REVOLUÇÃO, RENOVAÇÃO: CAMINHOS DO ROMANCE PORTUGUÊS NO SÉCULO XX(*) José Rodrigues de Paiva – UFPE Para Elizabeth Dias Martins e Roberto Pontes A crítica literária, o ensaísmo e a historiografia da cultura que em Portugal e no Brasil se têm dedicado à análise da produção literária portuguesa dos últimos cinqüenta anos situam, mais ou menos à unanimidade, no movimento militar de 25 de Abril de 1974, a popularmente chamada “revolução dos cravos”, não só o início de uma nova etapa da história do país profundamente marcada por transformações de ordem política e ideológica, aquisição de novos hábitos culturais, sociais e mesmo pela descoberta ou instauração de uma nova “psicologia” coletiva, novos comportamentos e formas de estar na vida, mas também, com esse movimento, relacionam um ponto de viragem estético, abrangente de todas as manifestações da Arte porventura mais sensivelmente perceptível na literatura. É natural que assim seja ou tenha sido – quer se considere este específico caso português, quer, em tese, o abstrato de qualquer hipótese semelhante – uma vez que é sobre o território da História e da Sociedade que a Arte se situa, aí se tecendo a rede de interações e interrelações que nelas – na História e na Arte – haverão de se materializar. É, pois, natural que a Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974 tenha vindo a ser o ponto de partida para uma fase de renovação da literatura com a definição de novos caminhos da escrita surgidos a partir de então no cenário português. No nosso ensaísmo e na nossa historiografia cultural é já isto ponto pacífico, com resultados testados em pesquisas e trazidos à reflexão, por exemplo, por Eduardo Lourenço, Maria Alzira Seixo, Luís Mourão ou Carlos Reis, do lado português, e de Aparecida Santilli ou Nelly Novaes Coelho, do lado brasileiro1. Estes (*) Conferência apresentada no II Encontro Norte/Nordeste de Professores de Literatura Portuguesa, realizado em Fortaleza, na UFCE, de 1 a 3 de outubro de 2008. 1 A propósito das relações entre a literatura e o movimento revolucionário português do 25 de Abril, importa referir os seguintes estudos: COELHO, Nelly Novaes. A guerra colonial no espaço romanesco. In: _____ . Escritores portugueses do século XX. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007, p. 377-387. ensaístas (e decerto outros que aqui não cito o fizeram também) perspectivaram, já com o benefício do distanciamento de uma ou duas décadas, as relações verificáveis entre o novo tempo histórico português e o novo contexto cultural e mesmo um novo texto literário. Do ponto de vista formal essa “nova” escrita literária haveria de ampliar, porventura mais ousadamente, algumas experiências de ordem estética já anteriormente intentadas, prosseguindo um caminho de renovação textual (sobretudo estrutural) começado a trilhar, principalmente no romance, por alguns autores já nos anos de 1960, em particular pelos que promoveram a saída estética do impasse e do esgotamento em que o neo-realismo fizera mergulhar a narrativa ficcional. Por outro lado, a “nova” escrita pós-revolução encontra, na queda do regime repressor, na democratização do país e na liberdade de expressão que tal cenário permite, a possibilidade de tematizar, sem limites, tudo quanto até ali fora proibido. Natural que, estando a guerra colonial na origem mesmo da Revolução de Abril, viesse ela a constituir um dos principais temas dessa nova literatura. Pôde então falar-se numa “literatura da guerra”, de tal forma o tema se tornou recorrente. O mesmo diga-se quanto à reorganização política do país, igualmente tematizada e representada ficcionalmente em obras a aparecer após o rescaldo revolucionário. A representação literária dessa traumática metamorfose da vida nacional portuguesa, cujo processo passou pelo desgaste do regime que cegamente sustentou por mais de uma década em várias frentes africanas uma guerra sem esperanças e de duvidosa justiça, pelas conseqüências humanas, econômicas e sociais da descolonização apressada e precipitada pela revolução, pelo delineamento de um novo regime à procura dos caminhos da democracia, fatalmente implicava o súbito desmonte de uma organização antiga, e, desmontada esta sem outra que de imediato a substituísse, gerava-se o caos, o vazio, o “buraco negro” sem horizonte em que se vislumbrasse um novo cosmos. Sem teto entre LOURENÇO, Eduardo. Situação da literatura portuguesa. In: _____ . O canto do signo. Existência e literatura. Lisboa: Presença, 1993, p. 268-279; Literatura e revolução. Ibidem, p. 292-301. MOURÃO, Luís. Abril em Portugal. In: _____ . Um romance de impoder. Braga-Coimbra: Ângelus Novus, 1996, p. 97-137. REIS, Carlos. Trajectos e sentidos da ficção portuguesa contemporânea. Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Lisboa, n. 1, p. 32-39, abr.-jun. 1998. SANTILLI, Maria Aparecida. A renovação do discurso na literatura portuguesa da atualidade: o texto infinito. In: Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa, 14, 1992, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: CECLIP/CPGL – EDIPUCRS, 1994, p. 21-38. SEIXO, Maria Alzira. Dez anos de ficção em Portugal (1974-1984). In: _____ . A palavra do romance. Ensaios de genologia e análise. Lisboa: Horizonte, 1986, p. 48-65; Para uma leitura crítica da ficção em Portugal no século XX. Anos quarenta a noventa. In: _____ . Outros erros. Ensaios de literatura. Porto: Asa, 2001, p. 21-44. ruínas, título de um romance de Augusto Abelaira publicado em 1978 reflete muito bem esse sentimento de desagregação e desamparo. A necessidade de tudo reconstruir. Tal como em Signo sinal (1979), romance de Vergílio Ferreira iniciado em 1973, de algum modo premonitório do que historicamente sucederia ao país a partir do ano seguinte e que metaforiza a situação com a destruição repentina de uma aldeia por um terremoto que tudo arrasou e que é preciso reerguer a partir do nada. A representação ficcional de tão drásticas e dolorosas transformações teria de passar necessariamente pela própria escrita, ela mesma abalada nas suas estruturas, quebrada na sua organicidade canônica, fragmentada, desestruturada, tal como esse mundo arrasado que era preciso soerguer dos escombros. Quando se reconheceu vitoriosa a Revolução de Abril, imaginou-se que grande número dos escritores portugueses de então aparecesse subitamente a publicar obras até ali de edição impossível face ao severo patrulhamento ideológico do regime deposto. Não foi bem assim. As gavetas dos escritores não guardavam tais pretendidos originais e foi preciso esperar para se ver surgirem os resultados literários desse novo tempo histórico. Não que não houvesse uma literatura (e outras expressões artísticas) de rejeição ou de reação ao sistema político finalmente encerrado, sendo bastante lembrar o longo percurso do neorealismo e mesmo a sua manifestação nas artes visuais (particularmente na pintura) ou lembrar a canção universitária de protesto, vinda principalmente da Coimbra dos anos 60 e 70 nos poemas, nas vozes e na música de Manuel Alegre, Adriano Correia de Oliveira, José Afonso... Houve, sim, uma literatura que fez a pregação da mudança política do país, mas ela exauriu-se, como arte, no seu esquematismo, no seu populismo, na repetição e no esgotamento das suas formas simples e da sua força de programa ideológico que não conseguiu, como o movimento pretendia, realizar a histórica intervenção transformadora da vida social e política portuguesa. Foi preciso então mudar o neo-realismo para que a literatura continuasse. É dos anos 60 (e principalmente do emblemático 1968) essa mudança de rumo, embora ela tenha antecedente bastante anterior num certo romance que Vergílio Ferreira publicou em 1949, que significativamente se intitulava Mudança e apontava noutra direção que não a da arte social, mas a da reflexão existencial, a do sentido da vida e da presença do homem no mundo. Mais ou menos indiferente ao que se passava à sua volta, embora duramente criticado pelos que se mantiveram fiéis à ortodoxia neorealista, Vergílio Ferreira deu continuidade ao percurso solitário inaugurado com esse livro desenvolvendo o trajeto por Manhã submersa (1953), Apelo da noite (escrito em 1954 e só publicado em 1963), Cântico final (escrito em 1956 e publicado em 1960), Aparição (1959), Estrela polar (1962), Alegria breve (1965) abrindo caminho para um romance “diferente” daquele que então se escrevia em Portugal e que alguma crítica da época, e mesmo posterior, classificou de “existencialista”. Se em Mudança se percebe claramente o jogo dialético entre o social e o existencial – que o próprio Vergílio situa como o confronto entre o relativo e o absoluto – os romances seguintes indicam, passo-a-passo o predomínio do segundo elemento do confronto. É o existencial, é o absoluto que virá a interessar predominantemente ao autor e a orientar a sua busca e o seu caminho. Seja esse absoluto o da afirmação de uma vontade ou da escolha de um destino (Manhã submersa), seja o da opção entre o abstrato de uma idéia e o concreto de uma ação (Apelo da noite), seja o da plenitude da entrega à criação artística como forma de justificar a vida (Cântico final), seja o da descoberta do Eu na fugaz aparição do ser a si mesmo (Aparição), seja o do conhecimento da identidade profunda do Outro (Estrela polar), seja a solitária autodescoberta do homem frente a si mesmo num mundo completamente despovoado (Alegria breve). Se em Mudança, Manhã submersa e Apelo da noite ainda se percebem os “cenários” e os ecos de uma problemática social em diluição, já nos demais romances – Cântico final, Aparição, Estrela polar e Alegria breve – a sua reverberação se apagara por imposição de uma crescente tendência de problematização fenomenológica. Mesmo o que neles se pudesse ainda vislumbrar de “cenários” neorealistas (a aldeia na montanha, por exemplo) estava agora transformado em metáfora, símbolo ou alegoria. No plano estrutural os romances de Vergílio Ferreira desenvolvem, também, um sentido de pesquisa – tal como ocorre nos seus temas – à procura de novas possibilidades de linguagem e de “desenho”, promovendo passo-a-passo a ruptura com o “modelo clássico” em termos gerais mantido até Aparição. Estrela polar e Alegria breve realizam a passagem desse romance ainda baseado em algumas “certezas” narrativas para aquele em que essas “certezas” deixam de existir, em que o romance se apresenta a si mesmo como uma ficção que já não pretende parecer que o não é e em que se faz a representação de um mundo permanentemente ameaçado pela desagregação, pelo caos, ou já mesmo nele mergulhado. Nítido nulo, publicado em 1971, é o ponto de chegada desse percurso vergiliano, o romance desse universo caótico no qual o homem é irremediavelmente prisioneiro. Mas este ponto de chegada é apenas o de uma etapa do caminho com desdobramentos futuros. Entretanto, encetada esta mudança de rumo na condução do romance de Vergílio, experiências análogas se lhe foram seguindo em experimentações literárias realizadas por outros autores. O neo-realismo estava definitivamente esgotado nas suas possibilidades estéticas (aliás desprezadas na sua primeira hora), o que viria a ser reconhecido até mesmo por neo-realistas “históricos” e, sobretudo, pelos que ao longo do caminho foram aderindo aos seus postulados. Tal romance, se limitado à pregação ideológica, à propaganda, ao panfleto, à defesa da revolução proletária ou campesina contra as estruturas do poder, era insuficiente para a realização da literatura como arte. Vergílio Ferreira (como também Agustina Bessa-Luís) viu isso muito cedo. Outros o veriam depois, o próprio Redol, iniciador (com Gaibéus – 1940) desse romance sem estética, o reconheceria mais tarde, implicitando esse “reconhecimento” nas qualidades artísticas dos seus últimos romances (Uma fenda na muralha [1959] ou Barranco de cegos [1962], por exemplo). E assim, aqueles que se sentiam mais escritores literários do que simples “apóstolos” da utopia de uma revolução sem esperanças (a do campesinato ou do operariado marxistas) buscaram na construção literária, na consciência estética, nos mistérios e fulgurações da invenção artística novas linguagens e novas estruturas romanescas que lhes permitissem ultrapassar o impasse em que o movimento mergulhara, pelo menos do ponto de vista literário. Vem daí, de dez ou quinze anos antes dos cravos de Abril de 74, a renovação do texto romanesco português. Vem da saída estética para os emparedados do neo-realismo encontrada ou construída por um Vergílio Ferreira, um Namora, um Cardoso Pires, Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, Carlos de Oliveira ou mesmo por Saramago, que retematiza (e reenergiza) o neo-realismo num romance muito posterior a este movimento: Levantado do chão (1980). Todos mais ou menos fiéis aos preceitos neo-realistas – à exceção de Vergílio Ferreira, que deles se afastou muitíssimo cedo –, estes autores, em sintonia com movimentos de reformulação narrativa desencadeados em outras literaturas, como por exemplo o nouveau roman, o estruturalismo ou as influências da lingüística, passaram a “testar”, na construção dos seus romances, novas linguagens e estruturas que servissem à saída do esgotamento em que se encontravam e assim acabaram por dar início a uma importante fase de renovação da narrativa ficcional portuguesa. São efetivamente notáveis as diferenças formais e de linguagem – constituindo verdadeiras e radicais transformações – verificadas, por exemplo, em Vergílio Ferreira, entre Vagão “J” (1946) ou Mudança (1949) e Nítido nulo (1971) ou Rápida, a sombra (1974). Sem falar nos romances da sua última fase – de concepção muito mais ousada –, porque estabeleci a década de 70 como limite para esta comparação sugerida. Diga-se o mesmo com relação a Fernando Namora e aos seus romances neo-realistas – Casa da malta (1945), A noite e a madrugada (1950) ou O trigo e o joio (1954) –, que, se postos em comparação com Domingo à tarde (1961), Diálogo em setembro (1966), Os clandestinos (1972) e particularmente com os seus dois últimos livros, as narrativas de Resposta a Matilde (1980) e o romance O rio triste (1982), tornam evidente, no autor, a intenção de renovar estruturas ficcionais e possibilidades temáticas. Intenção comum a todos estes escritores citados, já foi dito, e que em alguns se manifesta em mais breve intervalo temporal. Por exemplo, em Cardoso Pires, a comparação que se faça entre Os caminheiros e outros contos (1946) ou O anjo ancorado (1958) com O Delfim (1968) apontará transformações radicais, a todos os níveis, na arte do escritor. Transformações que ainda mais se aprofundam na estruturação e na estilística dos dois romances futuros, Balada da Praia dos Cães (1982) e Alexandra Alpha (1987). Caso idêntico é o de Augusto Abelaira, radicalmente diverso entre a narrativa convencional do seu primeiro romance – A cidade das flores (1959) – e o experimentalismo da estrutura narrativa de Bolor (1968). O Delfim e Bolor, romances publicados no já mitificado e revolucionariamente renovador ano de 1968 têm, ambos, o seu quê de “revolucionário” no que significaram (e significam) no processo de renovação da narrativa portuguesa. O Delfim de algum modo “reescreve” o neo-realismo – presente no romance não só pela valorização do cenário rural, mas também pelas diferenças de classe evidenciadas, geradoras de ódios –, mas “reescreve-o” com refinada arte narrativa, com uma construção estrutural complexa e habilmente desenvolvida. Este romance de Cardoso Pires ainda é (embora vagamente...) mas já não é obra do neorealismo. É uma saída perfeita, uma ponte segura para a travessia sobre o impasse. Quanto a Bolor, nada mais tem a ver com a literatura social inaugurada trinta anos antes. Tematizando o desgaste de uma relação conjugal e a impossibilidade da comunicação entre o casal, este romance de Abelaira – cujo título é de significativa carga simbólica – revoluciona a estrutura narrativa com a representação de um diário alternadamente escrito ora pelo homem ora pela mulher e em que cada registro é uma espécie de resposta ao outro. É nesse “lugar” – o diário –, que é o “lugar da escrita”, que a narrativa acontece e que se dá, em silêncio, a (im)possível comunicação entre os parceiros de um casamento em crise. Assim o romance problematiza também o ato de escrever, no que coincide com O Delfim, em que se faz a representação da escrita do protagonistanarrador (que a si mesmo se apresenta como “Autor”), que observa a aldeia da Gafeira e os seus habitantes (ricos e pobres), caça, investiga um homicídio e escreve. Extraordinariamente moderno, este romance recupera o “clássico” recurso da mise-enabyme e a partir dele (mas não só com ele) elabora a sua modernidade. É com este romance que José Cardoso Pires estabelece um diálogo estético entre o presente e o passado recente da literatura nacional ao mesmo tempo em que prepara o salto para o futuro (o que só muito depois se poderia perceber) na direção de uma narrativa temática e estruturalmente muito mais ousada, como viria a ser Balada da Praia dos Cães, livro de 1982 cuja publicação só se tornou possível graças à mudança de regime político operacionalizado a partir do Abril de 74. Também com relação a Carlos de Oliveira se pode pensar na problematização da escrita, de tão recorrente presença na narrativa portuguesa contemporânea. Mas neste autor talvez de forma mais insólita do que quanto aos demais da sua geração, porque a escrita por ele problematizada não é a que numa obra de ficção imaginariamente se fizesse representar, mas a escrita real, a verdadeira escrita, a sua, a escritura dos romances que ele publicou ao longo de uma década, de 1943 a 1953 – Casa na duna, Alcatéia, Pequenos burgueses, Uma abelha na chuva – todos rigorosamente reescritos para as suas reedições num lento, constante e consciente processo de depuração estética destinado a afastar, das obras reescritas, as marcas mais que evidentes do neo-realismo inicial e programático. Todo esse processo de paciente reescritura de uma obra inteira não deixa de ser preparatório para a elaboração do livro mais complexo do escritor, o seu último romance, publicado em 1978, Finisterra: paisagem e povoamento, salto do autor para o experimentalismo da linguagem e da estrutura romanesca, percurso e “aventura” de uma experiência estética, uma “poética” da escrita lentamente elaborada entre as diferenças e incertezas da modernidade literária. Começa com estes autores a aquisição de uma nova consciência do fazer literário, sobretudo quanto ao gênero romanesco. Para usar a feliz expressão de Jean Ricardou, “o romance deixa de ser a escrita de uma aventura e passa a ser a aventura de uma escrita”2. Finalmente sintonizados com tendências da estética literária internacionalmente desenvolvidas, os romancistas portugueses, sobretudo a partir do final dos anos 70 entregaram-se cada vez mais a essa aventura. Mas não tinham, em 1974 – como supostamente se poderia pensar – originais que a repressão, finalmente abatida, impedia de publicar, o que então se tornava possível com o despontar daquela primavera de liberdade. Foi preciso esperar que essa estação florisse, abrindo esse tempo que veio já demasiadamente tarde para alguns, assim se queixou Vergílio Ferreira, embora ele ainda tenha usufruído dos benefícios desse tempo novo. O primeiro livro a fazer a representação dessa nova era política portuguesa, terá sido, segundo alguma crítica faz constar, Crônica do cruzado Osb., romance que Agustina Bessa-Luís publicou em 1976. Aí a escritora, dando vazão ao seu gosto pela História que vem a ser núcleo de várias obras suas (algumas, inclusive, de escritura recente), invoca vários movimentos revolucionários (da Revolução Francesa ao Maio de 68), a partir da figura do guerreiro-cronista Osberno ou Osberto ou simplesmente Osb., o cruzado inglês que participou do cerco de Lisboa, em 1147, destinado a libertar a cidade do domínio árabe e desse tempo e ação deixou o seu testemunho escrito. Compondo o “aparato” estético do romance de Agustina tem-se que esse “testemunho” ou relato do cruzado, documento real (divulgado em Portugal por Alexandre Herculano), existente como “carta” numa biblioteca da Universidade de Cambridge, é tomado, como representação literária, por Josué, personagem de Agustina, escritor, autor de um livro que se chama Crônica do cruzado Osb. Assim, mais uma vez, a presença da mise-en-abyme, textos que se encaixam dentro de textos, tematização ou representação ficcional da História e da ficção, uma ficção que representa outra ou outras, além de realidades ficcionalizadas. Recurso moderno embora de sempre, porventura oriundo dos primórdios da literatura. Sobre as relações diretas deste romance de Agustina com a nova realidade político-social portuguesa, diz Álvaro Manuel 2 Cf. RICARDOU, Jean. Problèmes du nouveau roman. Paris: Seuil, 1967, p. 111. Machado que ele “desmonta o processo histórico e sócio-político [além do econômico, cultural e psicológico] do movimento revolucionário de 25 de Abril de 1974”, motivo temático já preludiado, segundo o mesmo ensaísta, no anterior romance da escritora, As pessoas felizes (1975). Crônica do cruzado Osb., ainda conforme Manuel Machado, “é bem um romance sobre a revolução nas suas relações com o tempo e com as paixões humanas” no qual Agustina “tenta definir a revolução interrogando-se sobre a sua ambivalência passional e temporal”, [...] pondo em relevo não só a impossibilidade de voltar ao passado mas também, talvez sobretudo, os obscuros males desse passado.”3. A escritora desenvolveria ainda o tema em romances posteriores: As fúrias (1977) e Os meninos de ouro (1983), análise, este último, da nova sociedade portuguesa (e dos seus expoentes políticos e econômicos) surgida a partir do movimento de abril. O pós-25 de Abril de 74 tornava enfim possível análises sociais dessa ordem, enfocadas, criticamente, as novas estruturas políticas e administrativas, as novas lideranças, as novas ideologias. Tornava possível, também, o aparecimento da vertente temática da guerra colonial representada em toda a sua violência principalmente nos romances de António Lobo Antunes (sobretudo os da fase inicial do escritor) – de tal forma recorrente neste e em outros autores que se poderia falar numa “literatura da guerra” –, tal como possibilitava o surgimento de uma “literatura do exílio” (destacado o tema em experiências ficcionais do ensaísta Álvaro Manuel Machado: Exílio [1978] e A arte da fuga [1983]), ou ainda a retomada do velho tema da emigração (por João de Melo), a visão literária do póscolonialismo – radicalizada em excessos de violências e de irreverências ditas “pósmodernas” no Lobo Antunes de As naus (1988) – na qual se pode inscrever Partes de África (1991), de Helder Macedo, e de que A costa dos murmúrios (1988), de Lídia Jorge, tem figurado entre os melhores resultados. Da mesma autora, a propósito da renovação da narrativa portuguesa centrada nos anos 70, O dia dos prodígios (1979) como representação fantástica da sociedade revolucionária é praticamente referência obrigatória. Também o são, frente ao inevitável “diálogo” entre colonialismo e pós-colonialismo, mas acentuando uma pessoalíssima vertente lírica e quase elegíaca, obras como A árvore das palavras (1997), de Teolinda Gersão ou A noite transfigurada (2006) de Filomena Cabral, narrativas 3 MACHADO, Álvaro Manuel. Agustina Bessa Luis. A vida e a obra. Lisboa: Arcádia, 1979, p. 65 e 66. da recuperação memorialística de um tempo em que a alegria foi possível, mesmo num cenário sombrio. Desta literatura, na qual, como referência cronológica e temática a Revolução de Abril se levanta como fronteira a separar o imediatamente antes do imediatamente depois, dois aspectos (entre tantos outros pesquisáveis) fazem-se notar por sua expressividade. Um deles situado apenas quanto a questões de gênero no universo autoral, mas com inegáveis desdobramentos de interesse no universo e caracterização da criação literária: o de uma intensa e crescente presença e participação feminina no processo de renovação da escrita portuguesa. O outro ligado a questões estruturais dessa renovação: o da auto-reflexividade na narrativa ficcional. Agustina Bessa-Luís pode muito bem ser pensada como símbolo para os dois aspectos: mulher de grande destaque na literatura portuguesa contemporânea, tematiza, antes e depois da revolução, tanto a problemática feminina quanto a reflexão que a literatura pode fazer sobre si mesma. Mas é sobretudo a partir das Novas cartas portuguesas (livro de 1971) e do “escândalo” e processo judicial que envolveu a obra e as três Marias que a escreveram (Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Tereza Horta) que se pode efetivamente falar, em Portugal, de uma “literatura da condição feminina”. Aí, se em tempos hoje bastante distanciados já estavam, por exemplo, uma Irene Lisboa ou uma Maria Archer, e nos mais próximos ou atuais uma Maria Judite de Carvalho e a própria Agustina, inseriram-se a Fernanda Botelho de A gata e a fábula (1960), a Natália Correia de A madona (1968), às quais vieram juntar-se, além das três Marias da obra coletiva, as autoras de obras individuais: a Maria Velho da Costa, de Maina Mendes (1969) e Casas pardas (1977), a Isabel Barreno e a Tereza Horta das ficções intensamente e programaticamente feministas publicadas depois das Novas cartas. Notáveis, e destacadas nesse panorama e nos dias de hoje, são Teolinda Gersão, desde O silêncio (1981) e Paisagem com mulher e mar ao fundo (1982) ou Os guarda-chuvas cintilantes (1984) até A casa da cabeça de cavalo (1995) ou aos contos do recente A mulher que prendeu a chuva (2007), e Lídia Jorge, desde O dia dos prodígios (1979) até Combateremos a sombra (2007), passando pelo Cais das merendas (1982) e por Notícia da cidade silvestre (1984). O feminino (ou o feminismo) a que estas e outras escritoras deram continuidade tem hoje em Inês Pedrosa uma das maiores representantes. Como se o pretendido espírito renovador da revolução política se estendesse aos domínios da literatura, esta ingressou, também – e particularmente no romance –, num tempo de renovação de linguagens, estruturas e propósitos em que é predominante o traço da auto-reflexividade da narrativa, reforçando a tendência de um romance ao qual passava a interessar menos a representação realística e mais a problematização do próprio gênero romance ou tematizações variadas que vão da História à religião, à biografia, às Artes, passando pela literatura, pela pintura, pela música, pela dança. Cada vez mais esse romance seria o da “aventura de uma escrita”, em que, cada obra ou cada “passo” pode constituir uma diferente experiência, um diferente “episódio”. Essa “aventura da escrita” – tendência moderna ou até pós-moderna da literatura na qual é possível vislumbrar como ilustres e “clássicos” antecedentes o Eça de Fradique ou o da Ilustre Casa de Ramires, o Pessoa do fingimento e dos heterônimos e particularmente o do Livro do desassossego, e mesmo Sá-Carneiro, notadamente o da Confissão de Lúcio – passaria pela reescritura dos universos tematizados e conseqüentemente pelo processo de “contaminação” da escrita produzido pela inserção, na obra literária, de vários gêneros textuais não literários: cartas, diários, relatórios, termos de depoimentos policiais, páginas de processos judiciais, laudos de perícias, notícias e reportagens jornalísticas, etc. Neste aspecto impõe-se como exemplo o livro de Cardoso Pires Balada da Praia dos Cães, sem descaso, claro está, pelos nomes de Almeida Faria, Saramago, Mário Cláudio, Lobo Antunes, Helder Macedo. Os extremos da “aventura” têm conduzido a resultados igualmente extremos, como é o da produção de uma nova escrita sem cultura nacional correspondente, assim disse Eduardo Lourenço de Maria Gabriela Llansol já em 1979, a propósito da primeira obra desta autora, O livro das comunidades (1977)4. Ou o da radicalização das experiências narrativas de Maria Velho da Costa e as da própria Llansol, na restante obra. Ou o do império da alegoria (por vezes de “inspiração” kafkiana) associado a processos de renovação da escrita: Saramago. O da diluição (iniciada em agora já velhos movimentos de vanguarda) cada vez mais radical, das estruturas e da identificação terminológica dos 4 LOURENÇO, Eduardo. Contexto cultural e novo texto português. In: Encontro Nacional de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa, 7, 1979, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: Centro de Estudos Portugueses / Faculdade de Letras / UFMG, 1979, p. 24-30. Também incluído em LOURENÇO, Eduardo. O canto do signo. Existência e literatura. Lisboa: Presença, 1993, p. 280-283. gêneros literários – e particularmente do romance – que leva um autor como Lobo Antunes a classificar como “poema” um seu livro (Não entres tão depressa nessa noite escura, publicado em 2000) cujos leitores haverão de tentar ler como romance. “Tentar” ler, porque na verdade, este, como outros da fase mais recente do escritor, são “romances sem narrativa”: sem ação que se possa seguir, porque tudo é labirinto, tudo é caos de onde emerge, apenas, a experiência de uma escrita que sustenta a obra na representação, quando muito, de uma memória atormentada, mas, sobretudo, do labirinto e do caos. Lobo Antunes é também um dos extremos (e dos mais radicais) da “aventura” da escrita literária contemporânea. É bem verdade que nesse processo de renovação nem tudo foi por todos levado a tais extremos. Seria de lembrar que, contribuindo para a renovação do romance e considerando-o como tal, na qualidade de gênero, Vergílio Ferreira, havendo tematizado em Signo sinal (1979) a “suspensão” da História, a pintura e a dança em Cântico final (1960), o romance em Rápida, a sombra (1974), novamente a pintura, o desenho e a fotografia em Na tua face (1993), realizaria uma experiência estrutural com a arte da música no Em nome da terra (1990). Agustina Bessa-Luís, depois de uma longa fixação na História viria a problematizar, ficcionalmente, a própria literatura, recriando, em caráter e espírito e na paisagem duriense do Vale Abraão (1999), um dos mitos maiores do realismo oitocentista: Ema Bovary, a “Bovarinha”, no romance de Agustina. No mais recente romance da escritora, A ronda da noite (2006), a pintura de Rembrandt vem a ser o tema nuclear. Com Saramago, tematizada a História (Cerco de Lisboa, 1989), a pintura e a escrita (Manual de pintura e caligrafia, 1977), a religião (Evangelho segundo Jesus Cristo, 1991), também a literatura (e particularmente a pessoana) o seria, e Ricardo Reis teria finalmente (no Ano da morte – 1984) a sua “biografia” concluída. No romance mais recente, As intermitências da morte (2005), a arte da música estaria na base de uma nova experiência estrutural. Entre os mais novos, Almeida Faria tematizou o pós-25 de Abril na Trilogia lusitana (composta por Cortes, 1978; Lusitânia, 1980 e Cavaleiro andante, 1983) e o mito sebastianista em O conquistador (1990). Também do sebastianismo já se havia ocupado Agustina Bessa-Luís em O mosteiro (1980). Mário de Carvalho, refinado cultor de fina ironia em paródias da História e da ficção histórica como o é A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho (1983), permaneceria fiel à História antiga, recriando com intensa beleza literária um momento da Ibéria românica em Um deus passeando pela brisa da tarde (1994), embora voltasse à paródia, agora da história portuguesa recente (guerra colonial, 25 de Abril, descolonização) em Fantasia para dois coronéis e uma piscina (2003). Mário Cláudio tematizaria biografia e pintura, música e arte-cerâmica na “trilogia das mãos” – que compreende os romances Amadeo (1984), Guilhermina (1986) e Rosa (1988) –, ampliaria o conceito de biografia, “biografando” a Casa senhorial e familiar de A quinta das virtudes (1990), e também se ocuparia ficcionalmente da literatura, regressando ao Eça de “A catástrofe” em As batalhas do Caia (1995) e, recentemente, a Fernando Pessoa/Bernardo Soares em Boa noite, Senhor Soares (2008). Estes e outros são, de algum modo, trégua na vertigem dos experimentalismos literários mais radicais, no equilíbrio que fazem entre a tradição e a renovação. É provavelmente por seu intermédio que melhor se vêem perigos e injustiças de tais radicalismos e “ousadias” nem sempre consistentes. A vertigem do “novo” tem conduzido a um rápido e injusto esquecimento de alguns velhos (mas nem tanto) escritores que há apenas alguns anos (duas ou três décadas) ocuparam a linha de frente da narrativa portuguesa. Paralelamente, alguns novos são projetados como cometas (por vezes de vida curta), confirmando a eficácia das estratégias de marketing e as dos agentes literários, as de mercados, de ideologias, da alta rotatividade da fama representada por ou conseguida em maratonas de lançamentos, entrevistas e viagens para feiras, congressos e bienais. Quem hoje fala, por exemplo, em Fernando Namora ou Nuno Bragança? Mesmo em Cardoso Pires ou Abelaira? O que fez despencar tão rapidamente para o silêncio do esquecimento a obra de Vergílio Ferreira? Que teoria da recepção poderia explicar tal fenômeno? Talvez se pudesse considerar as novas características ou estruturas da sociedade na explicação disso, ou uma certa “consciência” econômica capaz de tudo transformar em possibilidade de ganhos e que retira da criação artística (literatura incluída) o que havia nela de saudavelmente “romântico” ou de superiormente elevado. Não há nenhum romantismo nas “maratonas” visivelmente mercantilistas a que se submetem hoje os novos “profissionais” das letras. Para a confirmação destes, tão numerosos e tão presentes nos noticiários de periódicos, páginas e suplementos de cultura será necessário aguardar, ao lado da avaliação (nem sempre isenta) da crítica imediata, o infalível julgamento do tempo. Como qualquer outra atividade humana – sobretudo em tempos modernos – também a literatura está sujeita aos efeitos da promoção de mercados, de “sistemas” de moda ou do fenômeno dos modismos. E parece haver uma comunicação ou um “contágio” entre isto que acontece no mundo da criação e o que vai acontecendo entre os que se ocupam dela para a avaliarem criticamente. Também a crítica, inclusive a acadêmica, parece, por vezes, vulnerável a esses modismos. Surgem cada vez mais velozes (e talvez duvidosos) novos experimentalismos crítico-teóricos. Novas “metodologias” e novas terminologias vão estendendo vasta rede de relações na reflexão estético-literária levando à ampliação de conceitos tidos como cada vez menos capazes de significar, e, por conseqüência, a uma permanente tendência para a procura de “novos olhares” para a focalização da literatura. Multiplicam-se modos e perspectivas de abordagens crítico-teóricas para o estudo do fenômeno literário: a crítica em si – por exemplo, a de raiz estética, hermenêutica ou fenomenológica – já não é suficiente ou desejada, necessitando de aparatos que identifiquem traços de “atualidade”, de “novidade”, que, numa certa vertigem, rapidamente se desatualizam e envelhecem, sejam eles do tipo sóciocrítica, psicocrítica, mitocrítica, estruturalismo, culturalismo... e as invenções que não param de crescer: ecocrítica, etnocrítica, estudos de gênero, crítica homoerótica, desconstrucionismo, inter e multiculturalismo, etc., etc,... Não se sabe se as radicais invenções produzidas nos textos literários mais recentes estimulam a uma idêntica sintonização da crítica e a idênticas invenções teóricas ou se o contrário disso... Seria o caso de perguntar se a criação segue a teoria ou se a teoria vai seguindo a criação. Se os escritores escrevem para a teoria ou se a teoria vai teorizando para os escritores... Alguém dirá que neste mundo moderno, tecnológico, virtual e vertiginoso na informação/comunicação tudo é pós-moderno. Mas pode ser um erro acreditar que efetivamente assim seja, em termos absolutos. Olinda, julho-agosto de 2008.