A DESCONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO E A CONSTRUÇÃO DA

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A DESCONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO E A CONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA
EM NAÇÃO CRIOULA, DE JOSÉ EDUARDO AGUALUSA
THE DECONSTRUCTION OF THE EMPIRE AND THE CONSTRUCTION
OF THE REPUBLIC IN NAÇÃO CRIOULA BY JOSÉ EDUADO AGUALUSA
Ana Beatriz Demarchi Barel
RESUMO
Publicado em 1997, Nação crioula, de José Eduardo Agualusa, é uma obra construída sob a aparente
forma de um romance epistolar. Neste romance, no qual a história se articula através da
correspondência entre um português, sua madrinha francesa, sua amada angolana, e o escritor Eça de
Queiróz, o autor se dedica ao exame das relações triangulares entre Portugal, Brasil e África,
focalizando o momento de fratura do Império colonial português no Atlântico Sul. A estrutura do
romance dialoga com a estrutura política do sistema colonial português e revela, através da obra
literária, as representações, no imaginário lusófono, das relações entre os três continentes
neste momento histórico.
PALAVRAS-CHAVE
Romance Epistolar; Imaginário e Representações; Relações História e Literatura; Colonialismo e PósColonialismo
ABSTRACT
Published in 1997, Nação crioula by José Eduardo Agualusa, is a work constructed under the apparent
form of an epistolary novel. In this novel, in which the story is articulated by the correlation between a
Portuguese, the French godmother, his beloved Angolan, and the writer Eça de Queiroz, the author
engaged in the examination of the triangular relations between Portugal, Brazil and Africa, focusing
on the moment of fracture of the Portuguese colonial empire in the South Atlantic The structure of the
novel dialogues with the political structure of the Portuguese colonial system and reveals, through the
literary work, the representations in the imaginary lusophone of relations between the three
continents in this historic moment.
KEYWORDS
Epistolary novel; Imaginary and Representations; Relations History and Literature; Colonialism and
Post-Colonialism
“Ao longo de quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo, mas
infelizmente imaginário.”(AGUALUSA, 1997, p. 133)
“..Mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?” ( CASTRO ALVES, 1959, p. 362)
Publicado em 1997, Nação crioula, de José Eduardo Agualusa, é uma obra
construída sob a aparente forma de um romance epistolar. Neste romance, no qual a
história se articula através da correspondência entre um português, sua madrinha
francesa, sua amada angolana, e o escritor Eça de Queiróz, o autor se dedica ao
exame das relações triangulares entre Portugal, Brasil e África, focalizando o
momento de fratura do Império colonial português no Atlântico Sul.
Original pelo tratamento subversivo da estrutura clássica do romance
epistolar, pela visão precisa dos três pilares do colonialismo português e pela leitura
do mundo que relaciona o universo lusófono à Europa – projeto pouco freqüente na
Literatura de língua portuguesa - Nação crioula ilumina os mecanismos que atestam
a desestruturação do processo colonial português e os elementos que tornaram
possíveis o surgimento dos movimentos abolicionistas, a formação do
Republicanismo tanto em Angola quanto no Brasil, a construção do Estado-Nação
pelas elites desses países, a complexa constituição de suas identidades nacionais,
assim como suas particularidades, seus paradoxos e suas incongruências.
Em Nação crioula, título que retoma o nome do último navio negreiro a ter
atravessado o Atlântico, realizando a rota do comércio de escravos entre a África e o
Brasil, imbricam-se ficção e História a fim de analisar o momento no qual o universo
lusófono se questiona sobre os caminhos a seguir, por um lado, face às
especificidades do século XIX e, por outro, face a suas próprias escolhas e
prioridades.
*
O livro do angolano José Eduardo Agualusa, Nação Crioula, ocupa um lugar
de destaque no corpus da Literatura de língua portuguesa contemporânea. Já em sua
3ª edição brasileira em 2008, intriga o leitor por sua forma e por seu fundo. O título
estampado na página de abertura, Nação Crioula, acompanhado pelo aposto A
Correspondência Secreta de Fradique Mendes, e seguido da explicitação do gênero
literário ao qual o filiou seu autor - romance - , cria a expectativa de uma
experiência de leitura epistolar, sensação que se confirma ao constatarmos, na página
seguinte, a existência de um índice que remete a um conjunto de capítulos
intitulados, todos, cartas.
A este aposto, que nos envia ao universo epistolar dos séculos XVIII e XIX,
agregam-se ainda duas outras informações que reforçam a base de erudição sobre a
qual se alicerça Nação Crioula: a referência a um dos maiores nomes da Literatura
Portuguesa do século XIX, Eça de Queiróz, e a promessa de revelações sobre um de
seus mais bem construídos personagens, Fradique Mendes, ao acenar com a intenção
de tornar pública sua correspondência pessoal. Pensamos, assim, estar diante de um
romance que retoma os modelos celebrados pelo cânone: grande autor, formato
clássico, discurso metaliterário.
No entanto, viradas as primeiras páginas, chegamos ao corpo do livro, que
surpreende, obrigando-nos a rever todos os critérios elencados até o momento,
devido à originalidade do tratamento dado a estes elementos. E o leitor dá-se conta
de estar, certamente, diante, senão de uma grande obra, ao menos, de um excelente
exemplar de romance histórico contemporâneo.
*
A idéia de ter nas mãos mais um romance epistolar ou de missivas de um
romantismo edulcorado e de humor leve se dissipa logo na primeira página da obra,
ou melhor, na primeira página do primeiro dos vinte e seis textos escritos sob a forma
de cartas, e que constituem a matéria de Nação Crioula. O livro de José Eduardo
Agualusa, que combina uma visão crítica da História portuguesa a uma linguagem
sem rebuços ou enfeites, aborda o intrincado tema do colonialismo europeu e suas
relações com o continente africano.
No que diz respeito à organização formal e visual do livro, estruturado sob a
forma de cartas, Nação Crioula dá a impressão de constituir uma correspondência,
na qual haveria uma troca entre um remetente e um destinatário e que, a uma
exposição de situações, apreciações de fatos e informações, seguir-se-ia outro texto
de avaliação deste conteúdo, de acréscimo de informações e de detalhes. No entanto,
após duas ou três cartas lidas, o leitor atenta para o fato de que a uma carta enviada
não corresponde uma resposta do destinatário em questão e, sim, uma retomada da
palavra pelo mesmo remetente, no caso, Fradique Mendes. Assim, ao concluirmos a
leitura do livro, não estamos diante de um romance epistolar, no sentido próprio do
termo, uma vez que não temos em mãos as respostas às cartas enviadas pelo
narrador, mas uma seqüência de cartas todas escritas por um único autor. Desta
forma, o narrador detém o controle do enredo e das cartas, assumindo a pena dos
destinatários e, por conseqüência, calando sua voz.
Enquanto lia a tua carta pensava que a podia ter escrito eu próprio há
alguns anos atrás, quando era ainda muito jovem e acreditava conhecer
tudo sobre as paixões da alma. Escreves: “O nosso amor nasceu furtivo e
até onde eu alcanço teria de continuar assim, criando pouco a pouco
sombras e rancor – que é o bolor dos sentimentos -, até por completo
apodrecer.”...A tua segunda questão não tem resposta. (AGUALUSA, 1997,
p. 47)
A esta estrutura literária, de aparente romance epistolar em que os
destinatários só existem pelo seu silêncio, responde a estutura política do universo
colonial na qual apenas o colonizador, no romance, o português Fradique Mendes,
tem direito à voz e à palavra escrita, veículo do saber e, por conseqüência, da lei e do
poder.
Vale lembrar que a estrutura do romance mantém uma relação estreita com o
processo histórico das relações internas ao mundo lusófono. Assim, Fradique
Mendes, personificação de Portugal, relaciona-se, cronologicamente num primeiro
momento, com a África, onde conhece a negra Ana Olímpia e, num segundo
momento, embarca, ainda que a contra-gosto, num negreiro, reconstruindo o
caminho – de colonizados mas também do colonizador – entre o continente africano
e o Brasil. O monopólio da palavra por Fradique Mendes deve, então, ser lido não
como uma contradição da elaboração estética de seu personagem e sim como a
explicitação dos paradoxos do processo colonial. Ainda que Fradique seja partidário
do Abolicionismo, a detenção do discurso narrativo representa o poder e a força do
controle do processo colonial.
Esta idéia é corroborada ainda pela arquitetura do romance. Das vinte e seis
cartas que compõem o livro, todas são enviadas por Fradique Mendes, exceto a
última, escrita por Ana Olímpia ao romancista Eça de Queiróz, em 1900. O único
momento, portanto, em que temos acesso ao texto do destinatário, mais
especificamente, ao seu destinatário privilegiado, pois que se trata de sua mulher, é
na última carta do livro. Vale observar que a carta escrita por Ana Olímpia é, de certa
maneira, um grande resumo dos acontecimentos do livro, não deixando de ser, no
entanto, a expressão de sua voz.
Datando a última carta de Fradique Mendes de outubro de 1888, Agualusa faz
coincidir a morte do português, personagem de seu livro, com a abolição da
escravatura no Brasil e, como conseqüência direta, com o fim do tráfico negreiro
com Angola.
*
Nascido em Angola em 1960, e tendo uma relação aberta e intensa com a
antiga metrópole, Agualusa ocupa um lugar privilegiado para tratar a questão,
avaliando a problemática com olhos de quem a viveu, de dentro e de fora. Esta
vivência nos dois pólos do sistema colonial permite ao autor tecer análises
pertinentes sobre a formação e o funcionamento do universo colonial português.
Desta forma, o romance se articula por uma seqüência de cartas que se inicia
em maio de 1868, com a chegada de Fradique Mendes a Angola e se conclui em
agosto de 1900, o emissor da última correspondência sendo Ana Olímpia, que relata
a Eça de Queiróz as aventuras e a morte de Fradique Mendes.
Para além de serem os marcos cronológicos em que se desenrola a narração,
estas datas são importantes para situar os fatos relatados no momento histórico no
qual se insere todo o universo lusófono, uma vez que as cartas serão escritas nos três
continentes envolvidos no comércio triangular1.
O ano de 1868 é a data da abolição da escravidão nas colônias portuguesas da
África, as Américas já tendo sido palco de dois de seus mais importantes e
sangrentos conflitos, a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, maior guerra civil de
todo o século XIX, que duraria de 1861 a 1865, e a Guerra do Paraguai, maior
conflito armado de todos os tempos do continente sul-americano, que teria
implicações fundamentais para a História do Brasil, com conseqüências importantes
para os caminhos do Republicanismo e do Abolicionismo brasileiros2.
Para o continente europeu, se 1868 é o ano em que Teófilo Braga, ardente
defensor dos ideais Republicanos e Positivistas, autor de uma representativa História
da Literatura Portuguesa, conclui seu curso de Direito na Universidade de Coimbra,
preparando-se para assumir o cargo de primeiro Presidente da República Portuguesa,
1900 será o ano da Primeira Exposição Universal em Paris, evento que se consolida
como uma vitrine do colonialismo europeu na África.
O período histórico escolhido por Agualusa como pano-de-fundo de seu
romance é, como vemos, a segunda metade do século XIX, fase particularmente
importante para o continente africano devido às inúmeras transformações decorrentes
do fim do tráfico negreiro, ao advento da abolição para o mundo lusófono, e pelas
conseqüências do Congresso de Berlim. Será no Congresso de Berlim, ocorrido entre
1884 e 1885, que a partilha da África será realizada pelos representantes das
principais potências européias - Inglaterra, França e Alemanha -, e que serão
estabelecidas com régua e compasso as fronteiras dos territórios a serem partilhados
entre os países europeus.
Essas informações aparecem no romance, quando, numa das cartas enviadas a
Eça de Queiróz, datada de 1888, o narrador aborda justamente o tema da partilha dos
1 Para uma introdução à tematica, em particular sobre o universo francófono, cf. Le commerce
colonial triangulaire (XVIIIe – XIXe siècles), de Raymond-Marin Lemesle e, para o mundo
lusófono, O Império Maritimo Português (1415-1825), de Charles R. Boxer constituem leitura
obrigatória.
2 A Retirada da Laguna, de Alfredo Taunay, relata um episódio da Guerra do Paraguai, fornecendo
elementos para a compreensão do processo de formação do Estado Nacional brasileiro e suas
relações com o Abolicionismo e o Republicanismo no Brasil.
territórios africanos, estabelecendo uma distinção fundamental entre o processo
colonizador e civilizatório português e o das demais potências européias. Assim,
segundo Fradique Mendes, o processo colonial português 'peca' pela ausência de um
método, de um princípio norteador, este, presente no programa dos demais países
colonizadores
Penso naquele cavaleiro como sendo Portugal montado em África.
Montado, não, depositado. A nossa presença em África não obedece a um
princípio, a uma ideia, e nem parece ter outro fim que não seja o saque dos
africanos. Depositados em África os infelizes colonos portugueses tentam
em primeiro lugar manter-se na sela, isto é, vivos e roubando, pouco lhes
importando o destino que o continente leva. E Portugal, tendo-os
depositado, nunca mais se lembra deles. Uns tantos, assim esquecidos,
depressa perdem a memória da pátria e em pouco tempo se cafrealizam.
Esses são os mais felizes. Entranham-se pelo mato (“Deus é grande”,
costumam dizer, “mas o mato é maior”) e assim como trocam as calças e
as camisas por mantas de couro, da mesma forma abandonam a língua
portuguesa, ou usam-na em farrapos, de mistura aos sonoros idiomas de
África.(AGUALUSA, 1997, p. 132)
Esta comparação extremamente visual entre o vínculo que Portugal
estabelece com suas colônias e a relação que mantêm os colonos enviados à Africa
com os sinais concretos da identidade africana – a substituição das calças e das
camisas pelas mantas de couro e do português pelas línguas locais - ilustra as
características do colonialismo português e a natureza das relações colonizadorcolonizado no mundo lusófono, apontando para uma crioulização do colonizador, e
para um processo de amalgamação da cultura européia. Implacável, o texto de
Agualusa expõe, sem meias-tintas, o 'defeito' de concepção das relações coloniais
portuguesas, sua ausência de objetividade e seu caráter epidérmico quando
comparadas, sobretudo, às de outras nações européias que se lançaram no projeto
colonial.
O que é que nós colonizámos? O Brasil, dir-me-ás tu. Nem isso.
Colonizámos o Brasil com os escravos que fomos buscar a África, fizemos
filhos com eles, e depois o Brasil colonizou-se a si próprio. Ao longo de
quatro demorados séculos construímos um império, vastíssimo, é certo,
mas infelizmente imaginário. Para o tornar real sera necessario muito mais
do que a nossa consoladora fantasia de meridionais. A Inglaterra e a
França, nações cerebrais, materialistas, não compreendem, nunca hão-de
compreender, a pura e sentimental abstracção que leva um povo inteiro a
assegurar, percorrendo com a mão orgulhosa o mapa do mundo: é nosso! E
é com a Inglaterra, com a França e com a Alemanha, e ja não com a
maternal Espanha, que hoje nos teremos de bater se quisermos colonizar a
África. (AGUALUSA, 1997, p. 133)
Esta passagem concentra duas informações importantes. A primeira,
responsável por uma das caracteristicas estéticas do romance de Agualusa, e que
mencionamos no início de nosso trabalho: a capacidade de pensar o mundo lusófono
em relação à Europa e incluído no sistema colonial internacional, traço pouco
freqüente na Literatura de língua portuguesa, de modo geral. Esta atitude,
extremamente positiva para a produção literária em língua portuguesa, uma vez que a
insere numa perspectiva comparatista, resgatando-a de um lugar de confinamento de
um ambiente estritamente lusófono - e lusófilo, por certo, mas estreito para sua
compreensão -, representa, igualmente, uma posição de simetria entre Portugal e seus
pares, ao refletir sobre a cultura portuguesa e lusa num contexto europeu.
A segunda informação extremamente importante é a leitura diacrônica da
História Portuguesa e da historiografia – portuguesa, européia e colonial - presente
neste parágrafo. Nele, o narrador faz referência a dois momentos cruciais da empresa
colonial: o Segundo Império (1500-1822), no qual Portugal dividiu espaço com a
Espanha na conquista das Américas, e o Terceiro Império (1822-1975), no qual teve
como concorrentes a Inglaterra, a França e a Alemanha, o autor realizando um
movimento simultâneo de aproximação e de afastamento na linha do tempo.
Assim, situar seu narrador na segunda metade do século XIX, ponto de virada
na história do Império Colonial Português, é a estratégia estética do escritor angolano
para ocupar um lugar privilegiado de emissão de sua voz narrativa. O personagem
duplamente ficcional de Fradique Mendes – recurso de apropriação estética que
revela a antropofagização do paradigma clássico e metropolitano pela Literatura
Angolana - ocupa, deste modo, um lugar concreto na linha cronológica da História
que permite, por um lado, uma leitura crítica da evolução do processo colonial, dos
motivos que levaram ao colapso do Segundo Império Português e à eclosão do
movimento independentista no Brasil e, por outro, do ponto de virada deste processo,
com o início do Terceiro Império e o fortalecimento da presença portuguesa na
África.
Desgraçadamente Portugal espalha-se, não coloniza. Somos assim,
enquanto nação, uma forma mais rudimentar que o Bacilo de Koch: uma
estranha perversão faz com que os Portugueses onde quer que cheguem, e
temos chegado bastante longe, não só esqueçam a sua missão civilizadora,
isto é, colonizadora, mas depressa se deixem eles próprios colonizar, isto é,
descivilizar pelos povos locais. Já Pero Vaz de Caminha confessava ao
pisar as terras de Vera Cruz, a sua admiração pelos índios (e sobretudo
pelas índias): “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca,
nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que
costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que
aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si
lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós
tanto, com quanto trigo e legumes comemos.” Era a formiga invejando a
cigarra(AGUALUSA, 1997, p. 134)
As razões elencadas por Fradique Mendes resumem a desestruturação do
colonialismo português, em 1945, no final da Segunda Guerra, sendo tomado como
um marco para o início do processo de descolonização do continente africano e que,
no que diz respeito às antigas colônias portuguesas, se conclui em 1974 com a
Revolução dos Cravos, pondo fim a 48 anos de ditadura militar em Portugal.
*
Partindo de uma análise minuciosa da conjuntura histórica da segunda metade
do século XIX, quando se verifica uma superposição de dois fenômenos políticos
importantes para a definição do século XX – o surgimento do Republicanismo e o
início do processo colonial na África – podemos identificar em Nação Crioula de
que forma Portugal, alinhado às metrópoles européias, e Angola e Brasil, dois
territórios coloniais, vão compreender esse novo conjunto de informações e se
posicionar diante dos outros e de si mesmos.
Dessa forma, o autor mapeia os elementos que constituem as fundações do
mecanismo de funcionamento do sistema colonial português, sobretudo no tocante ao
Terceiro Império, e antecipa as razões que levariam ao colapso deste mesmo sistema
com a Guerra Colonial de 1975.
Fim do tráfico negreiro3, início das campanhas abolicionistas e construção do
Republicanismo, de um lado, intensificação do colonialismo na África, de outro,
Nação Crioula reúne os elementos que, aparentemente paradoxais num primeiro
olhar, definem, historicamente, a virada do século XIX e o início do século XX,
identificando as características específicas do sistema colonial português que
conduzirão Portugal à desconstrução definitiva de seu Império.
Assim, Fradique Mendes narra a sua madrinha francesa o encontro com
Arcénio Pompilio Pompeu de Carpo, português da Ilha da Madeira degredado para
Angola, e que então vive do comércio de escravos, expondo ao leitor os mecanismos
que estruturam o raciocínio do mercador. Diante da explicação de Arcénio de Carpo,
ainda que relutemos em aceitar sua retórica anti-abolicionista, presenciamos o
intrincado problema do tráfico negreiro e da lógica colonialista. O narrador expõe ao
leitor, através da composição do personagem politicamente incorreto a nossos olhos
de leitores do século XXI, a crueza da justificação do discurso escravagista e que nos
escandaliza – mas que se revela autêntico historicamente, ao ilustrar sem rodeios o
princípio que preside as ações do comerciante: o lucro.
Já compreendeu, querida madrinha, como fez fortuna o senhor Arcénio de
Carpo? Precisamente: comprando e vendendo a triste humanidade. Ou,
como ele prefere dizer, “contribuindo para o crescimento do Brasil”. Ainda
hoje, a creditar no que se comenta em Luanda, continua a trabalhar para o
crescimento do Brasil. “Os Ingleses nunca me hão-de ver de joelhos”,
assegurou excitado quando lhe perguntei se persistia na colonia o tráfico
negreiro.
Em sua opinião o movimento emancipador tem sido secretamente
financiado e organizado pelos Britânicos e Americanos do norte com o
objetivo de impedir a consolidação de uma forte potência na América do
Sul: “A América inglesa está superpovoada. Todos os anos chegam milhões
de agricultores europeus aos estados do interior. Assim é facil ser
humanista e gritar contra o tráfico. Mas o Brasil, onde o número de
colonos europeus é muito reduzido, depende inteiramente dos escravos. Se
o tráfico acabar, a agricultura brasileira entra em colapso. Ao mesmo
tempo a Inglaterra pretende arruinar as elites que amanhã poderiam
governar Angola, e a prova provada de tal aleivosia é que a armada
britânica não se limita a apresar e afundar os navios negreiros – tem feito
o mesmo a embarcações carregadas com diversos géneros de
troca”(AGUALUSA, 1997, p. 13)
Se o argumento do comerciante de escravos, que sobrevive graças ao tráfico
humano, mostra sem pudores a desfaçatez de uma classe que sobrevive graças ao
abuso do poder e à lei do mais forte, ele também exibe um dos pontos de
esgotamento do comércio tringular. Definido pela articulação de certa elite
3 Sobre o tema da escravidão negra nas Américas, sobretudo no Brasil, e o sistema de plantation no
continente americano, os estudos de Rafael de Bivar Marquese constituem uma excelente fonte de
informações.
comerciante portuguesa, mercenários africanos, e grandes latifundiários brasileiros, o
universo colonial definiu-se no Atlântico Sul4 pela união compósita dos mais
diversos e aparentemente paradoxais tipos de indivíduos, reunindo uma galeria de
personagens históricos os mais díspares, todos, no entanto, visceralmente implicados
no funcionamento de uma das atividades mais lucrativas do século XIX.
Domingo fui convidado para o Baile do Governador, acontecimento de
grande brilho, ruído e ostentação, ao qual comparece habitualmente toute
Luanda – ou seja, quem quer que nesta cidade, tendo algum capital, saiba
ler e escrever. Nos salões do palácio misturam-se comerciantes honestos e
criminosos a cumprir pena de degredo, filhos-do-país e louros aventureiros
europeus, escravocratas e abolicionistas, monárquicos e republicanos,
padres e maçons. Alguns dos mais prósperos homens de negócios de São
Paulo de Luanda iniciaram fortuna pedindo emprestadas uma poucas de
macutas com que compravam peixe para fritar, vendendo-o depois nas
feiras e mercados. Em pouco tempo as macutas tornaram-se tostões e
depois libras e finalmente contos de réis. É dificil imaginar colecção mais
interessante de tipos físicos e psicológicos, até patológicos, reunida
debaixo de um mesmo tecto.(AGUALUSA, 1997, p. 21-22)
Mesclando estrutura ficcional à precisão de dados históricos, Agualusa
resgata, além de visões distintas do 'fenômeno' sistema colonial, também discursos
que resumem as linhas-mestras que guiarão o funcionamento da engrenagem
econômica da atividade escravagista, do regime político em transição neste preciso
momento histórico - de Monárquico a Republicano no Brasil-, e da organização
social do universo lusófono, este, fundado nas relações assimétricas entre senhor e
escravo mas cujo sofisticado sistema de classes que o caracteriza, geraria inúmeras
figuras intermediárias, responsáveis pela manutenção de relações no mundo do
trabalho livre, como é o caso dos agregados.5
Neste sentido, apresenta as reflexões do comerciante Arcénio de Carpo, desta
vez, não do ponto de vista da identidade nacional como vimos anteriormente, mas do
ponto de vista das relações de classe
Um dos homens, com a cabeleira coberta por um magnífico chapéu de
coco, chegou-se a nós e apontando o garoto gritou qualquer coisa que eu
não compreendi. Arcénio riu-se; “pergunta se queremos comprar um
escravo.” Recusei indignado e o garoto lançou-se aos meus pés chorando e
lamentando-se. “Se não o compramos, eles matam-no”, explicou Arcénio:
“era exactamente isto que eu lhe queria dizer. Ao comprar um escravo
estou a salvar-lhe a vida”. Em sua opinião o tráfico negreiro é uma forma
de filantropia. Ele, como o pai, ama os negros e só por isso os vende para o
Brasil. Acredita que a escravatura tem os dias contados na grande pátria
de Pedro II e que os desgraçados, uma vez libertos, estarão melhor lá do
que estão agora aqui.(AGUALUSA, 1997, p. 63)
Prosseguindo em suas peripécias rocambolescas pelo continente africano,
4 Um dos melhores estudos sobre o funcionamento do comércio negreiro no Atlântico Sul é O Trato
dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul, de Luiz Felipe de Alencastro.
5 Sobre a complexidade da construção das classes sociais, sua importância na dinâmica da
sociedade brasileira e suas implicações na elaboração do sistema literário brasileiro, são de
consulta obrigatória os estudos de Roberto Schwarz, Machado de Assis: Um Mestre na Periferia
do Capitalismo, Ao Vencedor as Batatas, entre outros.
Fradique Mendes resgatará sua amada do cativeiro no qual a mantinha Gabriela
Santamarinha, partindo para o Brasil, contra sua vontade, a bordo do Nação Crioula,
último negreiro a atravessar o Atlântico. Ao relatar a viagem a sua madrinha,
menciona o episódio da cantoria, pelos marinheiros, de versos de Castro Alves, poeta
abolicionista brasileiro. Os versos de Castro Alves, cantados por um marujo vindo da
África e agora a caminho do Brasil, resumem o alcance dos ideais abolicionistas e
republicanos no fim do século XIX, bem como sua forte penetração junto às camadas
populares. Versos de grande poder mnemônico, os poemas de Castro Alves
inflamavam o povo e se transmitiam oralmente também junto aos escravos.
Atravessando o Atlântico, os versos do Navio Negreiro explicitam o clima
efervescente e a forte pressão exercida por intelectuais como Joaquim Nabuco e o
jornalista José do Patrocínio, ambos visitantes do Engenho Cajaíba, onde se
estabelecem Fradique Mendes e Ana Olímpia. Assumem, no romance de Agualusa, o
papel de contraponto ao olhar de uma certa elite, representada pelo mercenário
Arcénio de Carpo, símbolo de uma classe social implicada no sistema colonial e
destinada ao desaparecimento.
Impressionou-me também nesta estranha viagem um episódio que não
resisto a contar-lhe: uma noite um dos marinheiros, moço de voz quente,
começou a cantar, acompanhado à viola, uma moda triste, na qual julguei
reconhecer, espantado, alguns versos de Castro Alves: “Senhor Deus dos
desgraçados!/Dizei-me vos, Senhor Deus/Se eu deliro...ou se é
verdade/Tanto horror perante os céus?!.../Oh mar, por que não
apagas/Com a esponja de tuas vagas/Do teu manto este borrão?/...Meu
Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta/Que impudente na gávea
tripudia?...Musa...chora, e chora tanto/Que o pavilhão se lave no teu
pranto!.../Auriverde pendão de minha terra/Que a brisa do Brasil beija e
balança/Estandarte que a luz do céu encerra/Tu que, da liberdade apos a
guerra/Foste hasteado dos heróis na lança/Antes te houvessem roto na
batalha/Que servires a um povo de mortalha!(AGUALUSA, 1997, p. 73)
Num diálogo intertextual, podemos elencar um conjunto de textos escritos
neste momento histórico e que fizeram parte das páginas mais lidas no século XIX,
denunciando as práticas que embasaram o sistema colonial no universo lusófono e
que moveram grandes somas de dinheiro, deslocando um imenso número de pessoas,
enriquecendo e arruinando famílias, empresas e nações.
O livro de Agualusa, concluindo-se em 1900, ilustra, metaforicamente, o
ponto de virada na história do sistema colonial, atestando a construção da República
no Brasil e antecipando a desconstrução definitiva do Império português.
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