A DESCONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO E A CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA EM NAÇÃO CRIOULA, DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA THE DECONSTRUCTION OF THE EMPIRE AND THE CONSTRUCTION OF THE REPUBLIC IN NAÇÃO CRIOULA BY JOSÉ EDUADO AGUALUSA Ana Beatriz Demarchi Barel RESUMO Publicado em 1997, Nação crioula, de José Eduardo Agualusa, é uma obra construída sob a aparente forma de um romance epistolar. Neste romance, no qual a história se articula através da correspondência entre um português, sua madrinha francesa, sua amada angolana, e o escritor Eça de Queiróz, o autor se dedica ao exame das relações triangulares entre Portugal, Brasil e África, focalizando o momento de fratura do Império colonial português no Atlântico Sul. A estrutura do romance dialoga com a estrutura política do sistema colonial português e revela, através da obra literária, as representações, no imaginário lusófono, das relações entre os três continentes neste momento histórico. PALAVRAS-CHAVE Romance Epistolar; Imaginário e Representações; Relações História e Literatura; Colonialismo e PósColonialismo ABSTRACT Published in 1997, Nação crioula by José Eduardo Agualusa, is a work constructed under the apparent form of an epistolary novel. In this novel, in which the story is articulated by the correlation between a Portuguese, the French godmother, his beloved Angolan, and the writer Eça de Queiroz, the author engaged in the examination of the triangular relations between Portugal, Brazil and Africa, focusing on the moment of fracture of the Portuguese colonial empire in the South Atlantic The structure of the novel dialogues with the political structure of the Portuguese colonial system and reveals, through the literary work, the representations in the imaginary lusophone of relations between the three continents in this historic moment. KEYWORDS Epistolary novel; Imaginary and Representations; Relations History and Literature; Colonialism and Post-Colonialism “Ao longo de quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas infelizmente imaginário.”(AGUALUSA, 1997, p. 133) “..Mas que bandeira é esta Que impudente na gávea tripudia?” ( CASTRO ALVES, 1959, p. 362) Publicado em 1997, Nação crioula, de José Eduardo Agualusa, é uma obra construída sob a aparente forma de um romance epistolar. Neste romance, no qual a história se articula através da correspondência entre um português, sua madrinha francesa, sua amada angolana, e o escritor Eça de Queiróz, o autor se dedica ao exame das relações triangulares entre Portugal, Brasil e África, focalizando o momento de fratura do Império colonial português no Atlântico Sul. Original pelo tratamento subversivo da estrutura clássica do romance epistolar, pela visão precisa dos três pilares do colonialismo português e pela leitura do mundo que relaciona o universo lusófono à Europa – projeto pouco freqüente na Literatura de língua portuguesa - Nação crioula ilumina os mecanismos que atestam a desestruturação do processo colonial português e os elementos que tornaram possíveis o surgimento dos movimentos abolicionistas, a formação do Republicanismo tanto em Angola quanto no Brasil, a construção do Estado-Nação pelas elites desses países, a complexa constituição de suas identidades nacionais, assim como suas particularidades, seus paradoxos e suas incongruências. Em Nação crioula, título que retoma o nome do último navio negreiro a ter atravessado o Atlântico, realizando a rota do comércio de escravos entre a África e o Brasil, imbricam-se ficção e História a fim de analisar o momento no qual o universo lusófono se questiona sobre os caminhos a seguir, por um lado, face às especificidades do século XIX e, por outro, face a suas próprias escolhas e prioridades. * O livro do angolano José Eduardo Agualusa, Nação Crioula, ocupa um lugar de destaque no corpus da Literatura de língua portuguesa contemporânea. Já em sua 3ª edição brasileira em 2008, intriga o leitor por sua forma e por seu fundo. O título estampado na página de abertura, Nação Crioula, acompanhado pelo aposto A Correspondência Secreta de Fradique Mendes, e seguido da explicitação do gênero literário ao qual o filiou seu autor - romance - , cria a expectativa de uma experiência de leitura epistolar, sensação que se confirma ao constatarmos, na página seguinte, a existência de um índice que remete a um conjunto de capítulos intitulados, todos, cartas. A este aposto, que nos envia ao universo epistolar dos séculos XVIII e XIX, agregam-se ainda duas outras informações que reforçam a base de erudição sobre a qual se alicerça Nação Crioula: a referência a um dos maiores nomes da Literatura Portuguesa do século XIX, Eça de Queiróz, e a promessa de revelações sobre um de seus mais bem construídos personagens, Fradique Mendes, ao acenar com a intenção de tornar pública sua correspondência pessoal. Pensamos, assim, estar diante de um romance que retoma os modelos celebrados pelo cânone: grande autor, formato clássico, discurso metaliterário. No entanto, viradas as primeiras páginas, chegamos ao corpo do livro, que surpreende, obrigando-nos a rever todos os critérios elencados até o momento, devido à originalidade do tratamento dado a estes elementos. E o leitor dá-se conta de estar, certamente, diante, senão de uma grande obra, ao menos, de um excelente exemplar de romance histórico contemporâneo. * A idéia de ter nas mãos mais um romance epistolar ou de missivas de um romantismo edulcorado e de humor leve se dissipa logo na primeira página da obra, ou melhor, na primeira página do primeiro dos vinte e seis textos escritos sob a forma de cartas, e que constituem a matéria de Nação Crioula. O livro de José Eduardo Agualusa, que combina uma visão crítica da História portuguesa a uma linguagem sem rebuços ou enfeites, aborda o intrincado tema do colonialismo europeu e suas relações com o continente africano. No que diz respeito à organização formal e visual do livro, estruturado sob a forma de cartas, Nação Crioula dá a impressão de constituir uma correspondência, na qual haveria uma troca entre um remetente e um destinatário e que, a uma exposição de situações, apreciações de fatos e informações, seguir-se-ia outro texto de avaliação deste conteúdo, de acréscimo de informações e de detalhes. No entanto, após duas ou três cartas lidas, o leitor atenta para o fato de que a uma carta enviada não corresponde uma resposta do destinatário em questão e, sim, uma retomada da palavra pelo mesmo remetente, no caso, Fradique Mendes. Assim, ao concluirmos a leitura do livro, não estamos diante de um romance epistolar, no sentido próprio do termo, uma vez que não temos em mãos as respostas às cartas enviadas pelo narrador, mas uma seqüência de cartas todas escritas por um único autor. Desta forma, o narrador detém o controle do enredo e das cartas, assumindo a pena dos destinatários e, por conseqüência, calando sua voz. Enquanto lia a tua carta pensava que a podia ter escrito eu próprio há alguns anos atrás, quando era ainda muito jovem e acreditava conhecer tudo sobre as paixões da alma. Escreves: “O nosso amor nasceu furtivo e até onde eu alcanço teria de continuar assim, criando pouco a pouco sombras e rancor – que é o bolor dos sentimentos -, até por completo apodrecer.”...A tua segunda questão não tem resposta. (AGUALUSA, 1997, p. 47) A esta estrutura literária, de aparente romance epistolar em que os destinatários só existem pelo seu silêncio, responde a estutura política do universo colonial na qual apenas o colonizador, no romance, o português Fradique Mendes, tem direito à voz e à palavra escrita, veículo do saber e, por conseqüência, da lei e do poder. Vale lembrar que a estrutura do romance mantém uma relação estreita com o processo histórico das relações internas ao mundo lusófono. Assim, Fradique Mendes, personificação de Portugal, relaciona-se, cronologicamente num primeiro momento, com a África, onde conhece a negra Ana Olímpia e, num segundo momento, embarca, ainda que a contra-gosto, num negreiro, reconstruindo o caminho – de colonizados mas também do colonizador – entre o continente africano e o Brasil. O monopólio da palavra por Fradique Mendes deve, então, ser lido não como uma contradição da elaboração estética de seu personagem e sim como a explicitação dos paradoxos do processo colonial. Ainda que Fradique seja partidário do Abolicionismo, a detenção do discurso narrativo representa o poder e a força do controle do processo colonial. Esta idéia é corroborada ainda pela arquitetura do romance. Das vinte e seis cartas que compõem o livro, todas são enviadas por Fradique Mendes, exceto a última, escrita por Ana Olímpia ao romancista Eça de Queiróz, em 1900. O único momento, portanto, em que temos acesso ao texto do destinatário, mais especificamente, ao seu destinatário privilegiado, pois que se trata de sua mulher, é na última carta do livro. Vale observar que a carta escrita por Ana Olímpia é, de certa maneira, um grande resumo dos acontecimentos do livro, não deixando de ser, no entanto, a expressão de sua voz. Datando a última carta de Fradique Mendes de outubro de 1888, Agualusa faz coincidir a morte do português, personagem de seu livro, com a abolição da escravatura no Brasil e, como conseqüência direta, com o fim do tráfico negreiro com Angola. * Nascido em Angola em 1960, e tendo uma relação aberta e intensa com a antiga metrópole, Agualusa ocupa um lugar privilegiado para tratar a questão, avaliando a problemática com olhos de quem a viveu, de dentro e de fora. Esta vivência nos dois pólos do sistema colonial permite ao autor tecer análises pertinentes sobre a formação e o funcionamento do universo colonial português. Desta forma, o romance se articula por uma seqüência de cartas que se inicia em maio de 1868, com a chegada de Fradique Mendes a Angola e se conclui em agosto de 1900, o emissor da última correspondência sendo Ana Olímpia, que relata a Eça de Queiróz as aventuras e a morte de Fradique Mendes. Para além de serem os marcos cronológicos em que se desenrola a narração, estas datas são importantes para situar os fatos relatados no momento histórico no qual se insere todo o universo lusófono, uma vez que as cartas serão escritas nos três continentes envolvidos no comércio triangular1. O ano de 1868 é a data da abolição da escravidão nas colônias portuguesas da África, as Américas já tendo sido palco de dois de seus mais importantes e sangrentos conflitos, a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, maior guerra civil de todo o século XIX, que duraria de 1861 a 1865, e a Guerra do Paraguai, maior conflito armado de todos os tempos do continente sul-americano, que teria implicações fundamentais para a História do Brasil, com conseqüências importantes para os caminhos do Republicanismo e do Abolicionismo brasileiros2. Para o continente europeu, se 1868 é o ano em que Teófilo Braga, ardente defensor dos ideais Republicanos e Positivistas, autor de uma representativa História da Literatura Portuguesa, conclui seu curso de Direito na Universidade de Coimbra, preparando-se para assumir o cargo de primeiro Presidente da República Portuguesa, 1900 será o ano da Primeira Exposição Universal em Paris, evento que se consolida como uma vitrine do colonialismo europeu na África. O período histórico escolhido por Agualusa como pano-de-fundo de seu romance é, como vemos, a segunda metade do século XIX, fase particularmente importante para o continente africano devido às inúmeras transformações decorrentes do fim do tráfico negreiro, ao advento da abolição para o mundo lusófono, e pelas conseqüências do Congresso de Berlim. Será no Congresso de Berlim, ocorrido entre 1884 e 1885, que a partilha da África será realizada pelos representantes das principais potências européias - Inglaterra, França e Alemanha -, e que serão estabelecidas com régua e compasso as fronteiras dos territórios a serem partilhados entre os países europeus. Essas informações aparecem no romance, quando, numa das cartas enviadas a Eça de Queiróz, datada de 1888, o narrador aborda justamente o tema da partilha dos 1 Para uma introdução à tematica, em particular sobre o universo francófono, cf. Le commerce colonial triangulaire (XVIIIe – XIXe siècles), de Raymond-Marin Lemesle e, para o mundo lusófono, O Império Maritimo Português (1415-1825), de Charles R. Boxer constituem leitura obrigatória. 2 A Retirada da Laguna, de Alfredo Taunay, relata um episódio da Guerra do Paraguai, fornecendo elementos para a compreensão do processo de formação do Estado Nacional brasileiro e suas relações com o Abolicionismo e o Republicanismo no Brasil. territórios africanos, estabelecendo uma distinção fundamental entre o processo colonizador e civilizatório português e o das demais potências européias. Assim, segundo Fradique Mendes, o processo colonial português 'peca' pela ausência de um método, de um princípio norteador, este, presente no programa dos demais países colonizadores Penso naquele cavaleiro como sendo Portugal montado em África. Montado, não, depositado. A nossa presença em África não obedece a um princípio, a uma ideia, e nem parece ter outro fim que não seja o saque dos africanos. Depositados em África os infelizes colonos portugueses tentam em primeiro lugar manter-se na sela, isto é, vivos e roubando, pouco lhes importando o destino que o continente leva. E Portugal, tendo-os depositado, nunca mais se lembra deles. Uns tantos, assim esquecidos, depressa perdem a memória da pátria e em pouco tempo se cafrealizam. Esses são os mais felizes. Entranham-se pelo mato (“Deus é grande”, costumam dizer, “mas o mato é maior”) e assim como trocam as calças e as camisas por mantas de couro, da mesma forma abandonam a língua portuguesa, ou usam-na em farrapos, de mistura aos sonoros idiomas de África.(AGUALUSA, 1997, p. 132) Esta comparação extremamente visual entre o vínculo que Portugal estabelece com suas colônias e a relação que mantêm os colonos enviados à Africa com os sinais concretos da identidade africana – a substituição das calças e das camisas pelas mantas de couro e do português pelas línguas locais - ilustra as características do colonialismo português e a natureza das relações colonizadorcolonizado no mundo lusófono, apontando para uma crioulização do colonizador, e para um processo de amalgamação da cultura européia. Implacável, o texto de Agualusa expõe, sem meias-tintas, o 'defeito' de concepção das relações coloniais portuguesas, sua ausência de objetividade e seu caráter epidérmico quando comparadas, sobretudo, às de outras nações européias que se lançaram no projeto colonial. O que é que nós colonizámos? O Brasil, dir-me-ás tu. Nem isso. Colonizámos o Brasil com os escravos que fomos buscar a África, fizemos filhos com eles, e depois o Brasil colonizou-se a si próprio. Ao longo de quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas infelizmente imaginário. Para o tornar real sera necessario muito mais do que a nossa consoladora fantasia de meridionais. A Inglaterra e a França, nações cerebrais, materialistas, não compreendem, nunca hão-de compreender, a pura e sentimental abstracção que leva um povo inteiro a assegurar, percorrendo com a mão orgulhosa o mapa do mundo: é nosso! E é com a Inglaterra, com a França e com a Alemanha, e ja não com a maternal Espanha, que hoje nos teremos de bater se quisermos colonizar a África. (AGUALUSA, 1997, p. 133) Esta passagem concentra duas informações importantes. A primeira, responsável por uma das caracteristicas estéticas do romance de Agualusa, e que mencionamos no início de nosso trabalho: a capacidade de pensar o mundo lusófono em relação à Europa e incluído no sistema colonial internacional, traço pouco freqüente na Literatura de língua portuguesa, de modo geral. Esta atitude, extremamente positiva para a produção literária em língua portuguesa, uma vez que a insere numa perspectiva comparatista, resgatando-a de um lugar de confinamento de um ambiente estritamente lusófono - e lusófilo, por certo, mas estreito para sua compreensão -, representa, igualmente, uma posição de simetria entre Portugal e seus pares, ao refletir sobre a cultura portuguesa e lusa num contexto europeu. A segunda informação extremamente importante é a leitura diacrônica da História Portuguesa e da historiografia – portuguesa, européia e colonial - presente neste parágrafo. Nele, o narrador faz referência a dois momentos cruciais da empresa colonial: o Segundo Império (1500-1822), no qual Portugal dividiu espaço com a Espanha na conquista das Américas, e o Terceiro Império (1822-1975), no qual teve como concorrentes a Inglaterra, a França e a Alemanha, o autor realizando um movimento simultâneo de aproximação e de afastamento na linha do tempo. Assim, situar seu narrador na segunda metade do século XIX, ponto de virada na história do Império Colonial Português, é a estratégia estética do escritor angolano para ocupar um lugar privilegiado de emissão de sua voz narrativa. O personagem duplamente ficcional de Fradique Mendes – recurso de apropriação estética que revela a antropofagização do paradigma clássico e metropolitano pela Literatura Angolana - ocupa, deste modo, um lugar concreto na linha cronológica da História que permite, por um lado, uma leitura crítica da evolução do processo colonial, dos motivos que levaram ao colapso do Segundo Império Português e à eclosão do movimento independentista no Brasil e, por outro, do ponto de virada deste processo, com o início do Terceiro Império e o fortalecimento da presença portuguesa na África. Desgraçadamente Portugal espalha-se, não coloniza. Somos assim, enquanto nação, uma forma mais rudimentar que o Bacilo de Koch: uma estranha perversão faz com que os Portugueses onde quer que cheguem, e temos chegado bastante longe, não só esqueçam a sua missão civilizadora, isto é, colonizadora, mas depressa se deixem eles próprios colonizar, isto é, descivilizar pelos povos locais. Já Pero Vaz de Caminha confessava ao pisar as terras de Vera Cruz, a sua admiração pelos índios (e sobretudo pelas índias): “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.” Era a formiga invejando a cigarra(AGUALUSA, 1997, p. 134) As razões elencadas por Fradique Mendes resumem a desestruturação do colonialismo português, em 1945, no final da Segunda Guerra, sendo tomado como um marco para o início do processo de descolonização do continente africano e que, no que diz respeito às antigas colônias portuguesas, se conclui em 1974 com a Revolução dos Cravos, pondo fim a 48 anos de ditadura militar em Portugal. * Partindo de uma análise minuciosa da conjuntura histórica da segunda metade do século XIX, quando se verifica uma superposição de dois fenômenos políticos importantes para a definição do século XX – o surgimento do Republicanismo e o início do processo colonial na África – podemos identificar em Nação Crioula de que forma Portugal, alinhado às metrópoles européias, e Angola e Brasil, dois territórios coloniais, vão compreender esse novo conjunto de informações e se posicionar diante dos outros e de si mesmos. Dessa forma, o autor mapeia os elementos que constituem as fundações do mecanismo de funcionamento do sistema colonial português, sobretudo no tocante ao Terceiro Império, e antecipa as razões que levariam ao colapso deste mesmo sistema com a Guerra Colonial de 1975. Fim do tráfico negreiro3, início das campanhas abolicionistas e construção do Republicanismo, de um lado, intensificação do colonialismo na África, de outro, Nação Crioula reúne os elementos que, aparentemente paradoxais num primeiro olhar, definem, historicamente, a virada do século XIX e o início do século XX, identificando as características específicas do sistema colonial português que conduzirão Portugal à desconstrução definitiva de seu Império. Assim, Fradique Mendes narra a sua madrinha francesa o encontro com Arcénio Pompilio Pompeu de Carpo, português da Ilha da Madeira degredado para Angola, e que então vive do comércio de escravos, expondo ao leitor os mecanismos que estruturam o raciocínio do mercador. Diante da explicação de Arcénio de Carpo, ainda que relutemos em aceitar sua retórica anti-abolicionista, presenciamos o intrincado problema do tráfico negreiro e da lógica colonialista. O narrador expõe ao leitor, através da composição do personagem politicamente incorreto a nossos olhos de leitores do século XXI, a crueza da justificação do discurso escravagista e que nos escandaliza – mas que se revela autêntico historicamente, ao ilustrar sem rodeios o princípio que preside as ações do comerciante: o lucro. Já compreendeu, querida madrinha, como fez fortuna o senhor Arcénio de Carpo? Precisamente: comprando e vendendo a triste humanidade. Ou, como ele prefere dizer, “contribuindo para o crescimento do Brasil”. Ainda hoje, a creditar no que se comenta em Luanda, continua a trabalhar para o crescimento do Brasil. “Os Ingleses nunca me hão-de ver de joelhos”, assegurou excitado quando lhe perguntei se persistia na colonia o tráfico negreiro. Em sua opinião o movimento emancipador tem sido secretamente financiado e organizado pelos Britânicos e Americanos do norte com o objetivo de impedir a consolidação de uma forte potência na América do Sul: “A América inglesa está superpovoada. Todos os anos chegam milhões de agricultores europeus aos estados do interior. Assim é facil ser humanista e gritar contra o tráfico. Mas o Brasil, onde o número de colonos europeus é muito reduzido, depende inteiramente dos escravos. Se o tráfico acabar, a agricultura brasileira entra em colapso. Ao mesmo tempo a Inglaterra pretende arruinar as elites que amanhã poderiam governar Angola, e a prova provada de tal aleivosia é que a armada britânica não se limita a apresar e afundar os navios negreiros – tem feito o mesmo a embarcações carregadas com diversos géneros de troca”(AGUALUSA, 1997, p. 13) Se o argumento do comerciante de escravos, que sobrevive graças ao tráfico humano, mostra sem pudores a desfaçatez de uma classe que sobrevive graças ao abuso do poder e à lei do mais forte, ele também exibe um dos pontos de esgotamento do comércio tringular. Definido pela articulação de certa elite 3 Sobre o tema da escravidão negra nas Américas, sobretudo no Brasil, e o sistema de plantation no continente americano, os estudos de Rafael de Bivar Marquese constituem uma excelente fonte de informações. comerciante portuguesa, mercenários africanos, e grandes latifundiários brasileiros, o universo colonial definiu-se no Atlântico Sul4 pela união compósita dos mais diversos e aparentemente paradoxais tipos de indivíduos, reunindo uma galeria de personagens históricos os mais díspares, todos, no entanto, visceralmente implicados no funcionamento de uma das atividades mais lucrativas do século XIX. Domingo fui convidado para o Baile do Governador, acontecimento de grande brilho, ruído e ostentação, ao qual comparece habitualmente toute Luanda – ou seja, quem quer que nesta cidade, tendo algum capital, saiba ler e escrever. Nos salões do palácio misturam-se comerciantes honestos e criminosos a cumprir pena de degredo, filhos-do-país e louros aventureiros europeus, escravocratas e abolicionistas, monárquicos e republicanos, padres e maçons. Alguns dos mais prósperos homens de negócios de São Paulo de Luanda iniciaram fortuna pedindo emprestadas uma poucas de macutas com que compravam peixe para fritar, vendendo-o depois nas feiras e mercados. Em pouco tempo as macutas tornaram-se tostões e depois libras e finalmente contos de réis. É dificil imaginar colecção mais interessante de tipos físicos e psicológicos, até patológicos, reunida debaixo de um mesmo tecto.(AGUALUSA, 1997, p. 21-22) Mesclando estrutura ficcional à precisão de dados históricos, Agualusa resgata, além de visões distintas do 'fenômeno' sistema colonial, também discursos que resumem as linhas-mestras que guiarão o funcionamento da engrenagem econômica da atividade escravagista, do regime político em transição neste preciso momento histórico - de Monárquico a Republicano no Brasil-, e da organização social do universo lusófono, este, fundado nas relações assimétricas entre senhor e escravo mas cujo sofisticado sistema de classes que o caracteriza, geraria inúmeras figuras intermediárias, responsáveis pela manutenção de relações no mundo do trabalho livre, como é o caso dos agregados.5 Neste sentido, apresenta as reflexões do comerciante Arcénio de Carpo, desta vez, não do ponto de vista da identidade nacional como vimos anteriormente, mas do ponto de vista das relações de classe Um dos homens, com a cabeleira coberta por um magnífico chapéu de coco, chegou-se a nós e apontando o garoto gritou qualquer coisa que eu não compreendi. Arcénio riu-se; “pergunta se queremos comprar um escravo.” Recusei indignado e o garoto lançou-se aos meus pés chorando e lamentando-se. “Se não o compramos, eles matam-no”, explicou Arcénio: “era exactamente isto que eu lhe queria dizer. Ao comprar um escravo estou a salvar-lhe a vida”. Em sua opinião o tráfico negreiro é uma forma de filantropia. Ele, como o pai, ama os negros e só por isso os vende para o Brasil. Acredita que a escravatura tem os dias contados na grande pátria de Pedro II e que os desgraçados, uma vez libertos, estarão melhor lá do que estão agora aqui.(AGUALUSA, 1997, p. 63) Prosseguindo em suas peripécias rocambolescas pelo continente africano, 4 Um dos melhores estudos sobre o funcionamento do comércio negreiro no Atlântico Sul é O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro. 5 Sobre a complexidade da construção das classes sociais, sua importância na dinâmica da sociedade brasileira e suas implicações na elaboração do sistema literário brasileiro, são de consulta obrigatória os estudos de Roberto Schwarz, Machado de Assis: Um Mestre na Periferia do Capitalismo, Ao Vencedor as Batatas, entre outros. Fradique Mendes resgatará sua amada do cativeiro no qual a mantinha Gabriela Santamarinha, partindo para o Brasil, contra sua vontade, a bordo do Nação Crioula, último negreiro a atravessar o Atlântico. Ao relatar a viagem a sua madrinha, menciona o episódio da cantoria, pelos marinheiros, de versos de Castro Alves, poeta abolicionista brasileiro. Os versos de Castro Alves, cantados por um marujo vindo da África e agora a caminho do Brasil, resumem o alcance dos ideais abolicionistas e republicanos no fim do século XIX, bem como sua forte penetração junto às camadas populares. Versos de grande poder mnemônico, os poemas de Castro Alves inflamavam o povo e se transmitiam oralmente também junto aos escravos. Atravessando o Atlântico, os versos do Navio Negreiro explicitam o clima efervescente e a forte pressão exercida por intelectuais como Joaquim Nabuco e o jornalista José do Patrocínio, ambos visitantes do Engenho Cajaíba, onde se estabelecem Fradique Mendes e Ana Olímpia. Assumem, no romance de Agualusa, o papel de contraponto ao olhar de uma certa elite, representada pelo mercenário Arcénio de Carpo, símbolo de uma classe social implicada no sistema colonial e destinada ao desaparecimento. Impressionou-me também nesta estranha viagem um episódio que não resisto a contar-lhe: uma noite um dos marinheiros, moço de voz quente, começou a cantar, acompanhado à viola, uma moda triste, na qual julguei reconhecer, espantado, alguns versos de Castro Alves: “Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vos, Senhor Deus/Se eu deliro...ou se é verdade/Tanto horror perante os céus?!.../Oh mar, por que não apagas/Com a esponja de tuas vagas/Do teu manto este borrão?/...Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta/Que impudente na gávea tripudia?...Musa...chora, e chora tanto/Que o pavilhão se lave no teu pranto!.../Auriverde pendão de minha terra/Que a brisa do Brasil beija e balança/Estandarte que a luz do céu encerra/Tu que, da liberdade apos a guerra/Foste hasteado dos heróis na lança/Antes te houvessem roto na batalha/Que servires a um povo de mortalha!(AGUALUSA, 1997, p. 73) Num diálogo intertextual, podemos elencar um conjunto de textos escritos neste momento histórico e que fizeram parte das páginas mais lidas no século XIX, denunciando as práticas que embasaram o sistema colonial no universo lusófono e que moveram grandes somas de dinheiro, deslocando um imenso número de pessoas, enriquecendo e arruinando famílias, empresas e nações. O livro de Agualusa, concluindo-se em 1900, ilustra, metaforicamente, o ponto de virada na história do sistema colonial, atestando a construção da República no Brasil e antecipando a desconstrução definitiva do Império português. REFERÊNCIAS AGUALUSA, José Eduardo. Nação crioula: A Correpondência Secreta de Fradique Mendes, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul – Séculos XVI e XVII, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. BAREL, Ana Beatriz. Um Romantismo a Oeste: Modelo Francês, Identidade Nacional, São Paulo, Annablume, 2002. _________________. 'Despotes et dandys: narrateurs, classe sociale et identité nationale dans la littérature brésilienne du XIXe siècle' in Cahier du CREPAL n° 7 Les voies du conte, Paris, Presses de la Sorbonne Nouvelle, 1999, p. 65 – 91. _________________. (org.). Nitheroy: Revista Brasiliense, Sciencias, Lettras e Artes, Coimbra, MinervaCoimbra, 2006. BOSI, Alfredo. 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