EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA VARA FEDERAL DA CIRCUNSCRIÇÃO JUDICIÁRIA DE JOINVILLE/SC. O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, por intermédio do Procurador da República que esta subscreve, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, com fulcro no art. 129, incisos II e III, da Constituição Federal de 1988, bem como nos dispositivos pertinentes da Lei nº 7.347/85 e Lei Complementar n° 75/93, vem, perante Vossa Excelência, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido liminar, tendo por base os documentos em anexo e as razões de fato e de direito que passa a expor, em face de: UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno, com sede na Rua Dona Francisca, n° 260, 7° andar, cj. 708, no Município de Joinville, Estado de Santa Catarina, podendo ser citada na pessoa de seu Advogado. ESTADO DE SANTA CATARINA, pessoa jurídica de direito público interno, com sede no Palácio do Governo, à Rua José da Costa Moelmann, n° 193, Centro, no Município de Florianópolis, Estado de Santa Catarina, podendo ser citado na pessoa do Procurador Geral do Estado de Santa Catarina, Dr. Walter Zigelli; e MUNICÍPIO DE JOINVILLE, pessoa jurídica de direito público, com sede em sua Prefeitura Municipal, na Rua Hermann August Lepper, 10, em Joinville/SC, representada por seu Procurador-Geral, o Dr. José Alaor Bernardes. -1- DOS FATOS AIDS é uma sigla de origem inglesa (Aquired Immune Dificiency Syndrome)1 que indica a ocorrência de uma síndrome, gerada pelo vírus HIV, que acarreta deficiências na imunidade do indivíduo portador, permitindo que doenças oportunistas (ex.: pneumonia, gripe, tuberculose, candidíase) comecem a se manifestar no organismo, que já não consegue mais se defender (pela diminuição dos linfócitos T4). Destarte, como soropositivos ou portadores do HIV podem ser identificados tanto aqueles que possuem o vírus, mas ainda não apresentam os sinais e sintomas da imunodeficiência, quanto aqueles que já estão doentes. Atualmente, conforme dados do Ministério da Saúde, existem 196.000 casos de AIDS notificados no Brasil, sendo que cerca de 95.000 pessoas já morreram. Contudo, estima-se que existam 536 mil pessoas infectadas pelo vírus HIV no país. Infelizmente, no Estado de Santa Catarina o panorama não é diferente. Ao contrário, a incidência acumulada, no Estado de Santa Catarina, de 1984 a Julho de 2000, está em 143,96 para cada 100.000 habitantes. Dos 50 municípios do Brasil com as maiores incidências, sete são de Santa Catarina, Itajaí despontando em primeiro lugar seguida de Balneário Camboriú e Florianópolis em oitavo lugar. Ressalta-se ainda, que do total de casos notificados em adultos 41,4% já foram a óbito e 57,3% estão vivos. Segundo a Gerência de Controle de DST/AIDS, vinculada à Secretaria de Saúde do Estado de Santa Catarina, a epidemia de AIDS neste Estado teve o seu início em 1984 na região oeste. No período de 1984 a Julho de 2000 foram notificados na Gerência de Controle das DST/AIDS 7.409 casos entre adultos e crianças. Contudo, face à descoberta da combinação de drogas (indinavir, ritonavir, saquinavir, AZT, 3TC, ddC, zidovudine, etc.), vulgarmente conhecida como "coquetel", para o combate ao HIV, no dia 13.11.96 veio à luz a Lei nº 1 Em 1981 o Centro de Controle de Doenças (CDC) dos EUA identificou a síndrome pelo nome "AIDS". -2- 9.313, cujo teor é o seguinte: "Art. 1º - Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento. § 1º - O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde. § 2º - A padronização de terapias deverá ser revista e republicada anualmente, ou sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico atualizado e à disponibilidade de novos medicamentos no mercado. Art. 2º - As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento" (grifo acrescido). Entre especialistas em epidemiologia e AIDS ainda se discute se o conjunto de remédios ("coquetel") deve ser ministrado apenas aos doentes de aids ou a todos os portadores do HIV - nesta hipótese, por um lado, teme-se a resistência do vírus e, por outro, afirma-se que as drogas são capazes de destruir o vírus e impedir a infecção. Porém, o certo é que o art. 1º da Lei nº 9.313/96 diz que tanto os portadores do HIV como os doentes de aids receberão, do SUS, gratuitamente, a medicação necessária ao seu tratamento de acordo com a padronização de medicamentos a ser feita pelo Ministério da Saúde (§§ 1º e 2º). Por conseguinte, segundo dados fornecidos pelo Ministério da Saúde, em sua página eletrônica, cerca de 95.000 pacientes recebem hoje os medicamentos de combate a AIDS, o que representa 100% das pessoas que preenchem os critérios estabelecidos no documento de consenso terapêutico em HIV/aids do MS. O Brasil tem 424 unidades de distribuição de medicamentos. Atualmente o Ministério da Saúde distribui 12 medicamentos anti-retrovirais, em 25 apresentações farmacêuticas, na rede pública de saúde. -3- Apesar do exposto, o Sistema Único de Saúde – SUS, em suas diversas esferas de atuação Federal, Estadual e Municipal , tem negado o fornecimento de determinados medicamentos de controle e combate à AIDS, imprescindíveis para a formação do “coquetel”, violando, destarte, o direito constitucional e legal à saúde, ao recebimento gratuito de medicamentos para o combate à AIDS e, em última análise, o próprio direito à vida. Comprovam esta assertiva, as declarações prestadas, na data de 09 de julho de 2001, pelo Sr. XXXXXXXXXXXX, nesta Procuradoria da República no Município de Joinville, nos seguintes termos: “(...) descobriu ser portador do vírus HIV em maio de 1995; (...) QUE então começou a tomar medicação, conhecida como “coquetel”; QUE inicialmente pagava a medicação com recursos próprios; QUE a partir do ano de 1998 não teve mais condições de comprar a medicação, tendo procurado o SUS, através da Unidade Sanitária responsável pelas DST e que é direcionada às pessoas portadoras do vírus HIV; QUE desde 1998 comparece mensalmente a esta Unidade Sanitária para pegar a medicação, sendo periodicamente consultado pela médica lá estabelecida; (...) QUE em 25/10/2000 realizou o exame chamado “genotipagem para HIV-1”, que revelou que, de 15 tipos de medicamentos disponíveis no mercado, o vírus estava “resistente” a 11 deles, a 2 estava “parcialmente resistente”, e somente a 2 medicamentos mostrou-se “sensível”; QUE, apesar de tomar regularmente diversos “coquetéis”, a carga viral não diminuiu, consoante demonstram os exames mais recentemente realizados, em datas de 16/12/1999, 27/04/2000, 13/07/2000, 01/03/2001; QUE os medicamentos então tomados não faziam mais efeito, bem como agravaram-se os efeitos colaterais apresentados; QUE há aproxidamente dois meses, o Dr. *************** informou que era necessária a medicação “Kaletra” que, associada a outros medicamentos já disponíveis, poderia formar um novo coquetel que surtiria efeito, diminuiria sua carga viral e os efeitos colaterais; QUE este medicamento não existe para venda no Brasil, por ser importado; QUE foi informado pela “FAÇA” Fundação Açoriana de Controle da Aids e pela própria Unidade Sanitária em Joinville, que a Secretaria de Saúde do Estado somente libera a medicação “Kaletra” mediante ação judicial; QUE, com o “Kaletra”, -4- tenta-se controlar e baixar a carga viral, evitando-se assim, que venha a desenvolver doenças oportunistas ou até mesmo a doença AIDS, pois atualmente o declarante só tem o vírus, e não a doença; QUE a medicação “Kaletra” só pode ser obtida através de importação, ao custo particular aproximado de R$ 1.600,00 (mil e seiscentos reais) a caixa, para utilização por um período de 30 dias; QUE recebe benefício de aposentadoria, não tendo condições de adquirir a medicação com recursos próprios (...)”. O declarante forneceu cópia de exames clínicos realizados, que comprovam a resistência do vírus a 13 dos 15 medicamentos disponíveis para tratamento. Consoante Relatório Médico apresentado, subscrito pelo Dr. ***************, o Sr. XXXXXXXXXXXXXXXX “(...) fez vários esquemas antiretrovirais sem o resultado esperado, culminando com resistência a todos os antiretrovirais testados, restando aferir tentativa com um novo medicamento, chamado Kaletra”. Contudo, o declarante foi informado, pela Unidade Sanitária Municipal responsável pelo fornecimento gratuito de medicação para combate à AIDS, que o medicamento Kaletra não é fornecido pelo SUS, e que as pessoas que dele necessitam só conseguem recebê-lo mediante ordem judicial. Ressalte-se que o ocorrido com o Sr. XXXXXXXXXXXXXXXX não configura um caso isolado, haja vista que todas as pessoas soropositivas, que já necessitam ou que venham a necessitar de novos medicamentos para o combate à AIDS, caso os solicitem ao SUS, deparar-se-ão com a sua recusa em fornece-los, vendo-se, cada uma delas, obrigada a recorrer ao Judiciário, para que possam continuar vivendo, para que tenham sua própria vida e incolumidade resguardadas. Outrossim, a imprensa veiculou, na data de ontem, 09 de julho de 2001, decisão proferida pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, condenando o Estado deve fornecer medicamentos para a Aids, mesmo que eles não constem da lista oficial. O trecho a seguir transcrito foi extraído do site do STJ: “Notícias do Superior Tribunal de Justiça -5- 09/07/01 - Estado deve fornecer medicamentos para a Aids, mesmo que eles não constem da lista oficial O Estado é obrigado, por dever constitucional, a fornecer gratuitamente medicamentos para portadores do vírus HIV e para o tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, Aids. E essa obrigação não se restringe aos remédios relacionados na lista editada pelo Ministério da Saúde. O Estado tem o dever de fornecer aos portadores do vírus ou já vítimas da doença qualquer medicamento prescrito por médico para seu tratamento. Com esse entendimento unânime, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça rejeitou o recurso do Estado do Rio de Janeiro contra portadores do vírus que solicitavam remédios não constantes da lista oficial. Sete portadores do vírus HIV entraram com uma ação contra o Estado do Rio de Janeiro. No processo, as vítimas do vírus buscavam garantir o imediato fornecimento dos medicamentos de terapia anti retrovirais (combinação de drogas), e os exames necessários para o tratamento. Segundo os autores da ação, esses remédios seriam vitais, pois atuariam bloqueando a replicação do vírus HIV. Porém, pelo elevado custo, não teriam condições de comprar os remédios prescritos. O Estado contestou a ação afirmando que “o asseguramento constitucional do direito à saúde não torna o cidadão credor universal da Administração Pública”. Antes do julgamento do processo, um dos autores faleceu, vítima da doença. Os outros companheiros prosseguiram na ação. A primeira instância acolheu o pedido. A sentença condenou o Estado do Rio de Janeiro a fornecer aos sete portadores do HIV os remédios necessários ao tratamento da moléstia, enquanto deles necessitassem, segundo a prescrição médica, além dos exames e tratamentos médicos necessários. Para o Juízo de primeiro grau, “se a combinação de medicamentos, pela autoridade médica que a prescreve, é o melhor para o tratamento de determinado paciente, não pode o fornecimento de medicamentos ficar limitado ao convencionado pelo Ministério”. O Estado do Rio de Janeiro apelou, mas o Tribunal de Justiça local manteve a sentença. Com isso, o Estado recorreu ao STJ. De acordo com o recurso, a Lei 9313/96 teria delimitado a livre distribuição apenas dos remédios para o tratamento da AIDS constantes da lista padronizada pelo Ministério da Saúde. Portanto, segundo o recorrente, as decisões de primeiro e segundo graus estariam contrariando a lei ao ordenarem à Administração pública a entrega aos recorridos de quaisquer remédios para o combate da doença, indicados por prescrição médica. O ministro José Delgado, relator do processo, negou o pedido do Estado, mantendo as decisões favoráveis aos portadores do HIV. O ministro lembrou -6- julgamentos anteriores do STJ sobre o assunto e afirmou: “A decisão que ordena que a Administração forneça aos doentes os remédios ao combate da doença que sejam indicados por prescrição médica não padece de ilegalidade”. Para José Delgado, “prejuízos iriam ter os recorridos (os sete portadores do vírus) se não lhes for procedente a ação em tela, haja vista que estariam sendo usurpados no direito constitucional à saúde, com cumplicidade do Poder Judiciário”. Contudo, o jornal O GLOBO informou, em 09/07/2001, que a decisão em tela favorecerá apenas seis dos autores, porque um deles, uma jovem, morreu antes de receber a medicação necessária: “STJ determina que estado forneça remédios para Aids Célia Costa e Fabiana Melo BRASÍLIA e RIO.Todos os portadores do vírus HIV têm o direito de receber gratuitamente remédios para tratamento da Aids, mesmo que os medicamentos não façam parte da lista oficial editada pelo Ministério da Saúde. Segundo decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, o Estado do Rio de Janeiro deverá arcar com os custos do tratamento de sete pacientes que entraram na Justiça. A decisão vai favorecer apenas seis pessoas, porque um dos pacientes morreu antes do julgamento do processo, mas cria jurisprudência favorável a outros portadores do HIV que venham a buscar na Justiça esse direito. Um dos portadores de HIV, uma jovem, morreu em 1998, vítima de uma infecção oportunista. Os ministros da Primeira Turma do STJ entenderam que a obrigação do estado de arcar com as despesas do tratamento dessas pessoas não se limita ao fornecimento dos remédios presentes na lista do governo federal. O governo deve fornecer os medicamentos prescritos pelos médicos dos pacientes, mesmo que esses remédios não sejam os distribuídos pela rede pública. Os sete pacientes entraram na Justiça para garantir o tratamento receitado por seus médicos, pedindo o fornecimento de medicamentos da terapia anti-retrovirais, com combinação de drogas que impedem a reprodução do vírus. O Estado do Rio de Janeiro alegou que a Constituição, ao prever o direito à saúde, não tornaria o cidadão credor da administração pública. -7- A Secretaria estadual de Saúde garantiu ontem que distribui todos os medicamentos que compõem o chamado coquetel e ainda os remédios usados no combate às infecções oportunistas. O coordenador de Assistência Farmacêutica da Secretaria estadual de Saúde, Antônio Carlos Moraes, disse que não sabe o motivo das ações existentes na Justiça, já que não existem problemas na distribuição nem dos remédios do coquetel nem de antibióticos e outros. A declaração é contestada pela advogada dos sete pacientes, Patrícia Rios, que trabalha no Grupo Pela Vidda de Niterói. - Só conseguimos alguns medicamentos quando entramos na Justiça. Um exemplo é o anti-retroviral Agenerase. A Secretaria tem o medicamento, mas só o libera com decisão judicial — disse Patrícia Rios. Os pacientes ganharam o direito ao tratamento na primeira e na segunda instâncias, mas o governo estadual recorreu ao STJ procurando alterar o resultado do processo. O Estado do Rio afirmou que a lei federal que assegurou o tratamento gratuito da Aids teria padronizado o atendimento e que as decisões de primeira e segunda instâncias teriam contrariado a lei. Para o relator do recurso no STJ, ministro José Delgado, a argumentação não convenceu. “A decisão que ordena que a administração forneça aos doentes os remédios ao combate da doença que sejam indicados por prescrição médica não padece de ilegalidade. Prejuízos iriam ter os sete portadores do vírus se não lhes for procedente a ação, haja vista que estariam sendo usurpados no direito constitucional à saúde, com cumplicidade do Poder Judiciário”, ponderou Delgado” (grifo acrescido). O recebimento gratuito, pelos portadores do HIV e doentes de AIDS, de “toda a medicação necessária a seu tratamento” é direito difuso, transindividual, de natureza indivisível, do qual são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato. Ora, nítido está que o objetivo primordial da presente demanda, para a qual está devidamente legitimado no pólo ativo o Ministério Público Federal, é a proteção de um dos direitos individuais e coletivos mais relevantes -8- e que restou violado com o não-fornecimento, pelo SUS, da medicação necessária ao tratamento das pessoas portadoras do HIV e/ou doentes de AIDS: a vida. Não menos maculada restou a garantia constitucional da Saúde, como direito de todos e dever do Estado, que se não possuísse acepção de valor/interesse social, não mereceria tratamento individualizado pela Carta Magna de 1988, no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo II (Da Seguridade Social), Seção II. DO DIREITO Os fundamentos básicos do direito à saúde no Brasil estão elencados os arts. 196 a 200 da Constituição Federal. Especificamente, o art. 196 dispõe que: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". O direito à saúde, tal como assegurado na Constituição de 1988, configura direito fundamental de segunda geração. Nesta geração estão os direitos sociais, culturais e econômicos, que se caracterizam por exigirem prestações positivas do Estado. Não se trata mais, como nos direitos de primeira geração, de apenas impedir a intervenção do Estado em desfavor das liberdades individuais. Os direitos de segunda geração conferem ao indivíduo o direito de exigir do Estado prestações sociais nos campos da saúde, alimentação, educação, habitação, trabalho etc. A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, estabelece: “...................... Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. -9- § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. |..................... Art. 4°. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das funções mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde – SUS. ......................” (grifo acrescido). O artigo 7° da citada lei estabelece que as ações e serviços públicos que integram o Sistema Único de Saúde serão desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da CF, obedecendo, ainda, aos seguintes princípios: “Art. 7°...................... I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - Integralidade de assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III – preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV – igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; ..................... XI – conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população; .....................”. Verifica-se, destarte, que a própria norma disciplinadora do Sistema Único de Saúde elenca como princípio a integralidade de assistência, - 10 - definindo-a como um conjunto articulado e contínuo de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. É dever do Sistema Único de Saúde fornecer não apenas os remédios constantes da lista oficial do Ministério da Saúde, mas, tendo em vista as particularidades do caso concreto e a comprovada necessidade de utilização de outros medicamentos, impõe-se a obrigatória “conjugação de recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na prestação de serviços de assistência à saúde da população”, de modo a prover os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) com os meios existentes para seu tratamento. Por fim, a Lei nº 9.313, de 13/11/96, estabeleceu a gratuidade do fornecimento de toda a medicação necessária ao tratamento da AIDS: "Art. 1º - Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento. § 1º - O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, padronizará os medicamentos a serem utilizados em cada estágio evolutivo da infecção e da doença, com vistas a orientar a aquisição dos mesmos pelos gestores do Sistema Único de Saúde. ..................... Art. 2º - As despesas decorrentes da implementação desta Lei serão financiadas com recursos do orçamento da Seguridade Social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme regulamento" (grifo acrescido). Corroborando a exposição realizada, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 242.859-RS, manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconhecendo a obrigação do “Estado fornecer, de forma gratuita, medicamentos para portadora do vírus HIV que, comprovadamente, não poderia arcar com essas despesas sem privar-se dos recursos indispensáveis ao próprio sustento de sua família” (rel. Min. Ilmar Galvão, j. 29.6.99, Informativo 155). - 11 - E M E N T A: PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE – FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. - 12 - DISTRIBUIÇÃO GRATUITA PESSOAS CARENTES. DE MEDICAMENTOS A - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance,um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. Observação Votação: Unânime” (STF – AGRRE/RS-271286. DJ 24-11-00, pp 0101 - EMENT VOL-02013-07 PP-01409) Não se alegue, por fim, como obstáculo ao fornecimento do medicamento Kaletra, a circunstância de ser medicamento importado. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, no RE nº 195.192-RS, a obrigação do Estado em “fornecer, de forma gratuita, medicamentos fabricados exclusivamente nos Estados Unidos da América e na Suíça, para menor impúbere, portador de doença rara” (rel. Min. Marco Aurélio, j. 22.2.2000, DJ 31.3.00 e Informativo 179). É a seguinte a Emenda do Julgado em referência: “(...) SAÚDE - AQUISIÇÃO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - DOENÇA RARA. Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O Sistema Único de Saúde torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”. Não há dúvida, pois, quanto ao dever do Estado de fornecer os medicamentos necessários para o tratamento da AIDS, ainda que não constem da listagem oficial do Ministério da Saúde e/ou não sejam, atualmente, fornecidos pelo SUS, porque não há como, limitando-se o texto constitucional, estabelecer que a obrigação de fornecer medicamentos está adstrita a uma lista oficial padronizada. - 13 - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL A competência da Justiça Federal vem disciplinada no artigo 109 da Constituição Federal de 1988. Ei-lo: “Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; ...................... “§ 2°. As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal”. Os recursos destinados à aquisição dos medicamentos a serem, posteriormente, fornecidos às pessoas soropositivas, são provenientes do Sistema Único de Saúde, de cujo financiamento participam, dentre outras fontes, a União Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, consoante dispõe a Constituição Federal: “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III- participação da comunidade. Parágrafo único. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”. A Lei 8.080/90 estabeleceu, também, que: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, - 14 - de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente. Por conseguinte, a União, em cumprimento ao seu dever de participar do financiamento do SUS, repassa ao Estado de Santa Catarina e ao Município de Joinville recursos para a finalidade apontada. Sobre o dever constitucionalmente imposto a cada um dos entes federativos de garantir e promover a saúde, já se manifestou, inclusive, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, nos seguintes termos: “(...) O preceito do artigo 196 da Carta da República, de eficácia imediata, revela que ‘a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação’. A referência, contida no preceito, a ‘Estado’ mostra-se abrangente, a alcançar a União Federal, os Estados propriamente ditos, o Distrito Federal e os Municípios. Tanto é assim que, relativamente ao Sistema Único de Saúde, diz-se do financiamento, nos termos do artigo n° 195, com recursos do orçamento, da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. Já o caput do artigo informa, como diretriz, a descentralização das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera de governo. Não bastasse o parâmetro constitucional de eficácia imediata, considerada a natureza, em si, da atividade, afigura-se-me como fato incontroverso, porquanto registrada, no acórdão recorrido, a existência de lei no sentido da obrigatoriedade de fornecer-se os medicamentos excepcionais, como são os concernentes à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/AIDS), às pessoas carentes. O município de Porto alegre surge com responsabilidade - 15 - prevista em diplomas específicos, ou seja, os convênios celebrados no sentido da implantação do Sistema Único de Saúde, devendo receber, para tanto, verbas do Estado. Por outro lado, como bem assinalado no acórdão, a falta de regulamentação municipal para o custeio da distribuição não impede fique assentada a responsabilidade do Município. Decreto visando-a não poderá reduzir, em si, o direito assegurado em lei. Reclamam –se do Estado (gênero) as atividades que lhe são precípuas, nos campos da educação, da saúde e da segurança pública, cobertos, em si, em termos de receita, pelos próprios impostos pagos pelos cidadãos. É hora de atentar-se para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, proporcionar vida gregária segura e com o mínio de conforto suficiente para atender ao valor maior atinente à preservação da dignidade do homem.(...)” (Voto do Min. Marco Aurélio, proferido no RE 271.286-8-RS). Ante o exposto, figurando a União como parte ré, justificada está, nos termos do artigo 109, I, da CF/88, a competência da Justiça Federal para o processamento e julgamento da presente demanda. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL A norma do art. 127, da Constituição Federal prescreve que ao Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional, compete a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Estabelecido este vetor, dispõe em seguida: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: ................... II – Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia. III - promover o inquérito civil público e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos. ...................”. - 16 - Pela análise do texto normativo transcrito, verifica-se que o constituinte incumbiu especificamente ao Ministério Público a relevante missão de defesa proteção do patrimônio público, do meio ambiente e qualquer outro interesse difuso, coletivo ou individual homogêneo de relevância social. Em harmonia com a Carta Federal, preceitua a Lei Complementar n.º 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União: Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da União: ................... V - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto: a) aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de saúde e à educação. ................... Art. 6º Compete ao Ministério Público da União: ................... VII - promover o inquérito civil e a ação civil pública para: ................... c) a proteção dos interesses, individuais indisponíveis, difusos e coletivos, relativos às comunidades indígenas, à família, á criança, ao adolescente, ao idoso, às minorias étnicas e ao consumidor. Destarte, afigura-se legítima a atuação do Ministério Público Federal para a defesa de direitos e interesses difusos, entre os quais se insere o direito à saúde, exteriorizada, in casu, na busca de provimento judicial que assegure, aos portadores de HIV e doentes de AIDS, o recebimento de toda e qualquer medicação indispensável ao seu tratamento, ainda que importada ou não constante da lista oficial do Ministério da Saúde. Ademais, o Egrégio Supremo Tribunal Federal EMENTA: RECURSO CONSTITUCIONAL. EXTRAORDINÁRIO. - 17 - LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA PROMOVER AÇÃO CIVIL PÚBLICA EM DEFESA DOS INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS E HOMOGÊNEOS. 1. A Constituição Federal confere relevo ao Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127). 2.Por isso mesmo detém o Ministério Público capacidade postulatória, não só para a abertura do inquérito civil, da ação penal pública e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente, mas também de outros interesses difusos e coletivos (CF, art. 129, I e III). 3. Interesses difusos são aqueles que abrangem número indeterminado de pessoas unidas pelas mesmas circunstâncias de fato e coletivos aqueles pertencentes a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. 3.1. A indeterminidade é a característica fundamental dos interesses difusos e a determinidade a daqueles interesses que envolvem os coletivos. 4.Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III, da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos coletivos. 4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homogêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos, explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pessoas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de pessoas. 5. As chamadas mensalidades escolares, quando abusivas ou ilegais, podem ser impugnadas por via de ação civil pública, a requerimento do Órgão do Ministério Público, pois ainda que sejam interesses homogêneos de origem comum, são subespécies de interesses coletivos, tutelados pelo Estado por esse meio - 18 - processual como dispõe o artigo 129, inciso III, da Constituição Federal. 5.1.Cuidando-se de tema ligado à educação, amparada constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205), está o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se o abrigo estatal. Recurso extraordinário conhecido e provido para, afastada a alegada ilegitimidade do Ministério Público, com vistas à defesa dos interesses de uma coletividade, determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para prosseguir no julgamento da ação”. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS A legitimidade passiva dos réus União Federal, Estado de Santa Catarina e Município de Joinville decorre, inicialmente, da Constituição Federal: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” O art. 1° da Lei 9.313/90 determina que toda a medicação necessária ao tratamento dos portadores do HIV e doentes de AIDS deverá ser fornecida, gratuitamente, pelo Sistema Único de Saúde. O § 1° do citado artigo atribui ao Ministério da Saúde a função de orientar a aquisição dos medicamentos, por parte dos “gestores do Sistema Único de Saúde”, ou seja, a própria União, os Estados e Municípios. A Lei 8.080/90, por sua vez, disciplina a organização, direção e gestão do Sistema Único de Saúde, nos seguintes moldes: “Art. 9o - A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, - 19 - de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde; II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente”(grifo acrescido). Depreende-se, destarte, que o Sistema Único de Saúde ramificase, sem, contudo, perder sua unicidade, de modo que de qualquer de seus gestores podem/devem ser exigidas as “ações e serviços” necessários à promoção, proteção e recuperação da saúde pública. Por fim, como a Lei 9.313/90 atribui à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o dever de fornecer medicamentos de forma gratuita para o tratamento da AIDS, é possível a imediata imposição para tal fornecimento, em vista da urgência e c conseqüências acarretadas pela doença. Os réus, portanto, como integrantes e gestores do Sistema Único de Saúde, figuram como partes passivas legítimas, uma vez que a decisão postulada projetará efeitos diretos sobre suas respectivas esferas jurídicas. DA DECLARAÇÃO INCIDENTER TANTUM DE INCONSTITUCIONALIDADE DA NOVA REDAÇÃO DO ARTIGO 16 DA LEI 7.347/85, DADA PELA LEI 9.494/97 No processo civil ortodoxo, a coisa julgada, nos termos do art. 472 do CPC, alcança tão somente as partes litigantes, não favorecendo ou beneficiando terceiros. Trata-se da eficácia inter partes da sentença que julga o provimento final da demanda. Contudo, diversa se mostra a sistemática dos limites subjetivos da coisa julgada, no que tange às ações coletivas (Lei de Ação Civil Pública, Lei de Ação Popular e Código de Defesa do Consumidor). Nestas, verifica-se a eficácia erga omnes do comando da sentença de mérito. - 20 - “A coisa julgada erga omnes ou ultra partes (CDC 103) faz com que a sentença atinja a esfera jurídica de todos aqueles que estiverem, de alguma forma, envolvidos na matéria objeto da ACP. (...) Não é relevante indagar-se qual justiça que proferiu a sentença, se federal ou estadual, para que se dê o efeito extensivo da coisa julgada. A questão não é nem de jurisdição nem de competência, mas de limites subjetivos da coisa julgada, dentro da especificidade do resultado de ação coletiva, que não pode ter a mesma solução dada pelo processo civil ortodoxo às lides intersubjetivas” (NERY JUNIOR, Nelson et al. Código de Processo Civil Comentado. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2001. p. 1557-8) (grifo acrescido) Porém, a Lei n° 9.494/97 alterou a redação do art. 16 da Lei 7.347/85, que passou a dispor que: “Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova” (grifo acrescido). Não obstante a nova redação dada ao artigo, não se pode, como pretendeu o legislador, restringir a “coisa julgada erga omnes”, produzida em sede de Ação Civil Pública, aos “limites da competência territorial do órgão prolator”. Caso contrário, estar-se-ia a “dividir” o território nacional em pequenos “Estados”, de acordo com a competência territorial dos Órgãos Jurisdicionais, onde o Direito prolatado em cada um, ou seja, a coisa julgada, não se aplicaria aos demais. A este respeito, preleciona Alexandre Freitas Câmara: “A única inovação do novo texto, como se vê, é a fixação do que se pode denominar ‘limites territoriais da coisa julgada’. A sentença na ‘ação civil pública’, como se vê, fará coisa julgada ‘erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator’. O novo texto, porém, revela uma inegável contradição em seus próprios termos: não se pode admitir coisa julgada erga omnes (ou seja, para todos) que não atinja a todos, mas somente àqueles que se encontram em determinados limites territoriais. (...) Como facilmente se conclui, tal sistema fere de morte o - 21 - princípio da razoabilidade das leis, que integra nosso sistema constitucional por força do devido processo legal substancial (como se viu em passagem anterior deste livro). Assim sendo, não se pode admitir outra conclusão que não a que afirme a inconstitucionalidade do novo art. 16 da Lei da Ação Civil Pública”. (Lições de Direito Processual Civil. Lumen Juris: São Paulo, 2000. pp.415-6) Também aos mestres Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery a questão não passou desapercebida: “A norma, na redação dada pela L 9494/97, é inconstitucional e ineficaz. Inconstitucional por ferir os princípios do direito de ação (CF 5°, XXXV), da razoabilidade e da proporcionalidade e porque o Presidente da República a editou, por meio de medida provisória, sem que houvesse autorização constitucional para tanto, pois não havia urgência (o texto anterior vigorava há doze anos, sem oposição ou impugnação), nem relevância, requisitos exigidos pela CF 62, caput. Ineficaz porque a alteração ficou capenga, já que incide o CDC 103 nas ações coletivas ajuizadas com fundamento na LACP, por força do LACP 21 e CDC 90. Para que tivesse eficácia, deveria ter havido alteração da LACP 16 e do CDC 103. De conseqüência, não há limitação territorial para a eficácia erga omnes da decisão proferida em ação coletiva, quer esteja fundada na LACP, quer no CDC. De outra parte, o Presidente da República confundiu limites subjetivos da coisa julgada, matéria tratada na norma, com jurisdição e competência, como se, v.g., a sentença de divórcio proferida por juiz de São Paulo não pudesse valer no Rio de Janeiro e nesta última comarca o casal continuasse casado! O que importa é quem foi atingido pela coisa julgada material. No mesmo sentido: José Marcelo Menezes Vigliar, RT 745/67. Qualquer sentença proferida por órgão do Poder Judiciário pode ter eficácia para além de seu território. Até a sentença estrangeira pode produzir efeitos no Brasil, bastando para tanto que seja homologada pelo STF. Assim, as partes entre as quais foi dada a sentença estrangeira são atingidas por seus efeitos onde quer que estejam no planeta Terra. Confundir jurisdição e competência com limites subjetivos da coisa julgada é, no mínimo, desconhecer a ciência do direito. Portanto, se o juiz que proferiu a sentença na ação coletiva tout court, - 22 - quer verse sobre direitos difusos, quer coletivos ou individuais homogêneos, for competente, sua sentença produzirá efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme o caso (v. CDC 103), em todo o território nacional e também no exterior , independentemente da ilógica e inconstitucional redação dada à LACP 16 pela L 9494/97. É da essência da ação coletiva a eficácia prevista no CDC 103” (Código de Processo Civil Comentado. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2001. p. 1558) (grifo acrescido). Ademais, a Constituição Federal estabeleceu, em seu art. 5°, inciso XXXVI, que: “XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;” (grifo acrescido). A inconstitucionalidade da norma reside, justamente, no fato de, extrapolando um simples delimitar de competência, estabelecer limites, verdadeiras restrições, aos efeitos da coisa julgada. Destarte, face à flagrante inconstitucionalidade da nova redação do art. 16 da Lei 7.347/85, dada pela Lei 9.494/97, não está limitada a eficácia da sentença proferida em sede de Ação Civil Pública à Circunscrição Judiciária em que atua o Juiz prolator, de modo que seus efeitos devem alcançar todos os interessados, independentemente de sua Seção Judiciária. DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA Dispõe o art. 273 do CPC que: “Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I – haja fundado receito de dano irreparável ou de difícil reparação; ou II – fique caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu”. (grifo acrescido). - 23 - Justifica-se, in casu, o pedido de antecipação da tutela em relação ao Sr. XXXXXXXXXXXXXXXX pelo fato de estarem caracterizados, ao lume do art. 273 do Código de Processo Civil, todos os pressupostos autorizadores de sua concessão, a saber. “Assim sendo, conclui-se que o primeiro requisito para a concessão da tutela antecipatória é a probabilidade de existência do direito afirmado pelo demandante. Esta probabilidade de existência nada mais é, registre-se, do que o fumus boni iuris, o qual se afigura como requisito de todas as modalidades de tutela sumária, e não apenas da tutela cautelar. Assim sendo, deve verificar o julgador se é provável a existência do direito afirmado pelo autor, para que se torne possível a antecipação da tutela jurisdicional. Não basta, porém, este requisito. À probabilidade de existência de direito do autor deverá aderir outro requisito, sendo certo que a lei processual criou dois outros (incisos I e II do art. 273). Estes dois requisitos, porém, são alternativos, bastando a presença de um deles, ao lado da probabilidade de existência do direito, para que se torne possível a antecipação da tutela jurisdicional. Assim é que, na primeira hipótese, ter-se-á a concessão da tutela antecipatória porque, além de ser provável a existência do direito afirmado pelo autor, existe o risco de que tal direito sofra um dano de difícil ou impossível reparação (art. 273, I, CPC). Este requisito nada mais é do que o periculum in mora, tradicionalmente considerado pela doutrina como pressuposto da concessão da tutela jurisdicional de urgência (não só na modalidade que aqui se estuda, tutela antecipada, mas também em sua outra espécie: a tutela cautelar)”. (Lições de Direito Processual Civil. Lúmen Iuris: São Paulo, 2000. pp. 390-1). O fumus boni iuris, ou seja, a plausibilidade do direito invocado, consubstancia-se no relatório médico e exames clínicos apresentados e que atestam, de forma inequívoca, que o Sr. XXXXXXXXXXXXXXXX é portador do vírus HIV, já manifestando a doença AIDS, que mostrou-se resistente aos medicamentos normalmente fornecidos pelo SUS. Nessa condição, é direito do Sr. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, garantido pela legislação já invocada, o recebimento gratuito de “toda a medicação necessária a seu tratamento” (art. - 24 - 1° da Lei 9.313/96). Tanto o é que, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e dos demais Órgãos Colegiados tem, como demonstrado alhures, reconhecido a responsabilidade do Estado (gênero) de fornecer, por intermédio de seu Sistema Único de Saúde, os medicamentos imprescindíveis ao tratamento da AIDS e à proteção da saúde, independentemente de constarem na lista oficial do Ministério da Saúde. O periculum in mora é notório e decorre das conhecidas e terríveis características e conseqüências advindas da contaminação pelo vírus HIV e da doença que ele provoca, a AIDS. A própria denominação científica da doença Síndrome de Imuno-Deficiência Adquirida já revela seu modo de atuação: o vírus HIV, ao se manifestar e atuar no corpo humano, provoca a imuno-deficiência, ou seja, reduz a imunidade de seu portador, o que permite que as chamadas doenças ou infecções oportunistas se instalem e que, ante à baixa imunidade, o corpo humano não tenha como combatê-las. Assim, é de uma clareza gritante que a demora em ministrar-se ao paciente os remédios necessários ao tratamento da AIDS poderá causar-lhe até mesmo a morte, que é, de todos os danos capazes de afetar o ser humano, o mais irreparável. Ressalte-se, por pertinente, que, durante o longo tempo em que foi julgada a já citada decisão proferida pelo STJ em 09/07/2001, a demora acarretou a ineficácia do provimento em relação a uma das autoras da ação, que faleceu em decorrência da evolução da doença, vez que lhe foi negado, pelo SUS, o fornecimento do medicamento necessário ao tratamento. Outrossim, Excelência, embora o pedido de antecipação de tutela seja especificamente o de entrega de um determinado remédio, o que levaria, em uma análise apressada, a se pensar que a obrigação que se pede se resumiria a uma prestação de dar, está-se, em verdade, diante de uma verdadeira obrigação de fazer, qual seja, a de prestar o tratamento necessário, suficiente e adequado à manutenção da saúde e preservação da vida do Sr. XXXXXXXXXXXXXXXX, consoante preceitua o art. 1° da Lei 9.313/90. Posto isto, é de aplicação, também, o art. 461 do CPC, quanto ao - 25 - cabimento de “providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”. Todos os requisitos legalmente exigidos para o deferimento da antecipação do provimento jurisdicional encontram-se presentes. Em razão do exposto, o Ministério Público Federal requer a Vossa Excelência que conceda a antecipação da tutela, determinando: a) a citação da UNIÃO FEDERAL, na pessoa de seu representante legal para, querendo, pronunciar-se, nos termos do art. 2° da Lei 8.437/92, sobre a presente ação, sob pena de revelia; b) a citação do ESTADO DE SANTA CATARINA, na pessoa de seu representante legal para, querendo, pronunciar-se, nos termos do art. 2° da Lei 8.437/92, sobre a presente ação, sob pena de revelia; c) a citação do MUNICÍPIO DE JOINVILLE, na pessoa de seu representante legal para, querendo, pronunciar-se, nos termos do art. 2° da Lei 8.437/92, sobre a presente ação, sob pena de revelia; d) após o transcurso do prazo previsto no art. 2° da Lei 8.437/92, seja determinado à UNIÃO, ao ESTADO DE SANTA CATARINA e ao MUNICÍPIO DE JOINVILLE, de forma solidária, o fornecimento gratuito e ininterrupto, através da Secretaria de Saúde do Município de Joinville, ao Sr. XXXXXXXXXXXXXXXX, de todo e qualquer medicamento necessário ao seu tratamento, ainda que necessite ser importado, e/ou não conste da lista oficial do Ministério da Saúde, em prazo a ser estipulado pelo prudente arbítrio de Vossa Excelência; e) a cominação de multa diária para caso de descumprimento da decisão liminar, no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais); f) a decretação de segredo de justiça dos presentes autos, visando preservar o direito à intimidade do Sr. - 26 - XXXXXXXXXXXXXXXX. DO PEDIDO PRINCIPAL Ante todo o exposto, o Ministério Público Federal vem requerer a Vossa Excelência: I. a condenação definitiva da UNIÃO, do ESTADO DE SANTA CATARINA e do MUNICÍPIO DE JOINVILLE, de forma solidária, ao fornecimento gratuito e ininterrupto, através da Secretaria de Saúde do Município de Joinville, a todos portadores do vírus HIV e a todos doentes de AIDS, de todo e qualquer medicamento necessário ao seu tratamento, ainda que necessite ser importado, e/ou não conste da lista oficial do Ministério da Saúde; II. seja declarada, incidenter tantum, a inconstitucionalidade da nova redação dada ao art. 16 da Lei 7.347/85, de modo a garantir a eficácia erga omnes da sentença a ser proferida nos presentes autos; III. a condenação da UNIÃO, do ESTADO DE SANTA CATARINA e do MUNICÍPIO DE JOINVILLE, de forma solidária, a publicar a sentença definitiva a ser proferida nos presentes autos nos jornais de maior circulação em âmbito nacional, estadual e local, em três dias alternados, sendo um deles domingo, sem, contudo, fazer menção à nome ou identificação do Sr. XXXXXXXXXXXXXXXX; IV. a dispensa do pagamento das custas, emolumentos e outros encargos, em vista do disposto no art. 18 da Lei n° 7.347/85. - 27 - Embora já tenha apresentado o Ministério Público Federal prova pré-constituída do alegado, protesta, outrossim, pela produção de prova documental, testemunhal, pericial e, até mesmo, inspeção judicial, que se fizerem necessárias ao pleno conhecimento dos fatos, inclusive no transcurso do contraditório que se vier a formar com a apresentação de contestação. Dá-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Joinville, 11 de julho de 2001. DAVY LINCOLN ROCHA Procurador da República PRM/Joinville/SC - 28 -