem suas corporações para regulamentar
o trabalho e, a partir das corporações, criar um novo código de conduta
socioprofissional e um novo sentido de pertença à sociedade. Com isso
reconstitui-se a divisão do trabalho e a solidariedade, fundamental para
o equilíbrio social.
Cella, José Renato Gaziero. Positivismo jurídico no século XIX: relações entre direito
e moral do ancien régime à modernidade. Texto direto do autor disponível em seu site:
<www.cella.com.br>. O autor adverte que não se pode fazer nenhuma analogia entre o
chamado positivismo jurídico e o positivismo filosófico, sob pena de se cair em erros grosseiros.
Com efeito, segundo os ensinamentos de Norberto Bobbio, a “expressão ‘positivismo jurídico’
não deriva daquela de ‘positivismo’ em sentido filosófico, embora no século passado [século
XIX] tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos
eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início
do século XIX) nada têm a ver com o positivismo filosófico — tanto é verdade que, enquanto
o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão ‘positivismo jurídico’
deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. Para compreender
o significado do positivismo jurídico, portanto, é necessário esclarecer o sentido da expressão
direito positivo” (Bobbio, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito.
São Paulo: Ícone, 1995. p. 15).
4
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
63
O positivismo refere-se a toda a construção humana que se impõe
sobre o mundo natural. Trata-se de todo este processo artificial que
ordena e até substitui a natureza, nega qualquer concepção de valores e
pretende ser o reflexo do que é e não do que poderia ser. Desta assertiva de que o mundo natural precisa ser dominado e organizado nasce
uma abordagem nova para as Ciências Sociais com a perspectiva de ser
objetiva e útil da doutrinação da sociedade, de sua ordenação. Foi esta
concepção que predominou no Ocidente até o fim da Segunda Guerra
Mundial. Elimina do Direito qualquer referência à ideia de Justiça e,
da Filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto
o Direito como a Filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto
arbitrário. Ou seja, o Direito pode ser subdividido em Direito Natural e
Direito Positivo (adquirido), sendo o primeiro inato a cada indivíduo e
o segundo provém da vontade do legislador.
Conforme se depreende, a ideia moderna de que os homens
encontravam-se aptos a delinear um projeto racional informa as definições clássicas de lei e Constituição. As normas legais afiguram-se como
instrumentos de uma razão planificante, capaz de engendrar a codificação
do ordenamento jurídico e a regulamentação pormenorizada dos problemas sociais. A Constituição, produto de uma razão imanente e universal
que organiza o mundo, cristaliza, em última análise, o pacto fundador
de toda a sociedade civil.
O fenômeno da positivação é, pois, expressão da modernidade
jurídica, permitindo a compreensão do Direito como um conjunto de
normas postas. Ocorrido, em larga medida, a partir século 19, corresponde
à legitimidade legal-burocrática preconizada por Max Weber, porquanto
fundada em ritos e mecanismos de natureza formal. A positivação desponta como um novo processo de filtragem, mediante procedimentos
decisórios, das valorações e expectativas comportamentais presentes na
sociedade, que são, assim, convertidas em normas dotadas de validez
jurídica. A lei, resultado de um conjunto de atos e procedimentos formais
64
Enio Waldir da Silva
(iniciativa, discussão, quórum, deliberação) torna-se, destarte, a manifestação cristalina do Direito. Daí advém a identificação moderna entre
Direito e lei, restringindo o âmbito da experiência jurídica.
A análise global da conjuntura da época possibilita o entendimento do sentido desta idolatria à lei. O apego excessivo à norma legal
refletia a postura conservadora de uma classe ascendente. A burguesia,
ao encampar o poder político, passou a utilizar a aparelhagem jurídica
em conformidade com seus interesses.
Os estudos da Sociologia Jurídica ampliaram-se no século 20. Naquele período havia aumentado a quantidade de atores do Estado e no
controle social: Judiciário, polícia, prisões, burocracia, escolas e mesmo
assim a desordem se ampliava. Então, a Sociologia procurou entender
como funcionavam os mecanismos regulatórios e como os indivíduos se
relacionam com o Direito, as normas, as regras, as distâncias e aproximações entre Direito e sociedade, as razões para a desordem, os fracassos
dos mecanismos controladores... As transformações principais ou mais
notáveis deram-se no mundo da produção e arrastaram o desenvolvimento da vida urbana, do tráfego comercial nacional e internacional, da
produção manufatureira, da atividade bancária, etc., assim como provocaram mudanças nas relações sociais e culturais. Nos centros europeus
aparece cada vez mais o saber econômico, que passa de uma técnica de
gerir patrimônios de famílias ou encher cofres de reinos para uma das
ciências complexas que mede, provê e prevê os atos de produção, circulação e consumo em espaços territoriais agora chamados de nações. A
expansão da complexidade nas relações sociais e as dimensões práticas
que estas proposições tiveram fizeram surgir vários estudos sociológicos
sobre as dimensões da vida regulada e o esforço em se viver em liberdade,
chamados de Sociologia Jurídica ou Sociologia do Direito.
A Sociologia do Direito vai criando sua identidade diante da
importância crescente dos marcos não nacionais e das redes regionais
e internacionais, do desenvolvimento das instituições que asseguram a
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
65
produção (e a reprodução) do Direito: os tribunais, as profissões jurídicas,
a polícia, etc. Em segundo lugar as pesquisas que se referem à efetividade
e aos efeitos do Direito: estes concernem às vezes a domínios particulares
(a família, a empresa, a proteção do meio ambiente, etc.), focalizam-se
nos fenômenos de ineficácia (marginalidade e divergência), ou avaliam
ainda a eficácia dos instrumentos jurídicos na prevenção ou resolução
dos conflitos ou das demandas renovadas (políticas e sociais) de uma
instância simbólica que deve agir seguindo formas adjudicatórias e que
deveriam dizer o que é justo. Vêm depois outras duas categorias: por
um lado, o estudo dos fenômenos de pluralismo normativo e, por outro,
o dos fenômenos de produção do Direito, dos processos legislativos e
de seu contexto social.
Vamos nos dedicar agora a este esforço para criar uma positividade
do mundo, justa e ordenada a ponto de ser obedecida por ser racional e,
portanto, incontestável.
Razão Positivista e Sistema Social
Auguste Comte (1798-1857) reposicionou a ideia de se criar um
sistema social, lógico e controlado que fosse expressão das necessidades
coletivas e das estruturas lógicas naturais dos indivíduos. Comte defende,
com sua teoria, as necessidades de uma orientação prática para a vida
moderna organizada juridicamente. Defendeu uma ciência síntese, forte
tanto quanto as verdades da Física ou da Biologia. Essa ciência síntese
foi inicialmente chamada de física social e mais tarde Sociologia e traçou
os contornos para que ela fosse uma ciência autônoma. Ele tratou a
Sociologia como uma ciência positiva que construía conhecimentos por
meio da interdependência entre teorias e observações empíricas. Se não
é possível fazer observações sem ter uma teoria que seleciona os fatos a
observar e uma definição do problema científico ao qual vamos resolver,
também seria uma insensatez considerar que as teorias surgiram isoladas
dos fatos sociais históricos em que os teóricos estavam inseridos. Esta é a
66
Enio Waldir da Silva
grande contribuição de Comte para separar o modo de pensar da tradição
filosófica, que acreditava ser possível formular hipóteses especulativas
a partir de outra hipótese, de operação mental à operação mental, sem
serem confrontadas com os fatos.
Comte mostra que é possível entender as vivências humanas
com base em critérios científicos, partindo do pressuposto de que era
possível conhecer o homem, suas ações e seu pensamento de modo
exato e, inclusive, prever as consequências do pensar e do agir. Essa
concepção estava impregnada em todos os pensadores sociais a partir
de 1500, que desvinculavam o conhecimento do mundo dos preceitos
religiosos e percebiam a natureza, a vida e a sociedade como algo possível
de ser conhecido, controlado e planejado. Para este autor, o homem não
é criação de Deus e sim um ser natural sujeito à lei de causa e efeito.
Bastaria conhecer essas leis e, a partir delas, fundar a sociedade humana
e agir sobre ela.
Comte propõe esta física social como campo de conhecimento
necessário para compreender as leis que explicam a organização e o funcionamento da sociedade humana. Esta ciência particular seria a forma
mais evoluída do conhecimento, iniciado com a Matemática e seguido,
respectivamente, da Astronomia, da Física, da Química e da Biologia.
A positividade da física social exige que se abandone definitivamente a
busca das causas e das essências para pesquisar as leis invariáveis, isto
é, as relações constantes que existem entre os fenômenos observados.
O pressuposto da época era de que a ciência deveria fazer a abordagem
de todos os problemas humanos, como verdades pesquisadas e experimentadas, sem especulações abstratas. É a matematização de tudo, a
busca da certeza, a procura do útil, do empírico e a decorrente aplicação dessas verdades nos atos humanos: a sociedade não é uma simples
aglomeração de seres vivos... pelo contrário, é uma verdadeira máquina
organizada, cujas partes, cada uma, contribui de uma maneira diferente
para o avanço do conjunto, dizia Saint-Simon. Como máquina, o homem
é resultado das leis de causa e efeito e, na sociedade, cumpre funções
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
67
a ele designadas. Por isso, todos deveriam ser preparados para ser um
elemento do conjunto, uma célula do corpo social, uma parte do todo.
Conforme as funções que desempenhavam, exerciam sua moral e sua
autoridade sobre os demais.
Estas concepções presentes no positivismo de Comte esboçavam
uma história e uma topografia administrativa do mundo industrial, da
sociedade moderna, mas também sua política, seu saber e sua nova
religião. Segundo Comte, as sociedades modernas estavam em uma
situação caótica, em “anarquia”, em “desordem,” e era preciso afirmar
a nova sociedade que nascia, criando uma racionalidade que fizesse a
adequação dos homens aos novos tempos de produção industrial. Um
pensamento sistemático e positivista deveria ser, também, o intérprete
da sociedade moderna, marcada pelo desenvolvimento da vida urbana,
do tráfego comercial nacional e internacional, da produção manufatureira, da atividade bancária, assim como pelas transformações nas relações
sociais, migrações de populações e presença constante do econômico
nos reinos da Europa Ocidental.
A grande tarefa da Sociologia fundada por Comte seria contribuir
para criar essa moral e preparar o homem moderno em sua adaptação
a essas verdades científicas, de forma a não necessitar de imposições
externas para essa obediência, esse respeito às leis. Na sua proposta de
sociedade, Comte propôs a substituição do culto aos santos pelo culto à
humanidade, aos homens que foram capazes de criar coisas para melhorar
a vivência do homem (grandes homens, vultos de nossa História), que
trouxeram razões (ideias) fortes, que criaram instituições para ordenar
a sociedade. Os governantes que organizaram comunidades, respeitaram e aperfeiçoaram instituições, proporcionaram felicidade ao povo,
deveriam ter um busto em praça pública para veneração. A sociedade,
para Comte, é o conjunto dos seres passados, presentes e futuros que
concorrem para o aperfeiçoamento da ordem universal. A humanidade
68
Enio Waldir da Silva
é guiada – diz Comte – por uma só lei, “viver para os outros,” e por essa
razão não haveria nada mais santificado do que aqueles que viveram para
os outros (Silva, 2008a).
Sua proposta de um novo “sistema social” todo articulado marcou
os pensamentos maios pragmáticos da modernidade. O sistema seria
criado e coordenado pelos cientistas que teriam o poder espiritual, a
direção educativa e sistemática da civilização. As ideias se concretizariam nas leis e estas funcionam como os “nervos” no sistema social. A
sociedade não poderia ser resolvida sem pôr à frente da sociedade os
grandes industriais e os homens da ciência, pois o interesse da indústria
coincidia com os interesses de todos, posto que nenhum homem é capaz
de satisfazer suas necessidades sozinho. A indústria, a empresa racional,
o comércio, junto com a ciência, seriam, então, a salvação do homem
moderno e, por isso, nenhum obstáculo ao seu desenvolvimento deveria
existir. Especialmente a indústria deve ao processo das ciências o seu
contínuo desenvolvimento e a sua crescente influência na vida social.
Assim, a direção espiritual deveria passar aos cientistas e o cuidado pelos
interesses materiais para os industrialistas e comerciantes.
Os partidários das Luzes, da Ideologia, e outros mais, já proclamavam o
desejo generalizado de adquirir conhecimentos “positivos”... O século
(1800) herda um mundo em efervescência. Depois dos recorrentes
tumultos revolucionários, anseia-se por reconstruções e reorganizações; deseja-se sair do negativo. Espera-se uma sociedade de paz, um
regime político estabilizado em que os desenvolvimentos científicos e
industriais tragam o progresso e felicidade. Procura-se, então dominar
os saberes e assegurar os poderes, para reorganizar as idéias e refazer
o mundo. Comte integra, em 1814, a Escola Politécnica, onde essas
questões são ardentemente debatidas... (Petit, 1999).
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
69
O positivismo de Comte sai do plano das ideias e se torna bandeira
política de defesa moral no novo tempo, fundando, inclusive, associação
para instrução positiva do povo em 1848, o que levou ao aumento dos
partidários do positivismo, criando escolas, sociedades, igrejas e representações (na Europa e América).5
A ordem social desenvolve-se segundo uma lei necessária no
sentido do aumento da diferenciação e da complexidade. Esse movimento pode ser considerado a partir das causas modificadoras da sua
velocidade – a raça, o clima e a ação política – e dos fatores efetivos de
mudança social – o tédio, o suceder das gerações e o aumento da população. Desta forma, supera-se a ilusão metafísica sobre o aumento da
felicidade humana nos diversos estágios da civilização para afirmar-se o
princípio científico “do desenvolvimento contínuo da natureza humana,
considerada sob todos esses aspectos essenciais, seguindo uma harmonia
constante e de conformidade com leis invariáveis de evolução” (Comte
apud Bressan, 2003).
Entre os cientistas deve ser constituída uma nova classe: os especialistas em Física Social, responsáveis pela elaboração dos estudos sobre
a sociedade. Além disso, entre os cientistas propriamente ditos e os produtores, tende a se formar uma classe intermediária, a dos engenheiros,
“cuja destinação especial é organizar as relações entre teoria e prática”. A
concepção social de Comte não pretende a eliminação da relação capital e
trabalho da sociedade industrial, segundo a proposta dos socialistas, nem
deixar essa relação ao livre jogo do mercado, como propõem os liberais.
O seu programa trabalhista visa a garantir ao proletário “todos os materiais de seu uso exclusivo e contínuo, dele próprio ou de sua família” e
Neste sentido, ler Petit, Anne. História de um sistema: o positivismo comtiano. In:
Trindade, Helgio (Org.). O positivismo: teoria e prática. Porto Alegre: Ed. Universidade;
UFRGS, 1999.
5
70
Enio Waldir da Silva
a afirmação da natureza social da propriedade. Para isso, a propriedade
privada deve ser regulada pelo poder espiritual positivista, o que significa
a sua subordinação às necessidades sociais (Silva, 2008a).
O autor assim se referia a esta necessidade de interiorizar uma
ordem:
... É preciso fazer com que ele acredite na reorganização de sua vida
prática. Logo, o erro do povo se traduz a partir desta grande “desviação” primitiva, dado sua filiação às antigas orientações.
O fim da sociedade para o autor é definido através de dois objetivos.
O primeiro se refere à ação violenta sobre o resto da espécie humana
ou à conquista; e o segundo é a ação sobre a natureza para modificar e para assim dela tirar proveito e produção. Deste modo, toda
a sociedade que não estiver organizada para um ou para outro não
passa de uma associação bastarda ou sem caráter. No antigo sistema
a finalidade era a militar, na nova sociedade que passa a se constituir
é a industrial. O primeiro passo para a nova sociedade é a afirmação
da sua proposição (industrial). Como isso não foi feito, a mesma
continua a viver no antigo sistema, apesar de acreditar no progresso.
E assim o erro da sociedade está na atenção dispensada tão somente
para a parte prática desta, deixando de lado o modo de conceber
e repensar a sociedade. A tentativa de reorganizar a sociedade em
vista da lacuna existente se deu através de uma série de leis e artigos
configurados como pertencentes ao sistema, logo, o resultado disso
tudo foi uma tentativa de regulamentação da sociedade. Em vista
disso se acreditava que as mudanças estavam ocorrendo, mudanças
essas que não passavam de pequenas alterações, ou seja, no fundo
tudo continuou tal qual, apenas fracionando os antigos poderes do
Estado. No intuito de instaurar as modificações e caracterizar as mesmas enquanto modificações para a sociedade como um todo frente
aos sistemas feudal e teológico e estes constituídos como orgânicos,
institui-se os poderes (legislativo e executivo) como subdivisão dos
poderes. Na verdade, segundo Comte, a institucionalização destas
leis foram propagadas como importantes para a efetivação do processo
de reorganização da sociedade, a ponto delas serem naturalmente
incorporadas e percebidas como necessárias. Diante da iminência da
crise em que a sociedade vivia, se fez necessário repensar o antigo
sistema e propor algo que realmente acompanhasse o progresso do
espírito humano, não permitindo que a sociedade chegasse ao abismo.
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
71
Faz-se necessário pensar a reorganização a partir de duas perspectivas,
uma teórica e outra prática, uma como conseqüência da outra. Assim,
cabe ao cientista a tarefa de articular, diante daquilo que se apresenta,
as mais diferentes teorias e procurar apresentar possíveis caminhos
para propor o reordenamento da sociedade, instituindo os elementos
fundamentais do governo com moral, com capacidade e autoridade.
Seria um poder centralizado com possibilidades de estabelecer solidamente as estruturas da nova cultura, com capacidade de propor a
nova doutrina orgânica e com a qualidade de uma nova constituição
intelectual (Comte, 1977, p. 51).
A reforma intelectual desenhada por Comte pode ser assim analisada: o homem nasce numa família e é nela orientado até os 7 anos,
conforme a moral afetiva dos pais; dos 7 aos 14 anos deveria ir para a
escola e aprender a se orientar para o mundo do trabalho a partir da interiorização da razão historicamente formada; aos 18 anos seria preparado
pelo Estado, ou seja, todos os homens deveriam servir à pátria, ir para o
quartel e sair de lá só após a maioridade, quando estaria preparado para
assumir seus deveres e direitos, constituir sua própria família e orientar
os filhos para a ordem. No Estado (simbolicamente representado pelo
quartel) o indivíduo é submetido à ordem estabelecida, leva um choque
civilizacional, aprende à força a respeitar a ordem, a hierarquia, a autoridade e enraíza seu amor à pátria.
Assim teríamos em poucos anos a evolução verdadeira, o progresso social, a moral da civilização orientada pela razão científica. Se
durante estes 21 anos, entretanto, o indivíduo ainda não se organizou,
não aprendeu a ordem social, então teríamos de vigiá-lo pelos órgãos de
coerção, para orientá-lo (subsistema policial, subsistema penitenciário,
etc.). Quem não se adequasse teria como castigo as penas da pobreza ou
da cadeia (Silva, 2008a). A figura a seguir concretiza a ideia de sistema
social de Comte:
72
Enio Waldir da Silva
O SISTEMA SOCIAL
FAMÍLIA
ESCOLA
MAIORIDADE
TRABALHO
ESTADO
POBREZA
PRISÃO
Desta forma a positividade do Direito estaria ligada à ideia de que
as leis são frutos da razão humana, de sua máxima, e se instaura como uma
demonstração clara do eu é preciso ser ordenado porque é útil ser assim.
Ou seja, você pode contestar a lei, mas nunca desobedecê-la: você é um
homem social, e como tal depende dos outros e por depender precisa
colaborar com ele. Nas linhas retas da lei está a forma desta colaboração.
Ou seja, o positivismo é método (de conhecimento, de ciência) e ideologia
(propõe uma moral de viver).
A Direito Funcionalista e Moral Social
Tanto é assim que obteve vários seguidores. Émile Durkheim
(1858-1917) reposicionou a Sociologia como método na sua condição de
ciência da sociedade, embora tenha proposto também uma forma ordenada de sociedade. Seus estudos influenciaram muito no desenvolvimento
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
73
do pensamento social do século 20 e a produção de pesquisa em Ciências
Sociais como a Sociologia, Antropologia, a Ciência Política, a Arqueologia,
a História, a Geografia, a Etnografia, e Economia, o Direito e outras. A
influência dos problemas sociais da época – 1860-1920 – é sentido em toda
sua obra, pois mostrava-se preocupado com as mudanças que estavam
acontecendo na sociedade industrial, especialmente a crescente divisão
do trabalho e o colapso das formas de solidariedade.
Suas criações foram chamadas, inclusive, de escola durkheimiana
na França, pois de suas teorias emergiram muitas teses formadoras de
sociólogos. Testemunhou fatos relevantes da história francesa e europeia, ao mesmo tempo que sentia a presença dos ideais da Revolução
Francesa de 1789 ainda ecoarem como postulado de um ideal ainda em
formação e que tinha tendências de se afirmar como individualismo e
não como uma consciência coletiva de todos pela igualdade, fraternidade e liberdade. A Revolução tinha sido bem-sucedida, pois elementos
conservadores mantinham fortes influências sobre governo e sociedade
(como a Igreja Católica e nos campesinatos). A ordem social que estava
em transição exigia a realização ou instituição concreta dos ideais da
Revolução Francesa.
Émile Durkheim outorgava uma importância muito grande ao
Direito na sua teoria da consciência coletiva e das solidariedades sociais.
Em sua opinião, é segundo o tipo de Direito que se pode distinguir empiricamente a solidariedade mecânica da solidariedade orgânica, pois a
primeira está dominada pelo Direito repressivo, assim como a segunda
se caracteriza pelo Direito restitutivo. O Direito repressivo é a expressão
de uma consciência coletiva forte, enquanto o Direito restitutivo progride
nas sociedades nas quais a consciência individual se desenvolve, ao passo
que retrocede o império da consciência coletiva (Durkheim, 1986).
Para Durkheim, o Direito não só permite distinguir os dois tipos
fundamentais de solidariedade social, mas também proporcionar seguir
a evolução das sociedades. A passagem do Direito repressivo para o Direito restitutivo é o índice da transição de um tipo de sociedade arcaica
74
Enio Waldir da Silva
para um tipo de sociedade na qual a divisão do trabalho se faz mais
elaborada e onde, por consequência, a solidariedade orgânica substitui
a solidariedade mecânica (Azevedo, 2005).
A pesquisa de Durkheim sobre o fato social Suicídio,6 no ano de
1897, emergiu de suas reflexões na tese A Divisão do Trabalho. Assim,
divisão orgânica do trabalho é parte do desenvolvimento normal das
socieda­des humanas. É importante para a ordem social a diferenciação
dos indivíduos e das profissões; a regressão da autoridade da tradição; o
domínio crescente da razão, o desenvolvimento da parte que foi deixada
à iniciativa pessoal. O homem, porém, não se sente necessariamente
mais feliz com sua sorte nas sociedades modernas, e registra, de passagem, o aumento do número dos suicídios, expressão e prova de certos
traços, talvez patológicos, da organização atual da vida coletiva.
Só estaremos imunizados contra o suicídio se estivermos socializados...
não podemos deixar que o vazio ocupe nossa existência... o lugar que
mais socializa é a associação, a corporação, o grupo profissional... o
mal-estar que sentimos não é provocado por um aumento quantitativo
e qualitativo das causas objetivas de sofrimento; revela uma maior
miséria econômica, mas uma alarmante miséria moral (Durkheim,
1986).
Já o crime demonstração da permanência do crime em todas as
sociedades, constituiu o fator determinante da sua integração no pensamento sociológico sistemático, cujo contributo mais significativo se
deve a Durkheim em três das suas obras fundamentais, que são De la
Division du Travail Social (1893), Les Règles de la Méthode Sociologique (1895)
e Le Suicide (1897). Será legítimo, todavia, situar o início da Sociologia
criminal a partir do segundo quartel do século 19, altura em que foram
desenvolvidos inúmeros estudos, em diversos países (França, Bélgica,
Embora possa se ter títulos diferentes nas diversas publicações existentes, nossas
referência aqui usadas estão em Durkheim, Émile. O suicídio – estudos sociológicos.
Lisboa. Editora Presença, 1996.
6
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
75
Alemanha e Grã-Bretanha), com aplicação de métodos e instrumentos sociológicos, nomeadamente a recolha e interpretação de dados estatísticos.
É efetivamente com os trabalhos de Lacassagne, Gabriel Tarde e Émile
Durkheim, porém, que a Sociologia criminal adquire o seu estatuto de
ciência, especialmente a partir do 3º Congresso de Antropologia Criminal,
realizado em Bruxelas, em 1892, que marca a virada das explicações da
escola positiva em favor das teorias sociológicas.
A Sociologia criminal aparece-nos assim como uma ciência muito
recente, muito depois do Direito Penal, cuja origem remonta à Antiguidade, e depois ainda da criminologia, cuja origem se poderá situar na
escola clássica, muito embora apenas tenha atingido a sua forma sistemática com a escola positiva italiana. Se ao Direito Criminal importa a
definição do tipo de crime e a sua consequência sancionatória, entretanto,
à criminologia importa a compreensão da realidade criminal em todos os
seus aspectos. Numa primeira fase, a criminologia debruçou-se sobre a
pessoa do delinquente, servindo-se de métodos próprios da Biologia e
da Psiquiatria – aquilo que alguns autores designaram por criminologia
“clínica”. Numa fase mais avançada da reflexão criminal, o criminólogo
deslocou o seu estudo para o meio social onde se gerou a prática delitiva – a acentuação deste aspecto da criminologia deu lugar à Sociologia
criminal que apareceu também como um novo ramo da Sociologia. A
partir do momento em que se compreende que não existe sociedade
sem crime, não só não é concebível uma Sociologia que ignore este fenômeno, como não é possível estudar o crime, considerado em abstrato,
sem evocar o meio social no qual se desenvolve.
A obra de Durkheim deve uma grande parte da sua importância
ao fato de ter compreendido esta relação entre o crime e a sociedade
numa altura em que as escolas positivas se refugiavam por detrás das
concepções individualistas. Este autor compreendeu que a sociedade
não era simplesmente o produto da acção e da consciência individual,
pelo contrário, “as maneiras coletivas de agir e de pensar têm uma realidade exterior aos indivíduos que, em cada momento do tempo, a elas
76
Enio Waldir da Silva
se conformam e, mais que isso, são não só exteriores ao indivíduo, como
dotados dum poder imperativo e coercivo em virtude do qual se lhe
impõem. O tratamento do crime como um fato social, de caráter normal
e até necessário, permitir-lhe-á reabilitar cientificamente o fenômeno
criminal e demonstrar que a prática de um crime poderá depender não
tanto do indivíduo que, de acordo com esta concepção, age e pensa sob
a pressão dos múltiplos constrangimentos que se desenvolvem na sociedade mas, diversamente, poderá apresentar em abstrato uma ampla
raiz de imputação social.
A Teoria da Anomia. A consideração sociológica da anomia, que
etimologicamente não significa senão “ausência de normas”, apesar dos
vários desenvolvimentos que conheceu, em Merton, Cloward, Ohlin, Parsons, Dubin e Opp, remonta aos estudos desenvolvidos por Durkheim,
particularmente em A Divisão do Trabalho Social e em O Suicídio. O fato de
o homem não viver num ambiente de eleição, mas sujeito a uma ordem
“imposta”, permite a Durkheim formular a sua concepção da anomia e
estabelecer as condições da produção do crime.
A Divisão do Trabalho Social, cujo tema central incide sobre a
relação do indivíduo e a coletividade, está dominada pela ideia de que
a divisão do trabalho é portadora de uma nova forma de coesão social, a
solidariedade orgânica. Nas solidariedades mecânicas, características das
sociedades ditas “primitivas”, a consciência coletiva cobre a maior parte
das consciências individuais, pelo que se poderá dizer que o indivíduo
está estreitamente integrado no tecido social. No caso das sociedades
orgânicas, dominadas pela divisão do trabalho, a consciência coletiva
apresenta uma menor extensão ante o indivíduo que se determina com
uma maior autonomia, porém compreender a solidariedade orgânica
como correspondente a uma sociedade contratualista – marcada pela
atomização do indivíduo cujos contratos se efetivariam num dado contexto interindividual – sem uma consciência coletiva mínima, não só
constituiria uma paradoxal sociedade sem sociedade como “implicaria
a desintegração social”. O normal será que a sociedade desenvolva os
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
77
seus mecanismos de solidariedade, ainda que estejamos perante uma
sociedade assentada na diferenciação social e marcada pela especialização
das funções. Isso não significa que não existam, no âmbito do processo
de desenvolvimento da solidariedade social, algumas patologias na divisão do trabalho, como é o caso da divisão forçada e da divisão anômica
do trabalho. Assim, se não existir uma adequada interação de funções e
um eficaz sistema normativo capaz de regular essa interação, estaremos
perante uma anomia na divisão do trabalho.
A teoria da anomia aparece também desenvolvida em O Suicídio,
que se revela, além do mais, como a primeira etapa da teoria do controle
social. O estudo do suicídio, que é um fenômeno especificamente individual, apesar de só em aparência, permitirá a Durkheim demonstrar
as fortes relações entre o indivíduo e a coletividade. A estrutura da obra
assenta-se no pressuposto da existência de três tipos de suicídios: o suicídio egoísta, que resulta de uma individualização excessiva e cujo grau de
integração do indivíduo na sociedade não se apresenta suficientemente
forte; o suicídio altruísta, que ao contrário, resulta de uma individualização
insuficiente; e o suicídio anômico, que se relaciona com uma situação de
desregramento, típica dos períodos de crise, que impede o indivíduo de
encontrar uma solução bem definida para os seus problemas, situação
que favorece um sucessivo acumular de fracassos e decepções propícias
ao suicídio. Pela observação de estatísticas oficiais, este autor detectou
que o suicídio era mais frequente nas comunidades protestantes que nas
comunidades católicas, fenômeno que explicou pela noção de integração
religiosa. No mesmo sentido, Durkheim verificou que o suicídio ocorria
menos entre os indivíduos casados que entre os celibatários, viúvos e
divorciados, situação que, segundo ele, se explicaria por meio da noção
de integração familiar. Nesse estudo, percebeu ainda que a taxa de suicídios diminuía em períodos de grandes acontecimentos políticos, em que
aumentava a coesão sociopolítica em torno da ideia de nacionalidade. A
partir destas observações, o sociólogo francês pôde assim concluir que
o suicídio variava na razão inversa do grau de integração da sociedade
religiosa, familiar e política.
78
Enio Waldir da Silva
O suicídio altruísta apresenta-se como a situação oposta ao suicídio egoísta. Um exemplo deste tipo de suicídio é o existente entre os
esquimós, em que um velho que se torne um fardo para a coletividade
se deixa morrer ao frio; um outro, que ocorre na Índia, é o suicídio da
mulher ou dos servidores de um defunto, os quais se deixam imolar no
dia do seu funeral. Em qualquer dos casos, o indivíduo determina a sua
morte por força de um imperativo social interiorizado, obedecendo ao
que o grupo ordena a ponto de asfixiar dentro de si próprio o instinto
de conservação.
O terceiro tipo de suicídio, o anômico, é estudado por meio do
relacionamento do suicídio com os movimentos econômicos. A análise
das estatísticas revelou que os suicídios aumentavam tanto em períodos
de recessão quanto de crescimento econômico. O que se observa desses
resultados é que se a influência reguladora da sociedade deixa de se exercer, o indivíduo deixa de ser capaz de encontrar em si próprio razões para
se autoimpor limites. Numa época de rápidas transformações econômicas
a ação reguladora da sociedade não pode ser exercida de modo eficaz
e de forma a garantir ao indivíduo um conjunto normativo conciliável
com as suas aspirações. Ora, esta situação de desregramento, que lança
o indivíduo num universo sem referências, caracteriza uma situação de
anomia que corresponde, no fundo, a uma situação de dissociação da
individualidade diante da consciência coletiva.
As conclusões extraídas do estudo do suicídio permitem, como se
referiu, enquadrar a construção durkheimiana nas teorias do controle social. Com efeito, um dos postulados definidos ao longo da sua obra foi o da
necessária integração social do indivíduo que revela uma maior tendência
para a prática de certas “patologias” sociais, como o suicídio e o crime,
quando excluído do grupo social a que pertence. O fato de se verificar
que as instituições tradicionais de coesão social (a família, a religião, etc.)
não constituírem um fator de agregação eficaz das sociedades modernas,
leva Durkheim a defender que o único grupo social capaz de favorecer a
integração social é a profissão ou a empresa. Ora, se uma integração social
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
79
do indivíduo poderá diminuir a sua tendência para se conformar com os
imperativos sociais, isso significará de certa maneira que a sociedade terá
de encarar uma grande parte das condutas suicidas como perfeitamente
normais numa sociedade caracteristicamente dinâmica.
A Tese da Normalidade. A definição dos fatos sociais normais permitiu a Durkheim importantes considerações acerca da natureza normal
ou patológica do crime, como resulta do seu estudo em As Regras do
Método Sociológico.
O crime, definido como um “ato que ofende certos sentimentos
coletivos”, apesar da sua natureza aparentemente patológica, não deixa
de ser considerado como um fenômeno normal, no entanto, com algumas
precauções. O que é normal é que exista uma criminalidade, contanto que
atinja e não ultrapasse, para cada tipo social, um certo nível. A sociedade
constrói-se, na verdade, em torno de sentimentos mais ou menos fortes,
sentimentos cuja dignidade parece tanto mais inquestionável quanto
mais forem respeitados. Isso, no entanto, não quer dizer que todos os
membros da coletividade partilhem dos mesmos sentimentos com a
mesma intensidade. De fato, alguns indivíduos tenderão a interiorizar
mais esses sentimentos que outros, o que explica que possam existir
condutas que, pelo seu grau de desvio, venham a se apresentar como
criminosas. Isso explicará naturalmente a natureza do crime como um
fato de Sociologia normal. Essa constatação não impede, contudo, que
se considerem algumas condutas como particularmente anormais, o que
será perfeitamente admissível, segundo Durkheim, tendo em consideração alguns fatores de ordem biológica e psicológica na constituição da
pessoa do delinquente .
Para além disso, o crime deverá ser reconhecido não como um
“mal”, mas pela sua função utilitária enquanto um indicador da sanidade
do sistema de valores que constitui a consciência coletiva. Nesse sentido,
o crime será mesmo um elemento promotor da mudança e da evolução da
sociedade. É a este propósito que Durkheim refere peculiarmente que,
diante dos sentimentos atenienses, a condenação de Sócrates nada tinha
80
Enio Waldir da Silva
de injusto. Efetivamente, será esta dimensão do crime que explica que
a mesma conduta poderá ser censurada por uma determinada sociedade
num determinado momento da sua evolução cultural, como poderá nada
ter de censurável na mesma sociedade num outro e diferente momento
da sua evolução cultural. Isso permitir-nos-á compreender que um ato
criminoso transpõe, de modo negativo, uma construção valorativa, de tal
modo que se poderá dizer que não há ato algum que seja, em si mesmo,
um crime. Por mais graves que sejam os danos que ele possa causar, o seu
autor só será considerado criminoso se a opinião comum da respectiva
sociedade o considerar como tal.
Um dos aspectos mais salientes da Sociologia de Durkheim passa
pela consideração obrigatória de uma estreita relação entre as determinações individuais e as construções sociais, donde resulta, antes que
tudo, uma clara ascendência da consciência coletiva sobre a consciência
individual. Ao contrário do que defendiam os contratualistas, que imaginavam uma sociedade de indivíduos, a sociedade não é o mero somatório
das partes, pois ainda assim não passaria de um conjunto heterogêneo
de afirmações diferenciais. A sociedade, muito pelo contrário, é, para
Durkheim, um depositório de valores que de uma forma mais ou menos
regular se consensualiza.
Esta visão da sociedade não deixou de ter a sua projeção no modelo
sociocriminal que Durkheim defendeu. Antes de tudo porque o crime,
embora de modo algo ambíguo, passou a ser considerado não apenas
como o resultado de condutas antissociais, mas como condutas contextualizadas socialmente. O crime, mais que um fenômeno do criminoso,
passou a ser encarado como uma realidade social cuja importância era
inquestionável para o estudo sociológico, nomeadamente para a compreensão das grandes estruturas de sedimentação e desenvolvimento
social. A um crime tão atomizado na sua explicação como o foi o homem
desde a escola clássica até à escola positiva opôs-se, por meio desta nova
dimensão da criminologia, uma explicação das causas do crime que
procura a solução do problema criminal não apenas na responsabilização
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
81
exclusiva do delinquente, mas na responsabilização do comportamento
criminal por elementos típicos da própria sociedade que funciona como
um ambiente verdadeiramente condicionador da ação individual. Mais
que isso, porém, a concepção de Durkheim explica já que as causas do
crime poderão estar em relação direta com as disfuncionalidades fáticas
e normativas do conjunto inter-relacional, como poderão resultar das
opções consensuais dos ordenamentos sociais de cada época.
Já a teoria do suicídio de Durkheim pode ser assim resumida: os
suicídios são fenômenos individuais, cujas causas são, contudo, essencialmente sociais. Há “correntes suicidógenas” (terminologia de Durkheim)
que atra­vessam a sociedade, originando-se não no indivíduo, mas na
coletividade, e que são a causa real e determinante dos suicídios. Indubitavelmente estas correntes “suicidógenas” não atingem indiscriminadamente qualquer indivíduo. Quem se suicida provavelmente estava
predisposto a esse ato pela sua constituição psicológica, por fraqueza
nervosa ou distúrbios neuróticos. Da mesma forma, as circunstâncias
sociais que criam correntes “suicidógenas” originam também estas predisposições psicológicas, porque os indivíduos, vivendo nas condições
peculiares da sociedade moderna, são mais sensíveis e, por conseguinte,
mais vulneráveis (Aron, 1987, p. 315).
As causas reais dos suicídios são, em suma, forças sociais que variam de sociedade para sociedade, de grupo para grupo e de religião
para religião. Emanam do grupo e não dos indivíduos isoladamente.
Uma vez mais, encontra-se aqui o tema fundamental da Sociologia de
Durkheim, a saber, o fato de que em si as sociedades são de natureza
diferente dos indivíduos. Existem fenômenos e forças cujo suporte é
a coletividade e não a soma dos indivíduos. Estes, em conjunto, fazem
surgir fenômenos ou forças que só podem ser explicadas pela sua conjunção. Há fenômenos sociais específicos que comandam os fenômenos
individuais; um exemplo mais notável e mais eloquente é justamente
82
Enio Waldir da Silva
o das correntes sociais que levam os indiví­duos à morte, embora cada
um deles pense que está obedecendo apenas a si mesmo, quando na
realidade é um joguete dessas forças coletivas.
Para extrair as consequências práticas do estudo do suicídio,
convém indagar sobre o caráter normal ou patológico deste fenômeno.
Durkheim considera o crime um fenômeno socialmente normal, o que
não significa que os criminosos não sejam muitas vezes psiquicamente
anormais, nem que o crime não mereça ser condenado e punido. Sabemos, contudo, que em todas as sociedades um certo número de crimes
são cometidos; assim, se queremos nos referir ao que se passa regularmente, o crime não é um fenômeno patológico. Pelo mesmo motivo,
uma certa taxa de suicídios pode ser considerada normal, própria das
sociedades complexas que se caracterizam pela diferenciação social, a
solidariedade orgânica, a densidade da população, a intensidade das
comunicações e a luta pela vida. Todos esses fatos, ligados à essência
da sociedade moderna, não devem ser considerados em si mesmos anormais. As sociedades modernas apresentam certos sintomas patológicos,
principalmente a insuficiente integração do indivíduo na coletividade,
em todos os casos em que se produz um exagero da atividade e uma
ampliação das trocas e das rivalidades. Estes fenômenos são inseparáveis das sociedades em que vivemos, mas, a partir de um determinado
limiar, tornam-se patológicos.7
Há razão para crer que esse agravamento (da taxa de suicídio)
deve-se não à natureza intrínseca do progresso, mas às condições
particulares em que ele se realiza em nossos dias, e nada nos assegura
que essas condições sejam normais. Com efeito, não nos devemos
deixar cegar pelo brilho do desenvolvimento das ciências, das artes e
da indústria ao qual assistimos. Indubitavelmente ele se realiza no meio
de uma efervescência doentia, cujos efeitos dolorosos todos sentimos.
Texto já publicado em Silva, Enio Waldir da; Bressan. Suimar; Correa, Ricardo. Teoria
sociológica II. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009.
7
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
83
É muito possível, portanto, e até mesmo verossímil, que o aumento
do número de suicídios se origine num estado patológico que acompanha atualmente a marcha da civilização, embora não constitua uma
condição necessária. Como argumenta Aron:
A rapidez com que o número de suicídios tem aumentado não autoriza
nem mesmo outra hipótese. Em menos de cinqüenta anos esse
número triplicou, quadruplicou ou quintuplicou, de acordo com o
país. Por outro lado, sabemos que esses suicídios estão associados
ao que há de mais entranhado na constituição das sociedades, cujo
temperamento exprimem. E o temperamento dos povos, como o
dos indivíduos, reflete o estado do organismo no que ele tem de mais
fundamental. É preciso, portanto, que nossa organização social se
tenha modificado profundamente no curso deste século, para ter
determinado tal elevação da taxa de suicídios. Ora, é impossível
que uma alteração ao mesmo tempo tão grave e tão rápida não seja
mórbida, pois uma sociedade não pode mudar de estrutura com
tanta rapidez. Ela só adquire outras características mediante uma série
de modificações lentas e quase imperceptíveis; e ainda assim as
transformações possíveis são limitadas. Uma vez que o tipo social se
fixa, ele deixa de ser indefi­nidamente flexível; atinge rapidamente
um limite que não pode ser ultrapassado. Portanto, as modificações
implicadas pela estatística dos suicídios atuais não podem ser
normais. Mesmo sem saber precisamente em que consistem podese afirmar antecipadamente que resultam não de uma evolução
regular, mas de um abalo mórbido que pode ter desenraizado as
instituições do passado, sem, con­tudo, substituí-las, porque não
é em poucos anos que se pode refazer a obra dos séculos. Ora, se
a causa é anormal, o efeito não pode ser normal. Conseqüente­
mente, o que atesta a maré montante dos suicídios não é o brilho
da nossa civili­zação, mas um estado de crise e de perturbação que
não se pode prolongar sem trazer perigo (1987, p. 316).
Para Durkheim há a possibilidade de restaurar a integração do
indivíduo na coletividade. Ele mostra isso ao rever o posicionamento
social, a função social do grupo familiar, o grupo religioso e o político,
em particular o Estado, procurando demonstrar que nenhum desses três
grupos proporciona o contexto social próximo do indivíduo que daria a
84
Enio Waldir da Silva
este segurança, embora sujeitando-o às exigências da solidariedade. Vê
com cautela a solução na reintegração no grupo familiar por duas razões.
De um lado, a taxa de suicídio anômico não aumenta menos entre
os casados do que entre os solteiros, o que indica que o grupo familiar
não oferece proteção mais eficaz contra a corrente “suicidógena”. Seria
vão, portanto, contar com a família para que o indivíduo passasse a
ter um ambiente mais próximo e capaz de lhe impor disciplina. De outro lado, as funções da família estão em declínio na sociedade moderna.
Cada vez mais limitada, seu papel econômico se reduz constantemente.
A família não pode, portanto, servir de intermediária entre o indivíduo
e a coletividade, porque ela é atingida em cheio pelo mundo exterior.
Enquanto comunidade afetiva pode ser um espaço de assegurar muitas
fortificações da personalidade integrativa, mas como não está isolada dos
outros órgãos sociais não é suficiente para ser o antídoto do suicídio.
O Estado, ou o grupo político, está muito afastado do indivíduo,
é excessivamente abstrato e autoritário para proporcionar o contexto
necessário à integração.
A religião, enfim, não pode fazer desaparecer a anomia, eliminando as causas profundas do mal. Durkheim espera uma disciplina do grupo
que deve agir como órgão de reintegração. É preciso que os indivíduos
consintam em limitar seus desejos, obedecendo aos imperativos que ao
mesmo tempo determinam os objetivos que podem adotar e os meios
que têm o direito de empregar. Nas sociedades modernas as religiões
apresentam cada vez mais um caráter abstrato, intelectual, mais puro, mas
perdem em parte sua função de coerção8 social. Incitam os indivíduos a
Coerção: uma força contida em um comportamento que é capaz de influenciar ou determinar outro comportamento. É o mecanismo da efetivação das sanções. Em uma
sociedade repressiva a coerção expressa-se pela intimidação e pela violência usando
abertamente a força contra grupos e pessoas. Significa também os elementos das sanções sociais, o controle ou a disciplina social própria da organização social em que se
força ou induz-se os comportamentos coletivos a uma conformidade, a uma integração.
Os fins das sociedades, muitas vezes, contrariam os interesses individuais e somente
pela instituição e organização da coação pode ser mantido o conjunto social que se
8
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
85
transcender suas paixões e a viver em conformidade com a lei espiritual,
mas não conseguem mais precisar as obrigações ou as regras às quais os
homens devem submeter-se na vida profana. Em suma, não constituem
escolas de disciplina, no mesmo grau em que o foram no passado. Ora, o
que Durkheim procura, para remediar os males da sociedade moderna,
não são teorias ou ideias abstratas, mas morais em ação.
O único grupo social que pode favorecer a integração dos indivíduos na coletividade é, por conseguinte, a profissão ou, para empregar o termo usado por Durkheim, a corporação, como instituições que
respondem às exigên­cias da ordem moral. Chama de corporações, de
modo geral, as organiza­ções profissionais que, reunindo empregadores
e empregados, estariam suficientemente próximas do indivíduo para
constituir escolas de disci­plina, seriam suficientemente superiores a
cada um para se beneficiar de prestígio e autoridade. Além disso, as
corporações responderiam ao caráter das sociedades modernas, em que
predomina a atividade econômica.
Nessa discussão sobre o caráter patológico das taxas atuais de suicídio e a busca de uma terapêutica, entretanto, surge uma ideia central
da Sociologia de Durkheim: abandonado a si mesmo, o homem é movido
por desejos ilimitados; quer sempre mais do que tem, e se decepciona
sempre com as satisfações que obtém numa existência difícil. O funcionamento da vida individual não exige que os homens se detenham aqui
e não acolá; prova disso é o fato de que desde o começo da História
os homens não pararam de se desenvolver, sempre obtiveram satisacredita ser fruto da razão histórica. Durkheim usa o conceito para definir o fato social,
pois este só reconhecido pelo poder de coerção externa que exerce ou é suscetível de
exercer sobre os indivíduos. A presença desse poder se identifica por meio de sanções
determinadas. O fato só é social porque é obrigatório, mas não é somente os artifícios
criados pelos homens, mas sim todas as forças naturais em que os indivíduos se inclinam
convencidos ou não. Quando a coerção é expressa em leis ela vira coação, convencer pela
compreensão ou pela força institucionalizada. Coação seria constrangimento eficiente
exercido sobre uma pessoa de maneira direta ou indireta, com o escopo de lhe impedir
a livre manifestação da vontade. A coação pode ser física ou moral.
86
Enio Waldir da Silva
fações cada vez mais completas, e nem por isso a saúde média foi
se enfraquecendo. Não há uma sociedade na qual os homens estejam
igualmente satisfeitos nos diferentes graus da hierarquia social, contudo
em seus traços essenciais a natureza humana é basica­mente a mesma.
Assim, não é ela que poderá conferir às necessidades esse limite variável que lhes seria necessário. Em consequência, na medida em que
dependem só do indivíduo, elas são ilimitadas.
O homem individual é um homem de desejos, e, por isso, a primeira necessidade da moral e da sociedade é a disciplina. O homem
precisa ser disciplinado por uma força superior, autoritária e amável,
isto é, digna de ser amada. Esta força, que ao mesmo tempo se impõe
e atrai, só pode ser a própria sociedade.
Alguns problemas para pesquisar o suicídio são inevitáveis: o
primeiro é o fato de que os suicídios quase sempre só são conhecidos
pelas declarações das famílias. Alguns são conhecidos porque as próprias
circunstâncias do ato desespe­rado os tornam públicos; no entanto, um
bom número deles são cometidos em condições tais que as autoridades
só os registram mediante a declaração das famílias. E a proporção dos
suicídios não confessados pode variar de acordo com o meio social, a
época e outros fatores. O segundo tem a ver com a frequência dos suicídios frustrados ou das tentativas. Durkheim não chegou a estudar
este problema, que aliás só recentemente foi levado em consideração.
É, na verdade, muito complexo, pois seria necessário um estudo de cada
caso a fim de saber se a intenção suicida era verdadeira ou não.
Os psicólogos e os sociólogos estão de acordo sobre um fato: a maioria dos que se suicidam têm constituição nervosa ou psíquica vulnerável,
embora não necessariamente anormal: situam-se nos limites extremos
da normalidade. Em palavras mais simples, muitos dos que se matam
são, de um modo ou de outro, doentes nervosos do tipo ansioso. O
próprio Durkheim não tinha dificuldade em aceitar esta observação, mas
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
87
comentava que nem todos os neuropatas se suicidam, afirmando que
o caráter neuropático constitui apenas uma circunstância favorável à ação
da corrente “suicidógena” que escolhe suas vítimas.
Em síntese: o suicídio egoísta se manifestará por um estado
de apatia e pela ausência de vinculação com a vida; o suicídio altruísta,
pela energia e a paixão; o anômico, enfim, pela irritação associada às
numerosas situações de decepção oferecidas pela vida moderna, por um
desgosto resultante da tomada de consciência da desproporção entre as
aspirações e as satisfações.
Nota-se que mesmo vivendo próximos uns dos outros, os indivíduos não têm tempo para observar bem o outro e buscar nele os elementos
coletivos de integração. Embora presente, esta intuição de solidariedade
fica sufocada pelas muitas atividades que a pessoa faz, sufocada por
muitas coisas que, pelos barulhos que ouve, seu cérebro não elabora
tudo, não seleciona tudo que precisa e passa a desconfiar, a se proteger,
a se fechar. Isto tudo leva a uma vida de estranhamento, dos outros e de
si. Suas próprias ações ficam desordenadas, ilógicas e incompreensíveis.
Realmente, é muito difícil viver coletivamente, mas muito mais difícil
seria viver isoladamente. A racionalidade adquirida não é suficiente para
solucionar nossos problemas e a própria morte circula na mente como
uma coisa natural, fácil e desejada, como se fosse uma solução para a má
sorte, logo, aos fracos a depressão, o assassinato, o suicídio...
Por fim, a função do Direito em Durkheim seria consolidar a moral
solidária e manter a divisão do trabalho social. As funções da divisão do
trabalho proposta por Durkheim eram:9
Produzir civilizações: A divisão do trabalho torna as funções especializadas solidárias entre si, criando uma interdependência que se estende
por todo o corpo social, desde o nível das relações inter-pessoais mais
simples, como as familiares, até as mais complexas, como as existentes
In Silva, 2008a.
9
88
Enio Waldir da Silva
entre empregados e sindicatos ou entre estes e as empresas, criando
grupos sociais que geram civilizações. Sem a divisão, os indivíduos
seriam independentes.
Organizar a sociedade: Em uma sociedade onde a divisão do trabalho
encontra-se em alto grau de evolução, cada indivíduo tem sua função
definida; deste modo contribui para a coletividade com seu trabalho e
exerce seu papel nos diferentes âmbitos sociais. Isto leva o organismo
social a uma maior organização, pois as células (indivíduos) deste
encontram-se dispostas de forma a otimizar seu funcionamento.
Criar a solidariedade social: A divisão do trabalho gera a especialização
do indivíduo: por só lidar e sobreviver com um determinado nicho de
atividade, este é obrigado a entrar em contato com os demais. Neste
processo, é criada uma nova solidariedade entre os membros da sociedade, a solidariedade orgânica, que aumenta proporcionalmente
com a evolução da divisão do trabalho.
Aumentar a força produtiva: A divisão do trabalho propicia um maior
dinamismo no processo produtivo. A modernização das linhas de
produção pós-fordismo provam que o trabalho dividido em etapas
especializadas é mais eficaz que aquele onde uma pessoa concentra
diversas funções.
Aumentar a destreza do trabalhador: A divisão do trabalho opta pela
especialização em detrimento da multidisciplinaridade. Assim potencializa o saber especializado do trabalhador, aliando educação voltada
ao desenvolvimento profissional e a busca pela eficiência produtiva
dos atores sociais, levando a um conseqüente aumento do saber
específico destes e da capacidade produtiva total da coletividade.
Durkheim classifica as críticas que falam da super-especialização como
teorias particulares dos críticos que não condizem com a realidade e,
ainda, defende que o sociólogo deve despir-se das opiniões pessoais
para analisar corretamente os fatos em si.
Reorganização moral da sociedade: A divisão do trabalho gera o aparecimento da corporação, que, de acordo com Durkheim, deve assumir
o papel integrador, coercivo e moralmente organizador, antigamente
exercido pela Religião, Família e Estado. A sociedade industrial é
centrada na economia e esta não estabelece limites morais. Assim,
como as demais instituições perderam essa função, resta à corporação
reintegrar o indivíduo à sociedade.
Organização educacional da sociedade: A educação específica ensinada
pelas escolas é vista como um modo de despertar no indivíduo uma
pré-disposição à especialização, que será futuramente aprofundada
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
89
no mundo profissional. Na escola é socializado o entendimento de
que não cabe a um homem querer fazer tudo, mas sim escolher uma
função e, através desta, ser útil à sociedade.
Equilibrar a hierarquia social: Com a divisão do trabalho, cada ator
social assume seu papel no “organismo social”, agindo conforme este
para o funcionamento correto da sociedade. A hierarquização social
está diretamente ligada ao conceito de ordem social. Neste ponto,
Durkheim encontra-se novamente com o positivismo de Comte, e
dá margem aos críticos que o acusam de ignorar o embate de classes
como fato social relevante.
Fortalecer instituições sociais: Assim como os indivíduos assumem, na
concepção de Durkheim, o papel de células no organismo social, as
instituições assumem o papel de órgãos, agrupamentos sociais com
funções específicas. Essas instituições (Escola, Corporação, Estado)
tornam-se importantes dentro de seu campo de atuação, pois incutem
e reforçam as premissas da divisão do trabalho como fato indispensável
ao desenvolvimento e à manutenção da sociedade.
Todas estas funções são vistas pelo autor como uma necessidade de
repostas às consequências danosas produzidas pela sociedade industrial
sobre os indivíduos e não podem ser explicadas pela divisão do trabalho.
As críticas que a acusam de reduzir o indivíduo à condição de máquina
são equivocadas porque seus autores não percebem que essa divisão
poderia ser fonte de sociabilidade e não o contrário. Nesse sentido, de
nada adiantaria dar aos trabalhadores, além de conhecimento técnico,
uma cultura geral (Silva, 2008a).
Direito, Racionalidade e Legitimidade
Um estudo muito fecundo das relações entre Direito, racionalidade
social e legitimidade foi realizado por Max Weber.10 A ele devemos os primeiros elementos de uma teoria da Sociologia jurídica, cuja influência foi
Max Weber nasceu em 21 de abril de 1864. Foi o primogênito de oito filhos. Morreu
em Munique a 14 de junho de 1920, vítima da gripe espanhola. Em 1903 recebeu o
título de professor honorário da Universidade de Heidelberg. A maior parte da produção
10
90
Enio Waldir da Silva
e continua sendo determinante. Poder-se-ia dizer, contudo, que, apesar
de que a abordagem sociológica do Direito ocupou um lugar proeminente na teoria sociológica geral de Max Weber, seus comentadores a têm
inexplicavelmente negligenciado. Weber desenvolveu uma Sociologia
do Direito de caráter histórico, discutindo paradigmas epistemológicos
acerca das divergências metodológicas entre a Dogmática Jurídica e a
Sociologia do Direito. Diversamente dos cofundadores da Sociologia, Weber entende esta disciplina a partir da metodologia compreensiva e não
puramente descritiva. Este autor revela a diferença clara existente entre o
método sociológico e o jurídico-dogmático: o primeiro busca saber qual é
o comportamento dos membros de um grupo em relação à ordem jurídica
em vigor, enquanto o segundo visa a estabelecer a coerência lógica das
proposições jurídicas. Em suma, as duas perspectivas encontram-se em
planos diferentes: uma no plano do que é (sociológico) e outra no plano
do dever-ser (jurídico). E assim Weber realça a existência de um outro
método de análise da Ciência Jurídica (o método sociológico) que pode
se relacionar complementarmente com o método dogmático-jurídico. Ele
se utiliza de tipos ideais e da antítese formal/material, sendo o Direito
racional-formal aquele que combina a previsibilidade com os critérios de
decisão do sistema jurídico considerado, e o Direito racional-material, um
tipo calculável, mas que apela para sistemas exteriores (religioso, ético,
político) ao jurídico nos processos decisórios. Ou seja, o governo das leis
representa muito uma garantia ao regular funcionamento do Estado de
Direito e a própria racionalidade da atividade governamental. O Direito
moderno insere-se no progresso das ciências, na crença na capacidade
humana para criar suas sociabilidades humanas.
que lhe deu fama foi realizada em três períodos de quatro anos cada – de 1903 a 1906,
de 1911 a 1913 e de 1916 a 1919. No primeiro período publicou sua pesquisa mais
conhecida, A ética protestante e o espírito do capitalismo. No segundo período redigiu o
essencial de sua obra maior, Economia e Sociedade. No último período redigiu três dos
seus quatro estudos previstos sobre a ética econômica das religiões mundiais. Ver Correa,
Ricardo; Bressan, Suimar; Max Weber: a racionalização da vida social. In: Silva, Enio
Waldir da; Bressan. Suimar; Correa, Ricardo. Teoria sociológica II. Ijuí, RS: Ed. Unijuí,
2009.
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
91
A Sociologia de Weber é percebida também no interior de sua
análise do capitalismo em um dos seus mais famosos livros, A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo. Para este estudo, ele parte de estatísticas de certos países capitalistas desenvolvidos, nos quais se verifica
que entre os proprietários de capital, empresários e integrantes de classes
superiores se encontram indivíduos de confissão protestante, além de
também serem protestantes os “indivíduos qualificados”, ou melhor, a
mão de obra denominada qualificada, que são os indivíduos de mais alta
qualificação técnica e comercial das empresas, em que procura examinar
alguns fatores desta ética protestante que, no seu entender, contribuíram
para formar o espírito do capitalismo, ou seja, o racionalismo econômico
característico do capitalismo ocidental (Weber, 2004, p. 29).
Interessava a Weber entender para discutir a tese os protestantes
ajudarem a desenvolver o moderno capitalismo mesmo trabalhando
apenas para alcançarem a salvação no reino de Deus. Como coloca
Weber (2001, p. 93), o [...] homem [o protestante, no caso] é apenas
um guardião dos bens que lhe foram confiados pela graça de Deus.
Como o servo da parábola, deve prestar conta até o último centavo,
não lhe sendo, pois, nem um pouco imaginável gastar o que quer que
fosse sem uma finalidade que não a glória de Deus [...]...Lembrando,
ainda, que este é o tipo ideal histórico mais abrangente, mas Weber
menciona outros tipos na Ética Protestante, é o caso do tipo de “empresário capitalista” (Weber, 2004, p. 63). Escreve Weber sobre este
tipo: [ele] se esquiva à ostentação e à despesa inútil, bem como ao
gozo consciente de seu poder, e sente-se antes incomodado com os
sinais externos da deferência social de que desfruta. Sua conduta de
vida, noutras palavras, comporta quase sempre certo lance ascético,
tal como veio à luz com clareza no citado “sermão” de Franklin [...].
Ou seja, não é raro, mas bastante freqüente, encontrar nele uma dose
de fria modéstia que é substancialmente mais sincera do que aquela
reserva que Benjamin Franklin soube tão bem aconselhar. De sua
92
Enio Waldir da Silva
riqueza “nada tem” para si mesmo, a não ser a irracional sensação
de “cumprimento do dever profissional11” (Silva; Bressan; Correa,
2009, p. 144).
Assim, podemos concluir que para Weber a Sociologia Jurídica tem
duas funções: a) o estudo do comportamento dos indivíduos perante as
normas vigentes e a determinação em que grau se verifica a orientação
dos homens por esse conjunto de leis (ordem legítima); b) investigar, no
plano da realidade, do acontecer fático, o que se sucede no comportamento das pessoas que se submetem a um ordenamento e de que maneira
se verifica sua orientação segundo esta ordem legítima
[...] a ordem jurídica ideal da teoria do direito não tem diretamente
nada a ver com o cosmos das ações [...] efetivas [objeto da sociologia
jurídica], uma vez que ambos se encontram em planos diferentes: a
primeira, no plano ideal de vigência pretendida; o segundo, no dos
acontecimentos reais... (Weber, 1999, v. I, p. 209).
– [...] tem por objeto compreender o comportamento significativo dos
membros de um grupamento quanto às leis em vigor e determinar o
sentido da crença em sua validade ou na ordem que elas estabeleceram. Procura, pois, apreender até que ponto as regras de direito são
observadas, e como os indivíduos orientam de acordo com elas a sua
conduta (Julien Freund sobre Weber).
Weber, ao estudar os motivos do desenvolvimento do capitalismo
no mundo ocidental, percebe que o Estado é fruto desta cultura racional do Ocidente verificada nas práticas econômicas, na organização do
poder coletivo, na ética (comportamento) e na ciência (educação). Este
contexto alavanca o Estado, a burocracia e o Direito e um conjunto de
atos legitimados juridicamente, organizando um sistema de conexões
permanente entre vários indivíduos, no qual cada um exerce uma funQuando Weber afirma que o protestantismo desenvolveu um ascetismo racional, que
o protestante que quisesse se salvar deveria trabalhar, ele está apenas usando uma
tipologia: não é possível saber se todos os protestantes agiam assim ou se o protestante
era impelido “sempre” por esse motivo.
11
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
93
ção especializada e impessoal, de acordo com a lei e os regulamentos.
Pelo Direito organizou-se um sistema jurídico de atos normativos que
atribui competências aos agentes estatais para emitirem comandos a
serem obedecidos.12
O Ocidente dispôs de um Direito formalmente desenvolvido, produto
do gênio romano, e os funcionários, formados segundo o espírito desse
Direito, eram, como técnicos da administração, superiores a todos
os demais. Para a história da economia este fato revestiu-se de certa
importância porque a aliança entre o Estado e a jurisprudência formal
favoreceu, indiretamente, o capitalismo (Weber, 1974b).
Segundo Weber, há três tipos (puros) de dominação: a dominação
tradicional, a dominação carismática e a dominação legal. Esses tipos de
dominação podem ser resumidos da seguinte forma:
[...] a autoridade do “passado eterno”, ou seja, dos costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito, enraizados nos homens, de
respeitá-los. Assim se apresenta o “poder tradicional”, que o patriarca
ou o senhor de terras exercia antigamente. Em segundo lugar, existe
a autoridade que se baseia em dons pessoais e extraordinários de
um indivíduo (carisma) – devoção e confiança estritamente pessoais
depositadas em alguém que se diferencia por qualidades prodigiosas,
por heroísmo ou por outras qualidades exemplares que dele fazem o
chefe. Desse jeito é o poder “carismático”, exercido pelo profeta ou
– no domínio político – pelo dirigente guerreiro eleito, pelo soberano
escolhido por meio de plebiscito, pelo grande demagogo ou pelo
dirigente de um partido político. Em suma, existe a autoridade que
se impõe pela “legalidade”, pela crença na validade de um estatuto
legal e de uma “competência” positiva, estruturada em regras racionalmente estabelecidas ou, em outras palavras, a autoridade fincada
na obediência, que reconhece obrigações concernentes ao estatuto
Ver texto de Bezerra, André Augusto Salvador. Da dominação legal weberiana à inflação
normativa: o caráter racional do Estado contemporâneo. In: Revista Sociologia Jurídica.
Disponível em: <www.sociologiajuridica.net.br-08>. Acesso em: set. 2010.
12
94
Enio Waldir da Silva
estabelecido. Assim é o poder, tal qual o exerce o “servidor do Estado”
atualmente e como o exercem todos os detentores do poder que dele
se aproximam sob esse aspecto (2003, p. 61).
A obediência dos indivíduos em relação aos poderes dominantes
(tradicional, carismático ou legal) pode se dar, segundo Weber, por interesses dos mais variados tipos e também por sentimentos como o medo e
a esperança. Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma
ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis;
disciplina é a probabilidade de encontrar obediência pronta, automática e
esquemática a uma ordem, entre uma pluralidade indicável de pessoas,
em virtude de atividades treinadas. O conceito de “disciplina” inclui o
“treino” na obediência em massa, sem crítica nem resistência. A situação de dominação está ligada à presença efetiva de alguém mandando
eficazmente em outros, mas não necessariamente à existência de um
quadro administrativo nem de uma associação; porém certamente – pelo
menos em todos os casos normais – à existência de um dos dois. Temos
uma associação de dominação na medida em que seus membros, como
tais, estejam submetidos a relações de dominação, em virtude da ordem
vigente (Weber, 2000, p. 33).
Segundo interpretam Correa e Bressan (2009) conceito de racionalidade é central na obra de Max Weber, mas num sentido bem diferente
daquele que se consolidou na economia a partir da tradição britânica.
Para Weber, racionalização é um longo processo histórico que resulta na
formação dos próprios pilares do Ocidente, de uma civilização caracterizada, como é dito na primeira frase de A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo, por “fenômenos culturais dotados... de um desenvolvimento
universal em seu valor e significado”. Quem ler a dezena de páginas da
Introdução da Ética Protestante verá, de forma surpreendente, o processo
de racionalização tomando conta de todas as dimensões da vida social: da
música, da arquitetura, da história, da ciência, do Estado, do capitalismo
e até mesmo da religião (1999a, p. 11).
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
95
A passagem anterior deixa claro “o centro das atenções” de Max
Weber: o racionalismo, ou a conduta racional da vida em relação a fins.
Esse racionalismo, específico da cultura ocidental, é que será o fator
principal para a empresa capitalista moderna, em outras palavras, “a
disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional”
(Weber, 1999a, p. 14).
Certamente que outras civilizações tiveram processos de racionalização da vida, mas apenas no Ocidente é que a racionalização “dominou”
o conjunto da vida em sociedade. Para Freund (1977, p. 107), a racionalização se apresenta como uma intelectualização progressiva da vida;
despoja o mundo de seus encantos e de sua poesia; a intelectualização é
desencanto. Em suma, o mundo torna-se cada vez mais a obra artificial
do homem, que o governa quase como se comandasse uma máquina. Não
há, pois, motivo de espanto ante o impulso formidável da técnica e de seu
corolário, a especialização, graças a uma divisão e uma subdivisão cada vez
mais avançadas do trabalho. Referente ao conceito de racionalização, é
que Weber jamais atribuiu qualquer superioridade intelectual ao homem
ocidental, envolvido no processo de racionalização do mundo.
Sem dúvida nenhuma o progresso científico é um fragmento,
o mais importante do processo de intelectualização a que estamos
submetidos desde milênios e relativamente ao qual algumas pessoas
adotam, atualmente, posição estranhamente negativa. A característica
principal do mundo ocidental estava relacionada ao mundo, segundo
Max Weber, indiferente a Deus e aos profetas. Uma época caracterizada
pela racionalização, pela intelectualização e pelo desencantamento13 do
Desencantamento significa: “mágicas” para os fenômenos que eles não entendiam. Ex.:
O trovão ocorria porque o deus do trovão estava zangado. Os raios eram atirados pelo
deus Zeus. A chuva é enviada por São Pedro. A partir da Modernidade, porém, com a
racionalização, a evolução da ciência e as tecnologias de comunicação, as pessoas não
utilizaram mais essas explicações “fantasiosas” para essas coisas. Hoje se acontece um
terremoto, a gente sabe que não é um fenômeno sobrenatural e sim que pode ser por
causa da movimentação das placas tectônicas, etc. Por isso Weber disse que houve um
“desencantamento”, as pessoas não se apoiam mais em coisas “mágicas” para explicar
13
96
Enio Waldir da Silva
mundo, em que os valores “sublimes” foram banidos da vida pública.
“Àquele que não é capaz de suportar estoicamente esse sistema de nossa
época, resta apenas dar o seguinte conselho: volta em silêncio, sem dar
ao teu gesto a publicidade habitual dos renegados, com simplicidade e
reconhecimento, aos braços abertos e cheios de misericórdia das velhas
igrejas” (Weber, 2003, p. 58).
Mais propriamente do Direito em Weber (1974b) podemos
perceber a ligação que o autor faz a esta cultura racional, a economia
planejada e necessidade de controle das ações. Isso seria impensável
sem o desenvolvimento de uma burocracia:14 A burocratização oferece,
acima de tudo, a possibilidade ótima de colocar-se em prática o princípio
de especialização das funções administrativas, de acordo com considerações exclusivamente objetivas. Tarefas individuais são atribuídas
a funcionários que têm treinamento especializado e que, pela prática
constante, aprendem cada vez mais. O cumprimento “objetivo” das
tarefas significa, primordialmente, um cumprimento de tarefas segundo
regras calculáveis e “sem relação com pessoas. A peculiaridade da cultura
moderna, e especificamente de sua base técnica e econômica, exige essa
“calculabilidade” de resultados. Sua natureza específica, bem recebida
pelo capitalismo, desenvolve-se mais perfeitamente na medida em que a
burocracia é “desumanizada”, na medida em que consegue eliminar dos
negócios oficiais o amor, o ódio e todos os elementos pessoais, irracionais
e emocionais que fogem ao cálculo. É essa a natureza específica da burocracia, louvada como sua virtude especial. A estrutura burocrática vai
de mãos dadas com a concentração dos meios materiais de administração
as coisas. E foram as seitas puritanas seus radicais e autoconfiantes portadores na época
pioneira da gestação histórica da moderna civilização do trabalho, seu ponto de chegada
religioso, depois do qual, então, se transitou até a primazia da ciência moderna, “o
destino do nosso tempo”, que reduz o mundo a um mero mecanismo causal.
Todas estas citações foram baseadas em Weber, Max. Os fundamentos da organização
burocrática: uma construção do tipo ideal. In: Campos, Eduardo (Org.). Sociologia da
burocracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1966, buscada e interpretada por Correa; Bressan,
2009.
14
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
97
nas mãos do senhor. Essa concentração ocorre, por exemplo, de modo
bem conhecido e típico no desenvolvimento das grandes empresas capitalistas, que encontram nesse processo suas características essenciais.
Um processo semelhante ocorre nas organizações públicas.
O burocrata individual não pode esquivar-se do aparato ao qual
está atrelado. O burocrata profissional está preso à sua atividade por
toda a sua existência material e ideal. Na grande maioria dos casos ele é
apenas uma engrenagem num mecanismo sempre em movimento, que
lhe determina um caminho fixo. O funcionário recebe tarefas especializadas e normalmente o mecanismo não pode ser posto em movimento
ou detido por ele, iniciativa esta que tem de partir do alto.
Somente com a burocratização do Estado e do Direito em geral, vemos
uma possibilidade definida de separar, clara e conceitualmente, uma
ordem jurídica “objetiva” dos “direitos subjetivos” do indivíduo, que
ela garante; de separar o Direito “Público” do Direito “Privado”. O
primeiro regulamenta as interrelações das autoridades públicas e suas
relações com os “súditos”. O Direito Privado regulamenta as relações
dos indivíduos governados entre si. Essa separação conceitual pressupõe a separação da conceituação do “Estado”, como um portador
abstrato de prerrogativas soberanas e o criador de “normas jurídicas”,
das “autorizações” pessoais dos indivíduos (Correa; Bressan, 2009).
A racionalidade capitalista caracteriza, portanto, a existência de
indivíduos que se movem no sentido de maximizar benefícios e minimizar custos, sejam eles capitalistas, trabalhadores ou genericamente
consumidores. Na verdade, a racionalidade que se afirma como paradigma
da civilização ocidental é uma racionalidade instrumental, cujo móvel é o
cálculo da relação custo/benefício. Vale lembrar ainda que a racionalidade
capitalista não determina as outras formas de racionalidade, como a da
política, do Direito e da cultura.
Ao Direito moderno, nesse andar do modo de produção capitalista, coube um papel muito importante: o de ser um racionalizador de
segunda ordem da vida social, uma espécie de elemento substituto ao
98
Enio Waldir da Silva
gerenciamento científico da sociedade. O Direito para cumprir esse papel
teve de se adequar. A sua adaptação ocorreu via científica. Ajustando-se
à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna, o Direito
tornou-se científico. Ocorre que a cientificização do Direito também demandou a sua estatização, haja vista que a manutenção e predominância
da ordem política sobre a desordem e o caos foram atribuídas ao Estado
moderno. A regulação jurídica é confiada ao Estado.
O Estado exerce uma dominação legal, diferente do carisma (dominação carismática), em que os membros da sociedade são motivados a
obedecer por razões próprias (pela racionalidade nele – Direito/Estado –
impregnada) e por acreditarem na legalidade das ordens dos responsáveis
pelos comandos ou controladores da ordem, pois é uma obediência não
relacionada diretamente a pessoas (detentores do poder), mas no próprio
conteúdo obrigatório das normas jurídicas. A fé aqui esboçada é a crença
na legitimidade do Direito e da política, bem como na impessoalidade
das ordens emanadas e cumpridas pelo aparelho burocrático que é fruto
do caráter racional da vida em si. As normas jurídicas representavam tal
racionalidade: gerais, abstratas e impessoais, devendo ser cumprida uniformemente por todos, coadunando-se, perfeitamente, com a realidade
progressiva do pensamento científico coordenando e potencializando a
capacidade racional do ser humano.15
Para concluir esta rápida abordagem sobre o direito em Weber,
cabe destacar a observação de André Augusto Salvador Bezerra:
Passados quase cem anos do contexto estudado por Max Weber, impende saber se as normas ainda possuem essa mesma simbologia no
meio social contemporâneo – globalizado, caracterizado por uma série
de limitações aos particulares e de imposição de tarefas ao Estado,
visando à efetivação de direitos sociais. Impende saber, em outros
termos, se ainda representam a racionalidade da realidade estatal
hodierna... Na verdade, tamanha a atividade normativa do Estado
Weber, Max. História geral da economia – Coleção Os Pensadores, vol. XXVII. Trad.
Maurício Tragtenberg. São Paulo: Abril Cultural, 1974a.
15
Capítulo 2 – A Modernidade – A Judicialização das Relações Sociais
99
que, muitas vezes, nem mesmo os membros da burocracia interna
sabem quais normas a seguir: se determinada portaria, ordem de serviço, comunicado ou qualquer outro ato interna corporis que venha
a regular um mesmo assunto. O que é mais grave é que são tantos
os atos internos da administração, muitos dos quais incompatíveis
uns com os outros, que constantemente deixa o servidor de levar
em conta normas hierarquicamente superiores, como as leis e, até
mesmo, dispositivos constitucionais, tudo, à evidência, em prejuízo
do bom andamento dos trabalhos administrativos e dos direitos do
administrado a uma administração pública eficaz.
Se para o membro da burocracia, a situação não é singela, o que
dizer para o cidadão que, para planejar os atos de sua vida privada,
não sabe se deve levar em conta um regulamento que vem a receber
caráter verdadeiramente autônomo, uma lei, uma medida provisória
ou uma decisão judicial proferida em ação coletiva, que podem reger
um mesmo assunto e serem incompatíveis entre si. Não sabe se deve
seguir um decreto de uma agência reguladora, uma portaria de um
órgão de proteção ao consumidor ou uma lei que regula a mesma
matéria, mas de forma mais genérica. Não sabe, nem mesmo, que
dispositivo constitucional levar em consideração, ainda mais porque,
muitas vezes, são promulgadas emendas constitucionais que visam dar
implementação a programas de governos, em verdadeira inversão de
papéis, pois, como é cediço, são os governantes que devem obediência
à Constituição e não o contrário.
... O Estado contemporâneo não quer, portanto, ser mais o Estado
excludente vigente na época de Weber. Essas conclusões, entretanto,
ainda não explicam o papel das normas jurídicas na sociedade moderna, pois, por mais que se queira solucionar o problema, a inflação
normativa aparece como um fenômeno inexorável ante a complexidade das tarefas assumidas pelo aparelho estatal. Sendo assim, a
única solução possível para esse problema é considerar que o que dá
legitimidade ao Estado capitalista moderno não são mais apenas as
normas jurídicas. As leis e as demais espécies normativas aparecem
apenas como um de outros fatores que têm de guiar a atividade pública. Deve-se também considerar, em idêntico patamar, toda a série
de direitos fundamentais que estão consagrados nos ordenamentos
dos povos democráticos, desde tradicionais institutos do sistema
capitalista (como a propriedade privada e a livre iniciativa), a outros
direitos que foram tutelados no decorrer dos anos, como saúde,
educação, previdência social e meio ambiente. A ação racional que
se espera do agente estatal, apta a dar segurança e estabilidade aos
100
Enio Waldir da Silva
atos privados dos cidadãos, deve agora, pois, estar guiada não mais
apenas para o cumprimento das normas jurídicas, mas para a efetivação dos valores levados à qualidade de direitos fundamentais. O
Estado racional, portanto, perdura no tempo, assim como o sistema
capitalista, mas sob a roupagem, não mais da legalidade estrita, mas
de proteção a toda uma gama de direitos fundamentais, que refletem
o caráter plural da sociedade (2010).
CAPÍTULO 3
RAZÃO CRÍTICA,
DIREITO E
LIBERDADE
A Revolução Social e a Ordem Justa
A problemática da ordem social, do controle da sociedade e da
justiça igualitária sempre foi a principal razão das pesquisas em Ciências
Sociais. Abordaremos agora a contribuição da teoria de Karl H. Marx
(1818-1883), chamada também de Materialismo Histórico e Dialético
ou Marxismo.
A teoria de Marx insere-se profundamente nas Ciências Sociais
tentando explicar a sociedade, sua constituição e suas transformações.
Ela é chamada de materialista por ter sua base na realidade sensível
vivenciada pelos homens (no mundo do trabalho, da economia), mas é
também uma teoria propositiva que pretende fazer uma revolução nas
ideias, nas formas de interpretações das realidades (com seu método
dialético), além de ser uma teoria histórica que recupera a história da
sociedade pela visão dos vencidos e por pretender fazer uma revolução
nas formas de organização social da sociedade (com sua teoria do poder,
da política e da dominação). Ou seja, podemos ler nas milhares de páginas
escritas por Marx a diversidade de temas tratados, ora tentando elaborar
um conjunto de novas concepções globais de sociedade, de homem e de
mundo e ora querendo contribuir modestamente, por meio de pesquisas,
para a luta revolucionária do movimento operário.1
É possível argumentar que se trata de uma proposta científica
(baseada em métodos de pesquisa), uma teoria do conhecimento que
recupera a dialética (que nos desafia a buscar um motivo para buscar
saberes), uma teoria da economia política (propondo uma sociedade
igualitária) e também uma ciência da sociedade. A fonte de suas teorizações são:
Texto já publicado em Silva, Enio Waldir. Teoria Sociológica I. Ijuí, RS: Ed. Unijuí,
2008b.
1
104
Enio Waldir da Silva
a) Enquanto realidade econômica é o industrialismo inglês e enquanto
teoria a economia política mobilizada por Adam Smith e David Ricardo. Recupera a noção de trabalho-valor, observando, porém, que
a realização do capital não é produzida pelo trabalho em qualquer de
suas formas, mas pelo trabalho não pago.
b) Enquanto política no socialismo utópico e no liberalismo francês. O
socialismo utópico, que denunciou a miséria da vida sob o capitalismo, a exploração do homem pelo homem. Deste, o autor retoma a
exploração, mas não sob uma ótica dos princípios liberais com as
necessidades emergentes do operariado, mas sob uma perspectiva
de constatação de que, em verdade, os desacordos entre os interesses
da burguesia e os do proletariado constituem uma mola que move
o sistema capitalista e que é essencial a sua existência. Para o autor,
as tentativas de união de ideias paradoxais são meramente ilusórias,
restando ao proletariado, portanto, a alternativa revolucionária de
modo a interromper as contradições brutais do capitalismo.
c) Enquanto análise da ideologia, no idealismo filosófico alemão. O
pensamento clássico da Alemanha era representado principalmente
por Feuerbach e Hegel. Destes estudos Marx elabora a compreensão
de que a sociedade, o Estado e o Direito não surgem de decretos
divinos, mas dependem da ação concreta dos homens na História.
Especialmente de Hegel, o autor recupera a sua dialética, que diz
ser o mundo movido por contradições (natureza/homem, capital/
trabalho, campo/cidade), sendo que em vez da natureza circular da
dialética de Hegel, formada por tese, antítese e síntese, Marx propõe
uma espiral, na qual a “síntese” seria também uma “tese” para uma
nova “antítese”.
Marx reconhece as sociedades como sistemas de relações entre
os seres humanos, das quais as relações que objetivam a produção e a
reprodução são as principais. Estes sistemas mantêm-se funcionando
graças aos seus elementos internos e externos que os instituíram, mesmo
que contraditórios e conflitantes, passíveis de serem transformados. Sua
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
105
perspectiva de revolução concretiza uma teoria da emancipação social,
da liberdade, no entanto não elaborou uma fórmula, uma doutrina ou
dogma a quem se dedicar para estudar a sociedade, para entendê-la e
para transformá-la, uma vez que, estudando pelo método dialético é
impossível não se posicionar ao lado da vida, da maioria das vidas ou,
ao menos, não se tocar com a miséria humana que sustenta benesses para
uma pequena minoria.
Isso, no entanto, pode ser lido de forma superficial ou demasiadamente ideológica. Por isso é preciso estudar os argumentos que reforçam
a teoria sociológica de Marx, a teoria que compreende os problemas
centrais da nossa sociabilidade humana e propõe soluções que não são
somente na lógica pensada, mas na prática social, como é o caso das teses
que procuram encontrar uma teoria do Direito nas suas obras.
O método dialético não pode ser usado de forma dogmática, fixa
ou artificialmente. Ele permite que conheçamos a nós mesmos no e pelo
processo de conhecimento da sociedade em que vivemos. A dialética é
o movimento recíproco entre teoria e prática, entre sujeito e objeto e é
um processo de constante passagem fluida de uma determinação a outra
no processo histórico (Silva, 2008b). Assim teríamos quatro passos para
aplicação do método :
a) Tudo se Relaciona (conexão universal do todo – Relação).
b) Tudo se Transforma (tudo muda constantemente – Transformação.
c) Tudo tem o seu Contrário (há sempre no mínimo dois lados das coisas
– Contradição).
d) Tudo pode ser Negado (não há verdades eternas – Negação da Negação).
Para Lukács a dialética é revolucionária. A importância dessa
determinação, responsável, de certo modo, por um novo desenho da
dialética, vai além de sua capacidade em configurar, à maneira de um
polo magnético, uma reorganização geral das articulações metodológicas,
106
Enio Waldir da Silva
o método dialético, “essência teórica da teoria” marxista, que possibilita
uma outra redefinição pela qual a teoria passa a ser concebida como
“expressão pensada do próprio processo revolucionário”. Os desdobramentos da “essência prática da teoria”, consolidados no lema “unidade
de teoria e prática”, dependem da elevação conceitual do proletariado
à condição de sujeito e objeto do processo histórico, mediando assim a
relação entre consciência e realidade (Lukács, 1989).
Na visão de Marx, o sistema social moderno é um sistema criado
por uma classe, a burguesia, com mecanismos para garantir o controle e
a ordem que lhe interessa. Tudo fica submetido à lógica deste sistema.
Esta lógica é distribuída pela ideologia, pelas práticas econômicas e
pelo conjunto de instituições que agrega poderes de organização e coação. Assim, dentro da estrutura geral do Estado e do sistema jurídico
capitalista, a atividade humana é realizada como uma “atividade alheia,
imposta”, como um “trabalho forçado”, como uma atividade que está
“sob o domínio, a coação e o jugo de outro homem”. Dessa forma, embora
o princípio fundamental que governa a nova sociedade seja econômico
(em oposição ao princípio regulador da sociedade feudal, que era essencialmente político), não pode ser divorciado da estrutura política na qual
opera. A tarefa da “emancipação humana universal”, portanto, deve ser
formulada “na forma política da emancipação dos trabalhadores”, o que
implica uma “atitude praticamente crítica” para com o Estado, com a
ordem que explora e se impõe contra a maioria.
O autor propõe um modelo de análise dividindo o esqueleto social em duas partes: a infraestrutura e a superestrutura. Revela estar a
infraestrutura afastada das percepções sensoriais do homem e, de outro
lado, ilustra que os componentes da superestrutura, isto é, a política, a
ideologia e o Direito são captáveis pelos sentidos humanos.2
Assis, Marselha Silvério de. Direito e Estado sob A óptica de Karl Marx. In: Revista
Sociologia Jurídica. Disponível em: <www.sociologiajuridica.net.br-10>. Acesso em: 15
set. 2011.
2
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
107
Na infraestrutura, ou base material, desenvolver-se-iam todas as
relações sociais de produção por meio das forças produtivas, isto é, as
ferramentas por intermédio das quais poder-se-ia obter produtividade:
força de trabalho + tecnologia + terras + conhecimento. As relações sociais
de produção, por sua vez, significam as interações entre os indivíduos,
ou destes com a natureza, ocorridas na infraestrutura.
Sobre essa infraestrutura material levantar-se-ia a superestrutura.
Esta reproduziria a dominação estabelecida naquela e seria composta
por duas instâncias: uma delas é a jurídico-política, que tem por função
mediar as relações materiais e tem como expressões máximas: o Direito
(demonstração da luta de classes, com a lei sendo vista como a consagração da ideologia burguesa) e a burocracia, definida como um corpo
de funcionários orientados a perpetuar as condições vividas na infraestrutura. A outra instância é a ideológica, na qual seriam construídos
valores, ideias e representações que afirmariam as discrepâncias entre
as classes sociais.
As classes sociais constituem a base de todo o pensamento do
autor. Elas são determinadas pela posição que um grupo de indivíduos
possui nas relações sociais de produção. Essa posição seria determinada
pela propriedade ou não de bens. O grupo que os possuísse seria a classe dominante e o que não os detivesse, a classe dominada. As relações
entre essas classes nascem na infraestrutura, sendo afirmadas, mantidas
e reproduzidas pela esfera superestrutural (que também tem o papel
de reprimir ataques ao status quo). Em última instância, Marx considera que as relações econômicas (infraestrutura) determinam o corpo
superestrutural.
A relação entre as estruturas do modo de produção, entretanto,
não é a simples reflexão, expressão ou determinação, no sentido de baixo para cima. Em que pese se possa afirmar também que o Direito do
Trabalho não nasce para unir o capital e o trabalho num mesmo objetivo,
porque isso seria impossível. O que se quer destacar é que o Direito
do Trabalho promove como “justo” o intercâmbio da compra e venda
108
Enio Waldir da Silva
da força de trabalho, mas ao mesmo tempo promove institutos, como o
salário, o jus postulandi e toda a redoma protetiva do trabalhador, a fim
de garantir um mínimo ético nas relações trabalhistas.3
O Estado, para o autor, compõe a esfera superestrutural, sendo seu
surgimento necessário para ordenar essa luta de classes, amenizando-a.
Fazendo isso, ele atende aos interesses dos proprietários, posto que a
intensificação dos conflitos pode gerar uma superação da realidade e à
classe dominante interessa a permanência da situação vigente.
Assim, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados
dos meios de produção ou classe dominante. Ele não é uma imposição
divina aos homens nem é o resultado de um pacto ou contrato social,
mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma
sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre
o todo social.
O Direito expressa-se como um fenômeno social, ocupante da
posição superestrutural, determinada dialeticamente pela economia, que
compreende a base material, mas que incorpora valores sociais que se
inscrevem no contexto do exercício do poder em uma sociedade.
Karl Marx organizou uma tese em que o Direito moderno, como
regra de conduta coercitiva, nasce da ideologia da classe dominante, que
é precisamente a classe burguesa. Assim, qualquer que seja a forma que
o Direito assuma (lei, jurisprudência, costume), a essência do Direito está
sempre referida à vontade da classe dominante, que nunca é a vontade
do conjunto do corpo social. O Direito é percebido como síntese de um
processo dialético de conflito de interesses entre as classes sociais, que
Marx denominou de luta de classes.
Idem.
3
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
109
Tanto as relações jurídicas quanto as formas de Estado não podem
ser compreendidas nem por si mesmas, nem pela chamada revolução geral
do espírito humano, mas antes têm suas raízes nas condições materiais
de existência. Ademais, o Direito não nasce espontaneamente dessas
relações, mas é posto pela vontade. O problema que se verifica é que
tal vontade é somente aquela dos que possuem o poder estatal, ou seja,
a vontade da classe dominante, sendo o Direito expresso de um lado
pela lei e, de outro, como o conteúdo determinado dessa lei. Assim, a
dominação econômica de uns poucos sobre tantos outros se legitima por
intermédio de um Estado de Direito, cujo princípio capital é a lei.
O momento vivido por Marx e sua posição de contrastar os gigantes
do pensamento burguês (como Hegel), fizeram dele um pesquisador
inquieto com as injustiças sociais vividas na época. Na dimensão econômica a injustiça estava representada nas formas jurídicas e, assim, a
insurgência contra o modelo liberal do Direito de propriedade, uma vez
que a liberdade no capitalismo clássico é meramente formal, e sem um
amparo da igualdade material. O
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Direito e seus institutos, nesse momento, se constituíam em fenômenos ideológicos, parte da realidade social e
cultural capitalista, seja no processo de elaboração das leis, seja no de sua
aplicação pelos magistrados. Não podemos deixar de historicizar, porém,
as posições de Marx e ver seus ensinamentos sobre o Direito acoplados
a sua concepção de homem enquanto produto e produtor da realidade
social em que vive. O Direito, pensado sob a constelação da liberdade,
da igualdade e da justiça, poderia se tornar uma arma revolucionária.
No interior da obra de Marx há uma série de razões argumentativas
para pôr um fim na exploração do homem pelo homem; para promover
uma organização da produção igual e da distribuição igual, a partir da
autogestão e cogestão; promover o fim das classes sociais, o fim dos privilégios dos lugares sociais e o fim de estruturas políticas que asseguram
estes privilégios e a desigualdade, criando um novo Estado, como uma
nova esfera pública. Vemos também proposições para tornar o trabalho
como livres disposições de iguais, não uma obrigação externa imposta
110
Enio Waldir da Silva
por outrem; argumentos pelo fim da propriedade privada e a favor do
livre desenvolvimento cultural do homem – promoção da igualdade da
totalidade do gênero humano.
A liberdade em relação aos laços políticos e a certos tipos de restrições foi uma condição elementar do novo desenvolvimento social: tanto
no sentido de libertar todos os homens, para permitir-lhes estabelecer
relações contratuais, como em referência à “inalienabilidade da terra” e
à legitimidade do lucro sem a “alienação do capital”. Tão logo o direito
à igualdade é aplicado à aquisição e à posse, contudo, torna-se necessariamente abstrato (igualdade como mera posse de direitos), porque é
impossível possuir alguma coisa em termos individualistas (exclusivamente) e ao mesmo tempo partilhá-la com alguém.
A análise das relações de propriedade capitalista mostra que o
homem não pode exercer seus poderes essenciais, as restrições e limitações desse tipo estão destinadas a ter repercussões negativas sobre o
grau de liberdade conseguido pela sociedade capitalista no sentido da
necessidade natural e no sentido do poder de interferência de outros
homens.
Assim, se considerarmos o aspecto da liberdade que ao contrastar
as relações de propriedade capitalistas e feudais veremos claramente que
o tremendo aumento na capacidade produtiva da sociedade fez avançar
muito – potencialmente – a liberdade humana. Marx, no entanto, argumenta que essa grande potencialidade positiva é neutralizada por dois
fatores importantes: primeiro: as forças produtivas, cada vez maiores,
não são governadas pelo princípio da “associação consciente”; segundo:
embora as crescentes forças produtivas pudessem realmente satisfazer as
necessidades humanas reais, dado o caráter irracional do processo como
um todo (chamado por Engels de “condição inconsciente da humanidade”), as necessidades parciais da propriedade privada – as necessidades
abstratas da expansão da produção e do lucro – predominam sobre as
necessidades humanas reais. Nas palavras do próprio Marx: “O aumento
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
111
da quantidade dos objetos é acompanhado por uma extensão da esfera
dos poderes estranhos, a que o homem está sujeito, e cada novo produto
representa uma nova possibilidade de trapaça e embuste mútuo”.
Assim, a força libertadora potencial das novas capacidades produtivas é desgastada. A esfera dos poderes estranhos a que o homem está
sujeito, como adverte Marx, é ampliada, e não reduzida.
Então, a assertiva que parece ser a mais central nesta teoria da liberdade é esta: o homem só será livre quando o trabalho for livre. Para chegar
a esta liberdade, no entanto, é preciso se libertar da ideologia burguesa
(uma outra lógica para pensar o mundo que a dialética proporciona –
revolução no pensamento, como diria hoje Edgar Morin – como queres
liberdade se não sabes o que te prende? Se souber o que te prende é
preciso saber como se libertar e depois de liberto deves saber o que fazer
com tua liberdade); para fazer isso é preciso se organizar (organizar quer
dizer planejar, decidir e agir e isso é política – por isso, no tempo de Marx,
o canal concreto é o partido político); no entanto, de fato, a liberdade
só é conseguida quando o mundo da necessidade não reinar mais entre os
homens (por isso mudar o modo de produzir, distribuir e consumir – e
isso é economia de fato).
Na opinião de Marx, os homens possuem poderes essenciais que
caminham para este fim. A história de lutas dos homens foi contra a
perda deste poder de solidariedade que estava entre eles. Estas forças
solidárias são poderes especificamente humanos, isto é, que distinguem
o homem das outras partes da natureza. Este poder é que a burguesia
não quer deixar aparecer e o encobre com o discurso da concorrência e
do trabalho “útil”. “O trabalho é a propriedade ativa do homem”, e como
tal é considerado como propriedade interna que se deve manifestar numa
“atividade espontânea”. O trabalho é, portanto, específico no homem
como uma atividade livre, sendo contrastado com as “funções animais –
comer, beber, procriar” –, que pertencem à esfera da necessidade.
112
Enio Waldir da Silva
O poder que tem o homem de se objetivar por meio de seu trabalho
também é especificamente humano; manifesta-se como a “objetivação da
vida do homem como ser genérico” e encerra características inerentemente humanas, na medida em que permite ao homem “contemplar-se num
mundo que ele criou” e não apenas no pensamento (Silva, 2008b).
Marx descreve o homem como “um ser universal e, portanto, livre”, e o poder que lhe permite ser esse “ser” é derivado da sociabilidade
(ou solidariedade). Isso significa que há uma conexão direta entre a liberdade, como universalidade do homem, e a sociabilidade. Como sabemos,
de acordo com Marx, “a essência humana da natureza só começa a existir
para o homem social”, e acrescenta que a verdadeira individualidade não
pode ser compreendida se nos abstraímos da sociabilidade.
O denominador comum de todos esses poderes humanos é a
sociabilidade. Assim, a questão crucial é: as novas relações de propriedade estimulam ou dificultam o progresso da sociabilidade, como base de
todos os poderes especificamente humanos? “A propriedade privada
isola cada um em sua própria solidão brutal”, dizem Marx e Engels (no
Manifesto de 1848).
Por isso o trabalho é a categoria central que sintetiza a essência
da vida e onde se condensam as dimensões políticas, sociais, culturais
e econômicas do homem. O trabalho, que deveria ser uma propriedade
interna, ativa, do homem, em consequência da alienação capitalista,
torna-se exterior ao trabalhador (“o trabalho é exterior ao trabalhador, isto
é, não pertence ao seu ser essencial; [...] O trabalhador, portanto, só se
sente ele mesmo fora de seu trabalho, e em seu trabalho sente-se fora
de si mesmo”). Não é atividade de vida, na qual o homem afirma-se,
mas mero meio para a sua existência/sobrevivência individual, autonegação que “mortifica-lhe o corpo e arruína-lhe a mente”. A alienação
transforma a atividade espontânea no “trabalho forçado”, uma atividade
que é um simples meio de obter fins essencialmente animais (comer,
beber, procriar), e com isso “O que é animal se torna humano e o que é
humano se torna animal”. Para agravar ainda mais as coisas, mesmo essa
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
113
forma alienada de atividade – mas necessária à mera sobrevivência – é
com frequência negada ao trabalhador, porque o “próprio trabalho se
torna um objeto de que ele só pode dispor com o maior esforço e com
as interrupções mais irregulares” (Mészáros, 1998, p. 41).
A objetivação em condições nas quais o trabalho se torna exterior
ao homem assume a forma de um poder estranho que enfrenta-o de uma
maneira hostil. Esse poder exterior, a propriedade privada, é “o produto,
o resultado, a conseqüência necessária, do trabalho alienado, da relação
exterior entre o trabalhador e a natureza, entre o trabalhador e ele próprio”.
Assim, se o resultado desse tipo de objetivação é a produção de um poder
hostil, então o homem não pode realmente “contemplar-se num mundo
por ele criado”, mas, sujeitado a um poder exterior e privado do sentido
de sua própria atividade, ele inventa um mundo irreal, submete-se a ele,
e com isso restringe ainda mais a sua própria liberdade:
No capitalismo o trabalho do homem se objetiva na mercadoria (esta
mercadoria, circulando no mercado, é a transfiguração do próprio
homem que circula e, ao assim fazer, se divide, se desintegra) e o
valor do homem está relacionado com a capacidade de produzir e
fazer circular as mercadorias. O homem torna-se um ser dependente
(alienado) do todo que não conhece, submetendo-se às leis do mercado (leis racionais), preso ao espaço e ao tempo concedidos pelas
necessidades objetivas da racionalização, apagando-se diante de seu
trabalho. Marx mostra-nos que o trabalho alienado, como no capitalismo, destrói a humanidade do homem e faz dele um ser que apenas
existe para cumprir hora na execução da produção do próprio modo
de produzir. O tempo é tudo e o homem não é nada, é quando muito
a carcaça do tempo, estranho a sua própria personalidade espectadora
e impotente (Silva, 2008b, p. 73).
Se o homem é alienado dos outros homens e da natureza, então
os poderes que lhe pertencem como um “ser universal” não podem,
evidentemente, ser exercidos. A universalidade é abstraída do homem
e transformada num poder impessoal que se contrapõe a ele na forma
do dinheiro, esse “grilhão de todos os grilhões”, “o agente universal da
114
Enio Waldir da Silva
separação”. O quadro que surge da crítica de Marx é o de uma sociedade
fragmentada e de um indivíduo empobrecido. Como transcender positivamente esse estado de coisas? É uma pergunta que se acha na base
da análise de Marx, pois sem procurar uma resposta para ela a própria
crítica permaneceria insoluvelmente abstrata, totalmente destituída de
significado.
A destruição do Estado capitalista e a eliminação das restrições jurídicas por ele impostas resolveriam o problema? Evidentemente não, pois,
segundo Marx, mesmo a anulação do Estado (de qualquer Estado) ainda
deixará partes da tarefa sem solução. Conceber a tarefa da transcendência
simplesmente em termos políticos poderia resultar no “restabelecimento
da ‘Sociedade’ como uma abstração frente ao indivíduo”, contra o que
Marx fez uma advertência. E isso restabeleceria a alienação numa forma
diferente. A grande dificuldade está no fato de que a transcendência
(superação) positiva deve começar com medidas políticas, porque numa
sociedade alienada não existem agentes sociais que possam restringir
efetivamente, e muito menos superar, a alienação.
Se, porém, o processo começar com um agente político que deve
estabelecer as precondições da transcendência, seu êxito dependerá da
autoconsciência desse agente. Em outras palavras, se esse agente, por
qualquer motivo, não puder reconhecer seus próprios limites e ao mesmo tempo limitar suas próprias ações a tais limites, então os perigos do
“restabelecimento da ‘Sociedade’ como abstração frente ao indivíduo”
restarão acentuados.
Nesse sentido, a política deve ser concebida como uma atividade
cujo objetivo final é sua própria anulação, por meio do preenchimento de
sua função determinada como uma fase necessária no processo complexo de transcendência. É assim que Marx descreve o comunismo como
um princípio político. Ele ressalta sua função como a negação da negação
e, portanto, limita-o à “fase seguinte do desenvolvimento histórico”,
chamando-o de “princípio dinâmico do futuro imediato”.
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
115
Mészáros (1998) refere-se a este aspecto da política alertando
que
...toda política está ligada, em maior ou menor grau, à parcialidade. Isso
está claramente implícito em Marx, quando ele diz que a emancipação
da sociedade em relação à propriedade privada se expressa na forma
política da emancipação do trabalhador. Esperar, portanto, que a parcialidade realize a universalidade da transcendência positiva seria uma
atitude prática pelo menos ingênua e, como teoria, contraditória.
A transcendência positiva não pode, portanto, ser simplesmente vista
como a “negação da negação”, isto é, em termos meramente políticos.
Sua realização só pode ser concebida na universalidade da prática
social como um todo. Ao mesmo tempo, porém, devemos ressaltar
que, como um elo intermediário necessário, o papel de uma política
cônscia de seus limites, bem como de suas funções estratégicas na
totalidade da prática social, é crucial para o êxito de uma transformação
socialista da sociedade (p. 144).
Esta proposta objetiva de socialismo, todavia, não pode ser superficializada como se fez no bandeirismo partidário. Se é para o socialismo
que Marx apontava, não ficou muito claramente descrito como funcionaria este modo de produção.
Direito como Concretização
dos Entendimentos Coletivos
A amplitude da obra de Habermas permite-nos deduzir que um
dos temas centrais ali tratados é a democracia. Existe, no entanto, uma
infinidade de compreensões das reflexões que este autor empreende,
mas poucos negam que ele é um dos raros pensadores atuais que ainda
mantêm um discurso teleológico, metanarrativo, totalizante e, ao mesmo
tempo, dialético. Discorre sobre o poder, a razão, a linguagem, a sociedade
e emancipação humana, desafiando-nos a elevar nossos interesses a uma
dimensão universal, o que o torna um pensador que mais se aproxima,
metodologicamente, de Karl Marx.
116
Enio Waldir da Silva
Das relações da razão, linguagem e lei Habermas parece querer
buscar uma democracia comunicativa (dialógica) motivadora de ações que
organize a sociedade. Este diálogo possui regras que tornam possíveis
a todos argumentar de forma franca, sem coerção e coação de modo a
produzir uma compreensão a partir dos interesses mais comuns, de onde
se pode retirar um consenso mínimo que oriente as normas.
A sociedade democrática seria, para Habermas, então, aquela que
apresenta condições para a produção de consensos parciais baseados na
argumentação. A vida democrática depende do dinamismo de uma esfera
pública para além do Estado que tematiza a agenda política em relação
à qual o Estado deve reagir. A tradução desta linguagem comum para
códigos mais sistemáticos e vice-versa seria feita pelo Direito.
O mundo da vida, em que as experiências encontram repercussão
e que é dominado pela rotina, é lugar onde se pode perceber problemas,
tematizá-los nos diálogos de forma a chamar a atenção dos procedimentos
democráticos institucionalizados, pressionar as instâncias decisivas. A
sociedade civil institucional e voluntária seria como base desta esfera
política pública e composta por associações, movimentos sociais, organizações. Esta conexão entre sociedade civil, esfera pública e sistema
político é que garante que as massas não sejam manipuladas para fins
plebiscitários.
Uma das maiores contribuições de Habermas está na possibilidade de compreender que o advento da modernidade significou uma
incorporação da razão prática como propriedade da subjetividade humana. Consequentemente, a compreensão ontológica desta faculdade
significaria a compreensão de um aspecto fundamental para realizar a
efetivação do espírito humano em sua forma social e política. A realização
desta natureza foi vista em sua forma mais absoluta na constituição do
Estado moderno, modelo político em que o particular converge para a
forma universal. A sociedade realiza-se, assim, de acordo com a concepção
moderna, na ideia do Estado moderno.
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
117
A crítica a esta concepção apareceu, ainda na forma moderna, incidindo sobre a separação entre política e economia. Tendo seu expoente
máximo em Karl Marx, esta abordagem nega a existência de duas faculdades humanas distintas, sendo uma própria da consciência, buscando a
efetivação do espírito humano na realização da dialética particular/ geral
– basicamente a fusão do indivíduo particular na forma política universal
representada pelo Estado moderno –, e outra funcionando quase como
um inconsciente coletivo (não há aqui referência ao conceito psicanalítico
e sim a ideia de um mecanismo coletivo de autoajuste) responsável pelo
equilíbrio natural da economia, como podemos ver na ótica econômica de
Adam Smith na forma da “mão invisível do mercado”. Nesta perspectiva
crítica, todas as formas de gestão coletiva estariam comprometidas de
uma forma ou de outra com a orientação econômica, entre elas, e principalmente, o Estado e as formas do Direito Público. Por uma outra via,
representando uma crítica radical à modernidade aparece a crítica pósnietzschiana que, ao duvidar radicalmente de toda metafísica, acaba por
detonar uma crise tanto no sujeito moderno quanto na ideia de Estado
como unidade da diversidade
Resgatando a tradição racionalista Habermas desloca o mecanismo da racionalidade da essência da subjetividade humana para a ação
comunicativa intencional que ocorre entre dois ou mais sujeitos que
argumentam em busca de entendimentos, para se estabelecer um acordo
consensual, mínimo e provisório. Assim, da razão prática fundamentada
na subjetividade humana, a racionalidade desloca-se para a razão comunicativa gerada em processos intersubjetivos. É nesta ideia básica que se
fundamenta a teoria do Direito e da democracia habermasiana: “... ela
toma como ponto de partida a força social integradora de processos de
integração não violentos, racionalmente motivadores, capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base de manutenção de
uma comunhão de convicções” (Habermas, 1997c, p. 22).
118
Enio Waldir da Silva
Um traço característico da Filosofia política habermasiana é preservar elementos do idealismo. Apesar disto o autor propõe a superação
da metafísica kantiana e da dialética hegeliana. Esta superação dá-se
pela passagem de uma Filosofia da subjetividade para uma Filosofia
da intersubjetividade. Nesta passagem a razão abandona a condição
teleológica para ocupar o lugar de ferramenta preliminar dos processos
comunicativos, assumindo, portanto, características psicológicas. Neste
processo, imperativos de validade universal devem ser buscados não no
plano metafísico, mas em processos fáticos da consciência aplicados aos
atos comunicativos.
Esta guinada linguística aponta também para uma distinção entre
representações particulares e pensamentos universais, conduzindo então
a uma dialética da intersubjetividade que busca estados sintéticos no
acordo consensual entre sujeitos racionais comunicativamente livres: “a
idealidade, apoiada em sinais lingüísticos e regras gramaticais, caracteriza um
pensamento geral, idêntico consigo mesmo aberto e acessível, algo transcendente
em relação à consciência individual, não se confundindo com representações
particulares episódicas, acessíveis apenas privadamente à consciência” (idem,
p. 23).
A ideia de verdade, como aceitabilidade racional interespacial e
intertemporal é garantida nesta estrutura intersubjetiva, fundamentada
na articulação proposicional dos pensamentos.
Para Habermas a crise da modernidade é uma crise dos modelos
fundamentados na racionalidade teleológica. Desde os contratualistas,
passando pela metafísica kantiana, até a Filosofia política hegeliana
sempre se manteve, apesar das profundas distinções entre sistemas,
uma concepção teleológica da razão, seja na forma do Direito natural, de
imperativos categóricos, ou de consciência universal. A materialização
factual, ou melhor, a facticidade de um corpo normativo racionalmente
fundamentado e constituído depende, por consequência, de uma aceitabilidade moral por parte dos influenciados por estas estruturas. Assim,
a facticidade da racionalidade teleológica confronta-se com critérios de
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
119
validade fundamentados numa moral tradicional. Desta forma, conforme a visão habermasiana, a crise da modernidade reflete-se numa crise
entre facticidade e validade: “A legitimidade de uma regra independe
do fato dela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social
como a obediência fáctica varia de acordo com a fé de seus membros na
comunidade de direito na legitimidade, e esta fé, por sua vez, apóia-se na
suposição da legitimidade, isto é, da fundamentabilidade das respectivas
normas” (ibidem, p. 50).
A complexificação das relações sociais na modernidade, o acréscimo de poder atribuído ao setor econômico e de mercado, o crescimento
do poder administrativo, ampliam cada vez mais a já problemática
relação entre facticidade e validade, necessária para a estruturação dos
sistemas político jurídico, o que dá origem a uma defasagem entre
Direito Constitucional e ordem jurídica: “A tensão entre o idealismo da
ordem constitucional e o materialismo de uma ordem jurídica especialmente de
um direito econômico, que simplesmente reflete a distribuição desigual do poder
social, encontra seu eco no desencontro entre as abordagens filosóficas e empíricas
do direito” (ibidem, p. 63).
A perspectiva habermasiana, seguindo a guinada linguística, propõe que a reflexão sobre este movimento conflitual exige a percepção
da ordem jurídica como centrada e atuante nos processos intercomunicativos. O direito passa a ser mais que uma estrutura abstrata reguladora,
constituindo-se então como uma força dinâmica e ativa. Mais que um
sistema de saber, é um sistema de ação, que faz parte do “mundo da
vida”.
Com respeito a este conceito é necessário considerar que, do
mesmo modo que a ordem jurídica que de uma estrutura abstrata reflexiva passa a ocupar uma posição ativa (numa fusão entre elementos do
idealismo com a crítica materialista) o mundo da vida, difere, também, da
ideia de sociedade civil tanto numa perspectiva liberal – que a vê como
totalidade regulada pela interação de vontades livres iguais garantidas
pelo sistema jurídico abstrato – como da perspectiva da crítica marxista
120
Enio Waldir da Silva
que a vê aprisionada por forças históricas movimentadas pela luta entre
classes antagônicas. A perspectiva habermasiana segue o viés linguístico
passando a entender o mundo da vida como: “...uma rede ramificada de
ações comunicativas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas; e as
ações comunicativas, (que) não somente se alimentam das fontes das tradições
culturais e das ordens legítimas, como também dependem das identidades dos
indivíduos socializados” (ibidem, p. 111).
Desta forma ocorre uma relação mais imediata entre a normatividade jurídica e as proposições de entendimento ocorridas cotidianamente
nas inter-relações comunicativas que se dão no mundo da vida. O Direito
passa a ser então componente social do mundo da vida, contribuindo
como força de integração entre facticidade e validade:
Todavia o código do direito não mantém contato apenas com o medium da linguagem coloquial ordinária pelo qual passam as realizações
de entendimento, socialmente integradoras, do mundo da vida; ele
também traz mensagens dessa procedência para uma forma na qual
o mundo da vida se torna compreensível para os códigos especiais
da administração, dirigida pelo poder, e da economia, dirigida pelo
dinheiro (ibidem, p. 112).
A proposta habermasiana é, assim, de ordem democratizadora,
deslocando a construção racional jurídica do idealismo teleológico para
a materialidade das ações comunicativas:
A integração social que se realiza através das normas, valores e entendimento, só passa a ser inteiramente tarefa dos que agem comunicativamente na medida em que normas e valores forem diluídos
comunicativamente e expostos ao jogo livre de argumentos mobilizadores, e na medida em que levamos em conta a diferença categorial
entre aceitabilidade e simples aceitação (ibidem, p. 58).
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
121
Ficam estabelecidos novos termos conflituais colocados entre
regras de aceitabilidade e somatório de aceitações. A conciliação deste
conflito pode fornecer uma chave conceitual capaz de operacionalizar o
dilema da democracia moderna estabelecido na oposição entre “direitos
humanos” e “soberania do povo”.
A substituição de normas morais por leis fundamentadas na autoconscientização dos povos – que buscam garantir a compatibilidade das
liberdades de ação – conforme institui o Direito moderno, na opinião de
Habermas, coloca em choque as ideias de autodeterminação dos povos,
tomada como parâmetro de direitos humanos, e a autorrealização ética,
que representa a soberania do povo.
Tais ideias apresentam-se contraditórias por não representarem
apenas temas diferentes, mas tipos distintos de discursos que emergem
de questionamentos éticos difereciados. A interpretação dual destas questões polarizou-se entre uma metafísica jurídica e uma teoria da vontade
geral, não apresentando, segundo o autor, respostas convincentes.
Habermas opera um deslocamento de enfoque buscando o nexo
interno entre autodeterminação moral e autorrealização ética não na
formulação de leis gerais, mas na formação discursiva da opinião e da
vontade. Conforme dito anteriormente, a guinada linguística da teoria
da ação comunicativa transfere a produção da teoria jurídica de processos
metafísicos para a interação comunicativa. Neste modelo tanto as regras
de aceitabilidade como a simples aceitação particular se estabeleceriam
na ação discursiva em busca de consenso. Assim, de modelo dual passaríamos a um modelo de integração progressiva, como afirma o autor:
A co-originariedade da autonomia privada e pública somente se mostra, quando conseguimos decifrar o modelo da autolegislação através
da teoria do discurso, que ensina serem os destinatários simultaneamente os autores de seus direitos. A substância dos direitos humanos
insere-se, então, nas condições formais para a institucionalização
jurídica deste tipo de formação discursiva da opinião e da vontade, na
qual a soberania do povo assume a forma jurídica (ibidem, p. 139).
122
Enio Waldir da Silva
Todo este processo acompanha a progressiva racionalização do
mundo da vida, no qual a força moral, que servia como garantia interna
de coesão social, dá lugar ao código jurídico que procura manter, por meio
de garantias externas, a manutenção das condições de possibilidade necessárias para que proliferem formas dialógicas operantes em condições
equânimes de comunicabilidade.
Faz-se necessário então mecanismos externos (uma vez que mecanismos morais internos perderam sua capacidade de interferência)
que garantam estas condições de argumentação. Neste ponto deve-se
atentar para que não caiamos novamente numa metafísica jurídica que
justamente é o alvo crítico da guinada linguística habermasiana.
É preciso manter, para que a discussão prossiga, a perspectiva da
formação das regras de comunicabilidade nos próprios processos intercomunicativos. Não obstante temos de lembrar que o autor chama a atenção
para a complexificação das relações sociais modernas e para o progressivo
aumento da importância das relações econômicas e administrativas na
organização do mundo da vida.
O perigo encontra-se na dificuldade de manutenção da equidade
argumentativa. É importante, neste ponto, considerar algumas questões:
para Habermas, a formação dos processos normativos dá-se nos dialógicos
argumentativos; da mesma forma, ele defende que o sistema de direitos
é além de um saber, um modo de ação. Ocorre aí uma inter-relação entre
poder político e normatividade jurídica, como destaca o autor:
O direito constitui poder político e vice-versa; isso cria entre ambos
um nexo que abre e perpetua a possibilidade latente de uma instrumentalização do direito para o emprego estratégico do poder. A
idéia do Estado de direito exige em contrapartida uma organização
do poder público que obriga o poder político, constituído conforme
o direito, a se legitimar, por seu turno, pelo direito legitimamente
instituído (ibidem, p. 212).
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
123
Neste sentido a equidade dialógica exige a garantia de um conjunto de direitos fundamentais:
a) direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas;
b) direito ao status de membro de uma associação voluntária de parceiros
do Direito;
c) possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração
politicamente autônoma da proteção jurídica individual;
d) direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances em
processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis
exercitam sua autonomia política e por meio dos quais eles criam o
direito legítimo;
e) direitos fundamentais a condições de vida garantidas de forma social,
técnica e ecológica (ibidem, p. 159-160).
Tais pressupostos indicam também a orientação democratizante
da perspectiva habermasiana, tomando a orientação democrática não
apenas como normatização processual, mas como o próprio ambiente
de gestão do sistema jurídico. A democracia identifica-se com formação argumentativa da opinião e da vontade, bem como é responsável
pelas garantias externas da continuidade deste processo. Para o autor,
“o princípio da democracia refere-se ao nível da institucionalização externa e
eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da
vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo direito”
(ibidem, p. 146).
Acena neste momento o sentido conceitual da ideia habermasiana de Estado, mais precisamente de Estado de direito. Estado porque
representa um corpo jurídico encarregado de fornecer garantias externas
à equidade argumentativa de todos os membros de uma livre associação
de parceiros de direito; “de direito” pois o mesmo origina-se do mesmo
princípio democrático argumentativo fundamental que dá origem ao
sistema jurídico, entendido tanto como sistema de poder quanto sistema
124
Enio Waldir da Silva
de saber. O sistema jurídico gera e controla o sistema político, ao mesmo
tempo que o sistema político gera e controla o sistema jurídico. Nas
palavras do autor: “A idéia do Estado de direito pode ser interpretada
então como a exigência de ligar o sistema administrativo, comandado
pelo código do poder, ao poder comunicativo estatuidor do direito, e de
mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da implantação
fáctica de interesses privilegiados” (ibidem, p. 190).
Esta nova situação, caracteristicamente moderna, exige uma
transformação no sentido da institucionalizaçao que transfira as atribuições judiciais e sancionais das pessoas jurídicas para um corpus
normativo dotado de poder fáctico de controle sobre comportamentos
antidemocráticos (considerando democracia conforme o sentido aqui
estabelecido). Tal instituição teria o sentido de substituir organizações
legitimadas por atribuições morais que ameacem ruir mediante a modernização social: “O Estado é necessário como poder de organização,
de sanção e de execução, porque a comunidade de direito necessita de
uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade,
e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser
implementados” (ibidem, p. 171).
Para caracterizar este novo modelo institucional, é importante
ressaltar a “interligação conceitual entre direito e poder político”. A partir
daí, podemos enumerar alguns princípios fundamentais que norteariam
este aparelho institucional
O que ficaria resguardado por esta instituição seria a formação
democrática da vontade na teoria do discurso. Isto significa dizer que a
primeira questão a ser apontada como princípio de democracia seria a
ampla e livre participação de todos os membros de uma sociedade de
membros do Direito nos processos comunicativos que levam a acordos
normativos que compõem a formação democrática da vontade. Assim,
um primeiro princípio a ser resguardado é que:
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
125
a) Todo poder deve emanar do “poder comunicativo dos cidadãos” – na prática
este princípio aponta para poderes parlamentares representativos
e deliberativos. Uma segunda questão importante, imediatamente
ligada a primeira, é o resguardo legal do direitos do indivíduo à equanimiedade argumentativa, para isto faz-se necessário que a instância
jurídica resguarde-se da instrumentalização política. Este aspecto é
garantido por meio de uma:
b) Justiça independente – é fundamental também, da mesma forma que a
necessidade de restrição da instrumentalização do sistema jurídico,
a garantia de restrição do sistema administrativo de interferência
estratégica nos processos comunicativos de formação da vontade. Ou
seja, o poder administrativo não pode interferir nos princípios que
fundamentam a orientação de sua decisão. Este princípio traduz-se
pela:
c) Legalidade da administração e controle judicial e parlamentar da administração – por fim faz-se necessário um controle relativo aos processos argumentativos que lhe resguarde de interferências sociais não
constantes ao acordo comunicativo e realizadas entre os membros
da sociedade de Direito e que possam fazer que “o poder social se
transforme em poder administrativo antes de passar pelo filtro comunicativo”. Para o autor isto se faz necessário, pois “A sociedade civil
precisa amortecer e neutralizar a divisão desigual de posições sociais
de poder” (ibidem, p. 219).
Este princípio traduz-se como
d) Separação entre Estado e Sociedade – temos aí a ideia de um Estado de
Direito fundamentado na vontade surgida no livre fluxo comunicativo
e resultado sintético da fusão entre saber institucionalizado jurídico e
ação política. Como afirma o autor: “...de um lado, o Estado de Direito
institucionaliza o uso público das liberdades comunicativas; de outro,
ele regula a transformação do poder comunicativo em administrativo”
(idem, p. 221).
126
Enio Waldir da Silva
Em síntese cremos que Habermas desenvolve a perspectiva linguística do sistema político por meio do deslocamento o núcleo racional
fundamental do Estado de uma metafísica ontológica para os processos
de livre interação comunicativa centradas nos processos argumentativos
de busca de consenso. O objetivo deste processo é a produção racional
da vontade e da opinião. O Direito seria resultado deste processo passando então a ser entendido tanto como sistema de saber quanto sistema
de ação. Sendo assim, é fundamental para este processo, a garantia de
equidade argumentativa entre os participantes, o que representaria um
resguardo contra a intrumentalização deste sistema pelo poder social desequilibrado pelos desnivelamentos econômicos. Neste sentido torna-se
necessário a produção de princípios garantidores da livre argumentação
dos membros da sociedade de Direito. Isso, porém, só não basta, são
necessários, também, a existência de instituições com poderes fácticos
de fazer valer as prerrogativas destes princípios. Surge, assim, um sistema
jurídico fundamentado na livre argumentação, dotado de ação política
com vistas a sua própria preservação. Este sistema daria origem a um
nível de institucionalização que acabaria por elevar o poder do sistema
administrativo. Novamente aí são necessárias garantias de controle para
que esta força não interfira nos princípios reguladores de sua própria
natureza.
A institucionalização deste conjunto de princípios dá origem à
ideia do Estado de Direito. Nas palavras do autor:
...E se pretendemos manter não apenas o Estado de Direito, mas o
Estado Democrático de Direito e, com isso a idéia de auto-organização
da comunidade jurídica, então a constituição não pode mais ser
entendida apenas como uma “ordem” que regula primariamente
a relação entre Estado e os Cidadãos. O poder social econômico e
administrativo necessita de disciplinamento por parte do Estado de
direito (ibidem, p. 326).
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
127
Temos assim o modelo político habermasiano orientado sob princípios da teoria da ação comunicativa. Fundamentalmente sua característica
é centrar a racionalidade nos processos intercomunicativos. Segundo o
autor, como vimos na citação anterior, esta guinada comunicativa não só
opera uma transformação na ideia do Estado e de sua correlação conceitual com o Direito, mas representa também uma via democratizadora,
uma vez que desloca sua fundamentação política de uma metafísica da
subjetividade para processos argumentativos orientados para o acordo
consensual.
Lei e democracia são conceitos que possuem uma forte relação
em Habermas, bem como entre igualdade legal e igualdade de fato. O
processo democrático deve assegurar simultaneamente a autonomia
privada e pública dos sujeitos jurídicos, que também são frutos dos processos comunicativos que formam opinião e vontade comuns racionais.
A democracia é a prática institucional dos cidadãos que estruturam os
conhecimentos racionais discursivos. Assim, “o direito não é um sistema
narcisisticamente fechado sobre si mesmo, mas é alimentado pela vida
ética democrática de cidadãos emancipados e por uma cultura política...”
(Habermas, 1997c, p. 53).
O Direito legítimo como estrutura pode ser interpretada como
o uso público da razão dos indivíduos livres comunicativamente e que
serve como integração de indivíduos com interesses tão distintos. A
República democrática deve:
– contar com uma cultura política ressonante e é executada como projeto na consciência de uma revolução que se tornou permanente e
cotidiana;
– uma consciência que não poder ser tomada por instrumentalismos ou
melancolias;
– uma razão que tenha assegurado seus conteúdos orientadores, com
princípios normativos enraizados na mente;
128
Enio Waldir da Silva
– um Estado de Direito democrático; um conjunto de condições necessárias para formas emancipadas de vida, sobre as quais os envolvidos
teriam, eles mesmos, de entrar em acordo;
– formas de comunicação com condições para a institucionalização da
vontade formada;
– uma comunicação formadora de imagem de sociedade sobre si mesma
como um todo;
– democratização dos próprios processos de formação de opinião e
vontade;
– um poder político gerado comunicativamente que atua sobre o sistema
político que o pool de fundamentos a partir do qual as decisões têm
de ser racionalizados;
– as decisões devem se dar de maneira discursiva;
– a formação já institucionalizada de opinião e vontade deve se tornar
autônoma;
– as premissas para a decisão não podem ser dadas de antemão ideologicamente;
– os argumentos das comunicações devem envolver as questões de
valores;
– um poder gerado de maneira comunicativa e utilizado administrativamente;
– o sistema político deve traduzir os dados normativos – produzidos
a partir de processos de formação de opinião e vontade – para sua
linguagem, onde se conta com critérios de racionalidade e eficácia de
instituição de programas;
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
129
– prática pública de poder comunicativo que estabilize um espaço público
político não distorcido para a formação democrática da vontade;
– poder que tem como retaguarda a cultura política, as maneiras de pensar de uma população habituada à liberdade política – que tem moral
cívica e interesse próprio entrelaçado com seu ethos; – para que o
poder não seja de quem domina a palavra – os intelectuais – é que são
necessários os procedimentos democráticos de formação de vontade,
em que a participação ampla requer o pano de fundo de uma cultura
política igualitária, desprovida dos privilégios de formação;
– uma cultura com estímulos para que não seja absorvida por meras necessidades de compensação (Habermas, 1990ª, p. 105-113 et seq.).
Enfim a saída habermasiana seria: só as normas motivadas racionalmente podem ter pretensão de validade, podem ser certas. Esta certeza é
fruto da comunidade de comunicação em que os participantes testam os
discursos práticos. A validade da norma é fundamentada no consenso dos
participantes por meio da argumentação racional. Até mesmo os valores,
crenças anteriores podem ser criticados argumentativamente.
Os discursos são projetos de motivações, são formas de comunicação que foram removidas dos contextos de experiências e de ação
que nos asseguram que nos atos ideais de fala seu objeto seja discutido;
que não haja restrições a participantes; que nenhuma força, a não ser
do argumento, seja exercitada; que permaneçam apenas os motivos da
cooperativa de verdade (o chamado conflito sem força ou comunicação
livre da força).
Só daí emergem: uma “vontade racional”; interesses comuns
combinados, sem decepção; interesses generalizáveis; desejos realizáveis – como resultante de desejos intersubjetivos Uma comunidade de
comunicação é uma comunidade de interação, de ação de discursos para
emancipação (Habermas, 1980, p. 137).
130
Enio Waldir da Silva
R
RAZÃO ADAPTATIVA E POSITIVISTA
X
RAZÃO ETICA COMUNICATIVA EMANCIPATÓRIA
INSTRUMENTAÇÃO
COLONIZANTE
A
Z
Ã
PODER
L
U
C
R
O
EU
SOCIEDADE
E
RAZÃO
DIALÓGICA
OUTROS
O
EMANCIPAÇÃO DEMOCRÁTICA
Se as relações sociais democráticas advêm de uma cultura do diálogo, do entendimento, então a grande questão é como fazer esse diálogo.
Por isso, o autor vai apontar algumas regras para a ética do diálogo. Toda
a proposta do autor centra-se na criação de uma razão dialógica para
fortalecer a democracia. O diálogo, no entanto, como quer Habermas,
não é fácil de ser estabelecido. Vamos citar algumas regras que deveriam
estar presentes em um discurso democrático.
1 – Franqueza: exige transparência das partes, como uma fala sincera
e pura.
2 – Honestidade: Deve haver um sentimento de altruísmo nos interlocutores, querendo a colaboração dos parceiro(s) para construir um
entendimento. Ninguém pode querer pensar só em si e que só a sua
visão deve prevalecer (discurso desarmado, desideologizado).
3 – Face a Face – É o cara a cara, o olhar de frente, que oportunize
acompanhar o falar e o sentir do outro.
4 – Democracia: Diálogo é falar e ouvir, ceder, conquistar. O deixar falar
é estímulo para que o outro fale sentindo, compreendendo o que diz,
se assegurando na reflexão que está fazendo.
5 – Ressonância: Observar o impacto do que se diz em quem ouve, suas
reações, seus gestos, etc. Ter cuidado no tom de voz, que precisa
ser firme, convincente e, ao mesmo tempo, adequada ao ambiente
da comunicação.
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
131
6 – Produção do Ambiente: Fazer a adequação do contexto (lugares,
luzes, outras falas, outros sons) da fala, para que nada desvie o interesse pela fala.
7 – Intersubjetividade: Manter a diferença e buscar o que é comum, não
querer encobrir o outro, falsear seus discursos, enterrar o que ele
diz no teu discurso. É como falar com o coração (sentir, entender).
Sempre incluir a fala do outro, dizer sobre o que o outro disse (entrar
no discurso do outro), não fazer pouco caso da palavra do outro.
8 – Motivação: Colocar vontade, vitalidade no falar, encorajar, valorizar o
que o outro diz, refletindo sobre a fala dele e aumentando a possibilidade de ele refletir mais sobre o que disse e sobre o complemento
feito pelo interlocutor.
9 – Conquista: Aprender a deixar-se seduzir e, também, seduzir pelo
diálogo, com atitudes de respeito, sinceridade e esforço de clareza
do interesse universal que os move no discurso.
10 – Decisão: O diálogo tem de trazer a solução, a luz final ao tema ou
à verdade momentânea, conquistada e consensualmente compartilhada.
11 – Autonomia: Ela precisa expressar poder de ser instituída, com a
certeza de que a verdade não é mero ideologismo e, por isso, os
sujeitos devem ter direitos a, racionalmente, discordar dela.
12 – Validade: A verdade construída deve ter um valor moral e ético de
sujeitos participantes.
13 – Legitimidade: Se houve participantes então é legítima, porque o
modo de proceder foi aberto à participação, sem restrições.
14 – Universalidade: A norma oriunda da verdade coletivamente construída pelos sujeitos imersos no mundo da vida deve ter caráter de
aplicação a todos os homens (todos são capazes de linguagem).
132
Enio Waldir da Silva
15 – Facticidade – mesmo que tenham um tom idealista, as proposições
devem ser possíveis de prática; ser executáveis.
Direito e o Pensamento Alternativo
A perspectiva do autor era recuperar as vivências inovadoras desconsideradas – desperdiçadas – pelas pesquisas sociológicas, para conectar
redes existentes e as possíveis redes de inovação que vierem a existir.
Trata-se de oxigenar a democracia, refundando a autoridade compartilhada a ela inerente. A esperança é numa pós-modernidade que equilibre
os elementos emancipatórios e regulatórios, uma ciência que produza
conhecimentos prudentes, descentes, emergentes e urgentes.
Santos faz uma releitura da modernidade para entender como ela
se instituiu em suas dimensões sociais, culturais, políticas e jurídicas.
Destaca os elementos emancipatórios da Ciência, do Direito e do Estado, da luta dos excluídos e incluídos e procura reunir as experiências
democráticas e democratizantes para traçar um novo mapa do futuro
fortalecedor do pensamento alternativo ao capitalismo.
Na análise da crise da modernidade, Boventura de Sousa Santos
aponta o esgotamento dos mecanismos econômicos, sociais e jurídicos
da fase do chamado capitalismo organizado, ao mesmo tempo em que
aborda a incapacidade dos referenciais teóricos da dogmática jurídica em
lidar com as transformações sociais.
A revisão paradigmática torna-se evidente perante a globalização
econômica, pela monopolização crescente do capital e pela hegemonia
ideológica que sustenta as sociedades contemporâneas. Esse quadro traz
como consequência a deterioração dos ordenamentos jurídicos nacionais
cujo ideais de igualdade formal e segurança jurídica entraram em colapso.
Entra em colapso também o equilíbrio entre a divisão dos poderes do
Estado que acompanha o processo de mundialização da economia fragmentando o poder estatal, pressionado tanto pela ordem interna quanto
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
133
pela ordem internacional. Assim, o instrumental teórico da dogmática,
produzido nos dois últimos séculos, precisa ser revisto, em razão da sua
estrutura obsoleta e ineficaz perante as transformações sociais.
Nesse contexto, de enfraquecimento do Estado perante a ordem
internacional e de pressões das ordens infranacionais por mais autonomia,
a problemática acerca do pluralismo jurídico toma novo fôlego, agora com
duas estratégias distintas que de um lado busca a criação de um novo
ordenamento jurídico, em que prevalece a autorregulação; e de outro a
busca de uma adaptação evolutiva do próprio Direito Positivo.4
Boaventura de Sousa Santos divide a época moderna em três períodos para que se tenha uma visão do pluralismo jurídico no contexto
das sociedades capitalistas.
A modernidade estrutura-se em dois pilares fundamentais, quais
sejam: o pilar da regulação e o da emancipação. O polo ou pilar da regulação é orientado pelos princípios do Estado (Hobbes), pelo princípio do
mercado (Locke) e pelo princípio da comunidade (Rosseau). Já o polo
da emancipação é orientado por três lógicas: a racionalidade estéticoexpressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática do Direito
e a racionalidade cognitiva-instrumental da ciência e da técnica.
A articulação entre os dois polos, seus princípios e suas lógicas
fazem do projeto da modernidade um projeto ambicioso para o devir
humano. A modernidade busca, com essa vinculação, uma estruturação
Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de. Informalidade da Justiça e controle social – estudo sociológico da implantação dos juizados especiais criminais em Porto Alegre. São
Paulo: IBCCCRIM, 2000. Na parte inicial deste livro o autor constrói um referencial
teórico importantíssimo para a Sociologia Jurídica. O fio condutor do texto de Rodrigo
Ghiringhelli de Azevedo é o pluralismo jurídico, faz uma análise de diversos teóricos
que abordaram o tema. Começa com a obra clássica de Eugen Ehrlich, passa pela
Sociologia francesa, na qual se destaca a obra de Gurvitch, e termina no pensamento
contemporâneo de Boaventura de Sousa Santos.
4
134
Enio Waldir da Silva
de valores tendencialmente opostos e contraditórios, como da justiça e
da autonomia, da solidariedade e da identidade, da emancipação e da
subjetividade, da igualdade e da liberdade.
As diferentes articulações estabelecidas pelos polos da emancipação e da regulação desenham o trajeto histórico da modernidade,
estando estritamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo nos
países centrais da Europa.
Assim, as diferentes formas de articulação entre os pilares da
modernidade, estabelecidos nas sociedades européias, estão ligadas
ao desenvolvimento do capitalismo, sendo que em cada período de
seu desenvolvimento as diferentes articulações implicaram diferentes
arranjos sociais que consequentemente acarretam no desenvolvimento
de ordenamentos jurídicos peculiares a cada período.
Inicia-se no século 16 e chega ao seu auge no século 19, apresentando as seguintes características:
a – Polo da emancipação: domínio da racionalidade cognitiva-instrumental, acarretando em um enorme desenvolvimento da ciência
que é convertida em força produtiva, vinculando-se ao princípio do
mercado; a racionalidade moral-prática caracteriza-se pelos processos
de autonomização e especialização, manifestando-se na elaboração
de uma microética liberal e no formalismo jurídico exacerbado; no
domínio da racionalidade estético-expressiva ocorre uma crescente
elitização em direção à chamada alta cultura.
b – Polo da regulação: não se concretiza o desenvolvimento harmonioso
entre os princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Prepondera o princípio do mercado de maneira quase absoluta, ante o
desenvolvimento ambíguo do princípio do Estado e uma atrofia quase
total do princípio da comunidade; limitação da intervenção estatal;
o Estado protege os direitos individuais, por meio da crescente monopolização dos meios de violência e do poder Judiciário; distinção
entre Estado e sociedade civil.
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
135
O segundo período corresponde ao Welfare State no mundo
capitalista a à constituição do bloco socialista, que tem início no final
do século 19 e seu auge nas primeiras décadas após a Segunda Guerra
Mundial. Tem as seguintes características:
a) Polo da regulação: o princípio do mercado continua em expansão
no polo da regulação, mediante a concentração do capital industrial,
financeiro e comercial e pelo aprofundamento da luta imperialista
pelo controle de mercados e matérias-primas; destruição de solidariedades tradicionais (família e território) por meio do desenvolvimento
industrial e o alargamento do sufrágio universal, inserido na lógica
abstrata da sociedade civil e do cidadão formalmente livre e igual; a
comunidade é materializada pela emergência de práticas de classe,
que passam a estruturar o espaço político; o Estado passa a ser um
agente ativo interferindo na comunidade e no mercado reduzindo a capacidade autorregulatória da sociedade civil (Sousa Santos, 2004).
b) Polo da emancipação: passagem da cultura da modernidade ao modernismo cultural, representando o ápice da tendência de especialização
e diferenciação funcional dos diversos campos de racionalidade; a
racionalidade moral-prática está presente na forma política do Estado,
que penetra na sociedade mediante soluções legislativas, institucionais e burocráticas e que afasta os cidadãos, aos quais solicita uma
obediência passiva no lugar da mobilização ativa; também se expressa
na consolidação de uma ciência jurídica dogmática e formalista, formulada por Kelsen; a racionalidade congnitiva-instrumental é o ápice
da epistemologia positivista, com a constituição de um ethos científico
ascético e autônomo perante os valores e a política (Azevedo, 2000,
p. 51).
O terceiro período começa no final da década de 60 e prossegue
até hoje, sendo chamado de período do capitalismo desorganizado. Tem
as seguintes características:
136
Enio Waldir da Silva
a) Polo da regulação: predominância total do princípio do mercado, que
extravasa o econômico para colonizar tanto o princípio do Estado
quanto o princípio da comunidade; plano econômico caracterizado
pelo crescimento do mercado por meio de empresas multinacionais,
contornando ou neutralizando a regulação nacional das relações de
trabalho; pela precarização das relações de trabalho; pela flexibilização e automatização dos processos produtivos, com a emergência
de novos dinamismo locais; e pela expansão do mercado com a crescente diferenciação de produtos de consumo e pela mercadorização
e digitalização da informação; no plano do Estado, ocorre a perda
acentuada da capacidade e da vontade política de regulação, com
privatizações, retração das políticas sociais, devolução à sociedade civil
de competências e funções que o Estado havia assumido no segundo
período; o aumento do autoritarismo, por meio de microdespotismos
burocráticos, combinados com a sua ineficiência, resultam na perda da
lealdade devida ao Estado como garantidor da liberdade e segurança
pessoais.
b) Polo da emancipação: o polo da emancipação chega ao seu esgotamento enquanto promessa inconclusa; na lógica da racionalidade
cognitivo-instrumental, as promessas da modernidade parecem
esvanecer-se diante dos perigos da proliferação nuclear e dos riscos
de catástrofe ecológica; agravamento das injustiças sociais, paralelamente ao crescimento econômico; a racionalidade moral-prática
enfrenta os dilemas do divórcio entre autonomia e práticas políticas
cotidianas, a regulação jurídica da vida social alimenta-se de si própria;
o cidadão é esmagado por um conhecimento jurídico especializado
e hermético e pela sobrejuridificação de sua vida, é confinado a uma
ética individualista, incapaz de conceber a responsabilidade coletiva
da humanidade pelas consequências das ações coletivas em escala
planetária; no plano da racionalidade estético-expressiva ocorre o esgotamento da alta cultura modernista, com a crítica radical do cânone
modernista, da normalização e do funcionalismo.
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
137
Sousa Santos5 conclui a respeito da modernidade o seguinte: “O
que quer que falte concluir da modernidade, não pode ser concluído em
termos modernos, sob pena de nos mantermos prisioneiros da megaarmadilha que a modernidade nos preparou: a transformação incessante
das energias emancipatórias em energias regulatórias.”
A legalidade estatal capitalista é formada por três componentes
básicos: a retórica, a burocracia e a violência. A retórica está alicerçada na
produção da persuasão e da adesão voluntária por meio da mobilização.
A burocracia baseia-se na imposição autoritária mediante a mobilização
do potencial demonstrativo do conhecimento profissional, das regras
formais gerais e procedimentos hierarquicamente organizados.
Já a violência baseia-se no uso ou ameaça da força física.
A legalidade capitalista apresenta uma articulação dessas estruturas de tal forma que há uma retração do elemento retórico e um gradual
incremento dos elementos burocráticos e coercitivos. Não poderia ser
diferente, pois quanto maior o nível de institucionalização burocrática da
produção jurídica, quanto mais poderosos os instrumentos de violência
a serviço da produção jurídica, menor o espaço retórico da estrutura e
do discurso jurídicos.
Assim, a legalidade estatal capitalista representa a imposição da
hegemonia do mercado por intermédio de mecanismos burocráticos e
coercitivos, que impedem a revitalização da lógica do mundo da vida
ou da sociedade civil. Essa estrutura legal não estabelece uma relação
dialógica com a sociedade, pelo contrário, impõe a ela uma crescente
homogeneização por meio de instrumentos burocráticos e coercitivos
(Sousa Santos, 2004).
Para saber mais sobre o autor acesse este site especial: <www.boaventuradesousasantos.
pt/media/pdf>.
5
138
Enio Waldir da Silva
Seguindo essa lógica o Estado capitalista concentra os seus investimentos em mecanismos de dispersão, no núcleo central da dominação,
em que Estado e não Estado são claramente distintos. Isso representa a
trajetória histórica do capitalismo que busca a hegemonia mediante um
poder central forte e massificador da sociedade, no qual é investido todo
o conhecimento profissional, dominação cognitiva. Ao mesmo tempo, é
incrementada a difusão do conhecimento não profissional nas áreas da
dominação periféricas.
Consequentemente, o poder central torna-se cada vez menos
acessível pela concentração de um conhecimento profissional que não
é universalizado, enquanto na periferia há a proliferação de um conhecimento trivial que possibilita um acesso maior ao poder. Até pelo ato de
que na periferia a distinção entre Estado e não Estado não é tão clara.
Essa assimetria, incrementada a partir dos anos 70 pela desregulamentação e informalização da Justiça, tem um certo potencial emancipador. Segundo Boaventura de Sousa Santos (1999), não existe uma
manipulação dessas reformas, pois a informalização e comunitarização
da Justiça estariam associadas ideologicamente a símbolos com forte
consolidação no imaginário social e com forte carga utópica, contendo
um elemento potencialmente emancipatório.
Na terceira fase do desenvolvimento do capitalismo fica evidenciado o esgotamento e limites do projeto da modernidade e a necessidade
de uma transformação paradigmática na análise social e sociojurídica.
Os fenômenos da desregulamentação e da informalização, ocorridos a
partir da década de 70, fazem com que a Sociologia Jurídica questione o
monopólio estatal da produção do Direito, admitindo uma pluralidade de
ordens jurídicas nas sociedades complexas do fim do século, ao mesmo
tempo em que se reconhece o ocultamento ou mesmo a supressão de
outras juridicidades como estratégia de dominação do Estado capitalista
(Azevedo, 2000, p. 53).
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
139
Segundo Sousa Santos (2000), neste novo contexto, o Direito deve
ser pensado de forma a superar as dicotomias fundantes do pensamento
ocidental moderno, quais sejam: Natureza/Sociedade, Estado/Sociedade
Civil, Formalismo/Comunitarismo. Isso seria feito por meio de uma dupla hermenêutica, capaz de recuperar e reinventar tradições e práticas
suprimidas pela vigência universal do cânone moderno.
Assim, a recontextualização do Direito deve partir do reconhecimento de que todos os contextos em que se realizam práticas e discursos
sociais são produtoras de Direito, constituindo tarefa da Sociologia a
identificação dos contextos sociais cuja produção jurídica é suficientemente significativa para pôr em causa o monopólio estatal.
Acabando com a ficção do monismo estatal, vulgariza-se e consequentemente abala a dogmática jurídica, no entanto os demais contextos sociais do mapa estrutural da sociedade capitalista (domesticidade,
produção, cidadania e mundialidade) não absorveram, como o Direito
Estatal absorveu, algumas reivindicações democráticas dos movimentos
emancipatórios da modernidade. Este fato decorre da própria ocultação
promovida pela política liberal e do despotismo das demais ordens jurídicas, fazendo-se necessária a abertura e democratização de todas as
esferas de produção do Direito.
Como vimos, a política liberal tentou reduzir o espaço de luta
política ao Estado, esquecendo-se ou ocultando o caráter despótico das
relações de poder difusas nos diferentes contextos da prática social.
Com essa perspectiva, Sousa Santos (2000) propõe uma revolução
cultural, desmascarando as diversas formas de poder difusas na sociedade,
estabelecendo uma luta cultural pelo desocultamento dos mecanismos de
poder. Essa luta será travada de maneira diferenciada em cada contexto
social, pois cada um tem suas formas próprias de ocultação.
Este autor (2004, p. 232) também propõe, como forma de negociação à disposição dos sujeitos individuais e coletivos, a defesa dos
direitos humanos. Estes são entendidos como expressão avançada de
140
Enio Waldir da Silva
lutas pela reciprocidade, que até agora ficaram confinadas ao Direito
territorial estatal, no qual todos são formalmente iguais perante a lei, mas
com potencialidade para se estender ao Direito doméstico, da produção
e sistêmico.
Identifica a prática dos direitos humanos como uma prática contrahegemônica, contra a tradição da aplicação técnica (violência ou burocracia), dominante no Direito territorial, opõe-se a aplicação edificante
do Direito, uma aplicação em que o know-how técnico se subordine ao
know-how ético; contra a tradição da aplicação violenta informal (violência
sem burocracia), dominante, de formas diferentes, nos outros três espaços
estruturais do Direito, opõe-se um aplicação retórica informal.
Azevedo (2000) observa que a discussão acerca do deslocamento e
da fragmentação da produção do Direito não está totalmente esclarecida,
afirmando que a crise do Estado moderno torna imprecisa suas distinções
da época feudal, quais sejam: a separação da esfera pública da privada
torna-se imprecisa, com a privatização do público e a publicização do
privado; a dissociação entre poder político (dominação legítima racionallegal) e poder econômico (posse dos meios de produção) é reconfigurada
pela hegemonia cada vez maior do econômico sobre o político; a autonomia da sociedade civil ante o Estado é abalada em uma infinidade de
promulgações e aplicação das regras jurídicas.
Assim, a modernidade nos deixou um legado que se caracteriza
pela falta de correspondência entre o ideal iluminista e a realidade social.
É a eterna armadilha da modernidade, que Weber chama de jaula de
ferro, pois a modernidade tende transformar as energias emancipatórias
em regulatórias.
É preciso identificar o predomínio da lógica do mercado sobre
as outras esferas e contextos sociais, e neste sentido o Direito, mesmo
que estatal, precisa de uma estrutura dialógica com o mundo da vida
para que as energias emancipatórias sejam resgatadas. Enfim é preciso
estabelecer práticas de participação, autogestão e solidariedade social,
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
141
potencializando a democracia radical para superar o domínio político e
econômico da contemporaneidade, sob pena de condenarmos a humanidade a um modelo neofeudal dominado por empresas transacionais,
que impõem a ditadura da lógica de mercado.
Os esforços do autor são para descrever a crise do paradigma
dominante (positivismo) e identificar os traços principais do que designa com o paradigma emergente, em que atribui às Ciências Sociais
antipositivistas uma nova centralidade, e defende que a ciência, em
geral, depois de ter rompido com o senso comum, deve transformar-se
num novo e mais esclarecido senso comum. Lança algumas perguntas:
“O progresso da ciência contribuirá para purificar ou para corromper os
nossos costumes? Há alguma razão para substituirmos o conhecimento
vulgar pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível
à maioria?”
E responde: não, pois não há sentido na distinção entre Ciências
Naturais e Ciências Sociais; a síntese que se deve operar entre elas tem
como polo catalisador as Ciências Sociais; estas terão de recusar todas as
formas de positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista
ou idealista com a consequente revalorização do que se convencionou
chamar humanidades ou estudos humanísticos (históricos, filológicos,
jurídicos, literários, filosóficos e teológicos); tal síntese não visa a uma
ciência unificada nem sequer uma teoria geral, mas tão só um conjunto
de galerias temáticas para onde convergem linhas de água que até agora
concebemos como objetos teóricos estanques; à medida que se der esta
síntese, a distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento vulgar tenderá a desaparecer (o antiPlatão) e a prática será o fazer
e o dizer da Filosofia da prática (Sousa Santos, 2003).
A consolidação de um pluralismo cultural faz com que a sociedade
e a própria ciência sejam desafiados a produzir novos conhecimentos
e compreensões a respeito da vida humana e dos processos sociais e
ambientais.
142
Enio Waldir da Silva
Na seara da política, a abordagem de Sousa Santos (2000) refere-se
à globalização neoliberal hegemônica e não é a única. De par com ela
e em reação a ela, emerge uma outra globalização, constituída pelas redes e alianças transfronteiriças entre movimentos, lutas e organizações
locais ou nacionais, nos diferentes cantos do globo. Essa mobilização
se dá contra a exclusão social, a precarização do trabalho, o declínio das
políticas públicas, a destruição do meio ambiente e da biodiversidade, o
desemprego, as violações dos direitos humanos, os ódios interétnicos, etc.
e propõe outra globalização alternativa e contra-hegemônica, organizada
da base para o topo da sociedade (Silva, 2009b).
Diante das mudanças de paradigmas, a emancipação social ainda
é uma aspiração. O autor expõe que existem dois fatores fortíssimos
de legitimação: a Ciência e o Direito modernos. Quer um, quer outro,
reclamam de uma eficácia e de uma coerência, que, de fato, não têm e
nunca tiveram. Diante disso, os grupos sociais interessados na emancipação não podem começar hoje uma luta pela coerência e eficácia das
alternativas emancipatórias, e veem como saída a utopia. Essa utopia
abrirá o conhecimento emancipatório e irá consolidar a sua trajetória
epistemológica, do colonialismo para a solidariedade. Identificar novos caminhos emancipatórios é a proposta do autor e, sobretudo, na construção
das subjetividades capazes e desejosas de percorrê-los. Antes de apontar
novas propostas, Sousa Santos (2000, p. 330) trabalha seis pressupostos
que hoje subjazem ao momento utópico da sua reflexão.
O primeiro pressuposto é de que a Ciência e o Direito modernos destruíram a tensão entre regulação e emancipação. O excesso de
regulação transformou-se, ele próprio, num problema fundamental. O
fato de a Ciência e de o Direito modernos não reconhecerem que não
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
143
existe uma solução no paradigma da modernidade, e a partir daí, pensar
na transição de um outro paradigma, transforma-os num problema fundamental adicional.6
O segundo pressuposto diz que a regulação social deve florescer
simplesmente porque a subjetividade é incapaz de conhecer e desejar
saber como conhecer e desejar para além da regulação. A partir daí nasce
a necessidade de reinventar um mapa emancipatório e uma subjetividade
individual e coletiva capaz de usar, e querer usar, esse mapa. Para Sousa
Santos (2000, p. 330), “esta é a única maneira de delinear um trajeto
progressista através da dupla transição, epistemológica e societal, que
começa agora a emergir”.
Dentro deste processo de reinvenção e construção, afirma Sousa
Santos (2000, p. 330) que existem alguns princípios orientadores, quais
sejam: criar novas formas de conhecimento baseadas numa nova retórica, que
seja dialógica e empenhada em constituir-se como tópica emancipatória,
ou seja, como tópica de novos sensos comuns emancipatórios, capaz de
facilitar uma resolução progressista da transição paradigmática. Para essa
tarefa duas representações inacabadas da modernidade são importantes:
o princípio da comunidade, assente nas ideias de solidariedade de participação e o princípio estético expressivo assente nas ideias de prazer,
de autoria e de artefactualidade.
Também é possível incluir a separação do Direito moderno relativamente ao Estado e a sua rearticulação com a política e a revolução.
Diante desses campos analíticos, o autor argumenta que é possível realçar
as várias formas de opressão nas sociedades capitalistas, ao mesmo tempo
em que abrem novos espaços para uma política cosmopolita, para diálogos interculturais, para a defesa da autodeterminação e da emancipação,
espaços possibilitados pela globalização das práticas sociais.
Esta compreensão de Boaventura de Sousa Santos já foi interpretada em Silva, Enio
Waldir da. Teoria Sociológica III. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009b.
6
144
Enio Waldir da Silva
O percurso analítico de Sousa Santos (2000) tem como objetivo
formular um conjunto de interrogações radicais sobre as sociedades capitalistas contemporâneas e o sistema mundial que as integra, abrindo caminho para a dupla reinvenção, exigida pela própria transição paradigmática
de um novo senso comum emancipatório e de uma nova subjetividade
individual e coletiva com capacidade e vontade de emancipação.
O terceiro pressuposto é a difícil, mas importante tarefa de definir
o paradigma emergencial. Difícil porque a modernidade classifica e
fragmenta os grandes objetivos do progresso infinito em soluções técnicas que se distinguem essencialmente pelo fato de a sua credibilidade
transcender aquilo que a técnica pode garantir. As soluções técnicas
têm excesso de credibilidade, ocultando e neutralizando o seu déficit
de capacidade.
O autor afirma que o único caminho para pensar o futuro parece
ser a utopia. E por utopia ele entende: a exploração, através da imaginação
de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade, e a oposição da
imaginação à necessidade do que existe, em nome de algo radicalmente melhor,
porque vale a pena lutar pelo que a humanidade tem direito (Sousa Santos
2000, p. 331-332).
A utopia requer um profundo e abrangente conhecimento da
realidade como meio de evitar que o radicalismo da imaginação venha
a colidir com o seu realismo.
O quarto pressuposto é o fato de o pensamento utópico encontrarse desacreditado. Em virtude da expansão da transição do estudo da natureza para o estudo da sociedade, foram criando um ambiente intelectual
hostil ao pensamento utópico. Nesse sentido, é preciso que se recupere
a capacidade imaginativa do homem para além do desenvolvimento
técnico-científico da sociedade moderna.
O quinto pressuposto tratado por Sousa Santos (2000) diz que a
utopia se assenta em duas condições: uma nova epistemologia e uma
nova Psicologia. Essa nova epistemologia abre horizontes, expectativas
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
145
e possibilidades, criando assim alternativas, enquanto que na nova Psicologia a utopia recusa a subjetividade do conformismo e cria a vontade de
lutar por alternativas. A nova epistemologia, portanto, busca alternativas
que a ciência, por sua vez, deixou de apontar.
O sexto pressuposto é uma proposta de heterotopia, ou seja, em
vez da invenção de um lugar situado algures ou nenhures, propõe uma
deslocação radical dentro do mesmo lugar: o nosso (Sousa Santos, 2000,
p. 333).
Esse deslocamento permite uma visão telescópica do centro e
uma visão microscópica de tudo o que existe no centro, porém negado.
Tem como objetivo experienciar a fronteira da sociabilidade enquanto
forma de sociabilidade.
As propostas utópicas de Sousa Santos trazem em seu seio a
convicção de que nenhuma transformação paradigmática será possível
sem a transformação paradigmática da subjetividade. Essa transição
paradigmática irá traduzir-se em emancipações sociais, que em lugar de
serem um ponto de chegada, constituem antes um ponto de partida para
pensar a transição paradigmática.
Dado que combate a regulação social existente, as lutas emancipatórias devem necessariamente opor-se-lhe nos campos sociais em
que ela atualmente se reproduz. Seja como for, à medida que a transição
paradigmática progredir, as lutas emancipatórias deixarão de combater
as formas de regulação social que agora existem para combater as novas
formas de regulação, surgidas das próprias lutas emancipatórias paradigmáticas (Sousa Santos, 2000, p. 334).
O paradigma emergente é construído dentro dos próprios espaços
estruturais, isto é, em vez de saídas globalizantes, saídas locais por meio
de uma tripla transformação: a transformação do poder em autoridade partilhada; a transformação do direito despótico em direito democrático e a transformação do conhecimento-regulação em conhecimento-emancipação (p. 334).
146
Enio Waldir da Silva
Essa tripla transformação, porém, para que não seja desacreditada
logo no início, precisa contar com coligações das formas alternativas de
sociabilidade. É aí que entra o papel político do Estado e a importância
da cidadania.
A função do Estado na transição paradigmática está centrada em
garantir as condições de experimentação de sociabilidades alternativas,
não lhe competindo avaliar o desempenho delas e sim ser avaliada pelas
forças sociais ativas nos campos sociais. Esses campos são comunidades
interpretativas ou campos de argumentação, cuja vontade e capacidade
emancipatória argumentarão na medida em que esta seja orientada pela
retórica dialógica (p. 335).
Esta retórica dialógica exige um diálogo entre o orador e o auditório
e, para ser eficaz, obriga a um conhecimento prévio da plateia que se
pretende influenciar: A contradição e a competição geral entre o paradigma
dominante e o paradigma emergente desdobram-se em contradições e competições
específicas em cada um dos espaços estruturais (p. 335).
Para apresentar os termos da contradição e da competição paradigmática o autor concentrou-se no paradigma societal emergente, no senso
comum emancipatório a ser construído por uma tópica retórica dialógica e
no novo Estado-providência. A maioria das visões ou utopias alternativas
concentraram-se nos espaços da produção e da cidadania.
No espaço doméstico a contradição e a competição ocorrem entre
o paradigma da família patriarcal e o paradigma das comunidades domésticas cooperativas. O paradigma emergente baseia-se na autoridade
partilhada, em todas as formas alternativas de sociabilidade doméstica
e sexualidade, e na democratização do Direito doméstico. O novo senso
comum emancipatório do espaço doméstico baseia-se numa tópica retórica da democracia da cooperação e da comunidade afetiva. Essas novas
formas alternativas assumem a garantia de experimentar a igualdade e
o acesso ao Direito social.
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
147
No espaço da produção, a contradição e competição ocorrem entre
o paradigma do expansionismo capitalista e o paradigma ecossocialista.
O paradigma ecossocialista organiza-se para uma produção democrática
de valores de uso, sem degradação da natureza. O novo senso comum
emancipatório do espaço da produção baseia-se numa tópica retórica,
orientada pelos topois da democracia e do socialismo e antiprodutivismo ecológico. A área de produção de bens e serviços constitui uma das
primeiras formas de promoção da experimentação social que optou pelo
Estado-providência.
No espaço do mercado, a contradição e a competição ocorrem entre o
paradigma do consumismo individualista e o paradigma das necessidades
humanas, da satisfação decente e do consumo solidário.
No paradigma emergente, os meios de satisfação estão a serviço das
necessidades. Sendo uma das formas de organização do consumo, o
mercado e as necessidades são vistos como algo subjetivo de acordo
com os contextos e as culturas. O novo senso comum emancipatório do espaço do mercado baseia-se numa tópica retórica orientada
pelos topoi da democracia, das necessidades radicais e dos meios de
satisfação genuínos (p. 338).
Neste espaço, a estruturação de providência social do Estado deve
assegurar a experimentação de formas alternativas de consumo, criando
condições para que grupos de consumidores se associem na produção
de alguns bens de consumo, sobretudo alimentar.
No espaço da comunidade, a contradição e a competição ocorrem
entre o paradigma das comunidades-fortaleza e o paradigma das comunidades-amibas. Comunidades-fortaleza, Sousa Santos (2000, p. 339)
define que são formadas por grupos sociais dominantes, que se fecham
numa pretensa superioridade para não serem corrompidas por comunidades supostamente inferiores. No paradigma das comunidades-amibas
a identidade é sempre múltipla, inacabada, em processo de reconstrução
e reinvenção.
148
Enio Waldir da Silva
Abrem espaço para a inclusão, lançando pontes para outras comunidades, procurando comparações interculturais que confiram o significado
mais profundo a sua concepção própria de dignidade humana. O paradigma das comunidades-amibas objetiva construir um novo senso comum
emancipatório, guiado por uma hermenêutica democrática cosmopolita
multicultural e diatópica.
No espaço da cidadania, a contradição e a competição ocorrem entre o paradigma da democracia autoritária e o paradigma da democracia
radical.
O paradigma emergente é o paradigma da democracia radical,
isto é, da democratização global das relações sociais assentes numa dupla
obrigação política: a obrigação política vertical entre o cidadão e o Estado,
e a obrigação política horizontal entre cidadãos e associações (p. 340).
O espaço da cidadania só é garantido quando está unido com a
democratização dos demais espaços.
O último espaço a ser trabalhado pelo autor é o espaço mundial.
No espaço mundial a contradição e a competição paradigmáticas ocorrem
entre o paradigma do desenvolvimento desigual e da soberania exclusiva
por um lado, e o paradigma das alternativas democráticas ao desenvolvimento e da soberania reciprocamente permeável por outro (p. 341).
A visão do paradigma emergente sob a hierarquia Norte-Sul e o
desenvolvimento capitalista, expansionista e desigual que essa hierarquia
sustenta, constituem a maior e mais implacável violação dos direitos
humanos no mundo hoje. O paradigma emergente trabalha com a
ideia de:
Um novo sistema de relações internacionais e transnacionais orientado
pelos princípios da globalização contra-hegemônica: o cosmopolitismo
e o patrimônio comum da humanidade. No novo modelo, a soberania
deixa de ser exclusiva e absoluta, tornando-se recíproca e democraticamente permeável (p. 342).
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
149
Neste paradigma os princípios de autodeterminação interna e externa têm importância de igual teor. Tenderão a desaparecer as distinções
entre cidadão e não cidadão, entre imigrantes e nacionais e, com isso,
a cidadania, assim como as nacionalidades, tenderão a ser plurais. No
espaço mundial a dimensão de providência social do Estado tem como
base assegurar a experimentação com novas formas de sociabilidade
internacional e transnacional, incluindo governos locais transnacionalmente articulados em rede.
As propostas apresentadas pelo autor visam a uma experimentação social como formas alternativas de sociabilidade. A essas formas
alternativas de sociabilidade compete ao Estado garantir a experimentação, residindo nessa função a sua natureza de providência social. A
experimentação social é também uma autoexperimentação, sua autorreflexividade.
Nos termos que ora se apresentam, a contradição e a competição
paradigmáticas significam uma confrontação no campo social entre regulação e emancipação. Na luta política paradigmática, a confrontação ocorre
entre a regulação socialmente construída pelo paradigma dominante e a
emancipação imaginada pelo paradigma emergente.
A transição paradigmática é epistemológica e societal. Ao unir
estas duas transições nasce o conceito de subjetividade. A subjetividade
é o grande mediador entre o conhecimento e a prática. Ela é, ao mesmo
tempo, individual e coletiva. O tipo de subjetividade capaz de explorar, e de querer explorar, as possibilidades emancipatórias de transição
paradigmática,
tem de se reconhecer assim mesmo e ao mesmo tempo através do
conhecimento-emancipação, recorrendo a uma retórica dialógica
e a uma lógica emancipatória. Por outro lado, tem de ser capaz de
conceber e desejar alternativas sociais assentes na transformação
das relações de poder em relações de autoridade partilhada e nas
transformações das ordens jurídicas despóticas em ordens jurídicas
150
Enio Waldir da Silva
democráticas. Em suma, há que inventar uma subjetividade constituída
pelo topos de um conhecimento prudente para uma vida decente
(Sousa Santos, 2000, p. 345).
A subjetividade da transição paradigmática é aquela para quem
o futuro é uma questão pessoal e de todos, pois o autor acredita que a
construção de uma subjetividade individual e coletiva que seja apta a
enfrentar as futuras competições paradigmáticas e disposta a explorar as
possibilidades emancipatórias por elas abertas deve ser guiada por três
grandes topoi: a fronteira, o barroco e o sul.
A fronteira surge como uma forma privilegiada de sociabilidade,
cujas principais características da vida
na fronteira são as seguintes: uso muito seletivo e instrumental das
tradições trazidas por pioneiros e imigrantes; invenção de novas formas
de sociabilidade; hierarquia fraca; pluralidade de poderes e de ordens
jurídicas; fluidez das relações sociais; promiscuidade entre estranhos
e íntimos; misturas de heranças e invenções [...] (p. 347).
Já o termo barroco é utilizado pelo autor enquanto metáfora
cultural para designar uma forma de subjetividade e de sociabilidade
capaz de explorar e querer explorar as potencialidades emancipatórias
da transição paradigmática (p. 357).
Ele não despreza, porém, os três outros sentidos, quer seja: como
estilo artístico, como época histórica e como ethos cultural, por ser considerado um fenômeno latino e mediterrâneo, uma forma excêntrica de
modernidade, o Sul do Norte: a sua excentricidade decorre, em grande parte,
do fato de ter ocorrido em países e em momentos históricos em que o centro do
poder estava enfraquecido e tentava esconder a sua fraqueza dramatizando a
sociabilidade conformista (p. 357).
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
151
Como momento histórico, é conferido ao barroco um caráter aberto
e inacabado, que permite a autonomia e a criatividade das margens e
das periferias, em função da relativa ausência de poder central. Por ser
também um período de crise e de transição, a sociabilidade turbulenta
que ela promove alcança alguma semelhança com o momento atual.
Desse caráter aberto e inacabado da subjetividade e da sociabilidade barroca surge a sua disponibilidade para lutar por um novo acabamento. O paradigma emergente é um processo feito de continuidade e
descontinuidade, e a subjetividade barroca privilegia a aparência barroca
enquanto medida transitória e compensatória.
O Sul é o terceiro e último topos que Sousa Santos (2000) propõe
para a constituição da subjetividade da transição paradigmática: tal como
a fronteira e o barroco, o Sul também é aqui usado como uma metáfora cultural,
isto é, como um lugar privilegiado para a escavação arqueológica da modernidade, necessária à reinvenção das energias emancipatórias e da subjetividade
da pós-modernidade (p. 361).
O Sul e o Oriente são, ambos, produtos do império. Tanto o Sul
quanto o Oriente transformaram-se gradualmente em regiões periféricas
do sistema mundial, e dessa forma passaram a ser vítimas da dominação
cultural e econômica. O Sul, enquanto metáfora fundadora da subjetividade emergente, como símbolo de uma construção imperial, exprime
todas as formas de subordinação a que o sistema capitalista mundial deu
origem: expropriação, supressão, silenciamento, diferenciação desigual,
etc.
O Sul sob esta ótica está espalhado pelo mundo inteiro, inclusive
dentro do Norte e do Ocidente: o conceito de terceiro mundo interior, que
designa as formas extremas de desigualdades existentes nos países capitalistas
do centro, designa também o Sul dentro do Norte. O Sul significa a forma de
sofrimento humano causado pela modernidade capitalista (p. 368).
152
Enio Waldir da Silva
A subjetividade emergente é uma subjetividade do Sul e floresce
no Sul. A subjetividade do Sul varia conforme as regiões do sistema
mundial em que surge. Nos países do centro, a subjetividade do Sul
constitui-se por meio da desfamiliarização do Norte imperial. Esta desfamiliarização do Norte imperial é uma epistemologia complexa, feita
de sucessivos atos de desaprendizagem nos termos do conhecimentoregulação (da ordem ao caos), e da reaprendizagem nos termos do
conhecimento-emancipação (do colonialismo à solidariedade).
Nos países centrais, a desfamiliarização relativamente ao Norte
imperial implica todo um processo de desaprendizagem das Ciências
Sociais que constituíram o Sul como o “outro” e o Norte como “nós”:
para se aprender a partir do Sul, devemos, antes de mais nada, deixar falar
o Sul, pois o que melhor identifica o Sul é o fato de ter sido silenciado.
Como o epistemicídio perpetrado pelo Norte foi quase sempre acompanhado pelo “linguicídio”, o Sul foi duplamente excluído do discurso
(Sousa Santos, 2000, p. 372).
A construção da subjetividade do Sul deve desenvolver-se por
processos parcialmente distintos no centro e na periferia do sistema
mundial. A construção da subjetividade do Sul tem de seguir um processo de desfamiliarização, tanto em relação ao Norte imperial quanto
em relação ao Sul imperial.
Para finalizar, veja como o autor aborda a questão dos direitos
humanos na citação a seguir:
Os Direitos Humanos Enquanto Guião Emancipatório
O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto
de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente:
existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior
à restante realidade; o indivíduo possui uma dignidade absoluta e
irredutível que tende ser defendida da sociedade ou do Estado; a
anatomia do indivíduo exige que a sociedade esteja organizada de
forma não hierárquica, como soma de indivíduos livres. Uma vez que
todos estes pressupostos são claramente ocidentais e facilmente desig-
Capítulo 3 – Razão Crítica, Direito e Liberdade
153
náveis de outras concepções de dignidade humana em outras culturas,
teremos de perguntar porque motivo a questão da universalidade
dos direitos humanos se tornou tão acesamente debatida. Podemos
enumerar as principais premissas de uma tal transformação. A primeira
é a superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural.
Trata-se de um debate intrinsecamente falso cujos conceitos polares
são igualmente prejudiciais para uma concepção emancipatória de
direitos humanos. A segunda premissa da transformação cosmopolita
dos direitos humanos é que todas as culturas possuem concepções
de dignidade humana, mas nem todas elas a concebe em termos de
direitos humanos. Torna-se, por isso, importante identificar preocupações isomórficas entre diferentes culturas. A terceira é que todas
as culturas são incompletas e problemáticas nas suas concepções de
dignidade humana. A incompletude provém da própria existência
de uma pluralidade cultural, pois, se cada cultura fosse tão completa
quanto se julga, existiria apenas uma só cultura. A idéia de completude
está na origem de um excesso de sentido de que parecem enfermar
todas as culturas, e é por isso que a completude é mais facilmente
perceptível do exterior, a partir perspectiva de uma outra cultura.
Aumentar a consciência de incompletude cultural até o seu máximo
possível é umas das tarefas mais cruciais para a constrição de uma
concepção multicultural de direitos humanos. A quarta premissa é a
que todas as culturas têm versões diferentes de dignidade humana,
algumas mais amplas do que outras, algumas com círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a outras culturas
do que outras. Por exemplo, a modernidade ocidental desdobrou-se
em duas concepções e práticas de direitos humanos profundamente
divergentes – a liberal e a marxista – uma dando prioridades aos
direitos cívicos e políticos, a outra dando prioridade aos direitos
sociais e econômicos. Há que definir qual delas propõe um círculo
de reciprocidade mais ampla. E por último, a quinta premissa é que
todas as culturas tendem a distribuir as pessoas e os grupos sociais
entre dois princípios competitivos de presença hierárquica. Um – o
princípio da igualdade – opera através de hierarquias entre unidades
homogêneas. O outro – o princípio da diferença – opera através da
hierarquia entre identidades e diferenças consideradas únicas. Os
dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo,
nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são
desiguais (Sousa Santos, 1997).
CAPÍTULO 4
TEMAS DE
SOCIOLOGIA
JURÍDICA ATUAL1
Para acompanhar as discussões práticas das pesquisas sociológicas acesse: <www.
sociologiajuridica.net.br>.
1
Os clássicos da Sociologia construíram um arsenal conceitual que
se tornaram fontes estruturais e culturais das Ciências Sociais contemporâneas. Estas teorias aplicadas sobre diferentes realidades marcaram
o contornos das diferentes pesquisas da Sociologia Jurídica e dos referenciais das Ciências Jurídicas. É o historiador inglês do Direito, Henry
Sumner Maine, cuja obra principal, que data de 1861, dá início à história
sociológica do Direito dos países ocidentais. Sua teoria evolucionista da
passagem da sociedade do estatuto à sociedade do contrato teria inspirado
a Durkheim sua teoria da transformação das sociedades da solidariedade mecânica e do Direito repressivo em sociedades caracterizadas pela
solidariedade orgânica e pelo Direito restitutivo.
Eugen Ehrlich nasceu em 1862 na cidade de Czernowitz (Bucovina do Norte), que formava parte então do Império Austro-Húngaro e
hoje, com o nome de Chernovtsy, integra a Ucrânia. Foi professor de
Direito Romano e reitor da Universidade de sua cidade natal, cassado
pelo antissemitismo ali prevalecente depois que, em 1919, a província
passou ao controle da Romênia. De nada valeu seu brilhantismo nem
sua conversão, ainda moço, ao catolicismo. Ehrlich morreu em Viena,
amargurado e tuberculoso, em 1922, alguns meses antes de cumprir os
60 anos (Azevedo; Rojo, 2005).
O segundo dos “iniciadores” que gostaríamos de evocar aqui é o
austríaco Eugen Ehrlich, que, em 1913, publicou o primeiro tratado de
“Sociologia do Direito” e que por isto é reconhecido por alguns como
o “pai” da disciplina. Quando menos, foi o primeiro a empregar esta
denominação para designar a análise do “direito vivente”, quer dizer,
do Direito tal como ele é aplicado e utilizado, em oposição ao Direito
escrito ou teórico.
A posição quase hegemônica que a Sociologia Jurídica gozou na
academia, a partir dos anos 60, foi a que Touraine (1987, p. 26) definiu
como a “sociologia da suspeita e da caça ao ator”. Esta, traduzindo em
termos sociológicos a versão que Louis Althusser dava à obra de Karl
Marx, desdenhou o estudo do Direito, considerado mero produto su-
158
Enio Waldir da Silva
perestrutural das relações de produção e viu nas instituições espelhos
deformados e deformantes dos sistemas de relações sociais, cuja realidade
não podia (supostamente) reconhecer-se nelas.
Em verdade, foi apenas em meados dos anos 80 que os sociólogos
começaram a reconciliar-se com a tradição dos precursores e dos fundadores e foi aparecendo um renovado interesse por uma Sociologia Jurídica
que não teria unicamente por objeto o Direito Penal e que progressivamente se difundiu não só nos países germânicos ou anglo-saxões, mas
também nos de tradição latina, a um lado e outro do Atlântico, muitos
dos quais estavam vivendo as sequelas de processos de democratização
pós-ditatorial conhecidos como a terceira onda.
Hoje a Sociologia Jurídica está viva. No que se refere as suas
orientações teóricas, o quadro se tem diversificado muito, ainda que se
mencione com frequência a constante importância de alguns autores.
Entre eles, os clássicos das Ciências Sociais: Marx, Durkheim e Weber,
aos quais se acrescentam os clássicos da disciplina: Ehrlich, Theodor
Geiger, Gurvitch ou, entre os mais recentes: Vilhelm Aubert, Carbonnier
e Renato Treves. Alguns autores contemporâneos adquirem também
uma importância comparável à dos clássicos, seja pelos trabalhos que
inspiram ou pelas críticas que suscitam fora de seus países de origem.
Trata-se amiúde de autores alemães, Luhmann e Habermas em primeiro
lugar, assim como Foucault, Gunther Teubner ou ainda Donald J. Black.
Um fenômeno particular é digno de menção: a importância, em muitos
países, de autores que podem se considerar como “autores nacionais
emblemáticos”. Entre estes podemos encontrar Petrazycki e Podgórecki
na Polônia, Barna Horváth na Hungria, Boaventura de Sousa Santos em
Portugal (e no mundo luso em geral), Per Stjernquist na Suécia ou Guy
Rocher no Canadá (Azevedo; Rojo, 2005).
No que tange aos domínios de pesquisa, o melhor estudado, objeto
de trabalhos em todo lugar onde a Sociologia Jurídica conhece um certo
desenvolvimento empírico, é o das instituições que asseguram a produção
(e a reprodução) do Direito: os tribunais, as profissões jurídicas, a polícia,
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
159
etc. Vêm em segundo lugar as pesquisas que se referem à efetividade e
aos efeitos do Direito: estes concernem às vezes a domínios particulares
(a família, a empresa, a proteção do meio ambiente, etc.), focalizam-se
nos fenômenos de ineficácia (marginalidade e divergência), ou avaliam
ainda a eficácia dos instrumentos jurídicos na prevenção ou resolução
dos conflitos ou das demandas renovadas (políticas e sociais) de uma
instância simbólica que deve agir seguindo formas adjudicatórias e que
teria de dizer o que é justo. Vêm depois outras duas categorias: por um
lado, o estudo dos fenômenos de pluralismo normativo e, por outro, o
dos fenômenos de produção do Direito, dos processos legislativos e de
seu contexto social.2
Quanto a sua institucionalização, a Sociologia Jurídica revela, antes
de mais nada, uma grande diversidade. Não só a disciplina se acha mais
ou menos bem estabelecida, de acordo com o país de que se trate, como
sua instituição segue, em cada país, modalidades muito diferentes, dando,
por exemplo, preferência, em alguns deles, às instituições de pesquisa e,
em outros, ao ensino universitário. Diante da influência das instituições
estatais, observa-se uma importância variável das instituições privadas,
em particular das associações, das revistas ou ainda das coleções de trabalhos especializados. A este respeito não podemos deixar de mencionar
os que poderíamos denominar “momentos fortes” de nossa disciplina,
oferecidos pelos congressos e outros encontros científicos periódicos.
No universo da própria Sociologia Jurídica a evolução mais sensível
que, a nosso juízo, produziu-se nesses últimos tempos, é a importância
crescente dos marcos não nacionais, quer dizer, das redes regionais e
internacionais. Podemos, assim, reconhecer diversas regiões caracterizadas por afinidades teóricas e até por relações mais ou menos institucionalizadas de cooperação. Entre elas a Europa latina, estruturada em
Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli de; Rojo, Raúl Enrique. Sociedade, direito, justiça.
Relações conflituosas, relações harmoniosas? Revista Sociologias, Porto Alegre: UFRGS,
ano 7, n. 13, p. 16-34. jan./jun. 2005.
2
160
Enio Waldir da Silva
torno do “Cercle de Sociologie et de Nomologie Juridiques” que anima
André-Jean Arnaud; a Europa germânica, onde se afirma o dinamismo
das redes alemãs, seguido atentamente por Itália e os países da Europa
Central e Oriental; a Escandinávia, dona de uma antiga tradição de
cooperação, que também parece influenciada pelos trabalhos levados
adiante na região germânica; os países anglo-saxões, nos quais a Law
and Society Association tem criado fortes vínculos; e a América Latina,
por fim, na qual se celebram, desde 1987, reuniões de jurisociólogos
latino-americanos e onde é remarcável uma série de iniciativas adotadas
pelo Instituto Latinoamericano de Servicios Sociales, entre elas a revista
Más Allá del Derecho.
Vamos apresentar agora alguns estudos que enfocam temas pertinentes para se compreender as dimensões atuais das relações entre
sociedade e Direito.
O Direito como Sistema Autopoiético3
Sociedades sem pessoas
Luhmann introduz três premissas em sua análise da sociedade
que produziram não apenas críticas vigorosas, mas também muita
incompreensão, a ponto de ser acusado de ter um pensamento antihumanista e cínico: 1. A sociedade não consiste de pessoas. Pessoas
pertencem ao ambiente da sociedade. 2. A sociedade é um sistema
autopoiético que consiste de comunicação e mais nada. 3. A sociedade
só pode ser adequadamente entendida como sociedade mundial. O
banimento das pessoas para o ambiente da sociedade completa a
descentralização da cosmologia humanista. Tendo sido retirada do
centro do universo na Renascença, desprovida de sua origem única
ao ser colocada no contexto da evolução por Darwin, e desnudada
de sua autonomia e autocontrole por Freud, o fato da humanidade
agora ser libertada das amarras da sociedade por Luhmann parece
Grande parte deste texto já foi publicado em Silva, Enio Waldir da. Teoria Sociológica
III. Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009b. p. 27-43.
3
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
161
ser uma extensão consistente dessa tendência. Enquanto a tradição
clássica européia, com sua distinção entre humanos e animais, dotava
os humanos de sentido, razão, vontade, consciência e sentimentos,
a separação inexorável dos sistemas mentais e sociais que Luhmann
substitui por homo socialis deixa claro que a sociedade é uma ordem
sui generis emergente, que não pode ser descrita em termos antropológicos. A sociedade não tem o caráter de um sujeito – nem mesmo no
sentido enfático transcendental, como uma condição da possibilidade
de idéias subjacentes definitivas ou de mecanismos de qualidades
humanas. Não é um endereço para apelos humanos de ação, e certamente não um lugar para reinvindicar igualdade e justiça em nome
de um sujeito autônomo. A sociedade é a redução comunicativa
definitiva possível que separa o indeterminado do que é determinável, ou o que é processável da complexidade improcessável. Numa
análise detalhada, Luhmann traça a distinção cada vez maior entre o
indivíduo e a sociedade. Só depois de uma clara separação ter sido feita
entre sociedade e humanidade é que é possível ver o que pertence
à sociedade e o que está alocado à humanidade. Isso abre as portas
à pesquisa sobre a humanidade, a consciência humana e o funcionamento da mente humana com base em medidas empírico-naturais.
A tese da separação de sistemas sociais (ou sistemas da sociedade) e
sistemas físicos torna possível entender claramente o relacionamento
entre sociedade e humanidade e segui-lo através de sua histórica.
Os dois são nesse sentido sistemas autopoiéticos, um operando na
base da consciência e o outro na base da comunicação. Mas o que é
sociedade? Sociedade, numa aproximação inicial, é o sistema social
inteiro, incluindo tudo que é social, e consciente de nada social fora
de si mesmo. No entanto, tudo que é social é identificado como comunicação. A comunicação “é uma operação genuinamente social (e
a única que é conjunta socialmente). É genuinamente social porque
pressupõe uma maioria de sistemas de consciência colaboradora ao
mesmo tempo que não pode (exatamente por essa mesma razão) ser
atribuída como uma unidade a nenhuma consciência individual”. Por
outro lado, é também verdadeiro que qualquer coisa que pratique
comunicação é uma sociedade. Isso envolve definições de grande
abrangência4 (Bechmann; Stehr, Nico, 2001).
Bechmann, Gotthard; Stehr, Nico. Niklas Luhmann. Tempo Social, Rev. Sociol., São
Paulo: USP, 13(2): 185-200, nov. 2001.
4
162
Enio Waldir da Silva
Podemos afirmar que a Teoria do Sistema, em termos sociológicos,
tem seu início com Auguste Comte (1798-1857), e tem continuidade
com Herbert Spencer, Émile Durkheim e Talcott Parsons. Com Niklas
Luhmann ela é reedificada e retomada de forma mais profunda.
Niklas Luhmann formula uma teoria geral da sociedade de modo
a superar as desconexões entre micro e macro existentes em muitas teorias sociológicas, com conceitos precisos: Auto-organização, Autopoiésis,
Autorreferência, Autoidentificação, Autoproteção, Entorno, Meio Ambiente,
Heterorreferência, Diferenciação, Seleção, Complexidade, Comunicação, Operação Fechada, Sentido, Reflexividade, Intenção, Irritação, Entropia, Processualidade, Fechamento Operacional, Acoplamento Estrutural, Contingência...
Expressões que parecem pouco sociológicas ou filosóficas ou que, pelo
menos, há muito estes saberes não usavam expressões mais próprias das
Ciências Naturais.
Podemos afirmar que a teoria de Luhmann está dividida em
cinco blocos básicos: sistema social mundial; sistemas de comunicação
(as possibilidades dos códigos de linguagem como aceitação e rejeição);
teoria de evolução (da qual se tira a concepção de diferenciação entre
variação, seleção, estabilização) e uma dedicação à teoria da diferenciação
mostrando que um sistema se constitui de outro sistema desde dentro
(segmentações... cidade/campo... até a sociedade moderna na qual a diferenciação é funcional) e, por último, sobre os aparatos de reflexão ou
autodescrição da sociedade (mecanismo de redução da complexidade –
código de sentido – autoidentificação – procedimento – dominância).
Segundo Luhmann existem três tipos de Sistemas: o Sistema Vivo
(natural ou a natureza), o Sistema Psíquico (os sujeitos) e o Sistema Social
(sociedade).
O Sistema Social é teorizado, inicialmente, de acordo com a teoria
dos sistemas abertos, que se relacionam com seu meio contando com
a absorção de insumos (inputs), devolvendo-lhes os resultados (outputs)
de suas próprias operações. Luhmann trabalhava com a ideia de dife-
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
163
renciação social, que produz crescente complexidade. Sua teoria tinha,
portanto, caráter fundamentalmente evolutivo, a exemplo de Parsons.
Luhmann construiu sua obra essencialmente em torno da teoria geral da
Sociologia, Sociologia do Direito, da Economia e das organizações.
Tais teorias tratam de matéria em movimento, em constante
mudança. Sua vertente sociológica, revelada na teoria luhmanniana,
aplica-se especialmente a um mundo social no qual ocorrem alterações
velozes, inexplicáveis pelas teorias sociais tradicionais fixadas mais na
questão da manutenção da ordem.5 Luhmann se contrapõe à visão tradicional de sociedade que defendia que ela se compõe de pessoas e/ou
de relações entre elas; ou que a sociedade se constitui e se integra pelo
consenso e pela complementaridade de opiniões e objetivos; ou ainda
que as sociedades são unidades regionais, geograficamente delimitadas
(sociedade brasileira, francesa, alemã, etc.). Estas teorias estavam crentes
que as sociedades podem ser observadas de fora, tal como grupos de
pessoas ou territórios.
Stockinger (2007) argumenta que na teoria sistêmica de Luhmann
é afirmado que
o consenso e a complementaridade – caso existirem – são produto
de processos sociais e não elementos constitutivos. A constituição/
integração de sociedade não se dá por consenso, mas sim pela “criação de identidades, referências, valores próprios e objetos através de
processos de comunicação na sua própria continuação”, independente
daquilo que os seres experimentam no confronto com ela. Devido
à distinção axiomática feita pela teoria sistêmica entre “sistema” e
“ambiente” (ou “meio”), o social enquanto sistema há de ser separado
do seu ambiente psíquico e/ou biológico. O sistema social é composto
unicamente por comunicações, isto é, de mensagens e informação. Os
seres humanos enquanto pessoas e indivíduos não pertencem a este
sistema. A distinção epistemológica feita pela teoria os enquadra no
ambiente do sistema social, passam a ser algo como a “razão externa”
Stockinger, Gottfried. Sistemas sociais – a teoria sociológica de Niklas Luhmann. 2007.
Disponível em: <Robertext.com/archiv06/sist_sociais.htm>. Acesso em: 30 nov. 2011.
5
164
Enio Waldir da Silva
da existência do sistema. Tal mudança de visão, ao mesmo tempo
que afeta a autopercepção do indivíduo frente a sociedade, muda o
método de explicação para toda uma gama de fenômenos sociais como
desigualdade social, formação de estratos e classes sociais, etc. Porque
se o homem fizesse parte do sistema, tais diferenciações podiam ser
explicados apenas como atos de discriminação social que contrariam
os direitos universais, responsabilizando para tal os indivíduos (como
o faz a jurisprudência arcaica ainda dominante na nossa sociedade).
Com isso teríamos uma visão mais científica, a diferenciação não
é mais colocada dentro das pessoas, mas ocorre entre estas e o sistema
social, é colocada portanto dentro do modo de comunicação, ou seja,
agora temos a possibilidade de ver o homem, inteiramente, com corpo
e alma, como parte do ambiente do sistema social. A sociedade seria
percebida de modo global, sem fronteiras de comunicação e o sentido
das sociedades territoriais desaparece.
A noção de limite ou fronteira entrou mais recentemente na teoria
de sistemas, quando se começou a distinguir entre sistemas fechados e
abertos, percebendo ambos os tipos não como contrários um do outro, mas
sim como complementares. Limites ou fronteiras têm um papel ativo.
Eles trabalham a interação entre o ambiente e o sistema. Tendo limites
ativos, sistemas podem fechar-se e abrir-se, potencializando assim suas
chances de (sobre-)vivência. Eles representam, portanto, uma conquista
por excelência da evolução. Dentro de suas fronteiras, sistemas sociais
se apresentam como operacionalmente fechados, embora continuem
abertos no sentido termodinâmico (quer dizer que estão expostos a um
fluxo energético, representado pelas informações provindas do ambiente). Tal fechamento operacional lhes permite manterem-se e evoluírem
num ambiente que, em relação ao sistema, é algo desordenado, caótico.
A ligação do sistema social com o seu ambiente – o seu metabolismo
energético em forma de informação – se dá por um processo chamado
de “acoplamento estrutural”, que pode ser visto como a digitalização
de relações analógicas, executada, por exemplo, pelas funções da linguagem. O pressuposto do fechamento operacional do sistema social
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
165
aloca o indivíduo definitivamente no ambiente do sistema. O ponto de
diferença para a Sociologia de tradição filosófica humanista é que nesta
o ser humano foi visto como estando dentro e não fora da ordem social.
Ele foi chamado de indivíduo, porque era para a sociedade um elemento
indissolúvel. Era tido como zoon politikon e animal social. Quando se vê
o ser humano como parte do ambiente da sociedade, as premissas das
questões mudam. De repente, todas as mitologias sobre a formação de
coletivos humanos são ultrapassadas, ou, melhor dito, elas são relegadas
para o nível da autodescrição do sistema social (Stockinger, 2007).
Um sistema é chamado de complexo quando a quantidade de
partes e sub-sistemas, que o compõem ultrapassa um determinado limiar
a partir do qual não é mais possível de pôr todos os elementos em relação
uns com os outros. Sempre que o número de elementos a conectar-se
ultrapassa este limiar surgem necessidades de seleção, e se produz uma
seletividade de fato de tudo que é realizado. É realizada uma seleção
da totalidade de possibilidades de relacionamentos atuais de cada vez.
Sistemas são selecionados como pontos de vista e temas ordenados, a
partir das quais se pode acessar uma relação entre sistema e ambiente.
De modo a funcionalmente mostrarem-se bem-sucedidos, cabia
aos siste­mas então lidar com essa crescente complexidade, reduzindo-a
a níveis, que tornassem possível a própria reprodução do sistema. Os
meios dos sistemas proviam inúmeras possibilidades de esco­lha; para
se manterem enquanto sistemas, eles deviam selecionar alternativas,
equacionadas segundo códigos binários (sim/não) que, no curso de seu
processo de funcionamento, implicavam escolhas que reduziam aquela
complexidade (por exemplo, o sistema jurí­dico funciona de acordo com
um código simples: legal/ilegal).
Os sistemas sociais, como qualquer outro sistema vivo, são comunicativos, quer dizer que produzem e processam informações, que podem
ser vistas como matéria-prima básica. Informação é tida aqui no sentido
de novidade, e não simplesmente como qualquer mensagem transmitida
ou recebida. Uma mensagem, um símbolo, um código se transforma em
166
Enio Waldir da Silva
informação, quando produzem um efeito seletivo num sistema, quando
este pode escolher a partir de diferenças existentes. Um sistema social
é constituído por comunicações, isto é por interações que contêm informação. Comunicações conectam-se com comunicações. O sistema cessa
– deixa de existir – quando a comunicação acaba. Sistemas sociais são
auto-organizados (autopoiesis). A ação do sistema se dá a partir de um
“self”, construído no e pelo imaginário inconsciente de um ambiente
que lhe fornece os elementos (dados, informações, códigos, símbolos).
Sistemas sociais representam uma “conexão dotada de sentido de ações
que se referem umas às outras e que são delimitáveis no confronto com
um ambiente” (Stockinger, 2007).
Por outro lado, as estruturas mantinham vivas as possibilidades
des­cartadas, que poderiam ser utilizadas adiante. Além disso, a ideia de
meios de intercâmbio como formas de comunicação simbolicamente
generalizadas vinha cumprir enorme papel em sua teoria, mais uma vez
sob a influência de Parsons, com a radicalidade que o descarte dos atores
sociais como tema introduzia na nova formulação de Luhmann. Dinheiro,
poder, lei, amor, são meios de comunicação diversos que correspondem
a sistemas sociais diferenciados, cada qual tendo, pois, seu próprio mecanismo de coordenação (Domingues, 2001, p. 50).
Explicando melhor: a teoria dos sistemas de Luhmann, assim como
a de Habermas, tentava tirar a Sociologia de seu caráter mais pragmático
e dar-lhe uma posição mais genérica na interpretação da sociedade como
um todo. O sistema luhmanniano pretendia a construção de uma teoria
geral da sociedade que servisse de sustentáculo para a observação criteriosa do meio social em tempos de complexidade elevada.
Luhmann constata que a noção antiga de mundo, que estava
relacionada com algo localizável e coisificado, está se dissolvendo com
as possibilidades de comunicação mundial que não se reduzem com a
distância. Mundo é aqui concebido enquanto mundo de vida (como o faz
Habermas), e Luhmann encampa esta concepção. Enquanto sociedade
mundial, ele representa o macrossistema da mais alta complexidade, não
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
167
como uma coisa externa, mas presente no cotidiano, no mundo de vida
de cada um. Hoje em dia sociedade mundial está implicada em cada e
qualquer comunicação, independente da temática concreta e da distância entre os participantes... Sociedade mundial é o acontecer de mundo
na comunicação. Para assimilar esta visão, outras visões “mecanicistas”
têm de ser descartadas. O mundo deixa de ser um aggregatio corporum
ou universitas rerum, ou seja, a totalidade das coisas visíveis e invisíveis.
Ele também não é mais o infinito a ser preenchido, nem o espaço ou
tempo absolutos, enquanto entidade que contém tudo. O mundo não é
nada mais do que o horizonte geral da vivência com sentido, quer esta
se volte para dentro ou para fora, para frente ou para trás. O mundo não
está fechado por fronteiras mas sim pelo sentido que pode ser ativado
por ele. Enfim, o mundo passa a constituir uma correlação de operações. Adotando uma concepção não territorial do mundo, Luhmann
entra na questão das desigualdades regionais e do processo conhecido
como globalização por uma outra via. Ele reconhece que os efeitos de
sistemas funcionais diversos – nomeadamente os de tipo “tradicional”
versus os de tipo “moderno” estão, hoje em dia, presentes em qualquer
região global. Sobretudo os ambientes urbanos reproduzem mundos
de vida semelhantes, qualquer que seja sua localização territorial. As
diferenças existem, porque distintos sistemas funcionais “se reforçam
ou se debilitam mutuamente por causa de condições locais e regionais,
criando padrões diferentes”. Tais diferenças regionais – referindo-se ao
seu aspecto econômico – podem ser atribuídas sobretudo à flutuações
no mercado (financeiro) mundial. Sendo assim, a visão territorial deve
ser substituída por uma sociedade mundial funcionalmente diferenciada,
em qualquer lugar. A diferenciação funcional dos sistemas sociais está
tão enraizada dentro da sociedade, que mesmo o uso de meios políticos
e organizacionais dos mais fortes não consegue boicotá-la regionalmente
(Stockinger, 2007).
Não é possível duvidar que Luhmann seja bastante original em
sua construção teórica. Esta originalidade está em sua interdisciplinaridade e também em sua inovação em não buscar mais uma unidade para
168
Enio Waldir da Silva
o discurso sociológico, mas a diferença. Isto foge da tradição moderna,
mas jamais pode ser admitida como um discurso pós-moderno. Se tivermos um discurso de unidade e ele entrou em crise e se passou a falar
em subjetividade ou sujeito como base de todo o conhecimento e ação,
temos agora, com Luhmann, uma nova semântica, mais adequada a uma
abordagem do real e diante de novas configurações sociais.
Nesta perspectiva, as teorias sociológicas sempre cometiam um
paradoxo ao pensar que se os sujeitos da ação residem na realidade
última da sociedade, então a constituição desta teria de ser pensada,
avaliada, de forma normativa, em virtude da natureza e razão daqueles.
Este subjetivismo, diz Luhmann, converteu sujeito em sinônimo de ser
humano, indivíduo e pessoa.
Aceitar a ideia de sociedade de sujeitos, implica também aceitar
que estes são múltiplos e se cada sujeito concebe a si mesmo como sendo
condição de possibilidade da constituição de tudo que experimenta e
assim são os outros, então este sujeito não é real e isso significa que não
há intersubjetividades ou que pelo menos esta não pode ser conteúdo
do social (Luhmann, 1998b, p. 5-33) .
A própria teoria da ação estava enlaçada neste sentido subjetivista.
Se constatarmos que os indivíduos agem, é preciso perceber que isto
ocorre sempre em um contexto. Torna-se, portanto, difícil discernirmos
até que ponto esta ação deve ser atribuída ao indivíduo ou ao contexto.
Devemos entender o processo de atribuição mesmo, posto que as ações
não são dados últimos que aparecem como elemento empiricamente
inquestionável, impondo-se por si mesmo as análises sociológicas. Elas,
as ações, são somente artifícios atributivos produzidos pela sociedade.
Ao entendermos o conceito de diferenciação funcional, podemos
perceber que se trata de um processo incessante de produção de novas
estruturas capazes de definir as ações admitidas e excluídas. A comunicação e o concomitante processamento de informações se orientam em
diferenças, que possibilitam a formação de temas, valores e outros “ob-
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
169
jetos” sociais em torno destes. Sistemas sociais emergentes não partem
de uma identidade, mas de uma diferença. Em todas as experiências da
vida social encontra-se uma diferença primária: a diferença entre o que
atualmente ocorre e aquilo que a partir daí é possível acontecer. Esta
diferença básica, que é reproduzida forçosamente em todo tipo de vivência, atribui a cada experiência o valor de uma informação, capaz de ser
processada e comunicada. Isso possibilita a atribuição de valores inclusive
a acontecimentos casuais e construir ordem a partir destas. Desta forma,
sistemas reduzem a complexidade infinita do mundo mediante a seleção
daquilo que á atualmente relevante (Stockinger, 2007).
Quando as teorias sociológicas esquecem isto, acabam trabalhando com conceitos imprecisos, buscando modelos e sofisticando demais
as metodologias (como é o caso do “individualismo metodológico” e
a “teoria da escolha racional”). Isto não permite construir uma via de
acesso à realidade social e impossibilita à teoria sociológica enfrentar a
complexidade crescente da sociedade moderna (2007, p. 6-30).
A obra de Luhmann é complexa porque não se filia, integralmente,
a nenhuma tradição, como já mencionamos. Como teoria geral segue
de perto o modelo de Talcott Parsons, mas tem caráter mais teórico.
Fundamenta-se amplamente em relação ao parsionismo e pretende dar
uma resposta às análises marxistas e aos clássicos em geral, que lhes
parecia muito insuficiente para explicar a realidade de hoje.
A Sociologia necessitava, segundo Luhmann, fazer uma descrição
mais convincente das realidades e de forma interdisciplinar: teoria geral
dos sistemas, teoria da evolução, cibernética, Biologia, teoria da comunicação, teorias de observação, etc. Luhmann justifica que usa estas
ciências e seus conceitos por serem mais precisos e completos e “iria
aprovechar el nivel ya alcanzado en la investigación para la teoría general de
la sociedad” (Luhmann, 1992b).
170
Enio Waldir da Silva
Sua importância está efetivamente na pretensão de ter um alcance
universal com o uso de conceitos com grande precisão, embora nos pareça
que muitos deles resultem de um esforço de analogia entre máquina,
organismo e sociedade.
O próprio autor, porém, alerta que isto é esforço de alta abstração e não analogia que permite “formular con exactitud la distinción entre
sistemas biológicos y sociales” (idem, p. 143), pois se a Biologia trata de
questões momentaneamente estáveis como as células, as teorias sociológicas constituem-se sobre as bases de acontecimentos que, no mesmo
momento que emergem, logo em seguida desaparecem. Assim ela não
poderia descrever estes acontecimentos se não for a partir de dentro de
sua estrutura.
Parece-nos que Luhmann faz uma defesa estridente do objetivismo ao se contrapor ao subjetivismo. Percebemos, no entanto, que ele é
mais amplo. Se observarmos um certo funcionalismo em sua teoria certamente não se trata do funcionalismo clássico. Seu funcionalismo trata dos
desequilíbrios do sistema não como simples eventos disfuncionais, e sim
perturbações, irritações que têm de ser entendidas em razão da estabilidade estrutural. As respostas do sistema são dadas, antes de tudo, diante
da sensibilidade ambiental, a evolução e a estabilidade dinâmica.
A noção de ambiente não deve ser vista como uma categoria-resto.
Ambiente não é aquilo que sobra quando se subtrai o sistema. Pelo
contrário, a relação ambiente/sistema é constitutiva para a realidade, e
não apenas no sentido de o ambiente estar aí apenas para a manutenção
do sistema, seu abastecimento com energia e informação. Para a teoria
de sistemas autorreferenciais o ambiente é antes de mais nada uma
pressuposição da identidade do sistema, porque identidade é apenas
possível quando há diferença. O sistema não é mais importante do que o
ambiente, porque ambos são o que são apenas em relação ao outro. Desta
forma, a superestimação própria da noção de sujeito, nomeadamente a
tese da subjetividade da consciência, é revisada. A base do sistema social não é o sujeito, mas sim o ambiente. Ambos formam uma unidade
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
171
inseparável. Sua relação não é tanto de influência mútua, mas sim de
cooperação possível dentro de um mundo instável exposto a flutuações
casuísticas. A diferença entre sistema e seu ambiente é intermediada
exclusivamente por limites de sentido. Áreas de sentido – campos cognitivos e do imaginário – passam a constituir os principais “territórios”
na sociedade de informação. A territorialidade física perde seu valor e
suas propriedades. A distinção sistema/ambiente se origina na teoria
cibernética e da evolução. A teoria de sistemas cria mudança radical pelo
fato de não mais falar-se de objetos, mas sim de diferenças, de distinções, de diferenciações. Estas não podem ser tratadas como coisas, quer
dizer, como algo que já existe e que precisa apenas ser observado, ser
percebido, ser analisado. Distinções são objetos virtuais, elas devem ser
feitas, ser realizadas, senão não existem. Quando nenhuma diferença foi
realizada, nada mais havia a ser comunicado. O sistema não continuaria,
terminaria, entraria em colapso. A estabilidade e a duração do sistema
depende, permanentemente, de novas diferenças e distinções a serem
criadas (Stockinger, 2007).
Ou seja, há uma diferenciação entre o sistema e o entorno que
o funcionalismo clássico não tratava. Para isto Luhmann desenvolve os
conceitos de autorreferência e autopoiesis.
Autopoiesis: Autopoiesis ou auto-organização é uma qualidade
interna do sistema, intocável de fora. O termo denomina a unidade
que um elemento, um processo, um sistema é para si próprio, isto é,
independentemente da interpretação ou observação por outros. Por
meio de auto-organização o sistema constitui seus próprios elementos
como unidades funcionais. A relação entre os elementos refere-se a
sua autoconstituição, a qual é reproduzida, assim, permanentemente.
Uma consequência importante que resulta forçosamente de uma constituição auto-organizada de um sistema é a impossibilidade de controle
unilateral. Nenhuma parte do sistema pode controlar outros, sem estar
sujeito ao controle das outras partes. Uma estrutura de poder assimétrica,
autoritária, requer, portanto, procedimentos especiais que reprimam a
172
Enio Waldir da Silva
autoconstituição do sistema. Autopoiesis inclui autorreferência – a capacidade de se relacionar consigo próprio, de refletir-se. Ela permite uma
enorme amplificação dos limites de capacidade de adaptação estrutural
e da abrangência da comunicação interna. Na base da autopoiesis de sistemas sociais Luhmann encontra um processo autocatalítico, construído
a partir de uma situação de dupla contingência. O sistema social não
surge, portanto, de uma concordância de opinião ou de ação, nem de uma
coordenação de interesses e intenções de diversos atores. Sem solução
do problema da dupla contingência nenhuma ação emerge, porque falta
a possibilidade de sua determinação.
Um exemplo de uma situação de dupla contingência com qualidades autocatalíticas, tirada do cotidiano, é dada pelo encontro de duas
pessoas estranhas uma a outra, num elevador. Quem já presenciou, certamente já experimentou esta sensação de referência vazia. Mostra-se
num tipo de tensão que verdadeiramente clama para ser aliviada, por
meio de uma comunicação qualquer. Uma vez iniciada, ela pode ter
continuidade, constituindo até uma relação mais ou menos duradoura.
Sob condições de dupla contingência de sistemas autorreferenciais cada
acaso pode se tornar um impulso produtivo para a gênese de um sistema social. O sistema social baseia-se, portanto, em instabilidades, em
flutuações permanentes às quais ele tem de resistir. A situação de dupla
contingência possui, assim, as qualidades de um fator autocatalítico, o
qual cria, sem ser “consumido”, estruturas num novo patamar de ordem.
Em consequência diferencia-se de um sistema social, destacando se do
seu pano de fundo psicobiológico. Ele forma seus próprios elementos
e limites e se abre para o acaso. O surgimento de um ambiente casual
(ruído) é primordial. Dupla contingência não combina com a pressuposição de uma natureza) e também não de um a priori. Ela libera níveis
de ordem emergente, tornando-as autônomas em relação à especulações
sobre noções como matéria ou espírito. No lugar de tais concepções de
última segurança aparece a imaginação de um problema que se torna
produtivo sempre que a complexidade de realidade dada fosse suficientemente complexa.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
173
A autorreferência do sistema só pode se realizar quando este, em
suas operações, é capaz de identificar sua “mesmicidade”, uma identidade, uma referência a si, uma reflexividade, e de diferenciar isto de
qualquer outra realidade nelas causalmente imbricada, implicada. Os
sistemas autorreferenciais têm de manejar sempre a diferença e identidade para poder se reproduzir.
Esta compreensão relativamente biologista do sistema torna muito
mais complexo pensarmos em termos de sistema social e as possíveis conduções de processos históricos, questões ausentes na teoria de Luhmann a
não ser como querer abstrato de observadores (voltaremos a este assunto
mais adiante). Luhmann mostra-nos que os sistemas autorreferenciais
têm a capacidade de controlar a sua produção e a distintividade de seus
elementos, pois estes lhes dão unidade e razão de o sistema ser indecomponível (indescomponible).
O autor mostra isto recorrendo a conceitos da cibernética e da
Neurofisiologia como de “auto-organização” quando a ordem emerge
espontaneamente para retroalimentar o sistema, e “autopoiesis” quando
o sistema gera uma rede de produção e de transformação que as produziu.
Isto é, o sistema produz a si mesmo, pois constitui os elementos como
modo de unidades funcionais.
Não é possível afirmar que os sistemas são autorreferenciais,
autopoiéticos, sem mencionar o seu “entorno”. Todo o sistema é dependente de seu entorno e a ele está acoplado. O sistema necessita estar no
entremeio das operações constantes do entorno que o provoca, instiga-o
e o estimula. Esta “irritação” não é obstáculo, mas obriga o sistema a
responder que só faz quando a tolerância se esgota ou é uma efetiva
ameaça quando provoca uma mudança sistêmica que é determinada pela
própria estrutura do sistema, como um autocontato operativo e cognitivo
(Neves, 1997, p. 10, 13).
174
Enio Waldir da Silva
Neste sentido, parece-nos que há entre sistema e entorno uma
dependência e uma independência, na medida em que existe sempre
uma provocação do entorno que faz o sistema responder e, por outro
lado, não são todas as perturbações que são respondidas. Nesse aparente
paradoxo de circularidade fica em aberto a questão: O que faz com que
o entorno irrite o sistema? E a questão proposta por Habermas: Se o
sistema terá sempre condições de responder ou se em algum momento
ele não estará “saturado”, pois ao descomplexificar o entorno o sistema
se complexifica (Neves, 1997).
Se o sistema seleciona aspectos do entorno que são relevantes para
a constituição de seus próprios elementos, então o sistema é fechado em
sua estrutura e operação que tende a ser aberto, pois necessita responder
as suas ameaças. O sistema seria, então, autopoiético, autorreferente e
fechado.
A sociedade é um sistema complexo composto de muitos subsistemas que se diferenciam entre si interna e externamente. A sociedade
moderna tem muitas diferencialidades funcionais com conexões entre
si, difíceis de serem abordadas a não ser por uma teoria complexa.
A sociedade como sistema social autopoiético é interpretado
como comunicação. A comunicação são as operações sociais compulsórias constituíveis somente por meio de uma rearticulação recursiva com
outras comunicações, ou seja, elas não ocorrem isoladamente (1997, p.
76). A comunicação é um fato emergente que se realiza pela seleção de
informações, expressão de informações e pela compreensão ou incompreensão das expressões e de sua informação.
Comunicação só pode ser produzida por meio da comunicação. A
sociedade é aquilo que ela comunica. A comunicação é componente da
sociedade que delimita o sistema em relação ao seu entorno, ao mesmo
tempo em que o opera e o irrita.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
175
Comunicação, para Luhmann, não significa apenas uma síntese
de três aspectos: a informação, a mensagem e a compreensão, em que
ela não é somente “um fato emergente que se realiza pela seleção de
informações, expressão de informações e pela compreensão ou incompreensão das expressões e de sua informação”. Luhmann define
comunicação como a síntese de três seleções: mensagem, informação
e compreensão da diferença entre mensagem e informação. Luhmann
vê uma mensagem como nada mais do que uma “sugestão“ ou uma
“incitação“ – um impulso.
Apenas quando tal sugestão for aceita, quando ela produzir uma
excitação, a comunicação se torna existente. O ato de comunicar torna-se
um ato seletivo. Trata-se de um processo triplo e não apenas duplo. Não
bastam um “transmissor” e um “receptor”. A seletividade da informação
– como interveniente genuíno – é ela própria um momento importante
do processo comunicativo. Comunicação, para Luhmann, portanto, é um
processo de construção de significados; ela é conhecimento.
Quando Luhmann acentua a relação entre comunicação e sistema,
ele mostra que para os sistemas sociais a comunicação se constitui em
fator prioritário de afirmação de sua individualidade. Não são somente
indivíduos, no entanto, que se constituem em sujeitos da comunicação,
mas os próprios sistemas sociais. A sociedade emerge como um universo
de todas as comunicações.
A comunicação destina-se a produzir a eficácia simbólica generalizante que torna possível a regularização da vida social sob a forma
de uma organização sistêmica e, ao mesmo tempo, cria as condições de
estabilidade favoráveis a este tipo de organização social e ao seu desenvolvimento (Neves, 1997, p. 9-33).
A comunicação é intrinsecamente seletiva e tem também função
de ordenamento. O social é composto de comunicações e não de pessoas.
A comunicação é o entorno do sistema que o obriga a dar respostas.
176
Enio Waldir da Silva
O conceito de comunicação reconstruído por Luhmann é fundamental para entendermos esta nova teoria dos sistemas. Nova porque
foge da tradição europeia de compreender a sociedade como uma espécie
de sistema soberano, que tem capacidade ilimitada de modelar seu meio
ambiente. Para Luhmann, o meio ambiente não é só um municiador,
“mas também contém” capacidade importante para definir os limites
do próprio sistema. A razão sistêmica não é hegemônica, mas sim defensiva que acolhe e neutraliza as ameaças que proveem do meio, mas
nunca o dominam. É por isso, também, que o sistema não é normativo
e não tem caráter de ideal-tipo. É contingente e opera como rede pluridimensional.
Em termos mais amplos, Luhmann deixa de considerar o homem como parte fundamental do organismo social e o trata como meio
ambiente do sistema; é fonte geradora de problemas para o sistema,
complexificador. Luhmann provocou a Sociologia com estas afirmações,
tentando separar indivíduo de sociedade. Ao pretender “levar o indivíduo
a sério” o autor quer mostrar a improbabilidade de os indivíduos se comunicarem com a sociedade porque, para ele, a comunicação é sempre
uma operação interna do sistema.
Luhmann dá à comunicação uma imagem destituída de referência ontológica e antropomórfica. Ao acentuar a relação sistema social e
comunicação, ele a vê como um dispositivo fundamental do dinamismo
evolutivo do sistema e como elemento simbolizante funcional que
agrega coletividades. Com sua eficácia simbólica é também um sistema
autorreferente e autônomo, que independe dos indivíduos, que torna
possível regulações da vida social e cria condições para estabilidade.
Tem caráter de seletividade. A comunicação é como um dispositivo cibernético destinado a normalizar as relações sistema-meio, mesmo que
isto signifique consenso ou dissenso.
A comunicação é a alternativa de linguagem que vem substituir
o seu antigo papel nas sociedades convencionais. Quando operam, no
entanto, são mais que linguagens, e sim mecanismos de regulação dos
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
177
processos sociais que pretendem dispensar a linguagem ou, pelo menos,
de problemas que a linguagem não é capaz de tratar. Isto é, a linguagem
não é vista como único meio de resolver problemas de compreensão. A
comunicação é autônoma em meio a um emaranhado de diversidade de
sentidos, inclusive a dos “códigos e semânticas” (Neves, 1997, p. 98).
Sem entrar na discussão ontológica do que é um sistema, Luhmann
parte do seu conceito que denomina uma “capacidade”, a de “produzir
relações”. Esta aptidão pode ser atribuída tanto a processos naturais
como sociais.
Ao definir sociedade como comunicação e, sendo a sociedade um
sistema social – sistema social mais abrangente –, que envolve a totalidade de todos os contatos possíveis – das comunicações – e partindo do
princípio de que a comunicação é um processo seletivo – quando baseado em sentido –, que estabelece os limites e o horizonte dos sistemas
sociais e possui função de ordenamento, que regulariza e constrói as
condições de estabilidade – de forma contingente –, das condições da
vida social, Luhmann elabora a teoria de sistemas sociais, que pode vir
a ser apreendida como parte de uma teoria sistêmica com características
gerais, ao mesmo tempo em que possibilita a descoberta de distinções
que só o social é capaz de criar: comunicações.
A partir desta perspectiva, Luhmann cria o método sistêmico, que
permite a elaboração de análise, pesquisa e intervenção na construção
da realidade social.
Como os sistemas sociais também produzem sua própria constituição, eles se compõem de comunicações. A comunicação seleciona, sintetiza
informações, comunicações, compreensões e, neste processo, ela produz
tanto o consenso como o dissenso. Não são os indivíduos que se ligam
uns aos outros, mas comunicações a comunicações. É assim que se forma
o sistema social. Os indivíduos são meios da sociedade e não parte dela,
estão fora do sistema social e fazem parte dos sistemas psíquicos:
178
Enio Waldir da Silva
[...] A sociedade não pode sair de si mesma com as próprias operações
e abranger os indivíduos... o mesmo vale, em sentido inverso, para
a vida e a consciência dos indivíduos... nenhum pensamento pode
abandonar a consciência que ele reproduz... pois o que aconteceria e
como eu poderia desenvolver individualidade, se os outros pudessem,
com seus pensamentos, movimentar meus pensamentos e como se
deveria poder imaginar a sociedade como uma hipnose de todos por
todos?... ninguém é “eu”. Tampouco a palavra maçã é maçã (Neves;
Samios, 1997, p.86).
O sistema mantém-se em funcionamento sem que se tenha uma
prioridade de fatores essenciais externos para isso. Opera dentro de um
limite e quando age se diferencia de seu entorno e cada um deles possui
um grau de complexidade. O sistema possui uma identidade em si, tem
uma circularidade em operação, fechada, mas com intencionalidade de se
abrir para acoplar, adaptar-se, posto que, como sistemas, são autopoiéticos,
mas uns se alimentam dos outros (ou pressupõe os outros). Por sua coerência estrutural o outro é sempre um entorno. Os sistemas são dinâmicos
e estão baseados em instabilidades, porque o entorno é sempre mutante.
Entre o sistema e o sistema-mundo há múltiplas possibilidades.
Nessa linha, é impossível a um indivíduo conhecer positivamente
toda a sociedade. O sociólogo faz um esforço elevado de abstração e o
faz como um observador de segunda (ou mais) ordem e, às vezes, ele
não percebe o próprio sistema de observação que utiliza, pois o próprio
homem é um sistema que possui milhões de cromossomos e inúmeros
subsistemas. Como exemplo Luhmann nos mostra que é possível conhecer o cérebro independente das ideias, pois ele “é um sistema real
que existe em condições ambientais complexas e intranquilas”.
Este ambiente em que vive o cérebro é amplo e não podemos
manter um contato com ele de maneira operacional. Isto quer dizer que
só poderemos conhecer uma coisa quando pudermos diferenciá-la de
outra, por isso o autor vai dizer que se um sistema é autopoiético ele
precisa ter fronteiras e se tem fronteiras ele é fechado e não aberto como
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
179
vinham afirmando na Cibernética e na Biologia, pois é impossível que
uma coisa seja totalmente aberta se lhe é impossível ser fechada: “ser
aberto fundamenta-se em ser fechado” (Neves, 1997, p. 23).
Com Luhmann percebemos que é impossível teorizar sobre a
subjetividade como conteúdo do social. Cada sujeito é em si contingente,
como condição de possibilidade entre outras possibilidades do mundo
real. Suas ações são artifícios atribuitivos produzidos pela sociedade.
Expressam-se como se fossem subjetividade, mas que não podem ser
objetivadas como dados.
Assim, seria mais fácil estudar os mecanismos institucionais que
resolvem problemas imediatos da vida particular e coletiva do homem.
São as instituições legítimas da sociedade que cimentam tensões entre
um e outro. Estes subsistemas são vistos por Luhmann como meros
mecanismos funcionais auxiliadores do sistema social geral na solução de
irritações. Por isso eles têm caráter positivo e precisam de mais autonomia
para atingirem mais capacidade seletiva
... esta forma de legitimidade responde às características dos sistemas
das sociedades desenvolvidas. Ali eles têm caráter autopoiético como
mecanismo reflexivo do próprio sistema que lhes permite desdobramento auto-reflexivo, de forma a poder satisfazer as necessidades
de plasticidade e estabilidade das suas estruturas num contexto
altamente complexo (Neves, 1997, p. 17).
A constante evolução da complexidade do meio ambiente é
problemática para o sistema, pois implica que ele tenha de aumentar as
possibilidades de seleção, embora não um equivalente entre resposta
do sistema e descomplexificação (ou parada da evolução). O esforço do
sistema em reduzir a complexidade pode levá-lo a uma entropia e a uma
ameaça de morte. Esta eventualidade de catástrofe deve-se ter presente
em nossos esforços de observação para descrição do funcionamento da
sociedade.
180
Enio Waldir da Silva
Considerando a sociedade como o resultado de um processo de
evolução, de emergência do social a partir de acasos, de contingências
e de recombinações, Luhmann busca adequar a sua construção teórica
aos tempos atuais, em que a questão da mudança e da renovação da
sociedade se colocou no centro das atenções, relegando o tema “ordem
social” ao segundo plano. Ele constata que teorias da evolução tratam de
problemas genéticos, que não seguem uma lógica determinística, mas
que lidam com a “probabilidade do improvável”. Evolução significa, por
assim dizer, uma espera por acasos aproveitáveis. Isso pressupõe a existência de sistemas que se reproduzem, que se mantêm e que, portanto,
são capazes de esperar. Evolução não pode ser vista, portanto, como um
processo contínuo, linear, que segue leis predeterminadas. A Sociologia
tradicional sempre buscava a racionalidade nas projeções e ações sociais.
Ela foi tomada como um ponto de referência, quase como uma crença
numa harmonia social, em que o racional pudesse prevalecer apesar da
crescente complexidade da sociedade. Tais pressupostos, entretanto,
como o da “mão invisível” guiando a economia do mercado, são deixados de lado pela teoria de sistemas complexos. A sociedade se guia,
se for o caso, por meio de flutuações, que obrigam sistemas funcionais
ou territoriais à auto-organização pelo processamento de informações
dissipativas.
Parece-nos que para Luhmann tudo é possível e impossível ao
mesmo tempo. Só se refere às possibilidades de catástrofes e não refere-se
às possibilidades de liberdade, à autonomia humana. Se no sistema de
Luhmann, no entanto, a liberdade não é tratada diretamente, assim
também não o é o totalitarismo. Este é, porém, mais possível de notar
quando ele trata da relação do homem e sociedade, pois se nenhum
sistema pode incorporar por inteiro a identidade do homem, logo não
há o perigo do totalitarismo. Ou seja, não dá para dizer que a teoria é
catastrofista ou otimista.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
181
Com Luhmann vemos o anúncio da morte de qualquer teleologia;
morte de toda a intencionalidade e finalidades. Estas ficam somente na
intenção no observador; ele promove uma mudança radical em relação
ao pensamento que afirma que a estrutura determina a função (mas sim
da função que determina a estrutura) e a impossibilidade de separar
sujeito e objeto.
Com Luhmann não podemos mais falarde uma epistemologia
transcendental. São fragmentos nominalistas e idealistas que misturam
visibilidades diversas e uma diversidade de enfoques, como uma epistemologia natural.
É muito discutível em Luhmann o modo como ele dá por encerrado um determinado tempo histórico, a arbitrariedade com que postula
uma nova realidade absolutamente diferente que se abre à evolução
social. De certa forma, é uma idealização do processo de secularização
em que elimina os conflitos da racionalidade, neutraliza o problema da
reprodução social e dá à política uma visão improdutiva, neutralizante
e de hipertrofia.
Como observa Pissarra (1992):
O paradigma de Luhmann nos propõe ajuda na compreensão de
diferentes aspectos da realidade social e política contemporânea
(que outros paradigmas ignoram), mas dele não devemos esperar
mais do que pode nos dar. Do seu programa não constam as respostas
aos problemas da dinâmica social, das tendências inovadoras e da
mudança estrutural (p. 28).
Será que poderíamos afirmar, a partir de Luhmann, que o ser
humano é um sistema autopoiético que necessita se alimentar de um
meio ambiente que contenha liberdade, igualdade que o capitalismo
não tem? Poderíamos interpretar que a lógica capitalista “irrita” as vidas
humanas e que as respostas que vão dar é a eliminação daquele, como
182
Enio Waldir da Silva
forma da “aclopamento”? Ou que o sistema capitalista é capaz, por sua
seletividade, de incorporar em sua estrutura as necessidades humanas
e manter um equilíbrio eficaz?
Apesar destas preocupações mais teleológicas, cremos que uma
teoria é sempre viva, como a terra; podemos tirar dela aquilo que formos
capazes. Por exemplo, a grande contribuição desta teoria para entender
o Direito. Mediante a função desenvolvida em cada subsistema, pode-se
diferenciá-lo dos demais, uma vez que a sociedade moderna pode ser
descrita como um grande sistema social estruturado sobre a base de uma
diferenciação social. Essa delimitação dos subsistemas sociais permite
a verificação dos seus elementos específicos, possibilitando o estudo do
Direito, sem interferências de elementos estranhos as suas relações.
O sistema sociojurídico, segundo a teoria de Luhmann, é constituído por comunicação, pois é esta que torna a operação apropriada para
produzir e reproduzir o sistema jurídico. Para a teoria sistêmica, o que
deve ser privilegiado em uma sociedade são as comunicações entre os
sistemas e seus elementos. O que gera o sistema social são as comunicações. A comunicação humana é a aprimoração das expectativas em um
ambiente social.
Nesse sentido, o Direito é apresentado como o padrão de observância das expectativas de um meio social, mas o indivíduo não fica
atrelado aos ditames das expectativas sociais quando busca suprir as suas
necessidades. Luhmann entende que o meio social propicia uma gama de
possibilidades de escolha para o indivíduo. Nesse sentido, ocorre o risco
de que a escolha realizada pelo indivíduo não seja a mais adequada.
A forma adotada pelo sistema social para reduzir essa infindável
quantidade de possibilidades é o emprego de sínteses comportamentais, ou seja, essas sínteses almejam reduzir a complexidade do meio
permitindo ao indivíduo seguir uma generalização de expectativas que
simplifica o convívio social e dá sentido ao sistema social.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
183
A teoria sistêmica de Luhmann apresenta-se como um postulado
científico inovador e mais adequado ao ambiente social, tomado por
incertezas e eivado de caos. Segundo Luhmann, um sistema é chamado de complexo quando a quantidade de partes e subsistemas que o
compõem ultrapassa um determinado limiar a partir do qual não é mais
possível pôr todos os elementos em relação uns com os outros. Sempre
que o número de elementos a se conectar ultrapassa este limiar surgem
necessidades de seleção e se produz uma seletividade de tudo o que é
realizado. É realizada uma seleção da totalidade de possibilidades de
relacionamentos atuais de cada vez.
Sistemas são selecionados como pontos de vista e temas ordenados, a partir dos quais se pode acessar uma relação entre sistema e
ambiente. Sistemas sociais se formam autoestimulavelmente para reduzir
a complexidade do mundo; o mundo que representa a unidade entre
sistema e meio e que contém todos os sistemas e todos os meios. A tarefa
principal dos sistemas sociais é a de reduzir a complexidade do mundo
de tal maneira que ela possa ser entendida pelas pessoas ou sistemas
psíquicos – na linguagem da teoria dos sistemas.
Complexidade é assim definida: um conjunto de elementos que
devido a restrições imanentes à capacidade de enlace, torna impossível
combinar cada elemento ao mesmo tempo com cada elemento. Ou,
em outras palavras, complexidade é o conjunto dos possíveis estados
e acontecimentos de um sistema. Assim, a complexidade do mundo é
sempre maior do que a complexidade de um sistema, que, por outro
lado, precisa de um grau de complexidade que lhe permita a redução
da complexidade no seu meio.
A complexidade é apresentada por meio das inúmeras interpretações ou representações do mundo e sua “redução” ocorreria quando
uma das possíveis alternativas se concretizasse. Para os sistemas sociais
a redução da complexidade do mundo traduz-se no problema de como
enfrentar a dupla contingência.
184
Enio Waldir da Silva
O Direito pode e deve ser compreendido como um sistema
autopoiético, autorreferencial, e tem em si mesmo a capacidade de
determinar a sua própria evolução a partir da interação dos elementos
que o formam, que são produzidos e maturados por essa interação circular e recursiva que lhe dá existência. Para que isso possa acontecer é
necessário que o Direito, enquanto sistema, venha a ser compreendido
como um sistema fechado, pois somente assim será possível ao próprio
Direito definir-se, escolhendo a sua programação, seleção e evolução
(Sousa Santos, 2005).
Autopoiesis ou auto-organização é uma qualidade interna do sistema, intocável de fora. O termo denomina a unidade que um elemento,
um processo, um sistema é para si próprio, isto é, independentemente
da interpretação ou observação de outros. Autopoiesis significa que um
sistema complexo reproduz os seus elementos e suas estruturas dentro
de um processo operacionalmente fechado, com a ajuda dos seus próprios elementos.
Mediante a auto-organização o sistema constitui seus próprios elementos como unidades funcionais. A relação entre os elementos refere-se
a sua autoconstituição, a qual é reproduzida, assim, permanentemente.
Autopoiesis inclui autorreferência – a capacidade de se relacionar consigo
próprio, de se refletir. Ela permite uma enorme amplificação dos limites
de capacidade de adaptação estrutural e da abrangência da comunicação
interna.
Uma consequência importante que resulta forçosamente de uma
constituição auto-organizada de um sistema é a impossibilidade de
controle unilateral. Nenhuma parte do sistema pode controlar outros,
sem estar sujeito ao controle das outras partes. Uma estrutura de poder
assimétrica, autoritária, requer, portanto, procedimentos especiais que
reprimam a autoconstituição do sistema.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
185
O problema desencadeante de gênese e manutenção da ordem
social é designado em Luhmann com dois conceitos estreitamente
relacionados: complexidade e dupla contingência.Por complexidade
entende-se o conjunto de todos os eventos possíveis. Designa-se assim,
portanto, o campo ilimitado dos “mundos possíveis”. “Contingente”
é aquilo que não é nem necessário nem impossível, senão meramente
possível. No momento em que dois indivíduos entram em contato nesse
marco, cada um receberá essas contingências, tanto referida a si mesmo
como ao outro (Arnaud; Lopes Jr., 2004, p. 301).
O caráter fundador do social que possui esse valor comunicativo
de atuação reside em seu valor de conexão para a atuação da outra parte,
e assim sucessivamente. É por meio dele que pode ser gerado o componente central de toda estrutura social: expectativas compartilhadas
(Correa, 2003).
Como afirma Luhmann, portanto, a comunicação “é induzida pela
experiência da dupla contingência” e “conduz à formação de estruturas
que se conservam sob tais condições”. A operabilidade dos sistemas sociais, seu enlace com uma realidade externa aos mesmos, nasce, assim,
da “fatalidade do acaso”, da “transformação de dados originados no acaso
em probabilidades estruturais” (Neves; Samios, 1997, p. 88).
O sistema social aparece desde o momento em que um evento
articula os indivíduos por meio de seu sentido partilhado, e tem com ele
o caráter de comunicação. Luhmann observa que, enquanto sistema, a
sociedade é composta por comunicações, tão somente de comunicações
e de todas as comunicações. Com efeito, apenas mediante comunicação
pode se estabelecer comunicação; não é possível comunicar sem participar no sistema comunicativo. Isto implica que a sociedade, enquanto
composta de comunicações, se articula como sistema fechado (Arnaud;
Lopes Jr., 2004, p. 304).
186
Enio Waldir da Silva
É o sistema social global, ou sociedade, o primeiro passo nesse
processo de redução da complexidade, que torna possível a inter-relação
social. Parte-se do fato de que “surgem sistemas sociais na medida em
que pessoas entram em inter-relação”. A sociedade não pode crescer
enquanto a complexidade que ainda admite dentro de si não for reduzida,
enquanto não for canalizada novamente. Quando o processo funciona
sem qualquer crivo específico, toda complexidade se converte em informação e deixa, por isso mesmo, de servir como informação: não pode
ser processada (Schäfer, 2005).
A solução dos problemas sociais consiste na geração, a partir do
sistema social global, ou sociedade, de novos sistemas sociais, que são
subsistemas seus, sem deixar de ser sistemas autênticos e autônomos.
Mais precisamente, o fator fundamental na constituição de um (sub)
sistema social reside na sua função, e esta não é outra que a de demarcar
um âmbito determinado da complexidade operante na sociedade, com
vistas a sua redução. Segundo Luhmann (1998b), a demarcação de um
sistema ante seu meio significa “que surgem limites, dentro dos quais
os processos seletivos transcorrem de modo diverso de como ocorrem
no meio do sistema”.
Em suma, os sistemas se compõem de comunicações; todavia se
delimita o pertencimento destas aos sistemas mediante o sentido. As
relações entre os elementos do sistema aparecem estruturadas, e somente essa ordem estrutural interna permitirá a subsistência do sistema.
A estrutura não é o fator originário do sistema, senão a consequência
necessária do caráter limitado de seus elementos e dos enlaces possíveis
entre eles.
É condição de sua operabilidade, não origem de sua constituição.
As estruturas de cada sistema, portanto, têm a ver com o modelo de tornar
possível que uma comunicação se siga de outras com respeito a uma certa
ordem ou a um esquema simples. Sua função estabilizadora implica que
as expectativas estruturadas dos sistemas sociais não possam ser de caráter
meramente pontual ou individual (Arnaud; Lopes Jr, 2004).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
187
Podemos sintetizar assim as ideias de Luhmann sobre o Direito
e a autopoiese:
1 – O Direito é um sistema (ou subsistema) que se auto-organiza, se
autoproduz e que tem sua autorreferência. Embora saibamos de sua
existência material, é impossível conhecê-lo em seus limites, uma
vez que se trata de um contexto, um ambiente amplo e impossível
de ser compreendido objetiva e totalmente.
2 – Por outro lado, somente poderemos conhecer uma coisa quando pudermos diferenciá-la de outra. Se um sistema é autopoiético, precisa ter
fronteiras e, se tem fronteiras, é fechado e não aberto. É impossível,
no entanto, um sistema ser totalmente fechado e, ao mesmo tempo,
é impossível que seja aberto se lhe é impossível ser fechado: “ser
aberto fundamenta-se em ser fechado” (Luhmann, 1998a, p. 63).
3 – O Direito seria um subsistema que se movimenta constantemente
para existir em um ambiente muito diverso e, para existir, como tal,
precisa fechar-se (“fechamento operacional”) e se diferencia de outras
instâncias sociais. Ao mesmo tempo, para existir, o Direito necessita
do ambiente e busca, nele, elementos necessários à existência (acoplamento estrutural).
4 – As instituições jurídicas, que se acham guardadoras do Direito, produzem-se e se reproduzem pela rede de operações que existe em si (e
por elas criadas) e não operando no ambiente (setores sociais), assim
como não é o ambiente que reproduz o sistema. Quando o Direto não
sabe seus limites, corre o risco de operar fora de si, contra si.
5 – Não é porque a sociedade vai se tornando mais complexa que o Direito deve subsumir-se nela. Ele precisa resistir e necessariamente
evoluir junto com o sistema social. Nesse sentido, há, entre o sistema
e seu entorno, uma dependência e uma independência à medida
que existe, sempre, uma provocação do entorno que faz o sistema
responder e, por outro lado, não são todas as perturbações que devem
ser respondidas.
188
Enio Waldir da Silva
6 – Da mesma forma, não podemos definir o Direito pelos atores particulares que nele atuam diretamente, pois é impossível teorizar sobre
a subjetividade como conteúdo do social. Cada sujeito é, em si, contingente, como condição de possibilidade entre outras possibilidades
do mundo real. Suas ações são artifícios atributivos produzidos pela
sociedade. Não podemos, portanto, entender o Direito somente
pelo discurso que seus atores fazem dele. A variedade dos discursos
expressa a estrutura do sistema a que estão submetidos e cumprindo
suas funções. Visualizar os mecanismos estruturados pode nos dar
um melhor entendimento do sistema.
7 – O Direito instituído, ao mesmo tempo em que não pode responder a
todas as demandas (porque seria sua morte como sistema, fim de sua
identidade), também não deve isolar-se delas (o que também levaria à
exaustão e morte do sistema). Para evitar esta crise, o Direito deveria
criar muitas formas de se comunicar com o mundo que o alimenta,
mas estas comunicações só poderiam ser consideradas dentro da dinâmica operativa do Direito enquanto tal, ou seja, só pode determinar
o que é comunicação o próprio Direito e não as irritações que vêm do
meio ambiente e que atingem alguns indivíduos internos.
8 – O Direito, estando alerta e presente no entremeio das operações
constantes do entorno que o provoca, instiga e estimula, conseguirá
perceber que essas “irritações” não são obstáculos, mas próprio da
sua natureza que obriga o sistema a responder, só o fazendo quando
sua tolerância esgota-se. Isso pode se tornar uma efetiva ameaça
quando a resposta provocar uma mudança sistêmica, determinada
pela própria estrutura do sistema, como um autocontato operativo
e cognitivo.
9 – Esta relação entre Direito e ambiente é feita pela comunicação, a
qual é um fato emergente que se realiza pela seleção de informações,
expressão e compreensão (ou incompreensão). A comunicação está
no entorno do sistema que o obriga a dar resposta e não é apenas
um municiador, “mas também contém” a importante capacidade de
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
189
definir os limites do próprio sistema. A razão sistêmica não é hegemônica e sim defensiva. Acolhe e neutraliza as ameaças que provêm
do meio, mas nunca o domina. Por isso, o sistema é contingente e
opera como rede pluridimensional.
Campilongo (2000) tenta aplicar a teoria sistêmica para interpretar
o Brasil recente. Ele faz uma análise do período pós-Constituição de 1988,
para mostrar que tanto a promulgação quanto a regulamentação do texto
constitucional foram marcadas por dificuldades de ordem social, política,
cultural, institucional e representacional resultantes de uma trajetória
histórica sem democracia efetiva. As constantes mostras de falta de
representatividade do sistema político se refletem na incapacidade dos
partidos de agregar interesses e galvanizar os anseios da população numa
sociedade complexa e heterogênea. De outra parte, comprometendo seriamente o equilíbrio político, encontramos a distorcida proporcionalidade no Parlamento, no qual há super-representação de Estados-membros
com menor desenvolvimento econômico e de menor população.
No sistema econômico, a crise envolve problemas de eficiência,
dada a incapacidade do setor público de instituir políticas públicas que
efetivamente atinjam a maioria da população, combinada com as dificuldades advindas de fatores como dívida externa, desemprego e estagnação
que inibe a produção e o consumo.
Paralelamente, o sistema social enfrenta um processo de desintegração acentuado, com visível crise de identidade das populações que
migraram do campo para a cidade. A industrialização, abarcando as populações rurais, provoca o rompimento de vínculos culturais e enfraquece
os mecanismos informais de controle social. Somemos a isto o crescente
empobrecimento da sociedade, a proletarização da classe média e os
alarmantes indicadores da criminalidade e da violência.
Chega-se, pois, a uma inequívoca crise de hegemonia, que se caracteriza pela ausência de projetos capazes de gerar o mínimo de consenso
e suporte, seja entre as elites, seja entre a população. Tudo isto leva
190
Enio Waldir da Silva
ao rompimento da noção de sociedade unificada e do próprio Estado
unificado, com a existência de governos que não encontram suporte na
sociedade.
Embora a história brasileira esteja sempre marcada por crises
diversas, o que parece caracterizar o momento atual é que as crises ocorrem de modo concomitante. Se em outros tempos a crise de um sistema
era calibrada pela energia e vitalidade de outros, hoje o que se verifica
é uma grande e disseminada crise da matriz jurídico-organizacional do
Estado.
Diante desse quadro, podemos delinear um problema políticoconstitucional, isto é, um conjunto de instituições sem capacidade de
regulação nem de repressão. E a ordem jurídica encontra-se num impasse,
situação que Campilongo denomina de “xadrez empatado”. O “xadrez
empatado” é uma expressão utilizada para definir o impasse institucional
da sociedade e da política brasileiras. Assim, deparamo-nos com bloqueios
decisórios constantes na esfera política, que emperram a concretização
de projetos sociais mais amplos.
A Constituição tem eficácia6 contida, visto que parcialmente
regulamentada; os direitos sociais são suspensos por falta de recursos
para sua efetivação, e o próprio Estado não respeita a legalidade por ele
instituída.
A ordem constitucional, igualitária em termos formais, não consegue reverter a iniquidade social e não cria condições para a inclusão de
amplos setores populacionais. Os quadros da cidadania regulada são insignificantes se considerado o conjunto da população brasileira. A existência
A não regulamentação constitucional é outro aspecto importante. A Constituição de 1988
já completa 12 anos, e muitos de seus dispositivos ainda não foram regulamentados, além
de o texto constitucional sofrer constantes emendas e revisões. O texto foi escrito no
primeiro triênio da década de 90, quando esta realidade era bem visível. Campilongo,
Celso Fernandes. O direito na sociedade complexa. São Paulo: Max Limonad, 2000.
6
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
191
deste grande apartheid social gera enormes dificuldades para o processo
democrático, pois não se consegue compatibilizar as estruturas políticas
existentes com a concreta instituição das decisões econômicas.
A “democracia delegativa” define a ideia de que a democracia
representativa brasileira está deformada em suas bases jurídicas. O
quadro político brasileiro denota uma mudança da democracia representativa – com indivíduos iguais, independentes e capazes de se fazerem
representar – para a democracia delegativa – constituída por indivíduos
desiguais, dependentes e incapazes de se fazerem representar. No caso,
o comportamento da população é que se caracteriza por ser delegativo,
ou seja, quem vence a eleição governa como quiser. O eleitor dá um
“cheque em branco” ao governante e ao legislador. Temos, pois, uma
“cidadania de baixa intensidade”, em que, embora exista relativo respeito aos direitos políticos, não há respeito aos direitos da maioria. Nossas
instituições representativas atuais se caracterizam pela irresponsabilidade
política, pois fogem de todas as formas de controle e prestação de contas,
criando um abismo entre elas e a população. Sustentam a troca de favores, corrompendo a relação entre os poderes. O sistema político é capaz
de produzir uma legalidade abrangente, normatizada, porém é incapaz
de fazer o Estado presente na sua instituição, e tampouco a sociedade
desorganizada consegue exigir a submissão do governo à legalidade. A
“democracia delegativa”, que surge como perversa versão da democracia
representativa, tem efeitos positivos e negativos na vida institucional do
país, que podem ser assim sintetizados:
a) Rompimento do monismo jurídico e esvaziamento do monopólio estatal
do Direito. Pluralismo jurídico (convivência de vários ordenamentos
no mesmo espaço geopolítico, articulados e interpenetrados). Há
quem veja como resistência, mas há quem veja o perigo de direitos
extraestatais no crime organizado, máfias, etc. A “democracia delegativa”, que surge como perversa versão da democracia representativa,
tem efeitos positivos e negativos na vida institucional do país, que
podem ser assim sintetizados:
192
Enio Waldir da Silva
b) Deslegalização e desregulamentação. Menos lei e mais mercado, alerta
o pensamento neoliberal. Há quem entenda seja uma transferência
à sociedade do poder de regular. A crítica, porém, é de que subtrai a
dimensão de igualdade perante a lei.
c) Delegação do Estado para a sociedade civil da capacidade decisória.
A democracia delegativa concede um “cheque em branco” para o
chefe do Executivo ou para o legislador. Também, no entanto, dada
sua incapacidade, transfere a responsabilidade da decisão aos grupos
envolvidos (convenções coletivas, conselhos municipais, assembleias
entre pais e donos de escolas, etc.). O Estado abre mão da lei geral,
abstrata e aplicável a todos os casos.
d) Estado paralelo. Envolve a prática social de ações e omissões do Estado
no cotidiano da regulação social. Exemplos: não aplicação da lei, sua
aplicação seletiva, etc. O Estado paralelo se desenvolve na esfera
extralegal ou de legalidade atenuada.
e) Desterritorialização das práticas jurídicas. O Direito estatal é Direito
territorial, no entanto a globalização (economia, meio ambiente, saúde, questão nuclear, etc.) exige uma desterritorialização das práticas
jurídicas e modificação das competências judiciais.
f) Reconhecimento de novas arenas jurídicas e de novos sujeitos de direito.
A “legalidade truncada” diz respeito à inaplicação, pelo Judiciário, dos
direitos liberais em sua plenitude. Surgem então as formas alternativas
(barganha e arbitramento).
g) Nova concepção de cidadania. Superando a dicotomia entre cidadania
individualista/liberal e a cidadania classista/social, busca-se novas
formas de emancipação (em vez da regulação). Surgem debates sobre
as novas formas de exclusão social, a postulação de direitos universais
(Campilongo, 2000).
Campilongo chama de judicialização da política o processo de
interferência do Judiciário nas questões da política. A democracia liberal sempre acreditou que o sistema político representativo é o foro
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
193
da deliberação do futuro. Basicamente, o sistema político fomenta a
economia, o Direito, a educação, a saúde, etc., traçando os destinos das
populações. A crença é na previsibilidade e racionalidade das decisões
(planificação). Hoje, no entanto, boa parte disso fracassou. Não é mais
possível estabelecer relações de causalidade. A decisão “A” nem sempre
terá a consequência “B” desejada e prevista. Esta ambição deságua em
frustrações públicas e propiciam o surgimento de explicações fáceis para
o fracasso (políticos corruptos, eleitores ignorantes, etc.). Além disso,
surge também a falácia contemporânea mais difundida: sai a política e a
economia assume o posto. Os sistemas sociais particulares são funcionalmente isolados e autoestimulados. Quando há sobreposição de funções,
o poder passa a ter donos e falsifica a democracia.
Figurativamente, citado por Campolongo, Luhmann exemplificou: os sistemas jurídicos e político são duas bolas de bilhar, que não se
confundem, mas o jogo só tem sentido quando as duas bolas se tocam. A
constituição e as instituições representativas operam exatamente neste
ponto de contato. Existe a separação funcional dos sistemas e, também,
um conjunto de prestações recíprocas entre a política e o Direito.
A função típica do sistema político são as tomadas de decisão que
vinculam a coletividade. Seu código expressa-se pelas relações dialéticas
poder/não-poder, inferior/superior, etc. Fornece ao sistema jurídico as
premissas decisórias (leis) e o reforço da eficácia das decisões jurídicas
(polícia, prisões, etc). Já o sistema jurídico tem como função precípua
garantir as expectativas normativas. Expressa-se pelos códigos legal/
ilegal, lícito/ilícito, direito/não direito, etc. Fornece ao sistema político a
legitimação das decisões políticas (aplicação das leis) e premissas para o
uso da violência (regulação do monopólio estatal da força). Neste quadro,
o Judiciário está cada vez mais assumindo papel de revalidador, legitimador e instância recursal de decisões políticas. Pergunta-se: O sistema
jurídico está apto para substituir funcionalmente o sistema político? E
os julgamentos quase folclóricos (simplistas) do período ditatorial? O
processo de ampliação dos poderes do juiz e a instituição de súmulas
194
Enio Waldir da Silva
vinculantes transferem para o sistema jurídico critérios operativos da
política, reforçam impedimentos recíprocos aos dois sistemas, ferem o
caráter autopoiético dos dois sistemas, provocam interpenetração incompatível com a democracia e a complexidade.
Direitos Culturais
Alain Touraine é um sociólogo francês que propõe um tempo
pós-social para interpretar o que ele chama de novas ações coletivas e
de relações sociais, relações de classe, conflitos e situações vivenciais do
indivíduo no contexto das complexidades culturais.
Touraine,7 discorre sobre a identidade conflitante do sujeito contemporâneo. Para compor seu argumento ele faz uma análise de várias
manifestações ligadas ao indivíduo, desde a desagregação das ideologias,
passando pela falta de referências familiares até chegar às armadilhas
da sociedade de consumo. O sujeito estaria tão ameaçado hoje – pela
sociedade de consumo ou pela busca incessante de prazer, outra forma
de prisão –, quanto no passado foi prisioneiro de sua submissão “à lei de
Deus ou da sociedade” (p. 70).
O sujeito, segundo Touraine, viveria constantemente acossado,
de um lado, pela sedução que a identidade “tribal” (étnica, ligada a seu
grupo de origem) exerce sobre ele; de outro, pela sedução que a sociedade
de massas (impessoal, voltada ao consumo) exerce sobre a totalidade dos
povos na configuração atual do capitalismo globalizado.
Touraine cita diversos exemplos para compor esse quadro de conflito de identidade e também para construir sua proposta de superação
desse conflito. Podemos registrar, a título ilustrativo, a polêmica em torno
do uso do véu nas escolas da rede pública da França, país do autor.
Touraine, Alain. O sujeito. In: Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis:
Vozes, 1998a. p. 69-111.
7
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
195
Uma lei recente proibiu o uso do véu pelas estudantes de origem
muçulmana nas escolas francesas. O episódio gerou uma série de debates
sobre a legitimidade dos espaços públicos para as manifestações religiosas. Um debate que representa bem o cerne da discussão levantada
pelo autor em seu texto, na medida em que nele vemos parte desse
conflito abordado pelo autor: A identidade de um grupo – no caso, das
estudantes que gostariam de expressar sua crença mediante o uso do
véu muçulmano – pode conviver com a identidade de outro grupo mais
amplo num espaço comum? Qual a medida para alcançar a harmonia entre
identidade étnica e pluralidade democrática? Questões complicadíssimas,
que ainda estão longe de ser resolvidas e que são a riqueza e a miséria
da sociedade contemporânea.
No exemplo em questão, a medida adotada pelo governo francês
foi a proibição de qualquer manifestação religiosa no espaço laico (não
religioso) da escola – incluindo aí o solidéu (espécie de pequeno chapéu)
dos estudantes judeus. Medida antipática para muitos observadores externos, mas justificada recentemente pelo próprio ministro da Educação
à época em entrevista à Revista Veja (22/10/2008, páginas amarelas), Luc
Ferry: “O mínimo que poderíamos fazer era deixar nossas crianças fora
desse clima de guerra. Não foi uma medida anti-religiosa, muito menos
racista, mas de promoção da paz”. O ex-ministro ressalta nesse trecho o
clima de tensão permanente entre a comunidade judaica e a muçulmana,
clima esse que não poderia ser estimulado pela guerra surda de símbolos
religiosos nas escolas francesas.
Ao discorrer sobre esse e outros conflitos o autor busca construir
uma proposta alternativa para o sujeito estar no mundo. Uma proposta
que supere, de um lado, o mercado e, de outro, a comunidade, pois em
seu entender ambos são armadilhas para a plena realização do sujeito.
No caso do véu das estudantes, diga-se de passagem, várias das que o
utilizavam reivindicavam o direito de viver plenamente sua cultura de
origem, mas a maior parte delas estava sujeita à influência das comuni-
196
Enio Waldir da Silva
dades de imigrantes mais pobres – mais apegados portanto aos valores
da comunidade, que tendem a se chocar com os valores mais amplos das
sociedades multiculturais.
A Sociologia de Touraine pretende escapar dos determinismos
econômicos e dos funcionalismos e mostrar o fim ou a crise dos elementos
que asseguravam metas sociais ou de enigmas que eram compreendidos
como donos do poder de coesão e das mudanças sociais, como Deus,
Providência, Ordem Social, Família... Vive-se em bases de um Eu
fragmentado, perdido nas relações consumistas e cheio de intenções de
felicidade, mas orientado por culturas e relações sociais pragmáticas e
instrumentais.8
As concepções religiosas, filosóficas e políticas, por muito tempo,
ligaram a ideia de sujeito a um princípio superior de inteligibilidade e
de ordem. Muitos pensadores, reportando-se a essas concepções, proclamaram a morte do sujeito. Com o desaparecimento das filosofias do
sujeito, surge a ideia do sujeito pessoal, que só se tornou possível com o
desmoronamento das concepções de uma ordem do mundo.
A ruína dos sistemas de ordenamento permite ao sujeito encontrar
dentro de si mesmo a sua legitimidade, o que o impede de se colocar
a serviço de uma lei, quer divina, de natureza ou política que estaria
acima dele.
O sujeito deve afirmar a sua liberdade e reconhecer que ele não é
um princípio de ordem religiosa, política ou social, mas apenas afirmação
de sua própria liberdade contra as ameaças das ordens sociais, que se
tornaram sempre mais manipuladoras e repressivas.
Silva, Enio Waldir da. Teoria Sociológica III, Ijuí, RS: Ed. Unijuí, 2009b. p. 69-80.
8
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
197
A historicidade estaria marcada por organizações sociais, sistemas
políticos e institucionais que enfrentam o ambiente social e organizam
instrumentos de coerção e legitimação, ao mesmo tempo em que contam
ações históricas de modelos culturais novos (pós-industriais), mobilizações (organizações do trabalho), hierarquias (dinheiro concentrado
nas trocas comerciais) e necessidades de consumo (desejo amplo das
massas).
Para Touraine (2006), o modelo de modernização ocidental consistiu em polarizar a sociedade, acumulando recursos de toda ordem
nas mãos de uma elite e definindo negativamente as categorias opostas,
representadas como inferiores. A eficácia deste modelo foi tão grande
que conquistou grande parte do mundo. Por natureza, porém, esteve
constantemente carregado de tensões e de conflitos que opunham os
dois polos.
A pergunta central que aparece em meio a estas constatações de
Touraine é: Como as pessoas que possuem interesses comuns, como os
consumidores, operários, as mulheres, poderão se tornar um grupo organizado com mecanismos de decisões coletivas que defendam e façam
prevalecer seus interesses? Ou seja, como as pessoas podem passar de
uma situação de indivíduos com desejos a se sentir sujeitos a ponto de
reconhecer o outro como sujeito, se sujeitar a um diálogo de integração
dos interesses e com esses interesses ir à luta nos movimentos sociais e,
assim, tornar-se ator social?
Sem o reconhecimento do outro, a passagem do sujeito ao ator
social seria impossível. Essa compreensão do outro instaura uma relação
que não é da mesma ordem das relações profissionais ou econômicas,
e nem de pertença a uma comunidade cultural. Isso prescinde de um
sujeito forte que está submetido a esta sociedade atomizada, com seus
vínculos sociais dissolvidos, vítimas de urbanizações desenfreadas, industrializações monopolizadas e Estados totalitários e autoritários.
198
Enio Waldir da Silva
EU E OS OUTROS
• INDIVIDUAÇÃO:
MEDOS
ESPERANÇAS
• SUBJETIVAÇÃO:
MINHA IMAGEM
MINHA AÇÃO
EU
OUTROS
O
U
T
R
O
S
EU
©Anthropos Consulting
14
Segundo Touraine, vivemos um tempo de desconfiança. A modernidade ruiu e nada se formou em seu lugar. O social se fragmentou.
Não há mais unidade. O que assegura nossa individualidade, nossa
personalidade se não a sociedade organizada, a educação, o Estado, a
família, a razão e a religião? O mercado e a razão consumista os substituiu? O sujeito não se forma a não ser quando rejeita ao mesmo tempo a
instrumentalidade e a identidade, pois a identidade não é mais do que
uma deformação, dobrada sobre si mesma, de uma experiência vivida
que se decompõe.
O sujeito pessoal não pode formar-se a não ser afastando-se das
comunidades demasiadamente concretas e fechadas que impõem uma
identidade formada em deveres mais do que em direitos, insistindo
mais na inserção do que na liberdade. A dificuldade principal reside
na definição das forças que impelem a reconstrução e que se opõem à
coexistência do puro consumismo e do espírito comunitário... (Touraine,
1998a, p. 68-80).
O sujeito não é uma “alma” presente no corpo ou no espírito dos
indivíduos. Ele é a procura, ele mesmo, por ele mesmo, das condições
que lhe permitam ser o ator de sua própria história. E o que motiva
essa procura é o sofrimento da divisão e da perda de identidade e de
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
199
individuação. Não se trata, para o indivíduo, de se engajar no serviço de
grandes causas, mas antes de tudo reivindicar o seu direito à existência
individual. É a partir do sofrimento do indivíduo, que se acha dividido,
que o desejo de ser sujeito pode transformar-se em capacidade de ser
ator social.
Não é o indivíduo que recostura e une novamente as duas metades separadas da sua experiência, mas é no indivíduo, a partir dele, que
se manifesta o sujeito que não pode mais, como no passado, iluminar a
partir do alto, com alguma luz sobrenatural, o campo social.
Há também, entretanto, grupos que procuram combinar a defesa
de sua identidade cultural com a participação no sistema econômico e
político, tornando-se capazes de uma ação coletiva e até de um movimento social. Essa postura supõe a abertura da comunidade e a reconstrução,
além do mercado, de um sistema alternativo de produção e comercialização. Somente por meio de ações coletivas é possível a reconstrução
do sujeito. Aqui reside o ponto central da reflexão: a ideia de sujeito se
une à de movimento social...
Duas afirmações decorrem desta ideia: uma, que o sujeito é vontade, resistência e luta, e não experiência imediata de si mesmo; outra,
que não há movimento social possível fora da vontade de libertação do
sujeito.
O sujeito não é uma reflexão do indivíduo sobre si mesmo, a
imagem ideal de si mesmo que ele esboça na intimidade. O sujeito está
presente onde se manifesta uma ação coletiva de construção de um
espaço, que é, ao mesmo tempo, um espaço social, político e moral, de
produção da experiência individual e coletiva. O sujeito, assim entendido,
é ator, capaz de modificar o seu meio. O ator social é portador do sujeito
tanto nas suas relações interpessoais, nas relações sociais, nas instituições
políticas e nas formas de ação coletiva. O ator social deve ser descoberto
a partir da experiência e das vivências do sujeito. A identidade do sujeito
só pode ser construída por três forças que se complementam:
200
Enio Waldir da Silva
– o desejo pessoal de salvaguardar a unidade da personalidade dividida
entre o mundo instrumentalizado e o mundo comunitário.
– a luta coletiva e pessoal contra os poderes que transformam a cultura
em comunidade e o trabalho em mercadoria.
– o reconhecimento interpessoal e também institucional do outro como
sujeito (Touraine, 1998a).
Na sociedade de consumo há uma armadilha que reduz o outro
a puro objeto de prazer e não há mecanismos que impeçam o forte de
impor a sua vantagem ao mais fraco, o homem à mulher, o europeu ao
colonizado. O consumidor mais rico monopoliza o sentido que impõe
sobre as relações sociais.
Há uma grande tentação de deixar que se elimine o sujeito e o
seu apelo ao universalismo, deixar campo livre às diferenças culturais e
à impessoalidade dos desejos e da violência, enquanto vemos as redes
financeiras e cibernéticas afastarem-se da experiência humana.
A democracia ainda é, atualmente, a forma normal de organização
política que possibilita o movimento de atores. A ação democrática cujo
objetivo principal é libertar os indivíduos e grupos das imposições que
pesam sobre eles, situa-se entre a democracia procedural que carece de
paixão e a democracia participativa que carece de cultura democrática.
A democracia só é rigorosa na medida em que é alimentada por
um desejo de libertação que, de forma permanente, apresenta novas
fronteiras, ao mesmo tempo longínquas e próximas, porque se volta
contra as formas de autoridade e repressão que atingem a experiência
mais pessoal. Assim definindo, o espírito democrático pode responder a
duas exigências que, a primeira vista, parecia ser contraditória: limitar o
poder e responder às demandas da maioria (Touraine, 1998a, p. 23).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
201
Inúmeros sinais, porém, levam-nos a pensar que os regimes chamados democráticos enfraquecem, assim como os regimes autoritários,
que estão submetidos às exigências do mercado mundial protegido e
regulado pela potência dos EUA e por acordos entre os três principais
centros do poder econômico.
A democracia, assim enfraquecida, pode ser destruída a partir de
cima – por um poder autoritário – ou a partir de baixo – pelo caos,
violência e guerra civil – ou a partir de si mesma – pelo controle
exercido sobre o poder pelas oligarquias ou partidos que acumulam
recursos econômicos ou políticos para impor suas escolhas a cidadãos
reduzidos ao papel de eleitores (p. 8).
Quando os atores políticos não estão submetidos às demandas dos
atores sociais, estes perdem sua representatividade, gerando assim um
outro sentido que não é o da democracia e sim da partitocrazia: A partitocrazia, porém, destrói a democracia ao retirar-lhe sua representatividade e
conduz ao caos ou à dominação de fato de grupos econômicos dirigentes, enquanto
espera a intervenção de um ditador (Touraine, 1994, p. 83).
O autor compreende que não é mais o partido político que faz
agregação da vida organizada e defende o movimento social como lugar do
ator social. Quando se fala em movimento social não se pode dissociá-lo
da democracia, pois um movimento social deve ter um programa político
porque faz apelo a princípios gerais ao mesmo tempo em que há interesses
particulares. Só existe movimento social se a ação coletiva tem objetivos
sociais, isto é, reconhece valores ou interesses gerais da sociedade, e, por
conseguinte, não reduz a vida política ao confronto de campos ou classes,
ao mesmo tempo em que organiza e desenvolve conflitos.
É somente nas sociedades democráticas que se formam movimentos sociais porque a livre-escolha política obriga cada ator social a
procurar o bem comum ao mesmo tempo em que há defesa de interesses
particulares. A ideia de movimento social se concretiza quando anuncia
uma razão universalista, de liberdade, de igualdade, direito do homem,
202
Enio Waldir da Silva
justiça e solidariedade, pois a democracia se apoia exatamente nestes
princípios. As ações coletivas de diferentes naturezas cujas demandas não
encontram resposta no sistema político e que se manifestam de forma radical ou revolucionária, tendem a desembocar numa situação de violência
e arbitrariedade, contrariando assim os princípios da democracia.
Movimento social é uma combinação de um princípio de identidade,
de um princípio de oposição e de um princípio de totalidade. Não será
necessário, para travar um combate, saber em nome de quem, contra
quem e em que terreno se vai combater? [...] o que caracteriza um
movimento social é, antes de mais nada, que o desafio aqui é a historicidade e não a decisão institucional ou a norma organizacional. Os
atores são, portanto, classes únicas. Atores definidos por suas relações
conflituosas com a historicidade [...] (Touraine, 1984, p. 108).
No decorrer dos dois últimos séculos as categorias inferiorizadas,
particularmente os trabalhadores, depois os colonizados e quase ao
mesmo tempo as mulheres, formaram movimentos sociais para se libertar. Conseguiram-no em grande parte, o que teve como primeiro efeito
atenuar as tensões inerentes ao modelo ocidental, mas também seu
dinamismo. Um grande perigo ameaça esta parte do mundo: o de não
estar mais em condições de conceber objetivos e de não ser mais capaz
de enfrentar conflitos novos (Touraine, 2006).
Um novo dinamismo só poderá surgir a partir de uma ação que
consiga recompor o que o modelo ocidental separou, superando todas as
polarizações. Esta ação já é evidente, por exemplo, nos movimentos ecológicos e nos que lutam contra a globalização, mas as mulheres é que são
e serão as atrizes principais desta ação, uma vez que foram constituídas
como categoria inferior pela dominação masculina em desenvolvimento,
para além de sua própria libertação, uma ação mais geral de recomposição
de todas as experiências individuais e coletivas.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
203
Nos últimos livros, especialmente em Um Novo Paradigma – Para
Compreender o Mundo de Hoje, o autor foca sua análise na contextualização
da globalização, na emergência dos direitos culturais e no que chamou
de sociedade das mulheres.
Partindo da globalização, ele define “não apenas como uma mundialização da produção e dos intercâmbios, mas, sobretudo, como uma
forma extrema de capitalismo, como separação completa entre a economia e as outras instituições, particularmente sociais e políticas, que não
podem mais controlá-la”.
Esta dissolução das fronteiras de todos os tipos acarreta a fragmentação daquilo que se chamava sociedade.
A consecutiva derrocada das categorias sociais da análise e de ação
não é um acontecimento sem precedentes. Nos inícios de nossa
modernização pensamos os fatos sociais em termos políticos – ordem,
desordem, sabedoria, autoridade, nação, revolução – e somente após a
revolução industrial substituímos as categorias políticas por categorias econômicas e sociais (classes, lucro, concorrência, investimento,
negociações coletivas). As mudanças atuais são tão profundas que nos
levam a afirmar que um novo paradigma está substituindo o paradigma
social, assim como este tomará o lugar do paradigma político.
O individualismo que triunfa sobre as ruínas da representação social
de nossa existência revela a fragilidade de um eu constantemente
modificado pelos estímulos que o atingem e o influenciam. Uma
interpretação mais elaborada desta realidade insiste no papel dos
meios de comunicação na formação deste eu individual cuja unidade e independência parecem então ameaçadas (Touraine, 2006, p.
219-220).
Neste início de século o individualismo tem características particulares tendo em vista que não é só da técnica de produção que depende
nossa existência singular, individual, um ser de direitos: precisamos da
técnica de consumo e de comunicação. Na modernidade, quando se
lutava pelos direitos sociais, o reconhecimento passava por alguns in-
204
Enio Waldir da Silva
termediários: Deus, a nação, o progresso, a sociedade sem classes. Hoje,
sem estes discursos intermediários, damos uma importância central à
procura de nós mesmos.
Esta vontade do indivíduo de ser o ator de sua própria existência é
o que o autor chamou de sujeito, imerso em um paradigma cultural que
põe em primeiro plano a reivindicação de direitos culturais. Esses direitos
se exprimem sempre por intermédio da defesa de atributos particulares,
mas conferem a esta defesa um sentido universal.
Sobre as ruínas da sociedade abalada e destruída pela globalização
surge um conflito central entre, por um lado, forças não sociais reforçadas pela globalização (movimento do mercado, catástrofes possíveis,
guerras) e, por outro, o sujeito, privado do apoio dos valores sociais que
foram destruídos. O sujeito pode até, em caso de necessidade, ser repelido para o inconsciente pela dominação destas forças materiais.
Mas este combate não está perdido de antemão, pois o sujeito se
esforça para criar instituições e regras de direito que sustentarão sua
liberdade e sua criatividade. Nessas batalhas estão em jogo especialmente a família e a escola.
Este indivíduo, transformado por ele mesmo em sujeito, não está
porventura condenado ao isolamento, a ficar privado de comunicação
com “os outros”? A resposta a esta pergunta é, antes de mais nada, que
não pode haver comunicação possível sem reconhecer as diferenças
existentes entre os atores reais. Esta complementaridade é a referência comum de todos os que querem comunicar e comunicar-se, e as
modernizações, que combinam sempre a modernidade com campos
culturais e sociais diferentes uns dos outros. Nenhuma sociedade tem
o direito de identificar sua modernização com a modernidade. Não se
faz algo novo senão com novo e velho ao mesmo tempo.
Particularmente os países ocidentais, que avançam mais rapidamente
que os outros no caminho da modernidade, devem reconhecer ao
mesmo tempo que eles não detêm o monopólio da mesma e que a
modernidade está presente também nas outras formas de modernização, com exceção das que se opõem totalmente a ela (Touraine,
2006, p. 241).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
205
O tempo de hoje está marcado por muitas mensagens de variadas
culturas, diferentes religiões, muitas experiências de vidas, velhos e novos
projetos de mudança que querem ser reconhecidos nas expressões normativas que deverão ser (re)criados. Cada um desses aspectos articulará
sua situação para o desenvolvimento com base em conhecimento e o uso
de tecnologias complexas.
Dentro destas estratégias é que é preciso situar a análise das relações de dominação, pois é mais vasto que a leitura da decomposição do
modelo europeu clássico de modernização, dos efeitos desta decomposição e das possibilidades de reconstruir outras figuras da modernização
por meio da passagem à sociedade da informação e, de modo mais geral,
àquilo que o autor chama de “sociedade pós-social”.
A comunicação intercultural não é, portanto, apenas um esforço de
compreensão mútua: trata-se de um ato de conhecimento que procura
situar o outro e a mim mesmo dentro de unidades históricas e dentro
da definição dos processos de mudança e de relações com o poder. O
que propomos aqui consiste, portanto, em última análise, em definir as
reações entre atores pelo lugar proporcional que eles ocupam no complexo conjunto de dimensões que resumi aqui mediante a interseção
da modernidade e das modernizações. A comunicação intercultural é
o diálogo entre indivíduos e coletividades que dispõem, ao mesmo
tempo, dos mesmos princípios e de experiências históricas diferentes
para se situarem uns em relação aos outros.
A esta análise falta ainda uma dimensão. Nós só podemos conhecernos e respeitar-nos se os temas da modernidade e da modernização
que nos sobrepujam entrarem em movimento e se transformarem,
mas conscientes de uma história que nos é comum. Muitas vezes
sentimo-nos dominados por forças obscuras; hoje sabemos melhor que
somos nós que ameaçamos nossa própria sobrevivência, a de nossos
descendentes, a de muitas espécies vegetais e animais e as condições
climáticas que permitem nossa existência. Evidentemente, não se
trata de substituir a segurança que nos davam os deuses protetores
pela angústia da autodestruição, mas de deduzir da globalização e da
crescente interdependência de todos os elementos da vida terrestre e
a consciência de nossa responsabilidade. Portanto, é igualmente nossa
capacidade de criar, de transformar e de destruir nossa vida e nosso
206
Enio Waldir da Silva
meio ambiente que nos obriga a voltar nosso olhar, fixado por tanto
tempo na natureza e nos instrumentos que nos permitiram conquistá-la,
para nós mesmos. Esta consciência de nos mesmos só pode ser a
consciência de nossa existência comum, de nossa interdependência
e, portanto, da necessidade de reconhecer no outro não apenas aquele
que está em relação com a mesma modernidade com que eu estou
relacionado, mas aquele cuja história não está totalmente separada
de minha própria história.
Não somos todos cidadãos do mesmo mundo, pois este não é uma
unidade institucional e política que define os direitos e deveres de
cada um. Em compensação, todos temos direitos culturais, que provêm fundamentalmente de nossa relação conosco mesmos e com os
outros. Vivemos uma situação histórica em que era a sociedade, com
suas instituições, suas normas, seus modos de dominação e de vigilância, que produzia os atores – os quais se definiam então como sociais.
No decurso das últimas décadas sentimos com intensidade cada vez
maior que estamos pendendo para a situação inversa, onde é a criação
de nós mesmos que determina nossa capacidade de resistir às forças
de morte e de vencê-las, ao passo que o espaço social se reduz a um
lugar de encontros, de conflitos ou de tréguas entre forças opostas,
mas igualmente estranhas à vida social: de um lado, as que provêm do
mercado, da guerra e da destruição de todos os elementos da vida e,
do outro, as que apelam não à ordem social ou ao impulso do desejo
mas à afirmação de si e de nós como sujeitos de nossa existência e
como autores de nossa liberdade (Touraine, 2006).
A proposta de Touraine é de focar a análise nos atores definidos
por suas pertenças sociais, relações sociais e por seus direitos culturais.
Análises da sociedade podem se perder em evasivas, pois detectam uma
decomposição da sociedade, considerada como um organismo no qual
cada elemento cumpre uma função, que elabora suas metas e os meios
necessários para atingi-las, que socializa seus novos membros e pune os
que não respeitam as normas, leva, em nosso tipo de sociedade, a um
individualismo que se opõe à aplicação das regras da vida coletiva e as
substitui pelas leis do mercado, em que se manifestam preferências
múltiplas, inconstantes, mas influenciadas pela publicidade comercial
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
207
tanto quanto pelas políticas públicas. Há um tipo de mudança que vem
acontecendo na coletividade: as reivindicações dos direitos culturais
(2006, p. 168).
Evoquemos primeiramente o caso dos Estados multinacionais, ou
seja, o caso das minorias nacionais que reclamam certos atributos
da independência. Os húngaros, em particular, constituem, fora da
Hungria, minorias importantes na Eslováquia e na Romênia. Um
caso extremo é o dos curdos, presentes em diversos Estados; mas é
verdade que nem todas as minorias curdas reivindicam a criação de
um grande Curdistão, idéia defendida sobretudo pelos curdos da
Turquia, ao passo que os do Iraque chegaram a obter vantagens do
governo de Bagdá. Podemos também colocar nesta vasta categoria
a Catalunha e Quebec, que são quase-Estados, mas no interior de
um Estado que conserva certas prerrogativas – particularmente no
plano internacional. Estas minorias defendem sempre seus direitos
culturais, particularmente o uso da própria língua, na escola e na
via administrativa. Elas identificam-se às vezes com uma confissão
religiosa e o chefe da Igreja em questão desempenha então, muitas
vezes, um papel político de defesa da comunidade.
São problemas que podem dar origem a crises internacionais e se
tornarem mais sangrentos que em outros tempos. Existem multiculturalismos menos institucionais, na formação ou no desenvolvimento das
“comunidades” ou das minorias formadas em consequência de migrações, expulsões e exílios; grupos definidos em termos de nação, etnia
ou religião, que só tinham existência na esfera privada, adquirem agora
uma existência pública às vezes suficientemente forte para questionar
sua pertença a determinada sociedade nacional. Isto coloca problemas
estruturais, especialmente aqueles que já reconheciam as minorias, que
discursavam em nome de valores universais.
É por esta razão que, para evitar tais mal-entendidos, creio mais
correto falar, a propósito das minorias, de “direitos culturais”, o que obriga
as democracias a refletirem sobre si próprias e a se transformarem para
reconhecer estes direitos, da mesma forma que elas se transformam, não
208
Enio Waldir da Silva
sem grandes conflitos, para reconhecer os direitos sociais de todos os
cidadãos. Os direitos culturais estão, na realidade, positivamente ligados
aos direitos políticos, portanto à cidadania.
Há outros comunitarismos mais fechados, definidos em sentido
estrito pelo poder dos dirigentes da comunidade de impor práticas e
interditos a seus membros, opostos à cidadania, e até com tanta clareza
que, na medida em que a cidadania se define a si própria pelo exercício
de direitos políticos num país democrático, o comunitarismo fere evidentemente as liberdades individuais. Sendo assim, deste ponto de vista, os
liberais têm razão de combater sem trégua o comunitarismo. Seria um
erro, entretanto, crer que uma tal defesa da cidadania contra as comunidades soluciona o problema das minorias (Touraine, 1998a, p. 169).
O autor justifica o assunto dos direitos culturais como um grande
tema para a pesquisa sociológica que queira imaginar ações para transformações sociais, porque:
1 – Centra-se sobre o sujeito e sua relação com o sistema. Os direitos
culturais têm mais força de mobilização do que os outros, porque são
mais concretos e dizem respeito sempre a uma população determinada, quase sempre minoritária.
2 – É no campo cultural que se armam os principais conflitos e as reivindicações em que os interesses em jogo são pesados. Depois que
a produção em massa, após o predomínio da fabricação industrial,
penetrou os domínios do consumo e da comunicação, e depois que
as fronteiras e as tradições foram invadidas pela distribuição dos
mesmos bens e serviços no mundo inteiro, grandes parcelas de
nossas condutas, que imaginávamos protegidas por sua inscrição na
esfera privada, encontram-se expostas à cultura de massa e, por isso
mesmo, ameaçadas.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
209
3 – A cultura é uma categoria heterogênea: a dependência cultural diz
respeito primeiramente aos países mais dependentes, mas também
às minorias étnicas, religiosas ou sexuais e nas grandes cidades onde
aparecem as ameaças ao meio ambiente.
4 – Uma referêcia que dá maior visibilidade está nas reivindicações
das mulheres, que querem fazer reconhecer sua dupla exigência
de igualdade e de diferença, na medida em que esta exigência é
portadora de uma mudança mais profunda do que aquelas às quais
nos acostumou a sociedade industrial;
5 – Os direitos culturais protegem populações determinadas; já os direitos
políticos devem ser concedidos a todos os cidadãos.
6 – É um direito à diferença (cultural) e à igualdade (econômica). Viver
juntos iguais e diferentes. Trata-se não mais do direito de ser como
os outros, mas de ser outro. Os direitos culturais não visam apenas
à proteção de uma herança ou da diversidade das práticas sociais;
obrigam a reconhecer, contra o universalismo abstrato das luzes e da
democracia política, que cada um, individual ou coletivamente, pode
construir condições de vida e transformar a vida social em virtude
de sua maneira de harmonizar os princípios gerais da modernização
com as “identidades” particulares.
7 – O apelo aos direitos sociais alimentou o corporativismo e a defesa
dos interesses profissionais e organizações de classe, muitas das quais
chegaram a dizer que a democracia mais completa era a ditadura do
proletariado e que os direitos políticos não podiam ser concedidos
senão aos que vivem de seu trabalho e não do capital, ou seja, do
trabalho dos outros. A referência aos direitos culturais, no entanto,
apela para totalidades concretas definidas mais solidamente e mais
profundamente do que a cidadania – ou mesmo do que a pertença a
uma classe. É por isso que nos movimentos femininos encontramos
muito mais do que a reivindicação dos direitos políticos ou mesmo
210
Enio Waldir da Silva
do que a igualdade econômica. Da mesma forma, as populações de
imigrantes não protestam apenas contra a exploração econômica e
contra a arbitrariedade policial.
8 – A passagem dos direitos políticos aos direitos sociais e depois aos
culturais estendeu a reivindicação democrática a todos os aspectos
da vida social e, por conseguinte, ao conjunto da existência e da
consciência individuais. As coações são impostas aos indivíduos em
todos os aspectos da vida tanto mais em nome desta individualidade,
deste direito a ser ele mesmo, a unificação e a individualização da
pessoa, que não apenas resiste às coações externas, mas sobretudo
se substitui a todo princípio transcendente e se afirma como a meta
de sua luta e ao mesmo tempo aquilo que lhe dá força.
9 – Da mesma forma, não se pode falar de dominação capitalista sem
fazer ouvir o movimento operário e não se pode falar de dominação
masculina sem topar com a importância do feminismo: “Aquilo que
cada um de nós exige, e sobretudo os mais dominados e os mais
desprotegidos, é ser respeitado, não ser humilhado e até, exigência
mais ousada, ser escutado – e mesmo ouvido e entendido”.
10 – O direito a uma vida religiosa não é apenas o direito de um grupo
de praticar sua religião; é também, e outro tanto, o direito de cada
indivíduo de mudar de religião – e a exprimir determinada opinião
considerada herética por esta ou aquela Igreja. Sem dúvida, não
poderia haver direitos senão coletivos. E o direito a ser protegido
por uma convenção coletiva em seu emprego ou a fundar um grupo de caráter religioso, por exemplo, é evidentemente um direito
coletivo, que se aplica a cada indivíduo que se encontra protegido
diante dos tribunais e diante da opinião quando decide abandonar
um sindicato, uma Igreja ou uma associação. Se faltar este caráter
individual de todo direito, não se poderia transformar a tolerância
para com certos grupos em direitos culturais. Assim, a lei só deve
reconhecer a liberdade de exercício dos cultos se estiver em condição
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
211
de proteger aquele ou aquela que não queira mais ser um fiel de
determinada Igreja, deseje abandoná-la ou eventualmente aderir a
uma outra (Touraine, 2006, p. 173).
O autor aprofunda sua análise a partir do papel da mulher nas
transformações recentes da sociedade. Descreve as mudanças do mundo, que permitiriam às mulheres ocupar o centro da cena atual. Aborda
desde as diferenças culturais até o papel das lésbicas na cena política
estadunidense. Também analisa temas como a pornografia e o papel do
homem nessa história. Relaciona o que seria a “natureza” feminina com
as situações do mundo atual, buscando demonstrar por que elas estariam
em vantagem.
O destaque dado ao feminino na reflexão do autor equivale a um
papel diferenciado que as mulheres ocupam em termos políticos, econômicos e culturais. Afinal de contas, sua participação é preponderante
na configuração da sociedade. Tome-se como exemplo a entrada da mulher no mercado formal de trabalho, seguida pelo movimento feminista,
marcos da contemporaneidade.
Diversos fenômenos do mundo atual confirmam as observações
do autor sobre as mudanças que têm ocorrido em termos de papel sexual
e afetividade.
Em síntese, o mundo se transforma em direção às conquistas do
feminino. Resta estudar as mulheres para entender melhor esse novo
mundo.
Para aprofundar estes estudos, Touraine publicou um livro em
2007 dedicado especialmente ao mundo das mulheres. Na apresentação
do livro o autor escreve:
Muitos filósofos sociais proclamaram que seria necessário suprimir do
vocabulário expressões como ator social, movimentos sociais e principalmente sujeito, visto que elas se referiam a concepções ultrapassadas de
consciência e da ação política. Eu contesto esta visão desanimadora
e até mesmo autodestrutiva, e, ao contrário, creio que as lutas femi-
212
Enio Waldir da Silva
nistas, como outras, trazem novas aspirações – e principalmente uma
nova representação que as mulheres têm delas mesmas e de seu lugar
na vida social. Ao “não se pode fazer nada” respondo que é necessário
visitar o campo e, sobretudo, ao invés de falar em nome delas, escutá-las,
reação evidente para um sociólogo!... para conhecer o pensamento e a
experiência vivida pelas mulheres, fui ver in loco, e descobri de passagem quão raros eram aqueles e aquelas que assumiam esta elementar
postura de observador ou ouvinte. E descobri que o que pensam e
fazem as mulheres é diferente, e até mesmo oposto, daquilo que se
diz que elas dizem e fazem (Touraine, 2007, p. 9).
O autor mesmo destaca que essas ideias sobre as mulheres9 não
chega a ser nova: depois dos excessos do masculino, que teriam acarretado
a degradação ecológica do planeta e as guerras, as mulheres herdariam a
Terra, para reinventá-la. Isso nos remete à fala da personagem de “Parque dos dinossauros”, de Spielberg, quando a cientista, interpretada por
Laura Dern, arremata a trajetória da raça humana sobre o planeta: “Deus
cria o dinossauro. Deus cria o homem. O homem mata Deus. O homem
cria a dinossauro”, diz um dos personagens. Ao que ela responde: “A
mulher herda a Terra”. Uns verão nisso a busca pelo equilíbrio. Outros,
a decadência do Ocidente.
Touraine não chega a mencionar a Biologia e a Genética em sua
abordagem. Seu enfoque é a cultura. E a discussão, como se vê, tem muito
a contribuir para o entendimento da sociedade contemporânea.
Para concluir, vamos deixar ao leitor as reflexões possíveis elaboradas pelo autor.
Uma Sociedade de Mulheres
A sociedade moderna, no ocidente, foi criada por um sujeito que
já entrou em cada indivíduo e que, portanto, já deixou o mundo
divino. Mas o sujeito, como todos os grandes recursos neste tipo de
sociedade, está concentrado na elite dirigente e encarnado sobretudo
Leitura obrigatória pela polêmica das teses é Touraine, Alain. O mundo das mulheres.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
9
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
213
por homens. A “sociedade dos homens” produziu muita energia e ao
mesmo tempo suscitou tensões que atingiram o ponto de ruptura.
O pólo dominante foi o da conquista, da produção e da guerra, o dos
homens, enquanto o pólo feminino era a figura principal da inferioridade e da dependência.
A hipótese geral deste livro é a da passagem de uma sociedade que
se percebia e agia em termos socioeconômicos a um tipo societal que
chamei de pós-social, porque todas as categorias que se organizam
nessa representação e nessa ação já não são propriamente sociais,
mas culturais. O motivo disto é que nossa experiência já não é mais
transtornada pela sociedade de massa apenas na ordem da produção,
mas também na do consumo e da comunicação. Nada em nós escapa
ao conjunto das técnicas e dos conhecimentos que foram acumulados,
e nós reagimos a eles preocupando-nos com todos os aspectos de nossa
vida, a fim de defender nossa unidade singular, corpo e espírito.
Tanto nossas relações com a autoridade como as formas de nossa imaginação, tanto nossa experiência sexual como nossos gostos musicais
mudam. Ora, a idéia geral da passagem de uma cultura voltada para
o exterior a uma outra, voltada para o interior e para a consciência
de si mesmo, leva diretamente a idéia de uma cultura definida e
vivida mais intensamente pelas mulheres do que pelos homens. Os
ritmos e as imposições da vida biológica, e sobretudo a dos órgãos
de reprodução, que podem ter sido considerados como obstáculos
ao papel das mulheres na vida pública, transformam-se agora em
vantagem para elas, primeiro graças às técnicas da Medicina, mas
sobretudo porque os laços entre indivíduos aparecem mais fortes na
mulher do que no homem, sem que esta diferença autorize a levantar
uma barreira intransponível entre os dois sexos. A vida sexual não
ocupa um lugar mais importante nas mulheres do que nos homens,
mas a preocupação pelos laços entre a sexualidade e personalidade
é maior entre as mulheres porque os homens, nascidos no antigo
modelo cultural em declínio, permanecem caracterizados mais nitidamente por suas funções públicas e particularmente profissionais.
Sobretudo, a relação com os filhos, mesmo nas famílias onde o pai
se ocupa ativamente com eles, sempre continua mais intensa para a
mulher do que para o homem. Mesmo que certo número de mulheres prefiram evitar a gravidez, outras, mais numerosas, consideram
inestimável esta experiência única de gestação de um novo ser vivo,
que lhes dá também a consciência de seu papel na reprodução da
espécie.A relação com o corpo ocupa na sociedade de hoje um lugar
tão central como o ocupado pelo trabalho na sociedade industrial ou
214
Enio Waldir da Silva
pelo estatuto político de liberdade ou de escravidão nas sociedades
políticas. A sexualidade está presente em todos os aspectos da personalidade e desempenha um papel importante na construção de
nós mesmos por nós mesmos. Mas, para compreender o movimento
feminista como tal, não é preferível recolocar a ação das mulheres
no conjunto mais amplo das lutas pela igualdade, pelo respeito aos
direitos políticos e sociais? Muitas mulheres explicam que, se elas
lutam, é para que sejam abolidos todos os tipos de discriminação e
de injustiça. Elas desejam estabelecer uma completa igualdade entre
homens e mulheres, e, portanto, suprimir toda referência ao gênero
no campo do emprego e dos salários. Mas outras querem, sobretudo,
fazer reconhecer suas diferenças em relação aos homens ao mesmo
tempo que sua igualdade com eles.
Aquelas mulheres que insistem sobretudo na igualdade fazem-no
porque, afirmam elas, toda referência a uma diferença reintroduz uma
desigualdade e, o que é mais grave ainda, acaba por definir a mulher
em relação ao homem. Mas esta censura está mal fundamentada, porque a rejeição de toda diferença de gênero remete não a um modelo
masculino, mas a um Homem universal, definido por direitos e não
por atributos particulares. Ora, é precisamente esta formulação que
desperta a crítica mais radical. Quem é este Homem? O texto de 1789
nos diz que é aquele que goza dos direitos do cidadão, portanto dos
direitos políticos; mas no meio século após a redação do texto surgiram novas reivindicações fundadas sobre direitos sociais, formulados
sobretudo pelos assalariados, a começar pelo direito ao trabalho, que
foi o grande objetivo de todos os que apoiavam o movimento operário.
Vieram em seguida as lutas pelos direitos culturais, o direito de falar
sua própria língua, de participar na defesa de uma memória coletiva.
Como não estender estas reivindicações culturais até ao direito de
afirmar seu “gênero”, sua identidade sexual? Um homem “sem
qualidades”, sem situação social e cultural, é pensado tão longe de
toda situação real que a afirmação de seus direitos equivale a uma
declaração vazia de sentido e que não pode corresponder a nenhum
objetivo preciso.
Mas este argumento, que remete às lutas das mulheres a temas gerais, fere tanto o conjunto das mulheres como muitos homens. Assim
como, no vasto campo do trabalho e do emprego, a palavra de ordem
da igualdade, levada até à eliminação de toda referência ao gênero,
tem uma grande força de convicção e contribuiu efetivamente para
reduzir o número dos empregos catalogados como masculinos ou femininos, assim também, no domínio da sexualidade e da reprodução,
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
215
não existem as soluções neutras, pois é precisamente neste campo
que estava arraigada a dominação masculina (que pôde ser definida
pelo controle da reprodução, sendo a mulher definida sobretudo
como reprodutora e, portanto, dominada pelo poder masculino). Daí
a reivindicação mais forte do feminismo, a que reivindica para as
mulheres o direito de decidir livremente ter ou não ter filhos: “Filho
se eu quiser, e quando eu quiser”. É uma fórmula extrema, mas cuja
eficácia provém justamente do fato de as mulheres inverterem assim
a relação tradicional com o homem, que lhe “fazia” um filho ou qual
ela “dava” um filho. Chegamos assim à hipótese que resume esta
análise: é na ordem da sexualidade que se colocam a afirmação e a
vontade de criação das mulheres. Em outras palavras, é reivindicando uma sexualidade independente das funções de reprodução e de
maternidade que as mulheres se constituem verdadeiramente em
movimento social e avançam o mais longe possível – mais longe do
que através da luta pela igualdade e contra a discriminação (Touraine,
2006, p. 212-216).
Não se trata, contudo, tampouco de um direito à diferença. A
dominação masculina é atacada ao mesmo tempo pela liberdade de
decidir ter ou não ter filhos e pela reivindicação da sexualidade como
elemento central da construção da personalidade feminina. Esta construção apoia-se menos sobre a desconfiança em relação aos homens,
tão frequentemente nos Estados Unidos, do que sobre a vontade de se
construir a si mesma.
É impossível contornar aqui o debate sobre a igualdade das mulheres e suas diferenças, lançado pelas feministas, e que se tornou tão
clássico quanto o debate entre liberais e comunitaristas.
Antropólogos como Louis Dumont e Clifford Geertz, eram de
opinião de que a combinação entre a igualdade e a diferença era tão
impossível de resolver quanto a quadratura do círculo. Juízo que pode
parecer sensato, mas que, no entanto, é inaceitável. Objetos diferentes
são facilmente hierarquizados, seja em nome de seu preço ou de sua durabilidade, seja em razão do número dos que compram este ou aquele; mas
216
Enio Waldir da Silva
não é a diferença que aqui está em discussão, são atributos econômicos
ou psicológicos. É difícil estabelecer uma hierarquia entre o verde e o
azul, entre o chá e o café, entre Churchill e Clemenceau.
Inversamente, é lógico procurar por trás de uma diferença sensível,
facilmente constatável, não apenas outras diferenças, mas sobretudo
configurações diferentes.
Admitiremos sem dificuldade o fato da dominação tradicional
dos homens sobre as mulheres. Ora, esta dominação não se explica
pelas respectivas características dos homens e das mulheres, mas por
um pattern (padrão) cultural que atribui um papel central aos homens
conquistadores e aos caçadores. Não é a produção que triunfa sobre a
reprodução; não é nem mesmo o controle do intercâmbio das mulheres
por parte dos homens. O que está em questão aqui, a meu ver, é uma
visão da sociedade dominada, sob formas diversas, por uma elite que é
dona dos recursos e está encarregada de transformar essa mesma sociedade e seu ambiente, elite à qual as outras categorias, como as mulheres,
estão subordinadas.
Não se trata, portanto, de se fixar numa diferença que em si mesma
é hierarquicamente neutra, mas, ao contrário, de trazer à tona unidades
societais e culturais que constroem relações hierarquizadas de desigualdade. E eu procuro precisamente, nesse capítulo, tornar visível a inversão
de modelo cultural que viu as mulheres ascederem ao papel central, o
que não significa que as mulheres se tenham tornado profissional ou
intelectualmente superiores aos homens, mas que elas ocupam um lugar
mais central na nova cultura. Numa palavra, a análise que é preciso fazer
aqui não deve ser feita em termos psicológicos.
Direito e Movimentos Sociais
Os movimentos sociais se tornaram muito importantes para a
sociedade civil e a protegem em seus fundamentos normativos: direitos
individuais, culturais, privacidade, associações voluntárias, legalidade
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
217
formal, pluralidade, publicidade, livre-iniciativa, procedimentos justos
para deliberação, sustentabilidade ecológica, política, econômica e
social.
O conceito de movimento social possui uma gama enorme de abordagens graças aos elementos que podem caracterizá-los como a formação,
dinâmicas expressivas internas e externas, projetos de sociabilidade,
fundamentação ética, e contra o que está focalizada a base sua da luta.
Geralmente, os movimentos sociais modernos e contemporâneos
tinham um foco direto contra o qual se contrapunham: as exclusões da
sociedade capitalista e, em muitos casos, a própria lógica capitalista, tendo, então, um caráter classista. Em geral, no entanto, são ações coletivas
de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a
diferentes classes e camadas sociais. São movimentos sociais caracterizados como pontuais, surgindo de uma situação de ameaça a um grupo de
indivíduos. Uma vez superada a ameaça, eles desaparecem, tendo, então,
vida curta. Não possuíam pessoas com uma carreira interna, estruturas de
decisão, hierarquias, controle sobre os membros, doutrinações, cartilhas,
órgão financiador específico e nem burocracias.
Os movimentos sociais politizam suas demandas e criam campo
político de força social e suas ações acontecem a partir de discursos criados
sobre situações que podem virar o tema da luta, como conflitos, litígios e
disputas. É o interesse comum que faz com que suas ações desenvolvam
processos sociais, políticos e culturais identificadores do grupo e esta
identidade é compartilhada e solidarizada (Gohn, 1995, p. 44).
Algumas abordagens da teoria social na América Latina recaem
sobre toda a ação coletiva, como se fossem movimentos sociais, pois
se entendia que a definição destes estava na conexão de ação política
coletiva com a dinâmica social e os poderes estatais. Na Sociologia, a
análise dos movimentos sociais teve momentos marcantes com características diferentes nos períodos de 1950 a 1970, quando o foco da
análise inseria os movimentos sociais na luta de classes expressa nas
218
Enio Waldir da Silva
questões de desenvolvimento e da dependência dos países em relação
ao capitalismo global. Prevalecia aqui a abordagem marxista (Castells,
Kovarick, Fernando Henrique Cardoso e outros). Na década de 70, as
análises eram focadas nas lutas nacionais e populares para integração na
organização social, sendo muitas as determinações da emergência dos
movimentos sociais, como as reivindicações de bens de consumo coletivo e quebra na hegemonia para controle da nação (Touraine, Castells,
Laclau, entre outros). Na década de 80, abandona-se as análises mais
globais e se enfoca os estudos dos movimentos sociais para os grupos
específicos organizados, suas identidades, inovações e modos de fazer
política (Osiel, Jacobi, Kowaric, Touraine e o grupo do Conselho LatinoAmericano de Ciências Sociais (Clacso). Na década de 90 as análises
focavam as redes de movimentos e a organização da sociedade civil com
sua expressividade na metropolização, que aumenta a concentração da
pobreza, a violência desorganizada e organizada e a anomia defensiva
(Scherer-Warren,1993).
Analisava-se que, nesse período, a massa era constituída de
agregados inorgânicos de individualidades e manifestações atomizadas
(desmovimento). A sociedade civil porém, enfraquece e dá lugar à crise
(jovens em bando, delinquentes e grupos de violências organizadas).
Além desse enfoque da crise dos movimentos sociais, no entanto, muitos
estudos tentam buscar as conexões, a cooperação, as redes, a comunicação e as relações sociais como a ação política de afirmação no cenário
de democratização, chamados de novos movimentos sociais (Wefford,
Sousa, Calderón, Melluci, Archer).
Essas novas abordagens dos “novos movimentos sociais” teriam
surgido da extrema insegurança quanto aos desejos de realizar anseios de
vida plena de sentido e perceber que, na lógica capitalista, estes jamais
vão se realizar de forma coletiva (Antunes, 1997). Assim, são as lutas
ecológicas, a feminista, a dos negros, dos homossexuais, dos jovens, da
agricultura familiar, dos idosos, dos trabalhadores das reciclagens de lixo,
da economia solidária, etc.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
219
Os novos movimentos sociais de hoje se distanciam mais do caráter
classista e desenvolvem ações particularizadas, com menos identidades
específicas e para além das condições socioeconômicas do contexto, com
poucas referências diretas a outras sociabilidades diferentes da capitalista
ou contra a dominação classista. Os elementos mais expressivos não situam uma organização coletiva específica de grupos subalternos e, sim,
buscam um equilíbrio entre poderes (forças do Estado, da sociedade
civil, das empresas).
Neste sentido, os movimentos sociais são muito importantes
de serem estudados, porque trazem, como observa Touraine (1999a),
a trama, o coração da sociedade contemporânea, cuja luta é racional,
e são elementos de reposição ou criação da ordem que existia ou não.
Por serem mais livres de doutrinações fechadas, atraem a presença de
muitos indivíduos com o desejo pessoal de salvaguardar a unidade da
personalidade dividida entre o mundo instrumentalizado e o mundo
comunitário, bem como de pessoas que lutam coletiva e pessoalmente
contra os poderes que transformam a cultura em comunidade e o trabalho
em mercadoria e pessoas que procuram o reconhecimento interpessoal
e, também, institucional do outro como sujeito. Os movimentos sociais,
assim, podem se constituir no grande ator social a substituir, inclusive,
os partidos políticos (Touraine, 1999a, p. 103).
É evidente, no entanto, que, se o movimento social vai em direção de recuperar os elementos lógicos de justiça que pertencem a um
coletivo, ele também se contrapõe à sociedade que essá negando tais
elementos. Neste sentido, o movimento é social e transformativo em
sua natureza. Esse é o caso do movimento ecológico, do movimento
de mulheres, do movimento pela reforma agrária, do movimento pelos
direitos humanos, apenas para citar os movimentos culturais mais amplos
de hoje.
É Alain Touraine quem nos dá a possibilidade desta leitura.
Vejamos:
220
Enio Waldir da Silva
A idéia de movimento social busca demonstrar a existência, no interior
de cada tipo societal, de um conflito central. Este opunha a nação e o
príncipe, depois trabalhadores e os empregadores. Hoje em dia existe
tal conflito? ... sim, o cultural é o conflito de hoje, pois leva um sujeito
a lutar, de um lado, contra o triunfo do mercado e das técnicas e, de
outro, contra os poderes comunitários fechados. Este conflito é tão
central hoje como foi o conflito econômico na sociedade industrial...
a noção de movimento social só é útil se permitir pôr em evidência
a existência dum tipo particular de ação coletiva, aquele tipo pelo
qual uma categoria social, sempre particular, questiona uma forma
de dominação social... invocando contra elas valores sociais e orientações gerais da sociedade, que ela partilha com seu adversário, para
privar este de legitimidade... O movimento social é muito mais do
que um grupo de interesses ou um instrumento de pressão política.
Ele questiona o modo de utilização social de recursos e de modelos
culturais (Touraine, 1999a, p. 113).
Neste sentido, não é possível indexar um movimento social como
conservador, ou não transformativo. Hoje esses movimentos carregam
conflitos que opunham vida social e economia, vida privada e comunidade e trazem consigo o apelo para que as relações sociais sejam as
bases da economia e das formas de poder, apelando para a igualdade e
inclusão e para globalização sem exploração. Segundo Touraine (1999a),
a dissociação entre os universos econômicos e o cultural provoca a degradação tanto em um como em outro e ameaça a personalidade individual,
pressionando o indivíduo a se salvaguardar (refugiar-se no Eu individual)
ou reconstruir a sua capacidade de ação, a unidade de sua existência.
Certo, porém, é que um movimento social não está a serviço de
um modelo de sociedade perfeita ou da construção de um partido político ou de um poder comunitarista. Por lutarem por direitos do sujeito,
da sua liberdade e da igualdade, tornam-se movimentos ético-morais.
Quando, porém, se submeteram a uma ideologia ou programa, como
nos anos 70, se tornaram frágeis e abafaram suas originalidades na luta
por inovações sociais.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
221
Longe de ser um personagem profético, um movimento social é um
conjunto mutável de debates, de tensões e de divisões internas...
Consciência de si, recriação estética, estratégia política e solidariedade
de base misturam-se e se combatem em redor do movimento social,
sem que uma mensagem doutrinal e política seja formulada por algum
de seus componentes (Touraine, 1999a, p. 117-118).
Essa é sua grandeza e sua fragilidade. Grandeza porque é aberto e
dialógico; fraqueza, por não conseguir maior autonomia e uma organização
mais permanente, capazes de assegurar conquistas numa base territorial e ajudar em outros espaços. Os que participam de um determinado
movimento social querem pôr fim ao intolerável participando numa
ação coletiva, mas mantêm também uma distância nunca abolida entre
a convicção e a ação, uma reserva inesgotável de protesto e esperança.
A ação de um movimento social é sempre inacabada e vive de diálogo
conflitual.
Ademais, os movimentos sociais não são homogêneos, tanto em
suas interioridades quanto em suas exterioridades, o que dificulta relações
mais aproximadas. No fundo, lutam por uma nova sociabilidade, mas os
grupos mais populares têm premências para dirimir as condições de vida e
estabelecer direitos mínimos de cidadania, que os faz concentrar esforços
mais imediatos. Isso também dificulta a integração com a sociedade civil
para que, enquanto movimentos, possam repensar valores mais próprios
da autonomia e da emancipação. Conservadora, a sociedade civil e o
Estado acabam ficando de lado e distantes das causas mais importantes
dos movimentos sociais. Com essas fragilidades não consolidam conquistas e são tratados como clientes do Estado e considerados de forma
carismática, clientelista por algumas organizações da sociedade civil. Os
mediadores, como ONGs, partidos, igrejas, universidades, sindicatos,
associações e outras instituições, possuem limites em suas ações objetivas,
impedindo-os de ações mais próximas dos movimentos sociais. Uma das
consequências disso é a subalternização de cidadãos reduzidos à figura
de público-alvo ou beneficiário da ajuda e caridade social, quer dizer, a
privatização da questão social.
222
Enio Waldir da Silva
No início deste século 21 os movimentos sociais se tornaram
formas de ação coletiva com graus de organização e representavam o
conflito ou a contradição entre setores da população pela conquista e/
ou administração de recursos e bens econômicos, culturais e políticos.
Tentavam também promover modificações e transformações das relações
instituídas na sociedade, havendo, igualmente, movimentos sociais que
almejavam a manutenção das instituições sociais. Afinal, os movimentos
sociais emergem das contradições fundamentais da sociedade e/ou de
demandas conjunturais decorrentes de carências econômico-culturais.
Esses fatores explicativos da emergência dos movimentos são mediados
por elementos de práticas organizativas e participativas de grupos sociais,
por suas interpretações e representações sociais sobre a experiência social
e sobre as forças sociais que dizem representar, bem como sobre aquelas
que antagonizam, pela posição de agentes externos e pelas políticas
públicas existentes (Kauchakje, 2008).
Como destaca Bauman (2004), a classe média se insere nos movimentos sociais, dado às ansiedades e medos de perder a pouca segurança que possui. A ansiedade e a insegurança são uma constante nos
movimentos sociais, o que nos leva à identificação com alguns deles,
como os direitos humanos, as mulheres, o ecológico e, agora, abre-se
uma grande possibilidade de reforçar o movimento social da economia
solidária. São lutas que vão ao encontro da subjetividade de cada um e se
encaixam nas teias de relações sociais exploradas pela lógica capitalista
e, por isso, não se esgotam com a institucionalidade ou a mera abertura
para a participação social no poder estruturado. Alcançar a felicidade de
modo solidário é próprio da natureza humana, mas foi justamente essa
grandeza potencial que os tempos de exploração capitalista abafaram,
estraçalharam e desviaram da esfera pública.
Participar de movimentos sociais é despertar para essa compreensão e libertar as inteligências das grades da razão instrumental. Muitas
vezes se sabe que não basta os movimentos sociais serem mediadores
na busca de respostas para as ansiedades cotidianas, mas sabe-se que
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
223
neles se encontra a ressonância maior das falas que clamam por vidas
emancipadas, solidárias e cooperadas. Ali se vê a possibilidade objetiva
de ir experienciando modos novos de sociabilidades e os indivíduos
elevam-se até o ponto de suas vozes se tornarem uma gramática social
bem articulada, que refletem a consciência de si plena de sentido, para
além da cotidianidade e conectada com outras lutas coletivas por sociedade alternativa.
É neste sentido que outro movimento começa a tomar corpo e
tem um sentido civilizacional para onde canaliza ações e pensamentos
mais transformativos e alternativos: a economia solidária.
Economia Solidária como Movimento Social
Como já referimos, o debate teórico sobre movimentos sociais
teve grande incidência nos anos 1970 e 1980 e tratou, especialmente, dos
movimentos de trabalhadores e populares urbanos, decrescendo a partir
da década de 90, quando a temática mais comum abordava os denominados novos movimentos sociais, entre eles o de gênero e o ambientalista. Esses debates enfatizaram as diferenças culturais e ambientais e
incluíram também o tema das redes em que os movimentos sociais são
os atores principais em luta para constituir sujeitos políticos. As redes
sociais agregaram movimentos que estavam dissipados e fizeram isso
por meio de processos comunicativos de experiências democráticas e
democratizantes, articuladas em torno das lutas por direitos e da solidariedade política local e planetária em conjunto com outros atores, como
Organizações Não Governamentais, órgãos internacionais de defesa de
direitos e organizações do Estado.10
Ver Kauchakje e Ultramari, 2007. Para estes autores, são exemplos de tal perspectiva os
estudos sobre as seguintes redes: a) DH Net – Rede de Direitos Humanos e Cultura
–, que “funciona como portal de informações, oferece espaço gratuito em seu domínio
para que diversas organizações não-governamentais [...] e integrantes do movimento
de direitos humanos construam sua própria página na WWW” (Doimo; Mitre; Maia,
10
224
Enio Waldir da Silva
Podemos agregar a estes debates a ideia de que os grandes movimentos sociais atuais são os de gênero, ecológico, dos direitos humanos
e da economia solidária, sendo este último uma agregação das lutas pelo
uso da terra, da agricultura familiar, da produção alimentar ecológica
e dos trabalhadores com o lixo urbano, dos pequenos artesãos e das
minorias.
A economia solidária se constitui em um movimento social amplo
e tem um sentido societal, pois reúne, genericamente, três perspectivas:
uma nova qualidade ao mundo do trabalho, novas formas de vivência
coletiva e as novas formas de pensar e reposicionar a relação do homem
com a natureza, com o outro e com a cognicidade. A economia solidária
está posicionada nas fissuras existentes entre o Estado e a sociedade civil,
integrando sujeitos para além das classes sociais, contendo proposições
de uma nova civilização.
A trajetória histórica da economia solidária não é possível de ser
traçada de modo objetivo e estanque. É possível concluir, no entanto,
que ela nasce junto as culturas de resistência aos processos produtivos
e distributivos desiguais e exploradores. Ela expressa as energias de
quem guardou a compreensão de que a marca do ser humano, sua lógica, é a solidariedade e não a competição, como fora ensinado por muito
2005, p. 107); b) rede ambientalista, que articula, por meio da Internet, tal como a “coalizão dos grupos ambientais nos Estados Unidos, Canadá e Chile, formada a partir dos
Friends of the Earth, Sierra Club, Greenpeace, Defender of Wildlife, The Canadian
Environment Law Association e muitos outros...” (Castells, 1999b, p. 162); c) redes de
identidade “articuladas em larga medida por ONGs feministas – ligando organizações
de mulheres negras, mulheres indígenas, defensoras de direitos das lésbicas, feministas
socialistas...” (Alvarez, 2000, p. 406); d) Fórum Social Mundial, que articula grupos
de ONGs, movimentos e sindicatos para resistir e “propor alternativa à primazia do
mercado e do capital internacional” (Gohn, 2003, p. 57); e) rede identificada em sítios
da Internet conectados em torno do tema do direito à habitação em Curitiba-PR e que
expressa uma forte interação entre organizações não-governamentais, fóruns e movimentos sociais (Kauchakje; Ultramari, 2007).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
225
tempo. Agrega também a ideia de que o trabalho é para edificar a vida
e não uma carga pesada de autodestruição das forças naturais, físicas e
intelectuais.
A economia solidária seguiu à margem da avalanche da economia
da exploração e guardou íntima relação com a vida afetiva das famílias.
Inicialmente era possível ver os registros dessa forma de viver e produzir renda de modo coletivo e solidário na agricultura familiar e nas
empresas familiares.11 Vemos uma expressividade desse modo de vida
nos socialistas utópicos, pois os ideais de cooperação eram relatados por
vários cientistas sociais do século 19, na Inglaterra, nos Estados Unidos,
na França, etc., onde operários e sindicalistas tentaram dar mais institucionalidade às experiências de produção e distribuição coletiva como
uma forma de vida mais apropriada.
A economia solidária nasceu pouco depois do capitalismo industrial,
como reação ao espantoso empobrecimento dos artesãos provocado
pela difusão das máquinas e da organização fabril da produção... em
1817, Owen apresentou um plano ao governo britânico para que os
fundos de sustento dos pobres, cujo número estava se multiplicando...
estes fundos deveriam ser investidos na compra de terras e construção
de aldeias cooperativas, para eles produzirem para a própria subsistência (Singer, 2002, p. 25).
Nesse contexto de reação e de afirmação de grupos ameaçados
pela exclusão produtiva seguiu-se uma série de experiências iniciadas
por outros atores no interior da própria Revolução Francesa, formando
diversos tipos de sociedades cooperativas (operárias, professores, de trocas, etc.), associações de famílias, associação de consumidores, sindicatos,
paróquias, etc. Foi o cooperativismo, no entanto, que se destacou como
a base de um movimento alternativo ao modo de produção capitalista,
Neste sentido, para uma história da origem da Economia Solidária, é preciso ler Singer,
Paul. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.
11
226
Enio Waldir da Silva
sendo Robert Owen e Charles Fourier os atores intelectuais que pesquisaram essas experiências e as defenderam no contexto de reação ao
capitalismo (Singer, 2002).
É fruto das práticas dessa metodologia cooperativa que se formaram os princípios do cooperativismo, instituídos, em 1938, no Congresso
da Aliança Cooperativa Internacional, que consolidou: a livre entrada ou
saída de cooperados, a gestão democrática, no qual cada associado tem
direito a apenas um voto, a limitação da remuneração do capital (juros)
e a distribuição de sobras de forma equivalente (Frantz, 2005).
Depois de um longo tempo de expansão difusa, a economia
solidária foi reinventada no meio da falência de processos empresariais
capitalistas, desemprego em massa, expulsão do homem do campo
pelas empresas agrícolas, concentração urbana, crise alimentar e crise
ecológica.
As iniciativas, no Brasil, para tornar a economia solidária um movimento social foram destacadas em 1995 no seminário Formas de combate
e de resistência à pobreza, no 7º Congresso Brasileiro de Sociologia e no
III Encontro Nacional da Associação Nacional dos Trabalhadores em
Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteaf), em 1996.
Os debates mostraram que a economia popular em experienciação no
país já viam nos empreendimentos solidários alternativas promissoras e
inovadoras para uma economia social, pois guardavam em si elementos
do solidarismo e da cooperação. Paul Singer (1998) mostrava que, em
meio à crise do trabalho, começaram as propostas de soluções, vontade
de lutar, disposição ao sacrifício e, sobretudo, muita solidariedade. Esse
era o movimento da economia solidária, que reúne cooperativismo autogestionário e solidário como proposta para um desenvolvimento que
reconstrua o global a partir da diversidade do local e do nacional (Arruda;
Boff, 1996, p. 27).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
227
A série de encontros discutindo o novo pensamento gerou um
verdadeiro movimento social com militantes que se esforçavam para
tornar evidente a importância de a economia solidária ser fortalecida e
organizada, como destaca Lechat:
Em 1999, na Universidade Católica de Salvador, por ocasião do seminário: Economia dos setores populares entre a realidade e a utopia, foi
publicado livro com o mesmo título. Após isto, Paul Singer organizou a
obra intitulada A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta
ao desemprego, onde mais uma vez os três autores foram reunidos com
muitos outros. Antes disto, Paul Singer e Marcos Arruda (em locais
diferentes), como outros intelectuais participaram das “oficinas pedagógicas ou culturais” organizadas à noite pela CUT. Estas reuniam
trabalhadores desempregados para debater alternativas de geração de
emprego e renda, entre as quais dominava o tema da autogestão, da
co-gestão e do cooperativismo. Singer e Gaiger foram reunidos pela
Rede Interuniversitária de Estudos e Pesquisas sobre o Trabalho
(Unitrabalho) para realizar o projeto Economia solidária e autogestionária, em janeiro de 1999. Muitos outros acadêmicos e atores estão
neste campo e outros virão, mas esta exposição é restrita demais para
apresentá-los todos (2004).
Seguem-se os esforços para construir entendimentos de que os
empreendimentos da economia solidária são uma forma pela qual o trabalhador se apodera de uma cidadania ativa em vista da construção de
outra cultura econômica e gerencial. Dela é possível emergir geradores
de renda e trabalho, as cooperativas de consumo solidário e as cooperativas de crédito solidário, os clubes de troca, as associações sem fins
lucrativos que não produzem renda para seus sócios, as organizações
cooperativas ou não, cujo objetivo limita-se ao bem-estar dos seus sócios
e têm dimensão política capaz de produzir novas relações sociais em vista
de uma mudança de sociedade. Os valores de solidariedade cultivados
na economia solidária passaram a ser uma construção que se afina com
algo de desejo, de projeção, de idealismo, de justiça social e se tornaram
objeto de teses, artigos, cursos de formação via sindicatos, organizações
228
Enio Waldir da Silva
de desenvolvimento solidário e órgãos do governo e assessoria a alguns
desses empreendimentos. Nas universidades, por exemplo, multiplicamse as incubadoras de cooperativas populares.12
Passou a economia solidária a se constituir experiências concretas
heterogêneas que podem ser assim agrupadas: os projetos alternativos
formados por pessoas de baixa renda situadas à margem do mercado
formal, incluídos os clubes de troca; as cooperativas autogestionárias de
trabalho ou de produção (nas quais encontramos, por exemplo, as cooperativas dos assentados do MST), e as empresas auto ou cogeridas pelos
seus trabalhadores oriundos de empresas falidas do mercado formal. As
características comuns aos empreendimentos solidários são: a participação
coletiva no trabalho e nas decisões de gestão, a posse coletiva dos bens
e a repartição das sobras entre os trabalhadores, com a eventual constituição de um fundo solidário para a criação de novos empreendimentos
solidários. Daí, então, apoiadores de toda ordem começam a aparecer:
Encontramos projetos financiados pela Cáritas (Igreja Católica), por
ONGs estrangeiras, pela CUT, pelos governos estaduais (como o do
Rio Grande do Sul) ou municipais, e por órgãos públicos como o Finep
(Programa de Financiamento das Empresas Autogestionárias, lançado
em 1996) ou, ainda, por bancos cooperativados, mas trata-se, em geral,
de cofinanciamentos onde encontramos tanto verbas públicas como
da sociedade civil (Lechat, 2004, p. 132).
Atividades intelectuais se integram ao movimento com seus
estudos, cursos, pesquisas, explicictando-se em teses, em encontros,
seminários, publicações acadêmicas. Ampliam-se atividades de formação,
promoção e apoio baseados em financiamentos, assessorias para fomento
As incubadoras de economia solidária se tornaram essenciais na fundamentação da
economia solidária e na assessoria à organização, formação técnica a associação e empreendimento solidário. Em 1998 teve início a Rede de Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares (ITCPs), hoje formada por 45 incubadoras. A maioria delas é
organizada por universidades. A Unijuí tem experiências de dez anos no projeto de extensão chamado de Incubadora de Economia Solidária, Desenvolvimento e Tecnologia
Social (Itecsol) – filiada à rede de ITCPs.
12
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
229
e consolidação de cooperativas populares. Os empreendimentos são
reunidos em encontros, feiras, clubes, centrais, fóruns locais, regionais,
nacionais e internacionais, formam-se redes (inclusive eletrônicas) e
entidades de apoio nacional e internacional para a elaboração de uma
legislação apropriada, de marcas ou etiquetas para marketing, acesso ao
crédito, formação e qualificação, moedas alternativas, etc.
Por isso a economia solidária, hoje, se constitui numa agregação
de lutas diversas, mas é, ao mesmo tempo, um espaço livre para a experimentação organizacional, porque só a tentativa e o erro podem revelar
as formas organizacionais que combinam o melhor atendimento do
consumidor com a autorrealização do produtor. A expressão economia
solidária é própria dos discursos que criticam a economia capitalista e,
segundo Frantz (2008), vai ter novos rumos práticos nos debates relacionados aos esforços da luta contra a exploração do trabalho humano,
no contexto das relações econômicas capitalistas e de frustração da
experiência de socialismo real existente, no século 20, posta em prática
pelo mecanismo do planejamento e intervenção estatal central. A essa
tradição de luta, então, ligam-se
as demais formas (comunitárias, artesanais, individuais, familiares,
cooperativadas, etc.) e a partir daí passaram a ser tratadas como “resquícios atrasados” que tenderiam a ser absorvidas e transformadas
cada vez mais em relações capitalistas. De fato, muitas dessas formas
foram transformadas em simples instrumentos técnicos de inserção
na economia de mercado sob a lógica da remuneração do capital, da
acumulação e do lucro (Frantz, 2008).
Na medida em que o trabalho foi perdendo seu sentido humano
para a lógica do capital, mais trabalhadores foram excluídos dos seus empregos e mais se ampliou o trabalho precário, sem garantias de direitos. É
justamente aí que foi absorvido o contingente de excluídos da economia
formal, chegando, em alguns países, a significar a metade das atividades
da mão de obra (Brasil, no final da década de 80).
230
Enio Waldir da Silva
A economia solidária reúne práticas de relações econômicas e
sociais que possibilita a sobrevivência cotidiana de milhões de famílias
em todo o mundo. A diversidade de elementos internos e externos
mostra que são práticas culturais alternativas de produção e distribuição
de renda com identidade própria. São práticas fundadas em relações
de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o
ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez
da acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular.
Segundo Frantz, são pontos de convergência:
... a valorização social do trabalho humano, a satisfação plena das
necessidades de todos como eixo da criatividade tecnológica e da
atividade econômica, o reconhecimento do lugar fundamental da
mulher e do feminino numa economia fundada na solidariedade, a
busca de uma relação de intercâmbio respeitoso com a natureza, e
os valores da cooperação e da solidariedade... A economia solidária
constitui o fundamento de uma globalização humanizadora, de um
desenvolvimento sustentável, socialmente justo e voltado para a satisfação racional das necessidades de cada um e de todos os cidadãos
da Terra, seguindo um caminho intergeracional de desenvolvimento
sustentável na qualidade de sua vida (2008, p. 4).
Embora sejam essas concepções de economia solidária relativamente idealistas e defendidas mais por agentes, mediadores e intelectuais do que pelos próprios praticantes das atividades alocadas, de fato,
o amadurecimento de todo o discurso de trabalhadores engajados no
movimento a defende com entusiasmo contagiante por terem descoberto
que a vida pode ser vivida de outro modo.
Os encontros de formação traduzem as vivências práticas e criam
uma unidade de entendimento de que o valor central da economia
solidária é o trabalho, o saber e a criatividade humanos e não o capitaldinheiro e sua propriedade sob quaisquer de suas formas. Além disso,
busca a unidade entre produção e reprodução (capital e trabalho), evitando a contradição fundamental do sistema capitalista, que desenvolve a
produtividade, mas exclui crescentes setores de trabalhadores do acesso
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
231
aos seus benefícios e busca outra qualidade de vida e de consumo, e isto
requer a solidariedade entre todos os povos. Para a economia solidária,
a eficiência não pode limitar-se aos benefícios materiais de um empreendimento, mas se define também como eficiência social, em razão da
qualidade de vida e da felicidade de seus membros e, ao mesmo tempo,
de todo o ecossistema. A economia solidária é um poderoso instrumento
de combate à exclusão social, pois apresenta alternativa viável para a
geração de trabalho e renda e para a satisfação direta das necessidades
de todos, provando que é possível organizar a produção e a reprodução
da sociedade de modo a eliminar as desigualdades materiais e difundir
os valores da solidariedade humana (Frantz, 2008).
Concebo a economia solidária, então, como um processo emancipatório que se expressa como uma tecnologia social, ou seja, um conjunto de procedimentos racionais preparados para a geração de trabalho
e renda que são basilares para promover o desenvolvimento sustentável
– econômica, social, política e naturalmente. Desenvolve-se no seio de
uma sociedade e não se desloca de sua dinâmica, promovendo a inclusão
e tendo caráter popular. Ou seja, como tecnologia social, a economia
solidária compreende produtos, técnicas ou metodologias replicáveis,
desenvolvidos na interação dos coletivos, e que representam soluções
efetivas de problemas pela perspectiva de transformação social e qualidade de vida, como observa Neto:
Tecnologias desenvolvidas pelos próprios agentes sociais que as
utilizam em seu trabalho, sem respaldos institucionais significativos,
geralmente demandando intenso trabalho, podem ser classificadas
como tecnologia social... precisam ser entendidas em sua relação dos
grupos diretamente atingidas por ela e dos efeitos econômicos, sociais
e ambientais decorrentes de sua utilização (2010, p. 126).
O sentido de tecnologia aqui referido não se insere naquilo que é
comumente chamado de efeito da ciência técnica em si. Estamos falando
de ressignificação dos processos de democratização da cognicidade em
suas interfaces com processos inclusivos, cuja base é a metodologia de
232
Enio Waldir da Silva
trabalho de grupos combinando processos autogestionários e cooperativos que fortalecem capacidades e iniciativas em setores sociais como a
agricultura familiar, habitação popular, energias alternativas, reciclagem
de resíduos, produção e conservação de alimentos, artesanato, entre
outros. Como tal, a economia solidária é sólida onde é fruto da visão
de mundo dos excluídos e suas reais necessidades e são eles mesmos
construtores de conhecimentos. Por isso, a economia solidária tem uma
desconfiança com o viés paternalista, assistencialista ou dos fazedores de
“política sociais” ou transferidores de tecnologia, o que confere incipientes entendimentos do real valor da economia solidária, tendendo a
ser definida como uma questão de responsabilidade social empresarial
ou mesmo como uma busca do elo perdido por aqueles que lutavam por
uma sociedade socialista.
Embora contenha esses elementos ideológicos que se ligam aos
objetivos de inclusão social, movimentos sociais, políticas públicas ou
ações promovedoras, é preciso ser interpretada na complexidade maior
das atuais sociabilidades, pois trata-se de uma reforma de pensamento e
um pensamento alternativo que se enraíza em redes de coletivos humanos promotores de ações que se configuram como culturais e estruturas
de poderes compartilhados. Neste sentido, talvez pudéssemos inserir
a economia solidária como germe de um novo paradigma de desenvolvimento social, que se queira sustentável econômica, social, política e
ecologicamente.
Essa tese está baseada no fato de que a economia solidária se consolida mais nos espaços caracterizados por alto grau de vulnerabilidade
e exclusão social e, também, é uma nova opção de economia no que
tange ao fortalecimento da cidadania, à organização justa da sociedade
e, ainda, que procura alternativas civilizacionais para além do modo capitalista de produção. Além do mais, o conceito de economia solidária
sempre esteve relacionado aos empreendimentos autogestionários que
geralmente possuem reciprocidade no centro de sua ação econômica, na
qual as pessoas se associam de forma voluntária objetivando satisfazer
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
233
necessidades sociais e culturais. Uma vez associados esses trabalhadores
são donos do empreendimento, sendo de inteira responsabilidade deles
sua gestão, em que, geralmente combinam a autonomia de gestão a uma
atitude de responsabilidade e de envolvimento social e, também, com
a construção de espaços públicos para promover discussões. Em sua
maioria, os atores envolvidos são trabalhadores excluídos do mercado
formal, que buscam, por meio desses empreendimentos, melhorar a
realidade em que vivem.
Fruto da perspectiva de ser uma economia social voltada para os
historicamente excluídos, o movimento da economia solidária se esforça para integrar trabalhadores para que estes gerem, associadamente,
empreendimentos autogestionários, cooperativos e sustentáveis. Esses
processos fazem parte dos princípios e das experiências consolidadas da
economia solidária, significando um processo emancipatório que reúne
tecnologias sociais. Constituída em rede local, regional, estadual, nacional
e internacional, a economia solidária cria novas consciências fortalecidas
por práticas eficazes e alternativas: grupos de produção e consumo solidário, financiamento solidário, clubes de trocas, “moedas verdes”, sistemas
locais de emprego, processos autogestionários de empreendimentos de
trabalhadores, organização de marcas da sustentabilidade e produção
familiar, agricultura, artesanato, feiras especiais, etc., que se liga a redes
geradoras de ordenamentos coletivos democráticos.
A crise do capitalismo dos anos 80 fez crescer o número de pessoas trabalhando na informalidade e que acabaram se submetendo à
precarização do trabalho. Para garantir a sobrevivência em meio à falta
de emprego, o trabalhador abdica de direitos e se sujeita a trabalhos em
condições precárias. O desemprego passou a ser uma ameaça para os
trabalhadores que, porventura, reivindicassem melhores condições de
trabalho foram fazendo com que a classe não tivesse poder de barganha
na negociação com os empregadores. Neste contexto, outras formas de
organização do trabalho vão surgindo e se firmando na sociedade, em sua
maioria em virtude da necessidade de encontrar alternativas à geração
234
Enio Waldir da Silva
de renda. A economia solidária foi reconhecida, também, por fazer parte
das estratégias de minimizalização da barbárie do desemprego estrutural, atuando em lacunas que o Estado não preenchia. Desta maneira se
constituíam as experiências coletivas de trabalho e produção, alicerçadas
em concepções de racionalização diferentes da capitalista.
A economia solidária possui esse aspecto de diferença, e essa é a
sua grandeza e também um dos seus maiores problemas. Grandeza por
agregar esperanças de muitos grupos excluídos e muitos apoiadores do
pensamento alternativo. Problemas porque grande parte dos grupos nela
inseridos efetivamente querem e precisam sobreviver, tendo ainda pouco
envolvimento com as políticas de transformações sociais, dificultando
sua associação a “nova ideologia” de “transformação” do capitalismo.
Essa dimensão utópica e idealista foi vislumbrada na medida em que
canalizou o discurso da esquerda desesperada com os rumos que tomou
a democracia representativa burguesa. Talvez por essa razão a maioria
dos envolvidos diretamente com a economia solidária a caracterizem
como um mecanismo de sobrevivência e percebam até como um risco
de se idealizar práticas que não são reais. Seria inviável, no entanto, fazer
com que todas as pessoas agissem calcadas nos princípios da economia
solidária pois, para além da opção de renda ou trabalho, sua configuração
está vinculada à necessidade de sobrevivência de parcela da população.
À medida que podem os trabalhadores fogem dela e entram para um
emprego. Essa é outra fragilidade, especialmente para os trabalhadores
com materiais recicláveis.13
O trabalho com materiais recicláveis vem adquirindo uma complexidade e uma importância social cada vez maior, não somente diante das novas estratégias de políticas
públicas para o lixo, nas pesquisas sobre o equilíbrio ambiental, como também nos
debates das novas esferas públicas sobre a configuração de novos direitos: direitos
culturais, direito à cidade, direitos ambientais e a ampliação da cidadania e da responsabilidade civil. A questão do lixo é indissociável das atividades desenvolvidas pelo
homem no seu processo de transformação da natureza em produtos para satisfazer suas
necessidades. Essa questão do lixo perpassa a história da civilização e hoje é agente
de primeira linha na territorialidade urbana onde figuram obras de Engenharia, aterros
sanitários esculturas de incineração, depósitos de sucata, lixões e áreas de descartes
13
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
235
Os agentes intelectualizados da economia solidária esforçam-se
para legitimar o grandioso ideal que defendem.14 Os sujeitos das políticas públicas a percebem como uma estratégia de ação popular que os
legitima no poder e poucos são aqueles que realmente apostam na consolidação de coletivos autogestionários e autossustentáveis. Líderes locais
esperam políticas públicas da União, que inclusive ajudem as políticas
locais a não terem de se ancorar em ações de economia solidária ou fazer
indiscriminados de resíduos. Estas imagens adjetivam visões negativas sobre o lixo.
É nestas áreas que proliferam atividades de sobrevivência de camadas de população,
imigrantes pobres, camponeses expulsos do meio rural, pobres excluídos do trabalho
empresariado ou público, etc., formando novos bairros onde muitos indivíduos vão
afirmando a cidadania que lhes foi negada. Nestes momentos de escassez de matériaprima, os resíduos que estão no lixo se transformaram numa opção para gerar renda e
trabalho para um verdadeiro exército de catadores, cujo trabalho, nos últimos tempos
vem carregando o signo da ecologia e da nova cidadania. O Movimento Nacional dos
Catadores promoveu entre os dias 28 e 30 de outubro, na cidade de São Paulo, a feira de
tecnologia social Reviravolta Expocatadores 2009, um evento voltado para as associações e
cooperativas de catadores de materiais recicláveis da América Latina e Caribe e demais
atores com interesse no tema. O evento reuniu mais de 1.500 catadores de todos os
Estados brasileiros, América Latina e Caribe para um encontro internacional de troca
de experiência e debate de políticas e ações voltadas à inclusão social dos catadores
de materiais recicláveis. O encontro internacional reuniu representantes do Uruguai,
Argentina, Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Costa Rica, Porto Rico, Peru,
além da Índia. Em 2010 o evento dobrou a quantidade de participantes. Consultar: <www.
expocatadores.com.br>.
No último congresso da Rede de ITCPs se escreve à presidente da República neste
teor: o potencial já demonstrado pela economia solidária de contribuir com o resgate
humano e a erradicação da pobreza e da miséria; a capacidade da economia solidária em
gerar oportunidades de geração de trabalho e renda para setores que não conseguem
se inserir no mercado de trabalho tradicional; o compromisso da economia solidária em
promover o desenvolvimento territorial, sustentável e solidário, em que a produção da
riqueza tenha como finalidade a qualidade de vida; a natureza transversal e intersetorial
da economia solidária, que exige um espaço institucional de articulação e organização
do conjunto de políticas relacionadas; o crescimento expressivo da economia solidária
em todos os segmentos da sociedade civil e em políticas públicas municipais e estaduais; os “13 compromissos para fazer avançar a economia solidária como estratégia de
desenvolvimento”, assumidos pela campanha eleitoral; e a necessidade de ampliar o
patamar das políticas públicas de economia solidária para contribuir com os objetivos
centrais apontados por seu programa de governo (Carta de Porto Alegre. 30.3.2011. III
Congresso da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares; I Simpósio Internacional de Extensão Universitária em Economia Solidária; XVI
Encontro Nacional da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares).
14
236
Enio Waldir da Silva
programas para atender às necessidades cidadãs dos trabalhadores ali
envolvidos. Os agentes da economia solidária defendem que ela não é
simplesmente uma alternativa à renda, e sim uma alternativa ao próprio
sistema. Acreditam que as práticas dessa “nova economia”, ao se difundir
e ganhar espaço no Brasil e no mundo, irão suplantar o sistema capitalista. Até porque a crise enfrentada hoje, aparente na miséria, violência,
desigualdade social e degradação ambiental, está deixando o mundo
em estado de calamidade. Esses autores defendem essa hipótese sobre
a economia solidária pelo fato de ela proporcionar às pessoas condições
de vida mais dignas de trabalho, melhorando as relações humanas entre
si e sua relação com o meio ambiente. Muitas atividades dos agentes,
principalmente das Incubadoras de Economia Solidária e da rede de
apoio, comprovam que os amplos diálogos com os trabalhadores fazem
com que eles compreendam esses potenciais transformativos do movimento da economia solidária, mas, enquanto isso, precisam sobreviver
e resolver suas ansiedades básicas.
Para Frantz (2008), a economia solidária é o embrião de uma nova
cultura de responsabilidade individual e coletiva, de cooperar para solidarizar e que, para tanto, abriga indivíduos livres que lutam por muito mais
do que a mera satisfação das necessidades imediatas. Esse processo relacional é educativo porque cria a cultura de que o outro é bom, acessível
e importante para um viver junto aos outros. Mostra que a solidariedade
não é misericórdia do outro, mas integração das qualidades daquilo que
se faz, valorizando o trabalho humano para emancipação transcendente, que coloca em cooperação as inteligências e as boas energias do ser
humano. Reconhece a solidariedade, a cooperação, a sustentabilidade
e o equilíbrio ecológico como respostas aos grandes problemas sociais
que nos atingem. É como um movimento social e pedagógico com um
significado político que encarna a construção compartilhada da ética e
da vida humana, permeada pela alegria do e no conhecimento coletivo
(Barcelos; Rasia; Silva, 2010, p. 181).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
237
Direito, Conflitualidade e Violência
O tema da violência e da conflitualidade são os mais recorrentes
quando o assunto é a crise civilizacional que estamos vivendo. No livro
Violência e Cidadania – práticas sociológicas e compromissos sociais, Jose
Vicente Tavares dos Santos15 assim se manifesta, fazendo um convite
à leitura:
Presenciamos as inter-relações simbólicas entre normas sociais,
mal-estar e violência simbólica, para cuja disseminação os meios de
comunicação de massa contribuem, produzindo a dramatização da violência e difundindo a espetacularização do crime violento, enquanto
um efeito da violência simbólica exercida pelo campo jornalístico... a
maioria do jovens estão na escola e é nesta que a violência juvenil mais
se manifesta, mas é preciso conhecer as causas econômicas, sociais,
políticas e culturais que a produzem, pois a fragmanetação do espaço
urbano se manifesta pela formação de núcleos de populações pobres
e miseráveis, para as quais a violência sistemática pode fazer parte de
um modo de ganhar a vida e viver socialmente: a chamada violência
juvenil atual pode ser vista como uma estratégia de reprodução ou de
sobrevivência de setores excluídos... na sociedade brasileira a disseminação da violência criminal foi acompanhada de uma mudança das
formas de delito: o fenômeno dos bandidos sociais na realidade agrária
migra alguns de seus traços para a sociedade urbana na qual houve
o crescimento da delinqüência urbana – crimes contra o patrimônio,
homicídios, crime organizado, conflitos interpessoais... a crise das
polícias é marcante: em todos os países se observa a violência policial,
a corrupção, a ineficácia na previsão das violências e a ineficiência na
investigação. Existe uma evidente crise do sistema de Justiça penal,
pois o acesso à Justiça é precário, a seletividade orienta os processos
penais e a normatividade da lei não se efetiva. A organização policial
brasileira se caracteriza por um campo de forças que se estrutura a
partir de três posições: o exercício da violência legítima, a construção
do consenso e as práticas de excesso de poder. As relações dinâmicas e combinatórias destes três vetores definem a função social da
Trata-se do texto introdutório ao livro. Ver Tavares dos Santos, José Vicente; Teixeira,
Alex Niche; Russo, Maurício (Org.). Violência e cidadania – práticas sociológicas e compromissos sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, Sulina , 2011. 553p.
15
238
Enio Waldir da Silva
organização policial no Brasil contemporâneo... A crise do Estado e a
aplicação de políticas neoliberais ocorreram também associadas a uma
quebra do controle social informal que realizavam família, escola, os
clubes de bairro, a igreja, as bibliotecas vicinais, entre outros. Porém,
a formalidade da justiça penal não conseguiu substituir tais controle
sociais (Tavares dos Santos, 2011).
Segundo este autor, as Ciências Sociais são marcadas pela preocupação política e pelas lutas sociais. Suas pesquisas da realidade social
veem mostrando que nas sociedades contemporâneas há um enfraquecimento dos laços sociais, um dilaceramento da cidadania, a violação dos
direitos humanos e a expansão da violência.
Silva (2010) mostra que a violência é etimologicamente referenciado ao latim violentia, relacionado a vis e violare, e porta os significados
de força em ação, força física, potência, essência, mas também de algo
que viola, profana, transgride ou destrói. Assim, violentia parece denotar
um vigor ou força que se direciona à transgressão ou destruição de uma
ordem dada ou “natural”. O limite representado por essa ordem, e sua
perturbação (pela violência), é percebido de forma variável cultural e
historicamente (Zaluar, 1999).
A disseminação das violências também vem produzindo, para
além do desencanto, novas relações de sociabilidade e outras formas de
controle social, na esperança de pacificar a sociedade, respeitando as
diferenças, reduzindo as iniquidades e as injustiças e reconhecendo a
dignidade humana de todos os cidadãos e cidadãs.16
A Sociologia é uma ciência que estuda as relações sociais produtoras de sociabilidades humanas. Quando estas relações sociais se tornam
tensas e as sociabilidades expressam-se de forma agressiva a ponto de
atingirem a dignidade das pessoas é necessário uma abordagem mais
Texto Publicado em Silva, Enio Waldir da. Sociologia da violência. Ijuí, RS: Ed. Unijuí,
2010.
16
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
239
objetiva para entender as dimensões dos fatos sociais ali emergentes.
Estes esforços reflexivos são chamado de Sociologia da Conflitualidade
e da Violência.
Evidentemente não é somente a Sociologia que estuda os processos de relações sociais em tensões, mas nos últimos tempos é esta
ciência que condensou os principais estudos que estão servindo para
assessorar os debates sobre as causas, as consequências da violência e,
principalmente, vem construindo edifícios conceituais para instituições
públicas e privadas promoverem políticas de combate às situações coletivas de conflitos, crimes e violências, principalmente a aderência que
os estudos sociológicos possuem junto as atividades de mediação de
conflitos do Judiciário.
A Sociologia parte da seguinte premissa reflexiva: no tempo atual
vive-se no desespero de entender o homem e, a partir disso, tentar criar
formas de convivência razoáveis, dignas e potencializadoras das lógicas
solidárias existente em cada indivíduo. É esta lógica de ser sapiens a única
capaz de controlar o demens, que é concorrencial, destruidor e ilógico...
Pressuposto que levam a acreditar que é possível criar estruturas objetivas
que protegem as dimensões pacíficas e racionais da vida ou, ao menos,
de forma mais ampla, se acredita poder equilibrar homo sapiens e homo
demens pelo fortalecimento da cultura humana (Morin, 2005).
Isto pode ser dito, mas é insuficiente para esclarecer os aspectos
conflituosos das nossas relações sociais atuais, pois permanecemos seres
desconhecidos, embora se viva em uma época de acúmulo de conhecimentos sobre o homem. Talvez seja porque estes conhecimentos estão
muito separados uns dos outros, sendo necessário unir, ligar, articular e
organizar para interpretar dialogicamente esses entendimentos do humano, que não se reduz ao humano e nem está sintetizado nos discursos
das ciências.
240
Enio Waldir da Silva
Em um primeiro momento entendemos que a violência tem sua
origem neste aspecto social de todo indivíduo, sintetizado na seguinte
passagem:
O ser humano é razoável e não é, capaz de prudência e de insensatez,
racional e afetivo; sujeito de afetividade intensa, sorri, ri, chora, mas
sabe também conhecer objetivamente. É um ser calculador e sério,
mas também ansioso, angustiado, embriagado, extático, de gozo; é um
ser invadido pelo imaginário e que pode reconhecer o real, que sabe da
morte, mas não pode aceitá-la, que destila mito e magia, mas também
ciência e filosofia; possuído pelos deuses e pelas idéias, duvida dos
deuses e critica as idéias. Alimenta-se de conhecimentos verificados,
mas também de ilusões e quimeras. Na ruptura dos controles racionais,
culturais, materiais, quando há confusão entre objetivo e o subjetivo,
entre o real e o imaginário, hegemonia de ilusões, insensatez, o homo
demens submete o homo sapiens e subordina a inteligência racional a
serviço dos seus monstros (Morin, 2005, p. 127).
Diante desta compreensão, com a qual nos congratulamos, partiremos para um esforço de nos situar no universo social, nas ligações que
os indivíduos criam para juntos enfrentar os momentos em que estas
dualidades (prudência-insensatez, racional-afetivo, riso-choro, cálculogozo, real-imaginário, mitologia-Sociologia, deuses-ideias, etc.), estão
em franca tensão. Diríamos, então, que o descontrole racional-irracional
acompanha a história social do homem, que as potências de homo demens
e homo sapiens estão sempre juntos, ancoram-se um no outro e, de forma mais objetiva, diremos que a violência emergiu quando começou a
dominação do homem pelo homem, as desigualdades, a exploração e
as classes sociais. A violência evidencia o descontrole humano de sua
natureza agressiva, agressão que, muitas vezes, é parte de seu esforço
da lógica integradora dos sujeitos, produtora se solidariedade. Ou seja,
o ser humano é solidário e procura constantemente a integração com
os outros para poder diminuir sua dependência e sobreviver. À medida
que evolui seu aprendizado, que vai se aculturando, apropriando-se
dos bens da natureza e lutando para mantê-los, etc., é que começam a
aparecer interesses divergentes, estranhamentos, desconfianças e ansie-
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
241
dades que levam a agressões violentas. Ameaçado em algumas de suas
dimensões humanas/sociais o individuo reage, seja ameaça da ordem
social ou ameaça que atinge o sujeito em sua formação interpessoal,
em que há o reconhecimento, a dignificação, a identificação territorial,
étnica, familiar, religiosa...
Os estudos sociológicos, nos últimos tempos, têm abordado o
problema da violência não mais a partir da ordem, da lei, mas da relação
interpessoal em que um indivíduo se sente reconhecido ou negado em
vez de definir o sujeito violento como dessocializado, selvagem. Com isto
parte-se do pressuposto de que a ordem de nossas sociedades não pode
ser obtida pelo reforço das regras e dos comportamentos conformes com
elas. A integração somente será possível se o indivíduo, sua vida e sua
palavra, estiverem no centro da vida coletiva: se o indivíduo puder falar,
se for ouvido e entendido (Touraine, 1998a, p. 314). Note-se: não estamos
recuando, nos tornando mais selvagens, nem mais afastados das leis. Não
é isso. É que a violência característica das nossas sociedades deixou de
ser institucionalizada para ser extremamente mais individualizada:
Nossas sociedades de tipo ocidental se mostram ao mesmo tempo
relativamente tolerantes no plano institucional e duras, violentas, no
plano dos comportamentos individuais. É o que sempre aconteceu
no EUA, país da igualdade e do respeito à Constituição, mas também país da conquista violenta do Oeste, da segregação que atinge
os negros e de uma forma brutal repressão judiciária e policial... A
violência é tão central em nossas sociedades como o era a violência
coletiva nas sociedades da alta e média modernidades... Hoje, as
formas de desintegração que nos parecem mais graves são aquelas
que não deixam o indivíduo agir como sujeito, que desintegram a
sua personalidade, que o impedem de ligar seu passado e seu futuro,
sua história pessoal a uma situação coletiva, e o tornam prisioneiro
da dependência (p. 315).
Segundo Touraine, o sujeito desintegrado está sujeito a cometer
ações que se voltam contra ele e atingem o outro que o complementa
e reconhece.
242
Enio Waldir da Silva
A decomposição da sociedade, definida como um organismo no
qual cada elemento cumpre uma função, que elabora suas metas e os
meios necessários para atingi-las, que socializa seus novos membros e
pune os que não respeitam as normas, leva, em nosso tipo de sociedade,
a um individualismo que se opõe à aplicação das regras da vida coletiva
e as substitui pelas leis do mercado, em que se manifestam preferências
múltiplas, inconstantes, mas influenciadas pela publicidade comercial
tanto quanto pelas políticas públicas (Touraine, 1998a).
Poderíamos falar com certeza em uma cultura de violência, dado o
fato de que ela se espalha por todo o horizonte social e está muito presente
nos mínimos espaços de relações simples e condutas cotidianas. Depois
que a produção em massa, após o predomínio da fabricação industrial,
penetrou os domínios do consumo e da comunicação, e depois que as
fronteiras e as tradições foram invadidas pela distribuição dos mesmos
bens e serviços no mundo inteiro, grandes áreas de nossas condutas, que
imaginávamos protegidas por sua inscrição na esfera privada, encontramse expostas à cultura de massa e, por isso mesmo, ameaçadas.
É aqui que ocorre a ligação entre a ampliação e a transformação
das coações exercidas pelos valores, normas e formas de organização e
a unificação e a individualização da pessoa, que não apenas resiste às
coações externas, mas sobretudo a todo princípio transcendente e se
afirma como a meta de sua luta e ao mesmo tempo aquilo que lhe dá
força. Não se assiste a um deslocamento dos campos de conflito, mas a
sua integração até o momento em que é em nome do próprio eu, e não
de lutas particulares, que os diversos movimentos sociais se combinam
e se integram uns nos outros, até empenhar-se conscientemente numa
luta central entre exigências sociais e culturais, de um lado, e, do outro,
forças que podemos chamar de naturais, ou seja, não sociais, como a violência, a guerra, os movimentos do mercado, etc. A sociedade chegou ao
caos (Caosmos), em que se precipitam a violência, a guerra, o fascismo
societal, a dominação dos mercados (Sousa Santos, 2004).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
243
A penetração de uma dominação múltipla no indivíduo, em suas
categorias de ação, na consciência de seu corpo, etc., corresponde à
afirmação do sujeito. As duas tendências estão interligadas, embora permanecendo opostas uma à outra. Quando separamos a ideia do sujeito
das referências constantes aos conflitos sociais e políticos, o sujeito enfraquece e corre o risco de se tornar moralizador. A abordagem proposta por
Foucault em Vigiar e punir deve ser completada pela ideia de resistência,
que não pode apoiar-se senão na consciência de si mesmo como sujeito e
não deve esquecer jamais a existência destes conflitos. Aquilo que cada
um de nós exige, e sobretudo os mais dominados e os mais desprotegidos, é ser respeitado, não ser humilhado e até, exigência mais ousada,
ser escutado – e mesmo ouvido e entendido (Touraine, 1998a).
O mundo já assimilou a ideia da globalização, e não tem mais
como voltar atrás, mas o indivíduo por si só poderá resistir à violência e
encontrar um “sentido” que não é possível encontrar nas instituições
sociais e políticas. A invasão do campo social por forças não sociais não
será combatida por reformas sociais, conquistadas por um movimento
social, visto que põem em questão os direitos humanos. Cada indivíduo
descobre em si mesmo, na defesa de sua própria liberdade, sua capacidade de agir de maneira autorreferencial, na busca da felicidade. A ordem
religiosa foi ocupada pela ordem política que concentra todos os recursos
nas mãos de uma “elite” que comanda a vida pública (pelo emprego da
força e da razão), em que foram definidos como inferiores o trabalho
manual, o corpo, o sentimento, o consumo imediato, a vida privada, o
mundo feminino e o das crianças. Surgem então tensões e conflitos e a
luta de classes (lutas sociais).
A destruição da ideia de sociedade só pode nos salvar de uma catástrofe se ela leva à construção da ideia de sujeito, à busca de uma ação
que não procura nem o lucro nem o poder nem a glória, mas que afirma
a dignidade de cada ser humano e o respeito que ele merece, capaz de
impedir que nossas sociedades caiam numa extenuante concorrência
generalizada. Atualmente o sujeito é aquele que tem consciência do
244
Enio Waldir da Silva
direito de dizer eu, mas o sujeito em formação não pode se perder em
falsos caminhos (obstáculos), que são reforçados pelos valores dominantes que tendem a assinalar a cada um seu lugar e a integrá-lo no sistema
social sobre o qual não pode exercer influência.
Quanto mais a vida passou a depender de nós mesmos, mais tomamos consciência de todos os aspectos de nossa experiência. Nós só nos
tornamos plenamente sujeitos quando aceitamos como nosso ideal nos
reconhecermos como seres individuais, que defendem e constroem sua
singularidade e dando, mediante nossos atos de resistência, um sentido
a nossa existência. A história do sujeito é a da reivindicação de direitos
cada vez mais concretos, que protegem particularidades culturais cada vez
menos geradas pela ação coletiva voluntária e por instituições criadoras
de pertencimento e de dever (Touraine, 1998a).
A violência manifesta-se hoje como uma cultura do tempo, domina e arrasta a família para situação de caos. Há muitas ações novas
que procuram verificar as causas e o agir para frear esta avalanche que
atinge a sociedade. Toda a violência é circular e emerge da explosão dos
mecanismos que controlam os elementos agressivos da violência humana.
Geralmente a violência é mais expressiva nas pessoas que perderam a
esperança, já estão sem causa objetiva, sem razão histórica e são como
representantes da miséria do mundo que zombam da tentativa das autoridades de querer impor a ordem sem atacar o que causa a desordem.
Outros estudos tratam as violências conectadas aos temas das desigualdades sociais, das relações de direitos e deveres dos cidadãos, da
educação e socialização dos indivíduos. Muitas pesquisas concluem que é
a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, produtoras
de ansiedades em relação ao presente e futuro das pessoas, o antídoto
para a violência social. Ao estar na miséria se tem mais possibilidades
de confluências destas ansiedades e geram várias vulnerabilidades, estranhamentos e ações desintegradoras dos laços sociais.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
245
Por outro lado, os mecanismos e os processos criados para a ordenação social se encontram impotentes para cumprir suas próprias funções,
tanto por que não controlam as determinações maiores que causam esta
situação, quanto por não estarem preparados para criar saídas democráticas e racionais diante da nova complexidade social. Grande parte da
fragilidade da atuação na área de conflitos, no entanto, está relacionada
à falta de políticas específicas que garantam espaços e infraestrutura
adequada ao trato dos problemas.
As diferentes formas de violência presentes em cada um dos
conjuntos relacionais que estruturam o social podem ser explicadas se
compreendermos a violência como um ato de excesso, qualitativamente
distinto, que se verifica no exercício de cada relação de poder presente
nas relações sociais de produção do social. A ideia de força, ou de coerção, supõe um dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social,
seja pertencente a uma classe ou categoria social, a um gênero ou a uma
etnia, a um grupo etário ou cultural. Força, coerção e dano, em relação
ao outro, enquanto um ato de excesso presente nas relações de poder –
tanto nas estratégias de dominação do poder soberano quanto nas redes
de micropoder entre os grupos sociais – caracteriza a violência social
contemporânea (Tavares dos Santos, 2002).
Estudos têm revelado que a maioria dos conflitos existentes não
necessitariam chegar à alçada do jurídico, ou mesmo estando neste espaço
poderiam ser tratados com estratégia de informalização, desregulamentação da Justiça ou democratização do Direito, em que as intervenções
podem ser vistas como mediação, criando as condições de diálogos
entre os sujeitos conflitantes, de forma a expressarem seus interesses,
procurando entendimento para chegada de conclusão ou decisão mais
universal.
Desregulamentação e informalização da Justiça são conceitos
que permitem compreender as mais complexas e múltiplas relações
sociais em conflitos. Entre os temas abordados estão: a evolução da
crise da racionalidade que trata dos problemas sociais; a mudança nas
246
Enio Waldir da Silva
formas produção e distribuição da riqueza; a emergência de culturas de
violência; as mudanças nas estruturas familiares, na crise do trabalho, no
esfacelamento do sujeito, etc.
Muitas iniciativas para diminuir a violência partem do interior da
própria ordem jurídico-estatal, outras surgem das próprias iniciativas das
políticas públicas do Estado e outras, ainda, de organizações da sociedade
civil. Existem muitas dúvidas, porém, sobre a legitimidade, a efetividade,
o justo e o legal, os critérios aplicáveis, a natureza alternativa das sanções
e da justiça informal diante dos papeis do Estado e das relações entre Estado e sociedade. Isto destaca a necessidade de um conjunto de estruturas
pedagógicas libertárias para se criar condições para se ter compreensões
interdisciplinares que devem estar presentes em sujeitos que congregam
responsabilidades para atuar com situações de violência.
Porto (2006, p. 266) argumenta que toda vez que a integridade física
fosse atingida poder-se-ia assumir que se está em presença de um ato violento”.
A autora busca definir um caminho teórico para os estudos sociológicos
sobre a violência por intermédio da utilização da Sociologia compreensiva
de Weber e das representações sociais como forma de conhecer as crenças
e valores envolvidos nos fatos violentos, considerando assim também a
subjetividade dos atores e a compreensão que estes têm destes fatos.
Além disso, a técnica buscada por Maria Porto é capaz de mapear também
manifestações implícitas da violência que poderiam passar despercebidas
caso o sociólogo se propusesse a mapear somente determinados tipos
de violência de forma objetiva, o que poderia mascarar a realidade, pois
de acordo com Wieviorka,
(...) a violência jamais é redutível à imagem da pura subjetividade
simplesmente porque o que é percebido ou concebido como violento
varia no tempo e no espaço (...) Mas, por outro lado, a violência não
pode ser redutível aos afetos, às representações e às normas que dela
propõem tal grupo ou tal sociedade (...) (1997).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
247
Lembramos que é necessário fazer a distinção entre violência e
crime: a violência é um fato social muitas vezes empregado como forma
de representar as forças legais instituídas (conforme a concepção weberiana de Estado detentor da coerção física) e o crime, a transgressão
das normas legais constituintes destas forças. Já nos pontos nos quais a
lei não representa realmente os anseios da sociedade Durkheim afirma
que “às vezes o criminoso seria um precursor da moral por vir” (Filho;
Machado, 2005, p. 20).
Esta última visão do crime e violência segundo a qual os fins justificariam os meios é semelhante à utilizada pelas organizações que buscavam instaurar repúblicas socialistas por meio da revolução proletária,
uma utilização da violência que tinha por objetivo acabar com o Estado
burguês, que por ser calcado no capitalismo é incapaz de representar
por igual todas as parcelas da sociedade, gerando a desigualdade e a
violência, o fim deste Estado representaria também o fim da violência.
Este emprego da violência, assim como outros característicos de determinadas épocas históricas, de acordo com Wieviorka, tornou-se anacrônico,
incapaz de ser justificado nos novos tempos do capitalismo globalizado,
quando as relações trabalhistas são atravessadas pelas regras do mercado,
distanciando as classes sociais. Para este autor a violência atualmente
apresenta-se predominantemente na forma infrapolítica, que se rebela
contra a situação vigente mas não apresenta alternativa real à mesma, e
a violência metapolítica, fruto das frustrações da modernidade, atravessada por reivindicações culturais, religiosas, econômicas e identitárias,
sendo este cruzamento de diferentes campos socioculturais a principal
característica das manifestações violentas na atualidade, o que dificulta
tanto a identificação das mesmas para tratamento sociológico quanto a
identificação dos próprios atores sociais quanto a suas reivindicações.
Afirma o autor:
Retomando a exposição anterior, pode-se dizer, perfilando Dahrendorf, que o crescimento da criminalidade e o suposto aumento da
impunidade resultam na erosão da lei e da ordem nas sociedades con-
248
Enio Waldir da Silva
temporâneas. O Estado aparece como incapaz de cuidar da segurança
dos cidadãos e de proteger seus bens, materiais e simbólicos. No cerne
da “demanda por ordem” aloja-se não apenas o sentimento de que o
passado se perdeu inexoravelmente pela avalanche do “progresso”
histórico, sentimento simbolizado nas imagem de pânico moral proporcionados pela concentração urbana, pela “crise” da família, pela
irrupção das multidões na arena política. A perda é sentida como
ausência de solidariedade, de esgarçamento dos vínculos morais que
conectam indivíduos às instituições, ausência sacramentada pelo
definhamento da autoridade. Tudo se passa como se os interesses
egoístas suplantassem o bem comum. Seu sintoma, a explosão de
litigiosidade entre o indivíduo e a sociedade, tão bem descrita por
Durkheim em inúmeras de suas obras, resultaria na desobediência
civil, na perda desse sentimento segundo o qual “agir bem é obedecer
bem” (Wieviorka, 1997, p. 32).
Ao mesmo tempo, o autor nos faz advertência para se analisar a
violência atual: “nas sociedades contemporâneas não há mais espaço
para pensar conflitos numa versão liberal”. Ou seja, o autor parte do
pressuposto de que todos sabem que a concepção liberal privatiza tudo,
inclusive os conflitos. Ora, os conflitos são sociais:
Os conflitos são vistos como conflitos entre indivíduos entre si, entre
indivíduos e sociedade, entre indivíduos e Estado. Não é sem motivos que a problemática do crime e da punição tenha ocupado tanta
atenção dos sociólogos liberais. No registro liberal, essa problemática
diz respeito ao confronto entre a consciência coletiva (consciência
de um imperativo categórico, a sanção) e a consciência individual,
materializada em torno da responsabilidade penal do criminoso.
Dificilmente fatos contemporâneos como racismo, genocídio, exclusão, narcotráfico configuram modalidades de conflito e litigiosidade
enquadráveis nos estreitos limites ditados pela visão liberal. Portanto,
é preciso pensar esses fatos tendo por eixo não o indivíduo, porém
coletivos (Idem, p. 34).
Acredita o autor que é preciso, por exemplo, retirar a criminalidade do confinamento e problematizar a demanda por ordem do cidadão
comum, as autoridades, na mídia e nos debates acadêmicos: “Nas acres
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
249
crônicas da insegurança e do medo do crime, nos fatos e acontecimentos
que sugerem a fragilidade do Estado em velar pela segurança dos cidadãos
e proteger-lhes os bens, materiais e simbólicos”. Nos cenários e horizontes reveladores dos confrontos entre defensores e opositores dos direitos
humanos, mesmo para aqueles encarcerados, julgados e condenados pela
justiça criminal, tudo converge para um único e mesmo propósito: o de
punir mais, com maior eficiência e maior exemplaridade. Trata-se de propósito que se espelha em não poucas demandas: maior policiamento nas
ruas e nos locais de concentração populacional, sobretudo as habitações
populares consideradas celeiro do crime e de criminosos; polícia menos
tolerante para com os criminosos; justiça criminal menos condescendente
com os “direitos” dos bandidos e mais rigorosa na distribuição de sanções
penais; recolhimento de todos os condenados às prisões, que devem se
transformar em meios exemplares de punição e disciplina. Com nuanças entre os mais radicais, que advogam pena de morte e imposição de
castigos físicos aos delinquentes, e os mais “liberais”, que pretendem
o aperfeiçoamento dos instrumentos legais de contenção repressiva dos
crimes, todos gravitam em torno de um imperativo categórico: o obsessivo
desejo de punir (Wieviorka, 1997).
Wieviorka conclui sua reflexão lançando uma hipótese explicativa
para uma questão anteriormente formulada: pode ser que a obsessão
punitiva de nossa sociedade contemporânea, materializada nas chamadas “demandas por ordem social”, explique-se justamente pelo modo
de funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa e
resistente superestrutura de prevenção e segurança (por meio da proliferação das sociedades de seguro e dos mecanismos de vigilância privada)
para encarar os medos, perigos e ameaças que tornam a vida humana,
social e intersubjetiva, absolutamente incerta. Daí porque, no bojo de
fenômenos aparentemente tão diferentes e distanciados no tempo e no
espaço, tais como as catástrofes, as epidemias, os acidentes, o desemprego crônico, extremismos políticos, os crimes, esteja num mesmo e
único problema: uma profunda crise de racionalidade que atravessa a
250
Enio Waldir da Silva
sociedade contemporânea de alto a baixo e que coloca sob suspeição
todas as apostas nas virtudes do progresso técnico, da modernização e
do bem-estar proporcionado pela sociedade industrial (p. 38).
Já Waquant, ao se referir ao pensamento liberal e suas propostas
de resolver a violência, é mais radical:
A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende
remediar com um “mais Estado” policial e penitenciário o “menos
Estado” econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto
do Primeiro como do Segundo Mundo. Ela reafirma a onipotência
do Leviatã no domínio restrito da manutenção da ordem pública –
simbolizada pela luta contra a delinqüência de rua – no momento em
que este afirma-se e verifica-se incapaz de conter a decomposição
do trabalho assa­lariado e de refrear a hipermobilidade do capital, as
quais, capturando-a como tenazes, desestabilizam a sociedade inteira.
E isso não é uma simples coincidência: é justamente porque as elites
do Estado, tendo se convertido à ideologia do mercado-total vinda dos
Estados Unidos, diminuem suas prerrogativas na frente econômica
e social que é preciso aumentar e reforçar suas missões em matéria
de “segurança”, subitamente relegada à mera dimensão criminal. No
entanto, e sobretudo, a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e
mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos
por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida
e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de
amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e do indivíduo no limiar do novo século (2001).
Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria
e de seus correlatos – ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos
valores de justiça social e de solidariedade e seu tratamento penal – que
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
251
visa às parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto
prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina
midiática fora de controle.17
Na verdade, embora as políticas sociais atenuem as ansiedades
sociais elas continuam a provocar situações de cultura de violência.
Destacamos as ideias que permeiam as conclusões de Waquant sobre
esta questão: mais estado policial e menos estado econômico e social;
Leviatã para a ordem pública e incapaz de conter a decomposição do
trabalho assalariado frear a hipermobilidade do capital; conversão do
Estado à ideologia-mercado vindo do EUA; relegam a segurança à dimensão criminal; é mais perversa em países com instituições democráticas
fracas; pânico orquestrado das máquinas midiáticas: propagam o crime
e o medo do crime; violência criminal como flagelo nas grandes cidades;
difusão de armas de fogo; economia estruturada da droga ligada ao tráfico
internacional; falta de rede de proteção social; capitalismo de pilhagem
de rua; realização dos códigos de honra masculino; falta de efeito da reWaquant destaca o avanço da cultura de punição para diversos países nos últimos tempos: “um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição subordinada na estrutura das
relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente
ecumênica de “globalização”), e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e
pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência
criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades. Assim, a partir de 1989, a
morte violenta é a principal causa de mortalidade no país, com o índice de homicídios no Rio
de Janeiro, em São Paulo e Recife atingindo 40 para cada 100.000 habitantes, ao passo que o
índice nacional supera 20 para cada 100.000 (ou seja, duas vezes o índice norte-americano do
início dos anos 90 e 20 vezes o nível dos países da Europa ocidental). A difusão das armas de
fogo e o desenvolvimento fulminante de uma economia estruturada da droga ligada ao tráfico
internacional, que mistura o crime organizado e a polícia, acabaram por propagar o crime e
o medo do crime por toda a parte no espaço público. Na ausência de qualquer rede de proteção
social, é certo que a juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do
subemprego crônicos continuará a buscar no “capitalismo de pilhagem” da rua (como diria
Max Weber) os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que
não consegue escapar da miséria no cotidiano. O crescimento espetacular da repressão policial
nesses últimos anos permaneceu sem efeito, pois a repressão não tem influência alguma sobre os
motores dessa criminalidade que visa criar uma economia pela predação ali onde a economia
oficial não existe ou não existe mais” (Waquant, Löic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001).
17
252
Enio Waldir da Silva
pressão policial; economia de predação onde a economia oficial não de
instalou; no Brasil a insegurança é agravada pela intervenção das forças
da ordem: clima de terror para as classes populares; banalização da brutalidade, desconfiam da lei e do poder legal; tornam visível o problema
da dominação racial pela: hierarquia de classes e estratificação etnorracial
na aplicação das penas e na vigilância; soluções privadas para o problema
da insegurança; falta de Estado de Direito (como tal). No Brasil ainda
restam resquícios da ditadura militar na organização do Estado: autoritarismo e bandidagem.
Estaríamos, ao menos na década de 80, analisada pelo autor,
entrando mais profundamente neste tratamento penal para responder
às desordens sociais resultantes da: desregulamentação da economia;
dessocialização do trabalho assalariado, pauperização relativa e absoluta
do proletariado com aparelho policial e judiciário. Tratamento social é o
contrário: aumento do Estado social com instituições públicas respondendo as políticas penalógicas; combate as causas da criminalização; melhores
condições de vida ao fazer valer os direitos fundamentais: alimento,
habitação, saúde, educação e trabalho. Não há proporção comparável
entre nível de crime e nível de encarceramento.
Especialmente nos Estados Unidos (reflexo do chamado capitalismo desenvolvido), na década de 80 cresceu verticalmente a população
carcerária, como consequência da “flexibilização” (que, no fundo, significa a diminuição dos gastos sociais; erradicação do sindicatos; diminuição
nas regras de contratação e de demissão; trabalho assalariado flexível (fim
do emprego) e trabalho para os beneficiários de ajuda social); aumento
da concentração da riqueza a privilegiados; desigualdade dos salários;
aumento da rede policial e penal: alcança amplamente pequenos delinquentes, não perigosos e violentos, mas sim subproletariados negros
que buscam a sobrevivência no mercado informal, drogas e perturbam
a ordem pública (de cada 10 presos 6 são negros ou latinos, pobres e
desempregados); aumento de prisões e gastos com técnica de combate e
de repressão (mais gastos do que com programas de ajuda aos pobres)...
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
253
O autor revela que nos EUA as técnicas para reduzir o custo prisional
incide sobre repartir com o setor privado: mercado da carceragem. Teriam
quatro técnicas: diminuir o nível de vida nas prisões; inovação tecnológica; transferir os custos para os familiares dos presos e introduzir trabalho
desqualificado dentro das prisões (Waquant, 2001).
Para Tavares dos Santos o aumento dos processos estruturais de
exclusão social pode vir a gerar a expansão das práticas de violência como
norma social particular, vigente em vários grupos sociais enquanto estratégia de resolução de conflitos, ou meio de aquisição de bens materiais e
de obtenção de prestígio social, significados esses presentes em múltiplas
dimensões da violência social e política contemporânea. Aumentou a
violência criminal urbana, seja pelas ações do crime organizado, em especial o tráfico de drogas e o comércio ilegal de armas, seja pela difusão
do uso de armas de fogo, ambos provocando uma maior letalidade nos
atos delitivos. O autor interpreta como uma violência de pobres contra
pobres., pela qual se identifica uma vitimização dos pobres. Ao mesmo
tempo vem ocorrendo uma alteração nos autores de delitos, ou seja, nos
grupos ligados a práticas ilegais, em especial o roubo, que apresentam
como aspecto notório a contingência e a espontaneidade, em suma, a
desprofissionalização das práticas delitivas (Tavares dos Santos, 1999).
Na sociedade brasileira houve a disseminação da violência criminal, com uma mudança das formas de delitos e de violência: a) o
crescimento da delinquência urbana, em especial dos crimes contra o
patrimônio (roubo, extorsão mediante sequestro) e de homicídios dolosos
(voluntários); b) a emergência da criminalidade organizada, em particular
em torno do tráfico internacional de drogas que modifica os modelos e
perfis convencionais da delinquência urbana e propõe problemas novos
para o Direito Penal e para o funcionamento da Justiça Criminal; c)
graves violações de direitos humanos que comprometem a consolidação
da ordem política e democrática; d) a explosão de conflitos nas relações
intersubjetivas, mais propriamente conflitos de vizinhança que tendem
a convergir para desfechos fatais (Adorno, 1998).
254
Enio Waldir da Silva
Partindo da concepção de que a violência é um fenômeno social
historicamente construído, Wieviorka argumenta que ela deve ser tratada
como tal, o que exige novas estratégias capazes de mapear o seu significado nos tempos globalizados para a partir deste entendimento traçar
planos de ação capazes de combatê-la no plano social, e não no particular.
De acordo com Wieviorka (1997, p. 25), “A tarefa de uma Sociologia da
Violência é mostrar as mediações ausentes, os sistemas de relações cuja falta ou
enfraquecimento criam o espaço da violência”.
Sérgio Adorno argumenta que apesar de presenciarmos novos
tempos, as reivindicações acerca da violência são as mesmas do tempo
da Revolução Francesa. O estudo deste autor sobre a obra Law and Order
(1985), de Dahrendorf, aponta para as reflexões feitas no sentido de relacionar o aumento da violência com a dissolução da família, a privatização
dos conflitos sociais, a delinquência juvenil aumentada pelo suposto
afrouxamento das punições e a institucionalização dos conflitos sociais.
Isto leva Dahrendorf a concluir que uma maior eficiência dos mecanismos
de controle social e repressão, aliada ao aumento de oportunidades de
inserção dos jovens no mundo do trabalho e retomada do respeito destes
pela autoridade, são a única forma de modificar a situação. Ou seja, um
retorno das formas anteriores de controle social mediante a conjunção
entre moral e repressão seria a melhor solução para lidar com as novas
formas de violência, indo na contramão dos apontamentos de Sérgio
Adorno. As reivindicações e apontamentos de Dahrendorf em 1985 são
semelhantes às de Gabriel Tarde em 1895. De acordo com Tarde:
Suponham, ainda, um Estado livre de todas as suas famílias de
malfeitores, de todos os seus vagabundos, de todos os seus neófitos
e seminaristas do delito. Que não me digam que isso é impossível...
Bastaria, creio eu, uma reforma radical, enérgica, de nossos sistemas
judiciário e penitenciário (Filho; Machado, 2005, p. 11).
Guardadas as devidas especificidades das duas épocas, ambas
de convulsão e intensas mudanças nas relações sociais, isto demonstra
uma tendência reacionária de determinados setores intelectuais. Estes
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
255
setores revelam a dissolução dos antigos padrões e instituições sociais
como causadores da violência, clamando por um retorno dos mesmos
como forma de manter a ordem. Isto esconde o fato de que nas situações
anteriores a repressão (que agora aparece como solução) não se mostrou
eficaz em fazer com que a violência fosse erradicada, sendo esta relação de causalidade utilizada como artifício por setores conservadores
da sociedade. Adorno desconstrói sistematicamente as afirmações de
Dahrendorf neste sentido, contestando inclusive as próprias pesquisas
que apresentam números de aumento da violência e delinqüência. Adorno (1998, p. 30) afirma que “... o crescimento dos crimes pode ser ou não
acompanhado de um crescimento de sanções, por mais desejável que
seja a correspondência entre ambos do ponto de vista social e político”.
Isso não significa que a repressão ao crime deve deixar de existir, mas
sim que deve deixar de ser o foco principal da luta pela erradicação do
crime. A própria criminologia neste ponto tem o papel de reforçar esta
visão ao tratar apenas do crime e da violência e não do contexto social em
que estes se desenvolvem, o que mostra uma miopia acerca da questão,
segundo Adorno (p.33) um foco no “obsessivo direito de punir”.
Adorno refere-se à máfia como exemplo para contextualizar a nova
realidade sob a qual o crime e a violência apresentam-se na sociedade
atual, por meio de organizações criadas em determinados contextos locais
específicos que dificultam sua expansão, mas facilitam a formação de
redes de solidariedade criminosa. Estas redes apresentam em comum o
fato de que sempre contam com a corrupção estatal para estabelecer e
manter sua rede de negócios e influências. Este estudo funciona como
exemplo de delinquência específica dos tempos atuais, não somente pela
máfia ser precursora das organizações criminosas atuais, mas também por
256
Enio Waldir da Silva
demonstrar que o crime e a violência não podem ser pensados em termos
liberais, individualmente, mas como fenômeno social, estrutural, devendo ser eliminado mediante sua estrutura de geração e reprodução.18
Outra tendência sociológica tenta explicar a violência como fenômeno social, provocada por alguma conturbação da ordem, seja pela
opressão pelos mais fortes, pela rebelião dos oprimidos, pela falência
da ordem social, pela omissão do Estado. Nesse enfoque, a chamada
“natureza humana” se manifestaria ao sabor das circunstâncias, surgindo a violência como decorrência da miséria e da desigualdade sociais
(Minayo; Souza, 1985).
Segundo essa ideia, um baixo nível de consciência, de liberdade,
e responsabilidade acaba acarretando um sentimento de insatisfação
permanente que se expressa em confrontação, oposição, alienação e
condutas violentas.
Essas teorias sociológicas tendem a definir as condutas violentas
como atitudes de sobrevivência de determinadas pessoas ou grupos vitimados pelas contradições sociais. As desigualdades sociais, o contraste
gritante entre os extremos socioeconômicos, as crises de desemprego, a
cegueira e insensibilidade social dos privilegiados, enfim, a desigualdade
na distribuição dos prazeres que essa vida pode oferecer levariam os
pobres a se rebelarem e agredirem os ricos (ou não pobres).
A violência como revolta dos despossuídos reflete uma explosão
colérica da fome de comida e de prazeres, o rancor pela desigualdade
de privilégios diante da igualdade cromossômica. Nesse caso, a violência teria sua origem no exterior do sujeito sob a forma de indignação e,
uma vez internalizada na consciência, explodiria em agressão contra os
demais.
Sousa, Rodrigo Miguel. Expressões usadas pelo trabalho escolar apresentado em sala
de aula no Componente Curricular Sociologia da Violência – Curso de Sociologia.
2009/1.
18
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
257
Ao reduzir violência social à imagem do crime e da delinquência, a tendência sociológica encara a população pobre como criminosa
em potencial. Essa visão, porém, é acanhada, pois não leva em conta a
violência política, do Estado e da própria cultura. Fazer um aposentado
viver com um salário mínimo é igualmente uma forma de violência
estatal, por exemplo.
Desigualdade social e segregação urbana produzem uma exclusão
social, marcada pelo desemprego, pela precarização do trabalho, salários
insuficientes e por deficiências do sistema educacional.
As maiores vítimas desta violência, mas também a maior proporção
de autores de atos violentos encontra-se entre os homens jovens: em
todo o país, o alvo preferencial dessas mortes compreende adolescentes
e jovens adultos masculinos, em especial procedentes das chamadas
classes populares urbanas, tendência que vem sendo observada em inúmeros estudos sobre mortalidade por causas violentas. (...) Aumentou a
proporção de adolescentes representados na criminalidade violenta. No
primeiro período era menor a proporção de crimes violentos cometidos
pelos adolescentes ante a proporção de crimes violentos cometidos pela
população em geral. No segundo período, esta tendência se inverte
(Adorno). Muitas vezes os atos de violência representam estratégias de
sobrevivência. dos jovens. A chamada violência juvenil atual pode ser
vista como uma das estratégias de reprodução ou de sobrevivência de
setores excluídos em termos educativos e laborais, ou seja, da existência
que se supõe outorgue identidade aos jovens. Acentua-se a situação de
vulnerabilidade dos jovens quando aqueles em fase de escolarização não
apenas não estão na escola como tampouco estão inseridos no mercado
de trabalho (Tavares dos Santos, 2002).
Estudos sobre violência urbana revelam que, na vida cotidiana,
realiza-se uma condensação entre mal estar da pós-modernidade, a violência simbólica, sentimento de insegurança e sentimentos de medo. A
violência apresenta, além dos custos de dor e sofrimento humano, um
componente de mal-estar psicológico derivado do medo que inspira e
258
Enio Waldir da Silva
um impacto econômico, pelas vítimas e custos reais, e também pelos
gastos e perdas que a prevenção e o medo obrigam. Estamos vivendo
em um horizonte de representações sociais da violência para cuja disseminação contribuem os meios de comunicação de massa, produzindo
a dramatização da violência e difundindo a espetacularização do crime
violento, enquanto um efeito da violência simbólica exercida pelo campo
jornalístico. A violência passa a ser consumida num movimento dinâmico
em que o consumo participa também do processo de sua produção, ainda
que como representação (Porto, 2006).
O referencial teórico da biopsicossocial não atribui à violência
um caráter exclusivamente biológico, nem psicológico ou social, mas
sim, uma combinação de todos com peculiaridades próprias de cada era,
cultura ou circunstância.
Há uma complementação dinâmica entre o biológico, o psicológico
e o social, de sorte que toda atividade humana acaba repercutindo nas
relações sociais, culturais e emocionais, afetando tanto a constituição
biológica quanto a consciência humana.
O psicólogo alemão Mitscherlich (1971) crê que qualquer modificação nas relações sociais só será possível se houver mudanças na
constituição psíquica do ser humano, tendo como ponto central a reconstrução de sentimentos e emoções. Essa afirmativa, entretanto, merece
uma reflexão maior, pois, às vezes, chegamos a pensar exatamente o
contrário, ou seja, que as mudanças nas relações sociais acabaram atropelando a constituição psíquica humana, que sucumbiu diante de novas
e contundentes exigências de adaptação. Com isso, houve um visível
crescimento das tendências antissociais, do isolamento, do medo coletivo
e individual, da intolerância extremada e da alienação dos indivíduos
(citado por Minayo, 1994).
A violência coletiva também é uma ramificação da ansiedade
e do conflito pessoal. Quando uma pessoa se interpõe no caminho da
satisfação ou dos desejos da outra, surgem os choques, no sentido de
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
259
uma das partes eliminar os obstáculos levantados pela outra. A luta,
então, torna-se pessoal. Cada um dos contendores tem a consciência de
que, para alcançar os seus propósitos, precisa fazer com que o outro não
atinja os seus. Aí surge a hostilidade, que comumente reforça a energia
necessária aos esforços de suplantação. A esse tipo de luta, consciente e
pessoal, dá-se o nome de conflito. Pois uma contenda entre indivíduos
ou grupos, em que cada qual luta por uma solução que exclui a solução
desejada pelo adversário.
A violência é um dos eternos problemas da teoria social e da
prática política e relacional da humanidade. Não se conhece nenhuma
sociedade na qual a violência não tenha estado presente. Pelo contrário, a dialética do desenvolvimento social traz à tona os problemas mais
vitais e angustiantes do ser humano, levando sociólogos como Engels,
Habermas, Marx, Weber, Durkheim e outros a afirmar que “a história é,
talvez, a mais cruel das deusas que arrasta sua carruagem triunfal sobre
montões de cadáveres, tanto durante as guerras como no período de
desenvolvimento pacífico” (Engels, 1986, p. 187).
Desde tempos imemoriais existe uma preocupação do ser humano
em entender a essência do fenômeno da violência, sua natureza, suas
origens e meios apropriados, a fim de amenizá-la, preveni-la e eliminá-la
da convivência social. O nível de conhecimento atingido, seja no âmbito filosófico, seja no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, permite
inferir, no entanto, alguns elementos consensuais sobre o tema e, ao
mesmo tempo, compreender o quanto este é controverso, em quase
todos os seus aspectos.
Hoje é praticamente unânime a ideia de que a violência não faz
parte da natureza humana e que não tem raízes biológicas. Trata-se de
um complexo e dinâmico fenômeno biopsicossocial, mas seu espaço de
criação e desenvolvimento é a vida em sociedade. Assim, para entendê-la,
há que se apelar para a especificidade histórica. Daí se conclui que na
260
Enio Waldir da Silva
configuração da violência se cruzam problemas da política, da economia,
da moral, do Direito, da Psicologia, das relações humanas e institucionais
e do plano individual.
Na sua dialética de interioridade/exterioridade a violência integra
não só a racionalidade da História, mas a origem da própria consciência,
por isso mesmo não podendo ser tratada de forma fatalista, é sempre
um caminho possível em contraposição à tolerância, ao diálogo, ao reconhecimento e à civilização, como destacam Hegel, Freud, Habermas,
entre outros.
Na sua complexidade, a violência deve ser analisada no seu contexto (em rede), como adverte Domenach (1981, p. 40):
Suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam
outras menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo
e protegidas por ideologias ou instituições de aparência respeitável.
A violência dos indivíduos e grupos tem que ser relacionada com a
do Estado, a dos conflitos com a ordem.
Segundo Domenach (1981), se a violência faz parte da própria
natureza humana, ela aparece de forma peculiar e captável nas suas
expressões mais visíveis em sociedades específicas, trazendo para o debate público questões fundamentais, em formas particulares, e questões
sociais, vivenciadas individualmente, uma vez que somos, enquanto
cidadãos, ao mesmo tempo sujeitos e objetos deste fenômeno.
Em termos tradicionais, a violência pode ser considerada uma força
prejudicial física ou psicológica aplicada contra uma pessoa ou um grupo
de pessoas. Em termos genéricos, a violência mantém contornos um tanto
imprecisos com a intimidação e a agressividade dirigida ao outro. A espinha dorsal de todas as formas de violência é o medo que se desencadeia
na pessoa que a ela está submetida. O medo produz uma mudança no
funcionamento orgânico, fazendo com que haja uma transformação no
comportamento e na personalidade da pessoa. A força física é o estímulo
mais simples, podendo chegar, nos casos extremos, à tortura e à morte. O
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
261
seu objetivo é produzir um sentimento de insegurança e fortes respostas
emocionais de submissão. Nesse processo, a pessoa submetida às formas
mais diversas de violência torna-se suscetível a responder ao agressor
conforme o seu desejo, anulando-se, muitas vezes, em sua própria subjetividade. Não é raro o agredido se ver coagido a mudar o seu ponto
de vista e a sua própria maneira de pensar, chegando a manifestar uma
atitude de empatia e de aceitação do domínio sobre si (Couto, 2005).
Em termos jurídicos atuais (Código Penal Brasileiro), a violência
pode ser definida como um constrangimento moral exercido sobre
alguém mediante ameaças ou como ofensa à integridade corporal e à
saúde de outrem, podendo disso decorrer lesões corporais de maior ou de
menor gravidade. Presume-se a violência se a vítima não pode oferecer
resistência (artigo 224c). Nesse sentido, não se percebe, muito bem,
como distingui-la da agressividade exercida sobre alguém. Em termos
etimológicos, a palavra agressividade é definida como a qualidade do
agressivo (século 18), que vem do latim agreste, que tem o sentido de
“cousa de villão”. Com o tempo, a palavra foi sendo identificada com
um comportamento rude (campesino) com o outro, chegando atualmente
a ser definida como relacionada a condutas hostis e destrutivas (Sousa,
1996).
Para a Psicanálise freudiana, a agressividade é tomada como a:
“Tendência ou conjunto de tendências que se atualizam em comportamentos reais ou fantasmáticos, estes visando prejudicar a outrem,
destruí-lo, constrangê-lo, humilhá-lo, etc.” (Laplanche; Pontalis, 1992,
vb. agressividade, p. 37).
Para estes autores, além das ações motoras violentas e destruidoras,
os comportamentos agressivos podem se apresentar de outras formas,
acompanhando as relações cotidianas, como a recusa a um auxílio demandado ou o uso da ironia, por exemplo. A Psicanálise atribuiu uma
importância crescente à agressividade, culminando com a tentativa de
relacioná-la à pulsão de morte, tomando-a como uma força desorganizadora e fragmentante. Esta, todavia, não é a única interpretação do termo.
262
Enio Waldir da Silva
Arendt (1974), por sua vez, avança a discussão quando desvincula
estrutura de poder e violência. Poder e violência são elementos que
devem ser distinguidos. Poder não é violência nem dominação. É o
que se poderia chamar de “poder democrático”, isto é, poder enquanto
delegação de um grupo para que fins comuns sejam alcançados. Para
Arendt (1974, p. 36),
o poder não é propriedade de um indivíduo, mas se sustenta num
grupo ou comunidade, somente existindo enquanto a coesão desse
grupo permanecer. Assim, o poder corresponde à ação humana em
que seu exercício corresponde àquilo que lhe é demandado pelo
grupo. O poder aparece onde quer que as pessoas se unam e ajam em
consonância de objetivos. Já a violência caracteriza-se por seu caráter
instrumental, aparecendo como último recurso para conservar intacta
a estrutura de poder frente a contestações. Se o poder é a essência
de todo governo, o uso da violência somente eclodirá quando esse
governo procurar manter-se apesar de não ser mais capaz de responder à legitimidade que lhe foi conferida pelo grupo. Dessa maneira,
violência e poder são considerados em oposição, pois um só existe na
ausência do outro, ou seja, a violência só existe na ausência do poder,
e se existe poder não tem sentido a violência.
Arendt (1974) propõe desvincular a violência da ideia de algo inerente ao mal e ralacioná-la com o seu oposto, o poder. Considera ainda
importante desvincular ambos da condição de fenômenos naturais, como
manifestações do processo vital, e inseri-los no âmbito da política, dos
negócios humanos e, acrescento, das relações intersubjetivas. Afirma
ainda que a redução do poder seja um convite à violência, sendo difícil
àquele que vê o seu poder diminuir não recorrer à violência como maneira
de retê-lo, seja nas relações sociais, seja nas relações intersubjetivas.
Tomando um ponto de vista semelhante ao de Arendt (1974),
Chauí (1985) vai chamar a atenção para as duas formas pelas quais a violência contra as mulheres nas relações de gênero se apresenta: “percepção
hierarquizada das desigualdades impostas às mulheres com a finalidade
de domínio, exploração e opressão” e “identificação à coisa”, tomando a
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
263
mulher não em sua dignidade humana, mas como propriedade pessoal.
Nesse sentido, o discurso masculino coisifica a mulher oprimindo-a,
privando-a de seus desejos, de suas opiniões e de sua fala.
A violência é entendida por Chauí (1985) como diferente da relação
de força, tal como exposto por Arendt (1974), porque, na iminência da
perda do poder, a força implica desejo de aniquilar, de destruir o outro,
desejando a sua supressão ou a sua morte. A força relaciona-se com um
desejo de mando e de opressão, podendo ser exercida por uma classe
sobre a outra, por um grupo social sobre o outro ou por uma pessoa sobre
a outra. Já na violência, há o desejo de preservação do outro, seja ele um
grupo ou uma pessoa, mas enquanto anulado e submetido à vontade do
dominador. A violência deseja a sujeição consentida.
Segundo Chauí (1985, p. 35),
a violência é a ação que trata o ser humano não como sujeito, mas
como objeto, culminando com a violência perfeita, isto é, a interiorização
da vontade e da ação alheia. Com isso, substitui-se a própria vontade
pela vontade do outro através de uma ação coercitiva proveniente da
parte dominante.
Dessa maneira, a autonomia não pode ser entendida apenas
como a possibilidade de fazer escolhas ou de fazer o que se quer, pois é
possível escolher e fazer o que o outro deseja que se faça. É isso o que
caracteriza a violência perfeita, a completa interiorização da vontade e da
ação alheia na submissão ao desejo do outro, de modo que a perda da
autonomia não seja percebida nem reconhecida. As ações daí decorrentes
serão consideradas provenientes de uma opção voluntária, embora, na
verdade, não se trate disso. Dito de outra forma, a violência perfeita é
aquela que resulta na alienação, na identificação da vontade e da ação
de alguém com a vontade e a ação de quem a domina. A perda da autonomia se submerge na heteronímia. Chauí (1985) utiliza esse termo
264
Enio Waldir da Silva
para indicar a submissão da mulher ao outro e até mesmo a constituição
do seu desejo enquanto dependente do desejo de outro, sem que ela
se dê conta disso.
Para esta autora, a liberdade não deve ser considerada a escolha
voluntária de uma possibilidade entre as diversas que se apresentam ao
sujeito, mas enquanto a capacidade de autodeterminação para pensar,
querer, sentir e agir. Aqui, a autodeterminação é considerada no sentido
do exercício da autonomia. Essa autonomia não se opõe à necessidade
natural ou social, mas trabalha com ela, num processo de construção e de
constituição de si mesmo na autonomia, numa relação de independência
das determinações de outro sobre aquilo que somos e que fazemos.
O que somos e o que fazemos pode ter a capacidade aumentada
e diminuída segundo a nossa capacidade de nos submetermos ou não à
força e à violência que contra nós se encontram dirigidas. A liberdade
proviria não da vontade para acatar ou não a determinação do outro, mas
da capacidade de reflexão das experiências vividas
A violência aparece no cenário mundial como um problema urbano
que alimenta e ecoa nos debates internacionais, que irrompe num continuum que parece não ter fim, invadindo o cotidiano sob holofotes que
emolduram atores e lugares que se sucedem velozmente, desvendando
“casos” que, logo em seguida, recaem na escuridão dos bastidores. Ela
é tratada, da mesma forma que a corrupção, como se fosse um vírus ou
bactéria altamente contagiosa, como uma endemia ou epidemia, como
planta que estende suas raízes, seus brotos, suas ramificações, com ímpeto
sempre renovado, gerando a sensação de ter “tomado conta do mundo”.
A emergência da violência (ou da corrupção) como um problema social
revela a disposição de um confronto. Quem luta e quais são os objetos
que estão sendo disputados? Quais são as configurações de poder que
emolduram esse confronto?
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
265
Este enfrentamento parece ter um território bem demarcado: as
periferias urbanas. Parece contar com um alvo central: jovens pobres,
imigrantes de primeira ou de segunda geração. E aponta para a disputa
sobre as formas de controle social, em sociedades em transformação. Um
ponto comum na construção contemporânea sobre o que é “violência” – e,
portanto, sobre qual será o objeto prioritário das políticas públicas – é a sua
associação quase exclusiva com a violência da criminalidade urbana.
Há uma interação muito forte entre a violência representada nos
meios de comunicação de massa e a vida real. A mídia pode contribuir
para consolidar uma cultura agressiva, ao mesmo tempo em que pessoas
já agressivas a utilizam para a reafirmação de suas crenças e atitudes, as
quais, por sua vez, são reforçadas pelo conteúdo da programação divulgada. Essa interação confirma-se de maneira mais marcante em relação
a processos de longo prazo.
A essa altura do estudo faz-se importante apresentar algumas correlações entre a violência na mídia e na vida “real”. Não se pode supor
que exista um efeito unidirecional, em âmbito global, tampouco testá-lo
empiricamente. O estudo concentra-se no papel da mídia no âmbito da
complexa cultura da violência, paralelamente a outras influências.
Groebel (1997) destaca o relatório da pesquisa da Unesco. Na
conclusão deste relatório são apresentados os resultados do estudo global
sobre violência nos meios de comunicação de massa, entre 1996 e 1997. A
televisão, em especial, tem ampla difusão junto a maioria da população,
constituindo-se no principal veículo da ideologia, expressão privilegiada
da violência simbólica. É a ideologia que sustenta a hegemonia da classe
dominante: a burguesia. Privilegiei a análise da violência simbólica que
é orquestrada pela indústria cultural para gerir a construção do “tipo psicológico ordinário” (Costa, 1986), isto é, aquela forma de individuação e
de vínculos sociais que mantêm o status quo. Os modelos identificatórios
são construídos e difundidos pela mídia para a manipulação/padronização
dos indivíduos, o que facilita manter a todos sob controle social.
266
Enio Waldir da Silva
A televisão, por exemplo, tem como função implícita a formação de
públicos para o mercado, e faz isso de maneira mais eficiente ao reduzir
o discurso a um denominador comum, o mais baixo possível, apelativo
e criador de seu público cativo, ou seja, cria o consumidor e oferece o
produto para este consumir, fazendo a realimentação dos mesmos sonhos,
partilhando o mesmo universo, gostos, desejos e esperanças.
Falsifica cotidianos e de tantos atos repetidos que promove incha o que se vê e se ouve e garante um grau zero dos sentidos, como
se a televisão quisesse provar que a vida é banal como seus programas
(especialmente os chamados reality shows). Com o tempo o público se
identifica com o que vê e já não consegue distinguir o que é imaginário
e real: “aceito tudo como verdade, caso contrário não me divirto”. Esse é
uma espécie de pacto simbólico, como se a TV dissesse que dá ao público
um programa parecido com as expectativas culturais que ele tem e este
fica ligado nela, e na medida em que o público entende os programas
sem esforço, diverte-se, torna-se cúmplice de tudo aquilo que a televisão
oferece. Embora esta cumplicidade não aconteça por imposição, ela se dá
pelo fato de o público fazer parte dela e não como vítima, pois ele tem
o livre-arbítrio de ligar e desligar a TV. Mesmo em momentos em que a
televisão mostra o lixo, os feios, os disformes, os miseráveis, há aí um autorreconhecimento de um determinado público e uma diferenciação por
parte dos outros, garantindo assim o equilíbrio e o preconceito. É como
um meio de hierarquizar as diferenças de classe e preferências sociais.
Hoje a TV, em termos gerais, cultua a estética do grotesco notabilizado.
O povo torna-se apenas em público (Silva, 2010).
As relações violentas que caracterizam a vida em sociedade atualizam-se de forma disfarçada por meio da poderosa tecnologia da indústria
cultural. Exprimem o disfarce cínico da violência que penetra profundamente no âmago da vida subjetiva e de relações dos indivíduos. Homens,
mulheres e crianças, em diferentes partes do mundo, são empurrados para
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
267
a fragilização no estado de desamparo, sem conseguirem se organizar em
ações de sujeitos participantes para a constituição de um poder político
verdadeiramente protetor e voltado para o bem de todos.
Nesse contexto da vida dos indivíduos, a violência social se
configura, preferencialmente, como exercício de manipulação políticoideológica e de opressão/conformação por meio de diferentes estratégias
e instrumentos de ameaças, mais ou menos sutis. É, portanto, uma violência simbólica, a qual, segundo Costa (1986), se encarrega de capturar
o mundo interno dos sujeitos para substituí-lo pela internalização de
formas de ser, desejar, sentir, pensar e agir que interessam à manutenção
da sociedade.
A emergência de indivíduos autônomos é contida pela difusão
maciça de modelos identificatórios que promovem a estandardização das
pessoas, tornadas “máscaras mortuárias”. O mascaramento do real e a
imposição social de formas-de-ser-indivíduo – padronização – viabilizam
um controle social mais eficaz que não seria possível sob a permissão da
diferença e da diversidade. Esses modelos são difundidos, em especial,
pela mídia e, para melhor controle social, eles são cada vez mais comuns
a todos os indivíduos do planeta.
Outro estudo sobre a relação entre a violência e os meios de comunicação é realizado por Porto (2006). A principal conclusão da autora
diz respeito à importância da não generalização de tal temática, ou seja,
de não incorrermos em análises equivocadas (como a de que os meios
de comunicação de massa são os únicos responsáveis pela violência, ou,
pelo contrário, que não possuem nenhuma responsabilidade com relação
a essa temática), mas de entendermos os conceitos e as conexões entre
eles de forma relativa.
Isso porque a autora trabalha, ao longo de todo o texto (e aqui está
o aspecto mais importante do escrito), a violência como algo empírico,
que depende fundamentalmente da realidade social de cada território (e
não da teorização abstrata). Além disso, Porto (2006) considera a violência
268
Enio Waldir da Silva
uma forma de sociabilidade contemporânea, um fenômeno capaz de
reestruturar laços sociais em uma época de permanente fragmentação.
Já os meios de comunicação possuem funções paradoxais, no sentido
de que, ao mesmo tempo em que podem ser uma preciosa fonte de
informações, de indignação e provocadora de reações da população com
relação à violência, podem também (como comumente têm sido) ser um
veículo de sensacionalismo, que transforma a violência em um produto
bastante caro – e cada vez mais requisitado pelo próprio público.
Apesar disso, é visível o esforço da autora em deixar claro que os
meios de comunicação de massa aparecem apenas como mais um ator
que interage com a violência (não sendo o único responsável por ela, mas
tampouco podendo ser eximido de culpa). Por isso, acho que a grande
conclusão trazida pelo texto, e defendida também por mim, refere-se à
problemática da generalização ou relativização do tema violência, que, ao
mesmo tempo em que deve ser considerado de forma contextualizada,
levando em conta a realidade em que está inserido e os sujeitos nele
envolvidos, não pode mais deixar de ser uma referência (por menor que
ela seja) universal.
Isso significa que, embora um mesmo ato possa ser considerado
violência em um determinado local e em outro não, não se pode abrir
espaço para uma total relativização de uma questão tão importante, pois
corre-se o risco de tolerar as agressões mais absurdas aos direitos mais
fundamentais em nome da diferença e da multiplicidade de culturas.
Um dos problemas é a falta de meios de comunicação de massa
que permitam a bilateralidade (ou seja, uma resposta ao que se ouve),
pois, embora exista a Internet e sites de interação e trocas de opinião,
o acesso a estes meios ainda é bastante restrito (não é à toa que se fala
constantemente em inclusão digital). Assim, soa estranho que “todos tenham o direito a dar sua opinião”, mas apenas alguns possam ser ouvidos
(de forma unilateral).
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
269
A “resposta” àquilo que é dito pelos meios de comunicação não
acontece, a meu ver, por dois motivos: primeiro, a educação (vista como
a oportunidade de desenvolver um pensamento próprio, crítico e independente), que falta para grande parte da população brasileira que,
diante do sensacionalismo e da apresentação de um ponto de vista como
“verdade natural”, sente-se (e de fato é) incapaz de responder ou mesmo
pensar algo que contrarie o que está sendo propagado pela grande mídia.
Segundo, a própria democracia, que permite que todos que quiserem – e
puderem, detalhe – podem ter seus meios de comunicação.
No Brasil, a mídia tem lado – e o grande problema é que ela está
contra o próprio Estado. A mídia brasileira, controlada por poucas famílias, não está interessada em defender a inclusão social, a intervenção
do Estado em defesa da igualdade e da justiça, por meio de políticas
públicas que se preocupem em melhorar a coletividade.
Com relação à violência é mais fácil atribuir a culpa pelos crimes
ao próprio indivíduo delituoso do que fazer uma leitura histórica da
situação social. É isso que a mídia faz: busca a punição do sujeito (não a
solução do problema). Valoriza tudo fora de seu contexto, fazendo surgir
a técnica sem finalidade (ou com finalidade em si mesma), a especialização exagerada e a visão cada vez mais individualizada das coisas, com
perda da dimensão coletiva.
A violência é apresentada em casos específicos não como um problema social de todos, mas por intermédio de casos, nos quais sempre há
alguém a ser cruelmente punido. Há, no entanto, um abismo entre justiça
e vingança (tendo clareza de que o que se deve buscar é a primeira), e
o que se tem constatado é que as pessoas respondem à agressividade
venerada pela mídia com gritos de “quero mais”.
Quanto mais sangue, bombas, tiros, sequestros e homicídios,
melhor, mais interessante. Qualquer ação pública que busque compreender as situações e tratar de forma humanizada os delinquentes (sim!
embora nos esqueçamos, os “bandidos” também são seres humanos!)
270
Enio Waldir da Silva
será indubitavelmente julgada pouco eficiente. Por quem? Pela mídia.
Bom mesmo, na opinião dela (e, por consequência, da maioria de nós)
é prender para o resto da vida e, se possível, eliminar aqueles que atrapalham o “bom desenvolvimento” da nossa sociedade.
Não há dúvida de que as formas de violência efetuam a repressão dos indivíduos na sociedade e estão a serviço das injustiças e das
desigualdades sociais: o controle social dos indivíduos é exercido para a
sustentação de privilégios de classe de uma minoria que retém os bônus
da lucratividade na produção e no consumo das mercadorias.
Os demais indivíduos vivem sob a vigilância cada vez mais acirrada
da sociedade. A invasão da privacidade coloca-se como normatização
cínica, mostrando-se cada vez mais praticada por agências privadas que
recebem essa incumbência dos Estados. Essas ações de violência são
justificadas como exigência para uma suposta segurança dos membros
da sociedade e, embora venham sendo cada vez mais invasivas da vida
privada dos indivíduos, são também maciçamente difundidas sob formas
hilariantes, para não dizer debochadas, tais como “Sorria, você está sendo
filmado” (Caniato, 2008).
Indignação, como? Para onde pode levar essa inquietude que começa
a vibrar dentro dele? Mas ele está só e todos ao seu redor estão apáticos, ignoram o que ocorre com eles mesmos. Não encontra quem
mostre qualquer inquietude; ele chega a se achar anormal. Ninguém
sinaliza sentir sequer a estranheza de uma “vida desperdiçada”,
mergulhada na hostilidade e na amargura, e que queira fazer alguma
coisa para mudar em nome de um apelo de vida. Talvez os outros
nem saibam que isso existe; tão habituados estão à infidelidade e à
traição. Mas ele continua inquieto!... E impotente! Se se revoltar,
não encontrará quem lhe seja solidário e corre o risco de ser preso.
O medo de ser punido se intensifica, pois certamente a polícia virá
pegá-lo; os outros apáticos irão para a cadeia sem saber por que, pois
estavam silenciosos e não estavam fazendo baderna alguma. Ninguém
se mexe, todos estão acuados, assustados, até, e se afastam correndo
daquele “maluco” que pensa. Ele sozinho nada conseguirá fazer,
pois o grande aparato de violência e repressão já desconfiou de sua
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
271
alegria e a polícia foi acionada pelos vizinhos de sua residência. Não,
não pode e não adianta mudar nada!... A perplexidade toma conta
dele novamente, pois sempre ouviu dizer que só Deus ou o destino
sabem dos caminhos para o homem...
Mas algo dentro dele já não está mais do mesmo jeito: ele começou
a pensar e a sentir-se com direitos?!!... Dentro dele floresce a vida que
não é entendida por quem o cerca; mas ele não se deixa enganar pela
mensagem do amor que começa a nutrir toda a sua vida... Mas ele é só
um... Se não quer ter a rejeição de todos ou ser punido terá de adiar o
imperativo de viver o “mundo da vida” e, afinal, o seu sonho fala disso.
Agora terá que desistir ou adiar porque está só... Milhares de milhões de
seres humanos vivem com fome, sem alimentos suficientes, medicinas,
roupas, sapatos, casas, em condições sub-humanas, sem os mínimos
conhecimentos e suficiente informação para compreender sua tragédia
e do mundo que vivem (Caniato, 2008).
Direito, Mídia e Tecnologia na Sociedade Global
Segundo Habermas (1995), as mídias de massa e do entretenimento fraudaram a essência da esfera pública, pois passaram a vincular
encenação dos poderes políticos autocráticos e os interesses comerciais
sobrepujaram os interesses públicos, manipulando a opinião pública,
impedindo discussões racionais.19
A razão pública mais elaborada não tem ressonância nesta midiologia de hoje. A fala de um intelectual na mídia soa como algo acima da
sociedade, embora muitas vezes choroso, excitado e imprevisível.
Ver Silva, Enio Waldir. Esfera pública, cidadania e gestão social. Ijuí, RS: Ed. Unijuí,
2010.
19
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Enio Waldir da Silva
É já nesse período de incubação, quando o vírus da Revolução Francesa se alastrou por toda a Europa, que se manifesta a constelação na
qual o tipo do intelectual moderno encontrará o seu lugar. Ao influírem
com argumentos retoricamente afiados na formação da opinião, os
intelectuais dependem de uma esfera pública capaz de lhes servir de
caixa de ressonância, alerta e informada. Necessitam de um público
de orientação mais ou menos liberal e precisam confiar num Estado
de Direito minimamente encaminhado pelo simples fato de apelarem
a valores universalistas em meio ao litígio sobre verdades sufocadas
ou direitos negados. Pertencem a um mundo no qual a política não se
dissolve na atividade do Estado; seu mundo é uma cultura política da
contradição, na qual as liberdades comunicativas dos cidadãos podem
ser desencadeadas e mobilizadas.
É simples projetar o tipo ideal de intelectual que rastreia temas importantes, levanta teses fecundas e amplia o espectro dos argumentos
pertinentes para melhorar o nível deplorável dos debates públicos.
Por outro lado, eu não deveria sonegar aqui a ocupação mais querida
dos intelectuais: eles adoram sintonizar-se com as queixas rituais
sobre o declínio “do” intelectual. Confesso não estar inteiramente
livre dessa tendência (Habermas, 1995).
Parece, para o autor, que falta entrar em cena intelectuais que,
com suas opiniões, possam mobilizar públicos e pergunta-se: será que
na nossa sociedade midiática não ocorre uma nova mudança estrutural
da esfera pública, que faz mal à figura clássica do intelectual (a exemplo
de Michel Foucault, Jacques Derrida e Pierre Bourdieu, os textos de
intervenção de Erich Fried ou Günter Grass)?
O autor entende que a reorientação da comunicação, da imprensa e
do jornalismo escrito para a televisão e a Internet conduziu a uma ampliação insuspeitada da esfera pública midiática e a uma condensação ímpar
das redes de comunicação. Embora o intercâmbio seja mais intenso, os
intelectuais parecem morrer sufocados diante do transbordamento desse
elemento vivificador, como se ele lhes fosse administrado em overdose.
A bênção parece transformar-se em maldição. As razões para isso me
parecem ser uma informalização da esfera pública e uma indiferenciação
dos correspondentes papéis.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
273
Vejamos nas palavras do próprio autor:
A utilização da Internet simultaneamente ampliou e fragmentou os
nexos de comunicação. Por isso a Internet produz por um lado um
efeito subversivo em regimes que dispensam um tratamento autoritário à esfera pública. Por outro lado, a interligação em redes horizontais
e informalizadas de comunicação enfraquece, ao mesmo tempo, as
conquistas das esferas públicas tradicionais, pois estas enfeixam no
âmbito de comunidades políticas a atenção de um público anônimo
e disperso para informações selecionadas, de modo que os cidadãos
podem ao mesmo tempo se ocupar dos mesmos temas e contribuições
criticamente filtrados.
O preço do aumento positivo do igualitarismo, com o qual a Internet
nos brinda, é a descentralização dos acessos a contribuições nãoredigidas. Nesse meio, as contribuições de intelectuais perdem a
força necessária para formar um foco.
Não obstante, seria apressado afirmar que a revolução eletrônica
destrói o palco para as aparições elitistas de intelectuais vaidosos, pois
a televisão, essencialmente atuante no âmbito das esferas públicas
estabelecidas nos Estados nacionais, apenas fez aumentar o espaço
do palco da imprensa, das revistas e da literatura.
Ao mesmo tempo a televisão transformou o palco. Deve mostrar em
imagens o que quer dizer, e acelerou o iconic turn, a virada da palavra
para a imagem. Essa desvalorização relativa desloca também os pesos
entre duas funções distintas da esfera pública.
Como a televisão é um meio que torna algo visível, confere celebridade no sentido de notoriedade aos que aparecem em público. Os
atores sempre representam a si mesmos diante da câmera, independentemente da sua contribuição ao conteúdo do programa. Por isso
o espectador se lembra em encontros fortuitos de ter visto o rosto do
outro em algum momento passado.
Mesmo se o conteúdo remete a um evento discursivo, a televisão
convida os participantes à representação de si mesmos, como podemos
observar em muitos talk shows. O momento da auto-representação dos
atores transforma inevitavelmente o público judicante – que, diante
da tela, participa do debate sobre temas de interesse geral – também
em um público assistente.
274
Enio Waldir da Silva
Não se diga que esse traço não cai como uma luva na vaidade patológica dos intelectuais; alguns se deixaram corromper pelo convite
do meio à auto-representação, prejudicando assim a sua fama, pois o
bom nome de um intelectual, se é que ele existe, não se baseia em
primeiro lugar na celebridade ou notoriedade, mas em uma reputação,
que o intelectual deve ter adquirido entre seus pares de profissão,
seja como escritor ou como físico (de qualquer modo, em alguma
especialidade), antes de poder fazer um uso público desse saber ou
dessa reputação. Ao intervir num debate com argumentos, ele precisa
se dirigir a um público não de assistentes ou espectadores, mas de
oradores e destinatários potenciais, capazes de discutir uns com os
outros. Para expressar isso à maneira de um “idealtipo” – segundo
o sentido de Max Weber –, importa aqui a troca de razões, e não o
enfeixamento encenado de olhares. Talvez isso explique porque
as rodas de políticos, especialistas e jornalistas, que se formam em
torno dessas moderadoras feéricas, não deixam nenhuma lacuna que
deveria ser preenchida por um intelectual. Não sentimos sua falta,
pois todos os outros já há muito tempo cumprem melhor o seu papel.
A mistura de discurso e auto-representação conduz à indiferenciação
e assimilação de papéis, que o intelectual, hoje démodé, outrora se
via obrigado a manter separados. O intelectual não deveria usar a
influência ganha com palavras como meio de conquista de poder. Não
deveria, portanto, confundir “influência” com “poder”. Mas ainda
hoje, nos talk shows, o que poderia distingui-lo dos políticos, que há
muito tempo se servem do palco da televisão para uma concorrência
intelectual em busca da ocupação de temas e conceitos influentes?
(Habermas, 1995, p. 8).
Sobre esta mesma questão da opinião pública também escreve
Pierre Bourdieu (2000), pois seria importante que os intelectuais tomassem consciência de que, em sua relação com a televisão, o que está em
jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas algo
infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de instituir
um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome do maior
número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais avançadas da
pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a possibilidade
de oferecer a todos os homens e mulheres de todos os países um acesso
mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana.
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
275
Segundo Bourdieu, a construção deste contrapoder só pode ser
feita com a cumplicidade e a participação ativa da fração mais esclarecida
e mais independente dos jornalistas.
Em um livro, Sobre a televisão (2000), ele abriu nova e polêmica
frente de discussão ao estudar a cultura midiática e fazer uma crítica
definitiva ao meio de comunicação mais controvertido da atualidade.
Para ele, a tela da televisão tornou-se hoje “uma espécie de espelho de
Narciso, um lugar de exibição narcísica no qual querem se mirar alguns
intelectuais midiáticos”, do qual fogem os eruditos e pensadores, evitando uma mídia extremamente superficial, própria a fast thinkers. Bourdieu
acha que pouca coisa pode ser dita num veículo que impõe o assunto,
o tempo irrisório e que tem interesses econômicos invisíveis e, muitas
vezes, inconfessáveis (Bourdieu, 2000).
Em alguns momentos Pierre Bourdieu afirma que na mídia há
um simulacro inofensivo de crítica destinado a criar audiência dando
satisfação a uma demanda confusamente sentida pelo público.
Não se trata de recusar a televisão, pois assim poderia se comprometer o sucesso de obras que merecem atingir um público maior; é
também deixar espaço aos intelectuais midiáticos, que são capazes
de desencadear verdadeiras campanhas de publicidade em defesa
de seus produtos ou dos de seus amigos; e, também, em casos mais
excepcionais, campanhas de difamação contra os que se recusam
a entrar no jogo ou que, mais simplesmente, têm a insolência de
descrevê-lo. Penso que seria preciso que artistas, escritores, eruditos
e pensadores lutem individualmente e sobretudo coletivamente para
conquistar a possibilidade de ter acesso à TV em boas condições, isto
é, quando eles têm algo a dizer que merece atingir uma audiência
maior e quando se lhes oferecem a oportunidade e o tempo necessário
para dizê-lo. Creio que seria possível inventar novas formas de ação
pela televisão que sejam capazes de envolver públicos mais vastos
em torno de assuntos mais difíceis e mais importantes (como o futuro
da economia mundial), mas sob a condição de mobilizar verdadeiramente todas as capacidades inventivas dos escritores, dos eruditos e,
sobretudo, dos artistas, e especialmente dos cineastas. É este o tipo
de tarefa na qual deveria se empenhar o intelectual coletivo tal qual
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Enio Waldir da Silva
o imagino. Efetivamente, é por isso que todos os que desejam agir
sobre o mundo, ao menos o suficiente para contrabalançar ou combater
a ação dos que o dominam, devem se questionar seriamente sobre a
questão do bom uso das mídias. Não é o caso de recusar as mídias, mas
de se perguntar como utilizá-las sem se deixar usar por elas. É preciso
os pesquisadores irem à televisão, mas dentro de suas conveniências
e suas condições. Há imensos obstáculos, que não enumerarei para
não desencorajar ou desesperar os que tentam lutar. Penso que já
seria importante que os intelectuais tomem consciência de que, em
sua relação com a televisão, e mais genericamente, o que está em
jogo não é apenas seu ego, sua notoriedade atual ou potencial, mas
algo infinitamente mais importante politicamente: a possibilidade de
instituir um contrapoder crítico eficaz, capaz de se exprimir em nome
do maior número de pessoas, as conquistas mais sofisticadas e mais
avançadas da pesquisa científica e artística ou, mais simplesmente, a
possibilidade de oferecer a todos os homens e a todas as mulheres de
todos os países um acesso mínimo aos produtos mais raros e mais nobres da reflexão humana. A construção deste contrapoder só pode ser
feita, evidentemente, com a cumplicidade ou mesmo a participação
ativa da fração mais esclarecida e mais independente dos jornalistas
(Bourdieu, 2000).
Agora, surge a necessidade de estabelecer discussões profundas
sobre temas que avançam no mundo real e no virtual a velocidades
nunca antes vistas na História da humanidade. Um tema que aparece
como elemento inovador nas discussões de direitos humanos recentes
é o que toca na comunicação, na informação e nas novas tecnologias de
informação e comunicação (TICs). A Internet, que ao mesmo tempo
propicia a democratização da informação, dá possibilidade à propagação
de ações de xenofobia, racismo, homofobia, pedofilia, etc. Os meios de
comunicação impressos, radiofônicos e televisivos começam a convergir
entre si e temores de que instrumentos tão poderosos fiquem concentrados nas mãos de poucos tornam-se cada vez mais reais.
Mais do que nunca é importante trazer à baila o que significa
discutir o direito à comunicação e à informação num mundo global em
que a velocidade com que os fatos e não fatos circulam são extraordinários. Esta é uma discussão que rebaterá tanto nas questões relacionadas
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
277
à educação quanto na concessão de licenças públicas para rádios e TVs,
bem como toda a discussão sobre inclusão digital e a opção estratégica
pelo software livre. Discutir o direito à comunicação na sociedade da
informação é ainda um grande desafio quando se pensa que as organizações da sociedade civil veem as questões de comunicação e de informação apenas como técnicas e não como questões político-estratégicas.
Não é de agora que a comunicação e a informação saíram da esfera dos
profissionais da área para permearem campos tais como o do entretenimento (que não são necessariamente jornalísticos, apesar de recentemente estarem cada vez mais imbricados) e da política. Este casamento entre
comunicação e política – que em nosso país gera o absurdo de famílias
inteiras perpetuarem seu poder político via veículos de comunicação que
controlam – é uma ameaça real à sociedade como um todo e precisa ser
urgentemente enfrentada.
Não há dúvida de que um controle cidadão sobre os meios de
comunicação, as concessões de licenças e a democratização do acesso às
TICs precisarão ser tratados pela sociedade de forma madura e racional.
As convergências entre rádio, TV, mídia impressa e Internet já são realidade e com isso os poderes dos detentores destes veículos se ampliam
cada vez mais. De igual modo é fundamental discutir com mais seriedade
e menos interferência dos grandes controladores da mídia do país o papel
das rádios e TVs comunitárias. Mesmo com o governo Lula, em nada
se alterou o quadro de perseguição, prisão de dirigentes e destruição de
equipamentos das rádios comunitárias.
Ainda hoje, parte da legislação que rege as rádios comunitárias
é dos anos 70. Leis sobre a Internet, direitos de autor na WEB, entre
outros, praticamente não existem. Infelizmente, a concepção arcaica de
legisladores brasileiros faz com que estejamos muito atrás em discussões
fundamentais no que tange às TICs e o campo da comunicação como
um todo.
278
Enio Waldir da Silva
Pensar em comunicação como direito humano é, antes de tudo,
imaginar que as maravilhas da sociedade da informação precisam ser compartilhadas com todos: pobres e ricos, negros e brancos, urbanos e rurais,
etc. Esta é a premissa básica: incluir os que estão de fora. Colocarmos
uma premissa prioritária não nos exime de alcançar outros patamares de
discussão, como pensar a qualidade da informação: na difusão, na troca, na
sinergia. A questão é que o atraso da universalização no Brasil direciona
o raciocínio imediato de dirimir a distância de excluídos e incluídos.
Torna-se vital, sem deixar o imediatismo em segundo plano, elaborar
um debate amplo com a sociedade para definir os alicerces estratégicos
para a consolidação do software livre, dos programas de inclusão digital,
de uma nova lei de concessões de rádios e TVs, etc. Construir essas
alternativas é o nosso grande desafio.
Em relação ao Direito, vejamos o texto direto de Boaventura de
Sousa Santos (2005):
Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de informação.
A questão das relações entre as novas tecnologias de comunicação e
de informação e o sistema judicial é uma subquestão de um debate
muito mais amplo sobre o significado econômico, social, político e
cultural da revolução em curso nas tecnologias de informação e de
comunicação.
Falar de revolução implica já assumir a grande magnitude das
transformações que ocorrem sob os nossos olhos. Essa magnitude
aparece formulada de modo diferente nos diferentes campos sociais.
Na economia fala-se do novo estádio do capitalismo, o capitalismo
informacional e da nova economia electrónica; no domínio social,
da sociedade de informação ou da sociedade em rede e, também,
da info-inclusão e de info-exclusão; no domínio político, da política
espetáculo e da democracia eletrônica; no domínio cultural, fala-se
da cultura global e de cibercultura. Em minha opinião, a transformação mais profunda está a ocorrer nas concepções de espaço e de
tempo. Todas as instituições da modernidade foram constituídas na
base de um espaço-tempo privilegiado, o espaço-tempo nacional,
constituído por três temporalidades distintas: a temporalidade da
Capítulo 4 – Temas da Sociologia Jurídica Atual
279
deliberação política (que determinou, por exemplo, que haver eleições
de quatro anos é adequado, mas não o seria se as houvesse em cada
quatro meses), a temporalidade da ação burocrática do Estado (que
determino por exemplo, o ciclo de tributação, a validade das cartas
de condução, licenças e dos bilhetes de identidade, etc.) e a temporalidade judicial fixou o patamar da duração dos processos para além
dos quais é possível falar de morosidade. Este espaço-tempo está hoje
a ser desestruturado sob a pressão de um espaço-tempo emergente,
global e instantâneo, o espaço-tempo eletrônico, o ciberespaço.
Este espaço-tempo cria ritmos e temporalidades incompatíveis com
a temporalidade estatal nacional. O caso mais dramático é talvez o
espaço-tempo global e instantâneo dos mercados financeiros, o qual
inviabiliza ou torna muito difícil qualquer deliberação ou regulação
por parte do Estado.Não é fácil avaliar a extensão e a profundidade
das rupturas em curso. O instituinte, por mais poderoso, tem de contar
sempre com a inércia e a resistência do instituído. E este tem modos
de se perpetuar no interior daquilo que o transforma. A questão do
potencial transformador da revolução nas tecnologias de informação
e de comunicação é, assim, uma das questões centrais suscitadas a
propósito do espaço-tempo emergente. A outra questão é a do sentido
político e cultural desse potencial transformador. Assim, mais uma
vez se mostra que as questões técnicas e as questões políticas seguem
na sombra umas das outras. A questão do sentido político é bem formulada por Stefano Rodatà: “Estamos a caminhar para a vivência de
uma democracia como se sonhava na velha Atenas ou para o mundo
prefigurado em Orwell? (2000, p. 121)”. A resposta é tão fácil de dar
como difícil de executar: depende de nós. A dificuldade reside em
que quanto mais tudo parece depender de nós, mais nós parecemos
depender de tudo e, nomeadamente, das tecnologias da informação e
da comunicação que, mais e mais, conformam o nosso quotidiano.Em
minha opinião, as novas tecnologias de comunicação e de informação
são uma enorme oportunidade e um enorme risco. Uma não é possível
sem o outro, mas é possível maximizar as oportunidades e minimizar
os riscos. Para isso, é necessário criar e aplicar generalizadamente
níveis de competência técnica e política nos cidadãos muito acima
daqueles que a democracia liberal até agora foi capaz de gerar. Sobretudo depois da obra de Joseph Schumpeter, Capitalismo, Socialismo
e Democracia, publicada em 1943, a teoria política liberal reduziu a
participação democrática dos cidadãos à eleição dos decisores políticos. Partindo do pressuposto que os cidadãos não são competentes
para participar nas decisões da governação, nem estão interessados em
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Enio Waldir da Silva
tal participação, o papel da cidadania democrática ficou circunscrito
à escolha dos decisores. Foi assim que a democracia representativa
se impôs em detrimento da democracia participativa. As novas tecnologias de comunicação e de informação desestabilizam este status
quo teórico e político a dois níveis. Por um lado, tornam muito mais
caótica a relação entre decisores e decisões, de tal modo que o caráter
democrático dos primeiros deixou de garantir o carácter democrático
das segundas. Por outro lado, criam oportunidades insuspeitadas para
desenvolver competência cidadã, competência para deliberar e tomar
decisões políticas e não apenas para escolher os decisores políticos. O
problema político central passa a ser o de como juntar a essa competência o interesse em a exercitar. Do modo como esse problema for
resolvido dependerá o sentido político das transformações em curso.
Ou serão maximizadas as oportunidades para fortalecer a democracia
e a cidadania: ou serão maximizados os riscos de reduzir a vivência
da democracia e da cidadania a níveis muito inferiores aos já baixos
níveis que hoje prevalecem. Com este pano de fundo, passo a analisar,
brevemente, os dois vetores da relação entre as novas tecnologias de
comunicação e de informação e os tribunais...
...No que respeita à democratização do acesso ao direito e à justiça,
as novas tecnologias de informação possibilitam mais circulação de
mais informação e, portanto, um direito e uma justiça mais próximos e
mais transparentes. Por exemplo, facilitam o acesso a bases de dados
jurídicos, a informações fundamentais para o exercício de direitos, e
possibilitam o exercício fácil de um conjunto de direitos e de deveres
dos cidadãos. É, hoje, possível, através de redes electrónicas, apresentar requerimentos, receber informações, pagar determinadas taxas ou
impostos, ou mesmo consultar processos. Muito brevemente, passo
a referir algumas áreas e alguns exemplos concretos de aplicação das
NTCI no domínio do sistema judicial (p. 88-91).
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