Elizangela Chaves Dias - Sapientia

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Elizangela Chaves Dias
Sarai como esposa e irmã de Abrão
um estudo exegético de Gn 12,10-13,1a
MESTRADO EM TEOLOGIA
SÃO PAULO
2011
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Elizangela Chaves Dias
Sarai como esposa e irmã de Abrão
um estudo exegético de Gn 12,10-13,1a
MESTRADO EM TEOLOGIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de MESTRE em Teologia sob a orientação
do Prof. Doutor Matthias Grenzer.
SÃO PAULO
2011
PÁGINA DE APROVAÇÃO
Banca Examinadora
________________________________________
________________________________________
________________________________________
DEDICATÓRIA
Às Irmãs Missionárias de São Carlos
Borromeo – Scalabrinianas, às formandas,
aos Leigos Scalabrinianos e aos migrantes.
AGRADECIMENTOS
Em agradecimento e reconhecimento por todos os que, de diversos modos, fizeram parte desta
etapa de minha vida pessoal e acadêmica.
Primeiro a Deus, de quem provém todo o conhecimento, fonte de ciência e sabedoria.
Aos meus pais pela vida, apoio e incentivo.
A congregação das Irmãs missionárias de São Carlos Borromeo - Scalabrinianas, na pessoa da
Superiora Provincial, Ir. Neusa de Fátima Mariano, que me motivou e encaminhou para o
estudo e aprofundamento acadêmico científico, bem como as Irmãs de seu conselho pelo
incentivo e interesse.
As co-irmãs de minha comunidade, pelo respeito e paciência, pois a pesquisa exige tempo e
dedicação e isto não seria possível sem a colaboração de cada uma.
Ao prof. Dr. Matthias Grenzer, que me acolheu nesta instituição, acompanhou meu trabalho,
motivou e valorizou a minha investigação.
Ao prof. Dr. Bóris, que com sua dedicação, sua maestria e solicitude demonstrou amor pela
pesquisa e interesse pelos estudantes, sempre positivo colaborou para o desenvolvimento e
êxito desta pesquisa.
Ao prof. Vitório, que transmitiu o amor pelo estudo das Escrituras Hebraicas.
Aos colegas Frei Tony e Ir. Jilvaneide, que iniciaram este caminho comigo e que embora
imersos em seus trabalhos e pesquisa sempre foram muito solícitos em colaborarem comigo.
Ao Prof. João Ultramari, Ir. Erta Lemos, Ir. Sandra Maria Pinheiro e Morah Rivka que dedicaram
seu tempo para ler, comentar, confrontar e corrigir este trabalho. Agradeço de coração.
Aos professores que compõem a banca, por aceitarem o convite e por lerem este trabalho,
acolho com muita gratidão todas as observações.
A participação e contribuição de cada um me faz crer que, se há algum mérito neste trabalho
eu não o alcancei sozinha, por isso tenho a alegria de compartilhá-lo com todos.
“A Sabedoria é radiante, não fenece, facilmente
é contemplada por aqueles que a amam. Ela
mesma se dá a conhecer aos que a desejam.
Quem por ela madruga não se cansa: encontra-a
sentada à porta. Meditá-la é a perfeição da
inteligência”. (Sb 6,12-15)
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo apresentar um estudo exegético de uma narrativa
bíblica: Gênesis 12,10-13,1a. Seguindo o estilo de comentário, a pesquisa avança junto à
tradição bíblica em questão. Em cada capítulo, são realizadas duas investigações: 1) um
estudo linguistico-literário, que compreende tradução, análises morfológico-sintática,
estilística e narrativa; e 2) um estudo histórico-teológico, que se serve de pesquisas referentes
ao ambiente histórico-cultural bem como à teologia presente no texto. Neste sentido, esta
pesquisa tem como hipótese a questão: “Sarai como esposa e irmã de Abrão”. Ao longo do
estudo, será possível constatar uma crescente compreensão do conteúdo da expressão „esposa
e irmã‟. Diante dos argumentos encontrados – juntando reflexões histórico-arqueológicas e
bíblico-teológicas – parece ser plausível dizer que Sarai é esposa e irmã de Abrão, não
somente em sentido denotativo, mas também metafórico. Mais ainda: esta expressão se torna
chave de uma interpretação intertextual, pois „irmã‟ e „esposa‟ são figuras de peso teológicosimbólico na linguagem bíblica.
Palavras chaves: Sarai, Abrão, esposa, irmã, narrativa, estilística.
ABSTRACT
This paper aims to present an exegetical study of a biblical narrative: the Genesis 12,10-13,1a.
It follows the style of commentary. The research advances with the biblical tradition in
question. In each chapter two investigations are carried out. 1) a linguistic and literary study
which includes translation, morphological analysis, syntactic, stylistic and narrative; and 2) a
historical-theological that serves as a research on the historical and cultural context, as well
as, the theology in the text. In this sense, this research has hypothesized the question: 'Sarai as
wife and sister of Abraham'. Throughout the study it is possible to visualize a growing
understanding of the scope of the term 'wife and sister'. Based on the arguments found, adding
reflections on historical-archaeological and biblical-theological, it seems plausible to say that
Sarai is Abraham´s wife and sister not only in the denotative sense, but also in a metaphorical
one. Moreover, this expression becomes a key to the interpretation as 'sister' and 'wife' that are
important characters in the theological and symbolic language of the bible.
Keywords: Sarai, Abraham, wife, sister, narrative, style.
SIGLAS E ABREVIAÇÕES
AT = Antigo Testamento
BHS = Bíblia hebraica stuttgartensia
D = Deuteronomista
DBHP = SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário bíblico hebraico – português. 3 ed. São Paulo:
Paulus, 2004.
DITAT = HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K. Dicionário
internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
E = Eloísta
GLAT = BOTTERWECK, G. Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). Grande lessico
dell´Antico Testamento.
J = Javista
NT = Novo Testamento
P = Sacerdotal
s = seguinte
ss = seguintes
UNFPA = Fundo de População das Nações Unidas
v. = versículo
vv. = versículos
Vol. = Volume
x = vezes
SUMÁRIO
SUMÁRIO ............................................................................................................................ 9
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
CAPÍTULO I ...................................................................................................................... 15
FOME NA TERRA E DESCIDA AO EGITO ..................................................................... 15
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,10-11d .................................................................. 16
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático ............................................................ 16
1.2 Análise estilística ................................................................................................ 25
1.3 Análise narrativa ................................................................................................ 27
2. Estudo histórico- teológico .............................................................................................. 30
2.1 A personagem Abrão .......................................................................................... 30
2.2 A fome na terra ................................................................................................... 32
2.3 Desceu ao Egito.................................................................................................. 34
2.4 Morar como imigrante ........................................................................................ 36
CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 38
CAPÍTULO II .................................................................................................................... 40
SARAI MULHER DE BELA APARÊNCIA .................................................................... 40
1. Estudo linguístico-literário de Gn 10,11e-13d ................................................................. 41
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático ............................................................ 41
1.2 Análise estilística ................................................................................................ 50
1.3 Análise narrativa ................................................................................................ 53
2. Estudo histórico-teológico ............................................................................................... 56
2.1 A identidade de Sarai.......................................................................................... 56
2.2 Sarai esposa de Abrão ........................................................................................ 58
2.3 Sarai mulher bela ............................................................................................... 59
2.4 Beleza, vida e morte............................................................................................ 61
CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 63
CAPÍTULO III................................................................................................................... 66
INTERVENÇÃO DO SENHOR POR CAUSA DE SARAI .............................................. 66
1. Estudo linguístico-literário Gn12,14a-18b ...................................................................... 67
1.1 Tradução e análise morfológico-sintático ........................................................... 67
1.2 Análise estilística ................................................................................................ 75
1.3 Análise narrativa ................................................................................................ 80
2. Estudo histórico- teológico .............................................................................................. 84
2.1 O Egito para Israel ............................................................................................ 84
2.2 O Faraó.............................................................................................................. 87
2.3 Salvo pelos méritos de Sarai ............................................................................... 89
2.4 Intervenção do SENHOR por causa de Sarai ...................................................... 94
CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 97
10
CAPÍTULO IV ................................................................................................................... 99
SARAI IRMÃ E ESPOSA DE ABRÃO ............................................................................ 99
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,18c-19................................................................. 100
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático .......................................................... 100
1.2 Análise estilística .............................................................................................. 104
1.3 Análise narrativa .............................................................................................. 106
2. Estudo histórico-teológico ............................................................................................. 108
2.1 Estatuto da irmã-esposa ................................................................................... 108
2.2 Sarai esposa e irmã de Abrão ........................................................................... 111
2.3 Sarai protótipo do povo da Aliança .................................................................. 115
2.4 Um novo olhar sobre Sarai ............................................................................... 118
CONSIDERAÇÕES ....................................................................................................... 121
CAPÍTULO V .................................................................................................................. 123
EXPULSÃO E SUBIDA ................................................................................................ 123
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,20-13,1a.............................................................. 124
1.4 Tradução e estudo morfológico-sintático .......................................................... 124
1.2 Análise estilística .............................................................................................. 126
1.3 Análise narrativa .............................................................................................. 129
2. Estudo histórico-teológico ............................................................................................. 131
2.1 Incidência do caso da esposa irmã ................................................................... 131
2.2 Releitura do Êxodo ........................................................................................... 135
2.3 Subida do Egito ................................................................................................ 139
2.4 Atualidade da narrativa .................................................................................... 140
CONSIDERAÇÕES ....................................................................................................... 144
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 146
BÍBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 150
11
INTRODUÇÃO
Contar histórias é uma atividade presente na vida do homem desde a sua origem. Relatar
um fato da vida, discorrer sobre um evento, narrar uma partida de futebol, ler ou ouvir uma
novela, contar piadas ou contos de fadas são práticas quotidianas de pessoas comuns. Tendo a
Bíblia em mãos o leitor, livre de preconceitos, provavelmente perceberá que o Livro Sagrado não
é um tratado de ciências, história ou geografia, e também notará que a mensagem revelada não foi
transmitida sob forma de uma sabedoria atemporal. E poderá até mesmo surpreender-se ao
verificar que grandes momentos da Revelação foram transmitidos sob forma narrativa.
Segundo Ska1 existe uma afinidade entre as narrações bíblicas e a literatura de fiction,
pois ambas fazem parte do mesmo gênero narrativo. De fato, entre os elementos constitutivos
do gênero narrativo está a dimensão temporal, na qual a sucessão dos elementos é relacionada
a uma cronologia e não somente a estruturas de linguagem como a dedução ou a persuasão.
Na narrativa, o leitor reconstrói a experiência no tempo de sua leitura. Assim, no plano da
forma literária, é possível identificar uma dimensão sine qua non da revelação bíblica, sua
inserção na história e no tempo.
A narrativa ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e
de personagens, não pretende dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que
preencha uma série de lacunas. O texto se apresenta como uma máquina preguiçosa pedindo
ao leitor que faça uma parte de seu trabalho 2.
1
Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa. In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.) – GARGANO,
Innocenzo – SKA, Jean Louis – PISANO, Stephen. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola,
2000, p. 126-127.
2
Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 9.
12
Este estudo parte do pressuposto de que o autor da narrativa a ser estudada fez uso de
uma das antigas formas literárias da cultura hebraica, a narrativa histórica. Essa apresenta uma
síntese da relação da Aliança entre os hebreus e Deus, concentrada nos pontos altos do
passado do povo. É uma resposta indireta à pergunta: Quem somos e o que representamos?
De onde viemos e como chegamos aqui? 3.
As narrativas do Antigo Testamento têm natureza variada. Por isso, não há uma forma
literária singular que se possa denominar „narrativa veterotestamentária‟. O que há em comum
é o fato de não terem sido compostas originalmente apenas para preservar o conhecimento de
que certas coisas aconteceram, servindo sim, para sustentar uma tese teológica ou para ilustrar
um evento significativo no processo do povo da Aliança4.
Por diversos fatores, costuma ser difícil para os leitores atuais a percepção do
significado que pode ter sido óbvio para os autores antigos e seu público. Um exemplo disto
são as três narrativas da „esposa-irmã‟ (cf. Gn 12,10-13,1a; 20,1-18; 26,1-17), nas quais o
patriarca, para viver temporariamente num país estrangeiro, diz que a esposa é sua irmã,
enganando o rei estrangeiro, salvando a si mesmo e lucrando muitos bens.
Diante de tal fato, caberia o questionamento se esses relatos que apresentam grandes
figuras do passado de Israel, teriam como objetivo propor ao leitor modelos de virtude. Os relatos
são „memórias‟ dos fundadores e heróis do passado. Que esses tenham tido defeitos ou não, é
secundário, diante do fato de serem antepassados e terem desempenhado um papel determinante
na formação do povo. Os relatos não estão preocupados unicamente em oferecer modelos morais
a serem imitados. Pelo contrário, oferecem experiências para compartilhar. O drama da
personagem não tem a pretensão única de edificar, quer comover. O leitor não é convidado a
julgar, reprovar ou condenar. O relato quer convocar o leitor a entrar nas aflições da personagem,
3
4
Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2003, p. 20.
Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30.
13
a participar do drama, a recompor uma experiência, a se tornar ativamente consciente das forças
que o confronta e de seguir nos tempos da leitura as etapas de seu percurso5.
A perícope bíblica delimitada para o presente estudo sincrônico de abordagem literária
é uma narrativa. Esta se encontra em Gênesis 12,10–13,1a e se localiza entre o chamado de
Abrão e sua separação de Ló. Seguindo o estilo de comentário, em cada capítulo, será
realizada duas investigações: 1) Estudo linguístico-literário e 2) Estudo histórico-teológico.
Como esse texto massorético6 oferece poucas variantes com relação aos escritos antigos,
quando aparecerem as variantes essas serão apresentadas na nota de rodapé.
A segmentação do texto para o aprofundamento segue a lógica da análise narrativa. No
início, primeiro capítulo, é feita uma apresentação, a fim de introduzir o leitor no contexto da
história (cf. vv. 10-11d). Em seguida, no segundo capítulo, o narrador passa a voz a Abrão. Neste
capítulo o leitor começa a perceber os conflitos e as complicações em que estão se envolvendo o
patriarca e sua esposa (cf. vv. 11e-13). Segue um elevado elogio à beleza da matriarca, o futuro de
Sarai é comprometido, e também a promessa de descendência e a aliança parecem ameaçadas,
chegando ao clímax da narrativa, (cf. vv. 14-18b) no terceiro capítulo. Nesse, o narrador retoma a
voz e apresenta o momento em que Deus intervém em favor dos „indefesos‟. O quarto capítulo
delineia o desfecho (cf. vv. 18c-19) onde o narrador passa a voz ao Faraó e este anuncia a verdade
sobre Sarai e Abrão. Para concluir Abrão e Sarai podem continuar a caminhar (cf. 12,20–13,1a)
rumo à terra que o Senhor lhes prometera, no quinto capítulo.
5
Cf. SKA, Jean Louis. Como ler o Antigo Testamento? In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.). Metodologia do
Antigo Testamento, 2000, p. 30-33.
6
Massoretas eram judeus estudiosos que se dedicavam a tarefa de guardar a tradição oral da vocalização e
acentuação correta do texto bíblico. À medida que um sistema de vocalização foi sendo desenvolvido, entre VI e
X dC, o texto consonantal que receberam dos soferim (escribas) foi sendo por eles cuidadosamente vocalizado e
acentuado. Além dos pontos vocálicos e dos acentos, os massoretas acrescentavam também ao texto as massoras
marginais (notas) magna, parva e finalis, calculadas pelos soferim. Essas massoras (tradições) eram estatísticas,
análises e correções colocadas ao lado das linhas, ao fim das páginas e ao final dos livros. Cf. PISANO, Stephen.
O texto do Antigo Testamento. In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.). Metodologia do Antigo Testamento, 2000,
p. 45-46; FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica: introdução ao texto massorético. São
Paulo: Vida Nova, 2003, p. 142-145. 249.
14
Algumas observações metodológicas: quando se fala ou se faz alguma citação Bíblica,
com exceção do texto em estudo, se usará o texto da Bíblia de Jerusalém, das edições Paulinas, na
versão em português do ano de 1981. Para o texto em estudo, portanto, se usará a versão hebraica,
da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, e a tradução é pessoal como resultado do estudo. A análise
morfológica e sintática, bem como a tradução do texto em estudo, virá destacada em itálico no
corpo do texto para facilitar a visualização. Mesmo sabendo que o uso de aspas simples é
endereçado a citações dentro de outras citações se fará uso das mesmas também quando se
pretende dar destaque a uma palavra ou expressão.
15
CAPÍTULO I
FOME NA TERRA E DESCIDA AO EGITO
Nas Sagradas Escrituras não são raras as narrativas e lendas que falam da fome em Canaã,
especialmente como motivo para a emigração (cf. Gn 26,1; 43,1; 47,4; Rt 1,1; 1Rs 4,38; 8,12; Sm
21,1). Por outro lado, o Egito é a terra de ricos grãos, a terra do prazer e da cultura, visada por
seus vizinhos. Especialmente em tempos de fome as pessoas buscaram refúgio e grãos no Egito,
cuja fertilidade dependia não da chuva como em Canaã, mas apenas do Nilo, pois ele pode gerar
riqueza todo o ano, enquanto toda a Canaã lamenta as más colheitas.
Desceram ao Egito, pois, saindo de Canaã se vai para baixo (cf. v. 10b). Voltando para
Canaã se sobe. O narrador sabe do que se trata ao ilustrar tal detalhe. O casal está na fronteira,
uma situação interessante (cf. Gn 31,52; Rt 1,7 ss), uma posição difícil. A fome os leva a ir
para o Egito. Mas ali são estrangeiros sem proteção e direito. Abrão tem medo de ser morto
por causa de sua esposa bonita. Neste dilema, ele encontra um caminho, sagaz, simples e
eficaz, o qual o leitor é convidado a acompanhar atentamente.
16
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,10-11d
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático
#r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w:7
10a Aconteceu uma fome na terra,
O texto inicia com yhiîy>w:, esta é uma fórmula usual para abrir um texto sob seu aspecto
narrativo. Esta é a primeira indicação que situa o leitor dentro do estímulo da leitura e
introduz a narrativa. O yhiîy>w: inicial instala o leitor num fluxo de continuidade.
No livro do Gênesis esse verbo é atestado 316 vezes no qal, e 122 vezes como yhiîy>w:. Em
geral o verbo hy"h' é traduzido do hebraico para o português pelos verbos ser e acontecer, mesmo
que os motivos estilístico aconselhem outras traduções. Assumindo o sentido de existir, subsistir,
serve para indicar o perdurar, ou seja, indicar ou situar no tempo de um acontecimento ou uma
condição. Nos textos de caráter narrativo uma parte considerável de atestações são construídas a
partir das locuções resultar, acontecer, suceder como uso introdutivo na forma do imperfeito ou
do perfeito consecutivo. Nestes casos trata-se de locuções introdutivas formais, também chamadas
de função expletiva, ou com especificações relacionadas à situação temporal8.
Segundo Schökel, em geral, este verbo expressa uma constatação. O verbo pode ser o
predicado de uma oração: há, existe, acontece. O sentido de suceder é comum em narrativas,
muitas vezes com função expletiva9. Nas construções yhiîy>w: e hy"h'w> prescindindo da função de
auxiliar, obtêm-se dois grupos ternários: existir, haver, suceder; ser, estar, tornar-se. Cada um dos
7
Construção das frases verbais em hebraico: verbo + sujeito + objeto + adjunto. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso.
Fundamentos para exegese do Antigo Testamento: manual de sintaxe hebraica. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 108.
8
Cf. BERNHARDT, K. H. hy"h'. In: BOTTERWECK, G. Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). GLAT.
Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 429-435.
9
A função expletiva: elemento de caráter estilístico que serve somente para realçar. Em construções no passado
e no futuro, pode introduzir uma clausula subordinada antes da principal, o verbo mais o infinitivo, ex.: Gn
12,14, quando chegar, ao chegar. Quando a função é expletiva, não é preciso traduzir o verbo hy"h'; algumas vezes
pode-se traduzir com a copulativa e, ou indicando consequência então. Nota-se que a tradução do verbo hy"h' se
distancia da equivalência formal ser/estar/tornar-se. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hy"h'. In: DBHP. 3. ed. São
Paulo: Paulus, 2004, p. 169-176.
17
seis elementos pode ser tomado como referência de um paradigma gerado por uma série de
operações: por negação: ex. não haver = faltar; por partículas negativas: ex. ter; negativo carecer;
por transformação: o intransitivo ficar no transitivo deixar. As operações indicadas podem ser
exigidas pela língua receptora ou recomendadas por razões de estilo. O resultado é uma grande
variedade de equivalências ou traduções possíveis do verbo hebraico hy"h' 10para o português.
O verbo hy"h' é encontrado sete vezes neste texto (cf. vv. 10a, 11a, 12a, 12e, 13c, 14a e
16b), das quais quatro vezes (cf. vv. 10a, 11a, 14a, 16b) se encontram na forma yhiîy>w: imperfeito
consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal e sempre na fala do narrador.
Dessas, observa-se no texto massorético que duas possuem o acento disjunto11 (cf. vv. 11a e
14a) zaquef gadol § e as outras duas não (cf. vv. 10a e 16b) possuem o assento disjuntivo. Se é
verdade que os assentos massoréticos influenciam na semântica e na sintaxe, nota-se que as
formas com acentos disjuntivos assumem função expletiva, enquanto as outras assumem
função de predicado.
Para a tradução faz-se necessário observar se o verbo apresenta uma ação pontual ou
continuada, no presente caso nota-se que o verbo faz parte dos elementos que se designam
quadro ou cenário da narrativa, ou seja, dados estáticos. Segundo Ska12, o quadro ou cenário
com frequência são descritos pelos recursos a proposições especificantes (função expletiva do
verbo), imperfeitos ou também outros tempos segundo o caso. Observando estes dados o
verbo foi traduzido para o pretérito perfeito da língua portuguesa, pois o quadro da narrativa
pertence aos dados estáticos, sendo assim, traduz-se por aconteceu.
10
As orações sem sujeito são formadas pelos verbos impessoais: haver, significando existir, acontecer, realizarse; fazer, ser e estar, indicando tempo transcorrido ou tempo relativo ao fenômeno da natureza, nevar, chover.
Portanto é necessária atenção na tradução do verbo hy"h' e do sentido que ele exerce na frase.
11
Mesmo o estudo não sendo específico sobre os acentos massoréticos ocorre notar que, segundo Edson de
Faria, além da vocalização e das notas da Massorá, os massoretas adicionaram ao Texto Massorético sinais de
acentuação e estes possuem as seguintes funções: 1) marca a sílaba tônica de cada palavra do versículo; 2)
marcam a divisão semântica e estabelecem relações sintáticas; 3) marcam a melodia das palavras dos versículos.
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 120-124.
12
Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p.130-132.
18
Segue o termo b['r"13 este é apresentado como substantivo masculino singular, ele assume
a função nominativa da frase, ou seja, o sujeito. Como o termo não está acompanhado de artigo,
traduz-se do hebraico para o português como sujeito indefinido uma fome. Essa palavra usual para
fome ocorre mais de 100x no AT14, podendo também ser traduzida por fome, carestia,
necessidade, penúria15.
No texto a palavra #r<a'_B' é composta de uma preposição B, um artigo h; e um
substantivo masculino singular #r<a,. Esta palavra aparece aproximadamente 2400x no AT. Os
dois principais sentidos da palavra são: cosmológico e designação territorial específica,
principalmente com referência à terra de Israel16. Sintaticamente17 esta palavra se distingue
como um genitivo adverbial, ou melhor, adjunto adverbial, classificado como genitivo
locativo. Este caso indica o local ou a esfera em que algo ou alguém se situa. Quando a frase
se refere a uma localização, a construção preposicional básica é composta de B, portanto, é
traduzida do hebraico para o português por na terra.
Sob a palavra #r<a'_B' encontramos o acento chamado atnah +, este é o principal divisor
do versículo, o que indica que aqui é introduzida uma pausa maior. Pode ser expresso, em
português, por meio de uma vírgula. Novamente há uma nota entre este termo e o anterior
referente à massorá parva18 que significa versículo incomum.
13
Entre este termo e o termo anterior encontra-se o sinal ê cicerllus, que remete a uma nota massorética bo na
massorá parva, este sinal representa o número dois e significa que a construção se encontra somente duas vezes
na Bíblia. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 96.
14
Cf. WHITE, Willian. b['r". In: HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K.
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1437.
15
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. b['r". In: DBHP, 2004, p. 624.
16
Cf. HAMILTON, Victor P. #r<a,. In: DITAT, 1998, p. 125.
17
Na oração o substantivo pode aparecer nos casos: nominativo, acusativo, dativo ou genitivo e assumir diversas funções
sintáticas. São genitivos a) as cadeias de construto; b) os sufixos pronominais em substantivos ou preposições; c) os
substantivos regidos por preposições. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo
Testamento, 1998, p. 18, 21, 117; WALTKE, Bruce K – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico. São
Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006, p. 136-137.
18
doxym qowsp
19
‘hm'y>r:’cm. i ~r"Ûb.a; dr<YE‚w:
10b E desceu Abrão para o Egito
A oração inicia com o verbo dr:y" que significa descer, ir para baixo, baixar, marchar
abaixo, pôr-se. O verbo dr<YE‚w: é imperfeito consecutivo19- terceira pessoa do masculino
singular do qal. O verbo é traduzido para o pretérito perfeito do português, portanto desceu,
por apresentar uma ação pontual do sujeito ~r"Ûb.a;, Abrão20.
A trama desperta curiosidade no leitor, o qual é levado a perguntar para onde desceu, e
segue a resposta ‘hm'y>r:’c.mi, em hebraico essa forma designa o Egito, encontra-se no dual,
provavelmente identificando as duas divisões básicas daquele país: o alto Egito ao sul e o
baixo Egito ao norte, região do delta do Nilo. Nota-se a presença do sufixo diretivo no final
conhecido como he locale h 21
' , resultando na preposição que indica a direção para qual desce
Abrão, ou seja para o Egito.
~v'ê rWgæl'
10c Para imigrar ali,
Após duas orações coordenadas o leitor se depara com uma oração subordinada
adverbial de propósito, formada pela preposição l. mais um verbo no infinitivo construto rWg e
um advérbio ~v'ê, nesta frase, com sentido locativo.
19
O wav consecutivo normalmente denota sequência numa narrativa, mas pode indicar também uma sequência lógica ou
uma ação que é anterior ao verbo precedente, denominado por alguns linguistas de narrativa descronologizada. Cf.
WEBER, Carl Philip. w". In: DITAT, 1998, p. 371-372.
20
O nome de Abrão se tornará Abraão em Gênesis 17,5. O nome é atestado no Oriente próximo antigo, no XX sec.
a.C. Popularmente o nome Abraão significa pai de uma multidão. Mas, existem três possibilidades etimológicas: 1)
em nexo com o acádio ´abam-rama, amais o pai (exortação ao neonato e aos seus irmãos); 2) interpretando ram como
excelso, de origem semítica, o pai é excelso e 3) a interpretação teofânica, ´ab-rami, meu pai é exaltado (é grande em
relação ao seu). Cf. CLEMENTS, R. E. ~r"Ûb.a;. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 112;
VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda: Gn 12, 1-25,11. São Paulo: Loyola, 2000, p. 25.
21
O acusativo no hebraico pode assumir funções adverbiais, equivalendo de maneira genérica a um adjunto
adverbial. Neste caso é presente um acusativo terminativo, que indica o local para onde alguém ou algo se dirige.
Destaca-se ainda a presença do sufixo h ' denominado he-locale, esse é usado para indicar a direção de um verbo de
movimento. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 21,
23-24. O he-locale pode ser acrescentado a substantivos comuns ou advérbios de lugar. Cf. KELLEY, Page H.
Hebraico bíblico: uma Gramática Introdutória. 7. ed. São Leopoldo: SINODAL – FACULDADES EST, 1998, p.
179-180; BARTELT, Andrew H., Gramática do hebraico bíblico: fundamentos. Canoas: ULBRA, 2006, p. 124.
20
Em hebraico a preposição l.; para, em, com relação a, de, por, desde; equivale ao
caso dativo. Esta preposição pode indicar a direção para onde um objeto se dirige em seu
movimento físico. Ela exprime localização no tempo e/ou no espaço, indica finalidade. A
combinação l. + infinitivo construto, pode ser usada como complemento verbal ou para
introduzir uma oração subordinativa. As orações infinitivas podem ser de tipos variados, ou
seja: propósito, resultado, temporal ou final 22. O sujeito do infinitivo pode ser o sujeito do
verbo principal ou um substantivo não envolvido naquela oração.
`#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi(
10d Porque pesada era a fome na terra.
A conjunção yKi( pode assumir diversas funções na tradução: introduzir orações
subordinativas temporais, causais, concessivas, consecutivas e uso adverbial ou enfático. Nesta
narrativa é identificada como uma conjunção subordinativa causal e acompanhada de um adjetivo
masculino singular dbeîk', traduzido do hebraico para o português pelo adjetivo pesada. O adjetivo
em uso predicativo concorda em gênero e número com o substantivo que qualifica. Em orações
nominais, como essa, o adjetivo precede o substantivo que qualifica23. A palavra que segue
apresenta um diferencial no substantivo b['Þr"h' definido pelo artigo em relação a presença no v. 10a
b['Þr". O sinal massorético ` 24sof passuq indica o fim do versículo.
yhi§y>w:
11a E aconteceu
O versículo inicia com o verbo yhi§y>w:, o mesmo já analisado anteriormente como imperfeito
consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal. Foi dito que este verbo, entre outras
22
Cf. WALTKE, Bruce K- O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 600, 605-607;
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 81-82.
23
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 143-145, 28.
24
FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 121.
21
funções, é utilizado para introduzir uma narrativa, todavia a esta altura a narrativa já foi introduzida.
Sendo assim, o verbo nesta posição ganha função temporal, ou seja, indica uma mudança de tempo
na narrativa e simultaneamente resgata em si tudo o que foi dito anteriormente.
O uso do verbo neste versículo assume uma função expletiva dando certa ênfase ao
que segue. Seu uso seria comparado ao de uma interjeição e poderia até mesmo ser suprimido,
pois não serve como predicado da oração. O mesmo está significado por um acento
massorético disjuntivo zaqef gadol 25
§ , o qual acentua a função expletiva do yhi§y>w:, traduzido do
hebraico para o português por e aconteceu.
byrIßq.hi rv<ïa]K;
11b
Quando se aproximava
A oração inicia com uma conjunção rv<ïa]K;26 que pode significar quando, como, de
acordo com; e pode também indicar uma força causal visto que, por causa de. No texto é
identificada como uma conjunção subordinada temporal, traduzida do hebraico para o
português por quando. Sendo a função de uma conjunção ligar duas orações ou dois termos
semelhantes, esta introduz uma oração subordinada temporal. O versículo não só se abre com
uma indicação de mudança de tempo denotado pela fórmula introdutória yhi§y>w:, mas de fato
apresenta uma mudança de tempo indicada pela conjunção temporal que introduz uma oração
subordinada temporal27.
O verbo br"q: pode ser traduzido do hebraico para o português como aproximar-se,
acercar-se, apresentar, juntar, agregar. Pode assumir sentido espacial ou temporal. O verbo
25
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
Essa conjunção quando usada para introduzir uma oração subordinada denota que a situação é contemporânea,
ou seja, a relação temporal da oração principal com a da oração subordinada é de contemporaneidade. Cf.
WALTKE, Buce k. – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 643.
27
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 143; OSWALT,
John N. rv<ïa]K. In: DITAT, 1998, p. 693.
26
22
byrIqß .hi28 é um perfeito – terceira pessoa do masculino singular do hifil. Mesmo estando no
hifil, ou seja, que tem por característica ser um causativo do qal, no presente caso assume uma
voz reflexiva, nesta voz o sujeito é ao mesmo tempo agente e paciente da ação, isto é, pratica e
sofre a ação, portanto pode ser traduzido no português por se aproximava. Todavia resta um
pouco de suspense sobre quem ou o que se aproximava: Abrão ou o tempo?.
hm'y>r"+c.mi aAbål'
11c
para chegar ao Egito,
Este verbo awb é um dos que mais ocorre no texto massorético, corresponde a muitos
significados em português, diferenciados segundo alguns critérios: entrar, meter-se; transpor;
chegar, acercar-se; ir, vir, voltar; apresentar-se, comparecer, incorporar-se, acudir; incorrer; atacar;
suceder, cumprir-se; futuro, vindouro29. Em sentido físico indica o movimento em relação com
seu termo. Para diferenciar seu sentido toma-se como critério a relação do móvel com o limite do
referencial espacial. Se, superado o referencial se diz entrar; a passagem do limite será transpor;
tocá-lo é chegar; maior distância é acercar-se; sem definir distâncias é ir ou vir. Em Gênesis
12,11c tem-se a idéia de que se estava chegando, ou seja, bem próximo ao ponto de referência30.
No texto encontra-se aAbål', infinitivo construto do qal. O infinitivo construto aparece
com a preposição l.31 em vários casos complementares e explicativos, geralmente seu
significado é de propósito, meta, ou resultado. Ele possui qualidades de substantivos ou
verbos, no caso para chegar assume a função de um verbo em uma oração subordinada
adverbial final.
28
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. br"q;. In: DBHP, 2004, p. 590. Segundo Lambdin, o uso estativo deste verbo no
hifil não é muito comum (Qal br"q; aproximar-se / Hifil byrIßq.hi estar próximo, a ponto de „fazer algo‟). Cf.
LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 257; COPPES,
Leonard J. br"q;. In: DITAT, 1998, p.1367.
29
Cf. MARTENS, Elmer A. awb. In: DITAT, 1998, p. 155.
30
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. awb. In: DBHP, 2004, p. 91.
31
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 81, 104;
KELLEY, Page H. Hebraico bíblico, 1998, p. 214-218; BARTELT, Andrew H. Gramática do hebraico bíblico,
2006, p. 129-134.
23
O substantivo hm'y>r"+c.mi é um acusativo terminativo32, ou seja, indica o lugar para onde
alguém ou algo se dirige. Na análise sintática é classificado como adjunto adverbial de lugar,
traduzido no português como ao Egito. Sob a palavra encontra-se um assento massorético
atnah
+
33
indicando que esta é a metade do versículo.
ATêv.ai yr:äf'-la, ‘rm,aYO’w:
11d
Disse a Sarai mulher dele:
Depois de duas orações subordinadas segue a oração principal como um divisor de águas
entre a fala do narrador e o discurso direto. Dado sua importância se procurará dar maior atenção
ao seu sentido e conteúdo. A raiz rm'a;34 é comum nas línguas semíticas e carrega o sentido de
comunicar. Em hebraico é centralizada no que indica o processo comunicativo (dizer) como
forma verbal presente seja nos textos antigos ou recentes e em qualquer contexto literário.
Frequentemente é usado para indicar o início de um discurso.
O campo semântico de rm'a; é bastante vasto, neste sentido o verbo dizer pode ser a
melhor tradução na língua portuguesa, pois colhe a substância do termo hebraico como
comunicar, nomear, mencionar, chamar, assegurar, responder, louvar, insultar, comandar,
dizer a si mesmo ou ao coração, pensar, considerar, refletir, interpretar, significar, exclamar,
afirmar, prometer e outros. O verbo não se reduz ao falar meramente mecânico, técnico,
fonético, mas como expressão racional de um sujeito, perceptível e compreensível da parte de
outro sujeito; não é o falar como função dos organismos vocais e como fenômeno físico, mas
como portador e transmissor de um conteúdo com significado pronunciado e expresso.
32
Acusativo terminativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo
Testamento, 1998, p. 21-23.
33
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
34
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. rm'a'. In: DBHP, 2004, p. 64-65; S. Wagner. rm'a'. In: GLAT. Vol. I di IX. bahlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 707-713.
24
Este verbo se coloca em relações intersubjetivas e é constituído com o duplo objetivo:
um no acusativo para a coisa dita e outro no dativo para a pessoa endereçada, ou seja, ele é
duplamente transitivo requerendo complemento direto e indireto, pois quem diz, diz alguma
coisa a alguém. Por isso rm'a; anuncia e marca o início de um discurso, seja este direto ou
indireto e este discurso representa o objeto do verbo.
Partindo da pessoa com quem se fala rm'a; pode ser construído com as preposições la, ou
l.. Como exprime uma relação pessoal o termo pode ser usado em vários âmbitos da vida social
(cultura, moral, direito, religião), e campos interpessoais (sistemas, sentimentos, ensinamento,
pensamento, comunicação e outros) configurando relações existentes entre homem e natureza,
homem e mundo, homem e criação, Deus e homem, homem e Deus. Sendo assim os sujeitos
deste verbo podem ser os mais diferenciados, não só por artifício literário para dar maior
vivacidade à narrativa, mas em seu sentido próprio.
Nesta narrativa há cinco incidências do verbo rm'a; (cf. vv. 11d; 12c; 13a; 18b; 19a),
nesta primeira ele aparece como ‘rm,aYO’w: imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino
singular do qal verbo transitivo direto e indireto, sendo traduzido no pretérito perfeito do
português, portanto disse. Como foi visto o verbo solicita complemento direto e indireto.
O narrador apresenta então o complemento indireto identificado pela preposição la,.
Esta preposição pode ser traduzida por para, em, ao lado, contra, com referência a e contém a
idéia de movimento em direção a alguém ou a alguma coisa, podendo ser aplicado em vários
contextos que expressam idéia de movimento, de direção ou de localização. Neste estabelece
o nexo com a pessoa para quem o interlocutor se dirige yr:äf', demonstra-se aqui a relação
intersubjetiva estabelecida pelo verbo rm'a; anteriormente comentada35.
35
Cf. SCOTT, Jack B. la,. In: DITAT, 1998, p. 67.
25
O nome yr:äf'36 é um nome próprio dado à esposa de Abrão. O nome hV'ai37 pode ser
traduzido como mulher, esposa, fêmea, cada uma, toda. Por sua vez ATêv.ai é um substantivo
feminino construto com sufixo de terceira pessoa do masculino singular, é classificado
sintaticamente como um adjunto adnominal restritivo, porque complementa de modo a
especificar, delimitando e restringindo o nome yr:äf', como esposa dele, mulher dele. Este
substantivo é acentuado por um zaqef qatan ë
38
, que tem função disjuntiva e divide em duas
partes a divisão feita pelo atnah. Como será introduzido um discurso direto utiliza-se dois
pontos. O discurso do narrador neste momento introduz a fala da personagem Abrão.
Até aqui o leitor acompanhou a construção do texto no que diz respeito à sintaxe,
morfologia e tradução, todos estes elementos colaboram para colher a beleza de sua
construção, assim como o sentido nesta possível tradução, agora o estudo convida a dar mais
um passo no que se refere à beleza estilística.
1.2 Análise estilística
Nos parágrafos acima, a atenção do estudo estava voltada ao modo como o autor ou
redator articula as palavras. No que segue, o leitor é convidado a voltar sua atenção para a
maneira com a qual o autor ou redator procura dar maior expressividade, maior colorido,
maior vivacidade ao texto. Observando o versículo como um todo é possível colher alguns
aspectos referentes à beleza da construção estilística.
AB
CD
C‟D‟
A‟B‟
36
#r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w: 10a
‘hm'y>r:’cm. i ~r"Ûb.a; dr<YE‚w: 10b
~v'ê rWgæl' 10c
`#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi( 10d
Aconteceu uma fome na terra
E desceu Abrão para o Egito
Para imigrar ali,
Porque pesada era a fome na terra.
Cf. COHEN, Gary G. yr:äf'. In: DITAT, 1998, p. 1494.
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hV'ai In: DBHP, 2004, p. 80-81.
38
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
37
26
O leitor se encontra diante de uma construção estilística chamada paralelismo
reto39, facilmente visualizável. O sujeito e o complemento „fome na terra‟ se enquadram
como uma moldura de um quadro envolvendo o conteúdo do mesmo. A moldura AB e
A‟B‟ oferece informação sobre o sujeito e o complemento do quadro, o conteúdo C e C‟
se referem à ação da personagem destacado nesta construção, ou seja, Abrão, enquanto
D e D‟ se referem ao lugar de destino.
Identifica-se uma relação de oposição entre terra e Egito expressa na construção B x D
e entre D‟ x B‟. No v. 10b e 10c identifica-se um paralelismo do tipo CD e C‟D‟ simétrico
chamado sintético porque o versículo é organizado em dois períodos consecutivos. Verifica-se
que, no segundo período aparecem os mesmos elementos do primeiro ABCD = D‟C‟B‟A‟ e
as frases expressam algo equivalente.
Do ponto de vista da sintaxe do texto há duas orações coordenadas correspondentes ao
v. 10a e 10b e duas orações subordinadas no v. 10c final e 10d explicativa. A primeira oração
coordenada apresenta o contexto e, a segunda apresenta a ação da personagem, sendo que as
duas subordinadas complementam e justificam a oração da qual são subordinadas, ou seja,
v.10b, apresentando a finalidade da ação de Abrão e o porquê da mesma.
No v. 11a continua a voz do narrador, mas há uma mudança de tempo introduzida pela
fórmula yhi§y>w,: bem como da posição em que se encontra o casal com relação ao destino,
conferir nos vv.10b e 11b-c. A construção estilística deste versículo será analisada no próximo
capítulo. Todavia cabe ainda observar certa simetria neste versículo, o qual é composto por
dois períodos de subordinação centralizados no verbo ‘rm,aYO’w:.
39
Paralelismo: relação de equivalência, por semelhança ou por contraste, entre dois ou mais elementos. Em
poesia, paralelismo é o termo que designa, habitualmente, a correspondência rítmica, sintática e semântica entre
estruturas frasais. Há três tipos de paralelismos: sinonímico (quando as frases expressam algo equivalente),
antitético (quando expressam idéias antagônicas) ou sintético (quando entre as idéias expressas há uma relação
de causa-efeito ou quando a segunda frase dá maior precisão à primeira). Cf. SILVA, Cássio Murilo da. Leia a
Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007, p. 35, 75.
27
yhi§y>w:
byrIßq.hi rv<ïa]K;
hm'y>r"+c.mi aAbål'
ATêv.ai yr:äf'-la, ‘rm,aYO’w:
11a Aconteceu,
Fórmula expletiva
11b quando se aproximava
Or.Sub.adv.temporal
11c para chegar ao Egito,
Or.Sub.adv.final
11d disse a Sarai mulher dele:
Or. Principal
O leitor moderno diante de tais construções provavelmente tentaria fazer ajustes, pois
as formas literárias atuais não encorajam a repetição e muito menos a toma por base. Mas o
poeta hebreu pensava, exprimia-se e pertencia a uma tradição diversa. Ele parece não ter
pressa, um pensamento importante não poderia ser esgotado numa única afirmação, sendo
assim, com o uso de paralelismos, o poeta hebreu procura expressar mais plenamente o
significado latente do texto40.
Numa narração, o estilo não se fecha em si mesmo, mas fornece indicações que
revelam o movimento do texto e permitem acompanhar o seu percurso e as suas
transformações de modo dinâmico na leitura.
1.3 Análise narrativa
A análise narrativa parte do pressuposto de que o texto sagrado faz parte de um todo
coerente, contudo para o estudo sente-se a necessidade de elucidar suas estruturas, deixando claro
que uma leitura narrativa não elimina outras abordagens. A leitura não é um ato ingênuo, nesta é
preciso conhecer as convenções que o texto fornece. O método narrativo respeita as estruturas
linguísticas e estilísticas da narrativa, antes parte do exame desses elementos para desvendar a
direção que toma a narrativa.
Qualquer narrativa se estrutura sobre cinco elementos fundamentais: os fatos que
compõe a história; as personagens que vivem estes fatos; o tempo e o lugar em que estes
acontecem; e a necessária presença do narrador, pois, ele caracteriza a narrativa. Ele é o
40
Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 45.
28
elemento organizador de todos os outros componentes. É o narrador quem faz o mediador
entre o que é narrado (história) e o autor, entre o narrado e o leitor. Eis que o narrador
introduz a narrativa:
#r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w:
‘hm'y>r:’cm. i ~r"Ûb.a; dr<YE‚w:
~v'ê rWgæl'
`#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi(
yhi§y>w:
byrIßq.hi rv<ïa]K;
hm'y>r"+c.mi aAbål'
ATêv.ai yr:äf'-la, ‘rm,aYO’w:
10a
Aconteceu uma fome na terra,
10b E desceu Abrão ao Egito
10c Para imigrar ali,
10d Porque pesada era a fome na terra.
11a E aconteceu,
11b quando se aproximava
11c para chegar ao Egito,
11d disse a Sarai mulher dele:
O início da narrativa consta da introdução ou apresentação, é também chamada de
exposição. Aqui são apresentados os fatos iniciais, as personagens, o tempo e o espaço. É a
parte na qual se informa o leitor, situando-o diante da história que confrontará.
O leitor é informado de que aconteceu uma fome na terra, sabe-se então tratar de um
ambiente hostil de difícil sobrevivência. Os elementos apresentados, fome, imigração, Egito,
Abrão, de certa forma criam uma tensão que organiza os fatos e prende a atenção do leitor,
gerando certo suspense e curiosidade sobre o que pode vir a acontecer.
Segundo a rapidez e duração do relato os críticos distinguem dois tipos: a „cena‟ e o
„sumário‟41. No sumário o tempo relatante é mais breve que o tempo relatado, portanto podese dizer que o tempo apresentado é sumário, pois o narrador nada diz a respeito do ano em
que aconteceu, desde quando, o que fizeram outras pessoas. O narrador não se demora em
detalhes, mas volta o seu foco para a primeira personagem apresentada, Abrão. Este foi
41
Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p. 134-135.
29
obrigado a descer para o Egito e morar ali como estrangeiro, imigrante, porque a fome não era
qualquer uma, mas é qualificada como uma fome pesada.
Aludindo ao tempo cronológico, o leitor tem uma informação que o situa: a personagem.
É narrado um acontecimento com o patriarca Abrão42, ou seja, mais ou menos no século XIX
a.C. É uma época de fome, mas como começou não se sabe. De fato, a narrativa ao construir um
mundo que inclui uma pluralidade de acontecimentos e de personagens não pode dizer tudo
sobre esse mundo. Refere-se a ele e pede ao leitor que preencha uma série de lacunas, afinal o
texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho43.
No versículo seguinte (cf. v. 11a) continua a voz do narrador, todavia o leitor
percebe uma mudança no quadro da narrativa, ou seja, uma mudança temporal, marcada
pela fórmula expletiva e aconteceu e pela posição em que se encontra a personagem com
relação ao destino. Antes ela estava descendo (cf. v. 10b), agora ela já está se aproximando
para chegar (cf. v. 11b-11c), tal mudança gera no leitor certa expectativa e curiosidade a
respeito do que pode vir a acontecer.
Certamente qualquer pessoa pode ler uma narrativa, porém, dependendo dos leitores
os graus de compreensão e impactos da leitura são diferentes. Considerando que o leitor
ideal seja um hebreu, ou um dos herdeiros da fé monoteísta e que tem o Patriarca Abrão
como ponto comum de fé, as figuras como fome, Abrão, imigrar, Egito, tem uma
repercussão, que lhes toca profundamente o sentido da fé e da história pessoal. Por isso, os
leitores precisam ter certo conhecimento a respeito do mundo „real‟ para presumi-lo como o
pano de fundo do mundo ficcional.
42
43
A época da história nem sempre coincide com o tempo em que a narrativa nasceu ou que o texto foi escrito.
Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção, 1994, p. 9.
30
2. Estudo histórico- teológico
2.1 A personagem Abrão44
A narrativa bíblica apresentada coloca o leitor diante de pontos nodais, sobre os quais
é chamado a confrontar-se, sendo assim é necessário estabelecer uma ordem, para tanto foi
eleita a personagem, Abrão, situando-lhe no tempo e no espaço.
O ciclo Abrão é situado, pela maioria dos estudiosos, no século XIX a.C.. Segundo a
hipótese documental45, esta narrativa pertence à chamada fonte Javista (J), datada do século IX
a.C, por isso há autores que ressaltam a importância das tradições pré-literais. Esta hipótese
procura esclarecer, que o documento Javista não é uma invenção do autor do século IX a.C.,
mas foi escrita no século IX a.C.. Deste modo, restam dez séculos de distância entre a tradição
oral e o documento escrito, o que justificará certos anacronismos46 identificado na narrativa.
44
O núcleo histórico das tradições de Abrão é objeto de debates à luz das repercussões arqueológicas. Os
documentos de Nuzi, os nomes de pessoa semítico-ocidental de Mari, as relações e os movimentos amoritas
entre Canaã e a Mesopotâmia foram utilizados para reconstruir o ambiente histórico cultural de Abraão de
Ur da primeira metade do II milênio. Alguns pesquisadores hipotizam para a época patriarcal duas ondas
migratórias, uma amorita e outra aramaica, correspondente ao quadro da expansão amorita por volta de
2000a.C. O fato de Abraão ser chamado de Hebreu (cf. Gn 14,12) é considerado como índice de sua
participação aos Hapiru. Não obstante tentativas de situar o patriarca em 2000a.C., a Bíblia relaciona os
patriarcas entre os arameus “Meu pai era um arameu errante” (cf. Dt 26,5; Gn 25,20; 28,5; 31,20.24), as
referências a estes povos se dá num documento assírio datado de cerca de 1110 a.C. Sugere-se que existe
uma continuidade racial entre os amoritas da época patriarcal e os arameus dos séculos XI e Xa.C. Cf.
VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 27-28; CLEMENTS, R.E. ~r"b.a. In: GLAT. Vol. I di IX.
ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 112-113.
45
Embora a referência as fontes, aos documentos ou as tradições não sejam mais relevantes dentro da pesquisa
exegética da teologia atual, a maioria dos manuais ainda apresentam essa discussão. Penso ser importante não
ignorá-la. Conforme a mesma, o Pentateuco corresponde a compilação de quatro documentos, diversos em idade
e de ambiente posterior ao de Moisés. Existiam inicialmente duas obras narrativas: O Javista (J), que usa, desde a
narrativa da criação, o nome YHWH (o qual Deus revelou a Moisés), e o Eloísta (E) que se dirige a Deus com
nome de Elohim. O J teria sido escrito no século IX a.C., em Judá (Sul), o Eloísta no século VIII a.C., em Israel
(Norte). Após a queda do Reino do Norte (722 a.C) os documentos teriam sido fundidos (JE). Na época do rei
Josias (622 a.C) teria sido adjunto o Deuteronômio (D) formando um possível documento (JED), e depois do
exílio, o Código Sacerdotal (P), o qual serviu na armadura e quadro (JEDP) para o Pentateuco. Cf. SKA, Jean
Louis. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. São
Paulo: Loyola, 2003, p. 111-177; VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 21-35; ZENGER, Enrich –
BRAULIK, Georg. Os livros da Torá/ do Pentateuco. In: ZENGER, Enrich – BRAULIK, Georg – NIEHR,
Herbert (et al.). Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 83-157.
46
Prováveis anacronismos: Gn 21,34 diz que „Abraão viveu muito tempo na terra dos filisteus‟, mas estes povos
se instalaram em Canaã somente no 1200a.C.; Gn 11,31 diz que partiram de Ur dos caldeus, mas os caldeus só
surgem nos textos assírios no sec. IXa.C.; e a sua ascensão ao poder ocorre somente no sec. VIIa.C; no início do
segundo milênio era Ur dos sumérios; a referencia a camelos (cf. Gn 12,16) estes são domesticados e utilizados
no Oriente próximo por volta de 1200a.C. Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 28.
31
Outros estudiosos apresentam diferentes possibilidades de datação, há quem diga que a
posição de Abrão como ancestral comum a Israel provavelmente se deu no período em que
existiam significativos laços entre Judá e Israel, e Judá gozava de uma posição predominante.
Estas condições indicam como idade mais adaptada a época do reino davídico – salomônico47.
Por outro, lado há quem diga que os escritos definitivos são frutos pós-exílicos48.
No Capítulo 11 do livro do Gênesis é possível conhecer a família e a origem de Abrão.
Seu pai Taré, teve três filhos: Abrão, Nacor e Arã. Arã morreu deixando um filho, Lot e duas
filhas Melca e Jesca. Nacor casou-se com Melca. Abrão casou-se com Sarai, uma mulher
estéril. O Pai de Abrão tomou a ele, a Sarai e a Ló e partiram de Ur dos caldeus49 para ir ao
país de Canaã, mas chegados em Harã se estabeleceram ali. Diz ainda que os anos de vida de
Taré foram duzentos e cinco anos50, e que ele morreu em Harã (Gn 11,27-32).
Após tais fatos, Abrão foi chamado a estabelecer uma aliança com Deus, para tanto ele
deveria deixar sua parentela e a casa de seu pai e seguir rumo à terra que Deus lhe mostraria.
Deus prometeu fazer dele um grande povo e abençoá-lo. Abrão51 juntamente com a esposa
Sarai e o sobrinho Ló partiram de Harã caminharam para a terra de Canaã, habitada pelos
cananeus, mas o Senhor prometeu a Abrão que esta terra pertenceria a seus descendentes.
47
Cf. CLEMENTS, R.E. ~r'b.a;. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p.113-114.
Segundo esta posição o exílio do início do sec. VI a.C. minou a fé do povo, muitos prestavam culto às
divindades estrangeiras como Baal (Oséias entre 755-721 a.C., queda da capital, Samaria). O grupo que
permaneceu fiel reabriu o coração à esperança de restauração (Ezequiel e Jeremias) do povo (586-538). O sonho
se torna possibilidade quando Ciro, o persiano, entra em cena e permite o retorno à pátria (538). Neste ponto os
círculos de sacerdotes, escribas e mestres, recolheram os documentos que tinham, interrogaram a memória
histórica do povo e si confrontaram com as novas reflexões do período exílico, então a fé de Israel em YHWH é
reconfirmada, e o povo de Israel retoma a unidade na fé num ancestral comum Abrão, homem escolhido por
Deus e destinatário da promessa divina, exemplo de fé, assim como a unidade através do Templo. Cf. SKA, Jean
Louis. Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 199-243.
49
O nome da Cidade da qual partiram Taré e sua família (Ur dos caldeus) Ur é conhecida e muito antiga, mas o
termo “Caldeu” é problemático. Os caldeus só surgem nos textos assírios no século IX a.C e referir-se a “Ur dos
Caldeus” pressupõem a ascensão ao poder dos caldeus, ou seja, babilônicos, que acontece somente no século VII
a.C, provavelmente no início do segundo milênio seria chamada Ur dos Sumérios. Cf. VOGELS, Walter. Abraão
e a sua lenda, 2000, p. 28.
50
Com referência aos anos da vida de Taré existem versões diversas. Segundo o Pentateuco samaritano ele teria
morrido aos 145 anos, se ele teve Abrão aos setenta anos (cf. Gn 11,26) e Abrão o deixou quando tinha 75,
conclui-se que Abrão tenha deixado Harã somente por ocasião da morte de seu pai (cf. Gn 11,26 e 12,4; At 7,4).
Segundo a versão que temos, Taré teria vivido ainda 60 anos após a partida de Abrão. Cf. Nota da Bíblia de
Jerusalém em Gn 11,31.
51
Idade de Abrão e Sarai: Abrão contava com 75 anos quando partiu e sua esposa era 10 anos mais nova que ele, portanto
tinha 65 anos (cf. Gn 17,17).
48
32
Abrão atravessou o país até Siquém52, denominado lugar santo, onde construiu um
altar a YHWH, dali caminhou rumo a Betél53, construindo um altar a YHWH e seguiu de
acampamento em acampamento até o Negueb. Este gesto de percorrer de norte a sul,
simboliza a tomada de posse da terra, construindo altares como marcas que o ligam a terra,
embora Abrão permaneça sempre um estrangeiro de passagem54.
Abrão é o eleito de Deus, o escolhido com quem Deus faz aliança e através de quem
abençoa todos os povos da terra. Apesar de ter chegado ao Sul do território que o Senhor lhe
prometera, passa por uma situação de fome, que o obriga a procurar sobrevivência fora da
terra que lhe foi prometida.
2.2 A fome na terra55
No hebraico a palavra terra tem uma gama de sentidos, mas o texto situa o leitor na
terra de Canaã56. Como foi visto anteriormente, Abrão veio de acampamento em
acampamento até se estabelecer em Negueb, onde a fome era pesada sobre a terra. Neste
sentido a terra também pode ser associada a solo, enquanto se refere à condição da terra57 e de
seus produtos. Nos tempos antigos a distribuição e a conservação de alimentos eram precárias,
a fome significava sofrimento e inanição.
52
A cidade de Siquém terá um papel importante na vida de Jacó (cf. Gn 33,18-20; 35,1-4), mais tarde as tribos
formarão ali uma federação (cf. Js 24). Enquanto Betél se tornará a capital do Reino do Norte, após a morte de
Salomão (cf. 1Rs 11-12). Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 64.
53
Betél se tornará o centro religioso do Reino do Norte, em competição com Jerusalém (cf. 1Rs 26-33). Cf.
VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000. p. 65.
54
Cf. NORTH, Roberth. Abraão. In: BRUCE M. METZEGER – MICHAEL D. COOGAN (Orgs.). Dicionário
da Bíblia vol.1: as pessoas e os lugares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2002s p. 2-3; VOGELS, Walter.
Abraão e a sua lenda, 2000, p. 65.
55
Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 60-67.
56
O mundo bíblico é divido em duas partes: Israel e as nações, não obstante Deus governe todos os lugares, a
área de santidade e autorevelação se limita às fronteiras da terra de Israel. Cf. HAMILTON, Victor P. #r<a,. In:
DITAT, 1998, p. 124-25.
57
Com o significado de solo, o termo se refere à condição da terra e dos seus produtos. Essa doa a gordura (cf.
Gn 27,28), os produtos (cf. Lv 26,4-20; Dt 32,22; Sl 67,7) as frutas (cf. Nm 13,20.26; Dt 1,25), os vegetais (cf.
Is. 61,11) o pão (cf. Sl 104,14; Jo 28,5). A maior parte destes textos designa em primeiro plano o país de Canaã.
O A.T conhece também a terra estéril, o deserto (cf. Dt 32,10; Pr 21,19), a terra seca e árida (cf. Sl 63,2; Sl
107,35; Ez 19,13). A improdutibilidade do país aparece como punição divina. O Senhor reduz a terra fértil num
pântano por causa da malícia dos seus habitantes (cf. Sl 107,34). Cf. OTTOSSON, K. #r<a.., In: GLAT. Vol. I di
IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 860-862.
33
A fome pode ter suas origens naturais. Partindo do Negueb, este é caracterizado como
uma estepe árida com baixo índice pluviométrico anual, menos de 20 centímetros, o que
possibilita o plantio, mas não garante a colheita. Outras regiões relativamente planas são
formadas por um solo depositado pelo vento, porém, as alterações climáticas permitem
somente a sobrevivência de pastores. O sudeste é um deserto, pois o índice pluviométrico
anual é de 10 centímetros, a paisagem é composta de pedras e vales secos, um deserto rochoso
e marcado por uádis. Existem regiões que recebem até 50 centímetros de chuva por ano e o
solo suporta campos de grãos, oliveiras e vinhas.
As alterações nos índices pluviométricos se devem ao fenômeno dos principais ventos
de inverno, provenientes da direção leste do Mediterrâneo, estes carregam consigo o ar úmido, e
quando encontram as colinas são forçados a vir para baixo, resfriado-se assim até o ponto de
orvalho e liberação da umidade em forma de chuva. Mas, do lado contrário das colinas, o ar
desce, se aquece e fica seco. As chuvas que caem em raros temporais a leste da crista das
colinas de Judá, são localizadas e logo desaparecem nos uádis ou evaporam-se ao sol.
O clima é do tipo mediterrâneo, verões quentes sem chuva e invernos frios e úmidos.
Praticamente há duas estações, as chuvas se concentram em poucos dias no ano, sendo assim a água
da chuva tem poucos dias para penetrar no solo. Chove menos ao sul e vai aumentando à medida
que avança ao norte, embora a maior parte da terra é árida e a taxa de evaporação é elevada. Em
contraste com o Egito e a Mesopotâmia, como reconhece o Deuteronômio 11,10-12, citando a
advertência de Moisés aos Israelitas:
Pois a terra em que estais entrando a fim de possuí-la não é como a de onde
saístes, a terra do Egito: lá semeavas tua semente e irrigavas com o pé, com
uma horta! A terra para a qual passais, a fim de possuí-la é uma terra de
montes e vales, que bebe água da chuva do céu, é uma terra de que Ihweh
teu Deus cuida.
34
Deste modo é possível compreender porque a maior punição para os israelitas era a
ação Divina de bloquear os céus, o que equivale à fome e à morte.
Abrão se encontra em dificuldade, e isto surpreende o leitor, pois há pouco Deus
prometera aquela terra a ele e à sua posteridade, prometendo também abençoá-lo. Abrão
percorre a terra de norte a sul, ou seja, simbolicamente toma posse da terra, mas o que se
presencia é uma fome. Como se vê, a seca era frequente em Canaã, enquanto o vale do Nilo e
o Egito produziam bastante trigo. De fato a fome é um tema presente na vida do povo de
Israel, tanto que levará Israel a habitar no Egito (Gn 47,4).
O texto é imparcial quanto à ação de Abrão, não emite julgamentos morais ou
dogmáticos, a única explicação oferecida para justificar a ação de Abrão é que a fome era
pesada sobre a terra, obrigando-o a buscar no Egito, a sobrevivência. A decisão de Abrão é
compreensível. De fato quando a terra não pode manter os seus, esses encontram meios para
sobreviver, sendo a migração um dos meios comuns aos pastores transmigrantes. Por outro
lado, Israel é peregrino, desde a divina eleição é convidado a colocar-se a caminho.
2.3 Desceu ao Egito
A palestina é uma região montanhosa, limitada a oeste pelo Mar Mediterrâneo e a leste
pela fenda Araba, abaixo do nível do mar. Sendo assim, por qualquer lugar que se viaje em
Canaã se seguirá sempre ou para baixo ou para cima. Estando em Canaã, terra prometida, está
geográfica e teologicamente no ponto central da atenção. Segundo Hartley58, com referência a
terra de Israel um viajante ou „sobe‟ ou „desce‟. Por vezes o verbo „descer‟ é usado quando de
fato o destino é para cima. Em tais casos o sentido é de ir para o sul ou de sair da cidade em
direção ao campo, ou até mesmo de ir por altos e baixos. Abrange-se também o sentido de
passar de uma posição de evidência para uma de menor importância, neste sentido descer
58
Cf. HARTLEY, John E. dr"y." In: DITAT, 1998, p. 657-658.
35
significa abandonar o lugar de prestígio, logo descer ao Egito tem a nuança de deixar a terra
prometida para habitar em meio a pessoas que estão fora da Aliança. Descer ao Egito é
equivalente a abandonar a Deus e buscar auxílio humano.
A região do delta do Nilo é formada por lodo depositado por milhões de anos, mas o
restante do Egito é um longo vale de um rio, limitado ao leste e oeste por grandes desertos áridos
e inóspitos. A civilização Egípcia se desenvolveu num clima estável e terras extremamente férteis,
regularmente irrigadas pelo Nilo. Por isso, os egípcios puderam desenvolver uma rica economia
agrícola produzindo trigo, cevada, vegetais variados, frutas e uvas. Em tempos remotos, o Egito
era o celeiro do Oriente Médio, principalmente em tempos de escassez59.
O patriarca Abrão é situado no Reino Médio60 2134-1786 a.C. Durante a XI dinastia,
monarcas originários de Tebas, estabeleceram o controle sobre todo o Egito e fundaram o Reino
Médio. Os soberanos mais poderosos foram os da XII dinastia. O Reino Médio foi significado
pela revivescência artística, e mais no fim um período de debilidade política permitiu a entrada
de um grupo de estrangeiros na região do delta do Nilo, esses eram conhecidos como hicsos61
ou „chefes das terras estrangeiras‟ e provavelmente de origem pastoril, alguns estudiosos vêem
esse período como o cenário das narrativas de José no Egito62.
A partir da época Mosaica, em geral, a Bíblia coloca a terra do Egito numa posição
negativa. Suas riquezas oriundas do Nilo e sua civilização são vistas, nas tradições bíblicas,
como uma tentação constante (cf. Gn 26,1-6; 46,1-4; Nm 11,4-5). É o Faraó quem oprime o
povo de Deus, negando-se a dar liberdade a Israel. Por isso, os profetas de Israel atacam a
aproximação de seu país ao Egito. No entanto, duas passagens do AT chamam a atenção com
referência a este país, Josias, o piedoso rei de Judá, morre porque não deu ouvidos à Palavra
59
Cf. PLUMLEY, J. Martin. Egito. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da
Bíblia Vol.1, 2002, p. 66-69.
60
Cf. THOMPSON, Dr. John A. A Bíblia e a Arqueologia. 2. ed. São Paulo: Vida Cristã, 2007, p. 59.
61
Cf. THOMPSON, Dr. John A. A Bíblia e a Arqueologia, 2007, p.60.
62
Cf. MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos faraós: história, civilização e cultura. 3. ed. São Paulo: Hemus,
1998, p. 147.
36
de Deus por boca do Faraó Neco (cf. 2Cr 35,20ss). Na segunda, Isaías (cf. Is 19,16ss) antevê a
conversão do Egito e da Assíria ao Senhor63.
Os pressupostos possibilitam compreender o que seria para um hebreu ter que ir ao
Egito em busca de alimento, submetendo-se, por vezes, ao julgo de um povo que não conhece
o Deus único. Essa é uma verdadeira descida, deixar a terra que o Senhor deu, a terra da
Aliança, para descer a uma terra pagã e influenciada por „falsos deuses‟ a fim de receber
desses o sustento para a vida.
2.4 Morar como imigrante64
Abrão desceu ao Egito, mas ao que tudo indica sua intenção não era somente buscar
viveres. Ele desceu para morar ali como imigrante, ou seja, viver entre pessoas que não são
parentes consanguíneos. Na condição de imigrante a pessoa não desfrutava os direitos civis
dos cidadãos, mas dependia da hospitalidade, a qual desempenha um importante papel no
Antigo Oriente.
Para a Bíblia o estrangeiro65 e também o inimigo podem chegar a ser considerados
como um irmão, mas nunca como iguais, pois as diferenças devem ser respeitadas e acolhidas
com a finalidade da fraternidade. A experiência de ser estrangeiro, da migração e do contato
com estrangeiros é um tema central na história dos filhos de Israel. O seminomadismo
patriarcal, as relações com povos limítrofes, a deportação, o exílio a que foram submetidos e
as dominações por potências estrangeiras, mostram que Israel viveu como estrangeiro junto a
63
Cf. HAMILTON, Victor P. ~y>r:’c.mi. In: DITAT, 1998, p. 870-871.
Cf. KELLERMANN, D. rwg. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 2007-2024; WILLIS,
Timothy M. rwg. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da Bíblia Vol.1, 2002,
p. 94; STIGERS, Harold G. rwg. In: DITAT, 1998, p. 255-256.
65
No AT é possível distinguir três categorias de migrantes Nekar (rk'nE) ou estrangeiro de passagem, desconhecido,
forasteiro, intruso (cf. Gn 17,12; Ex 12,43; Lv 22,25); Zar (rz") (cf. Jr 30,8; 51,51; Ez 7,21) estrangeiro étnico e
político, inimigo (tzar) grupos confinantes com Israel: assírios, babilônios; Ger, gerim ou gur (rgå)E estrangeiro
residente inserido no tecido social, não pertence ao povo por sangue, mas reside estavelmente. Cf. INOCENZZO,
Cardellini. Stranieri ed emigrati-residenti in uma sintesi di teologia bíblica. In: Rivista Biblica (1992) 2, p. 129-181;
P., Bovatti. Lo straniero nella Bibbia. In: Rivista del Clero Italiano (2002) 7/8, p. 408-502.
64
37
outros povos que, por vezes, teve que viver a própria fé forjando sua identidade cultural no
contato com estrangeiros.
Entre as causas que levava uma pessoa ou um clã a sair de sua terra está a fome. De
fato este é um motivo recorrente no AT: Elimelec parte com a família para Moab como
refugiado (cf. Rt 1,1); outra carestia induz Elias a se alojar na casa da viúva de Sarepta (cf. Jr
17,20); Eliseu manda a Sunamita e a sua família para região mais fértil, para fugir da carestia
(cf. 2Rs 8,1). A carestia também levou Isaac a buscar refúgio como estrangeiro junto a
Abimelec em Gerara (cf. Gn 26,3); a estadia de Israel no Egito é devido ao fato de uma
carestia ter expulsado os irmãos de José daquele lugar (cf. Gn 47,4). O mesmo que aqui
acontece com Abrão, ele é o protagonista de uma experiência que o coloca em comunhão com
os seus descendentes.
O sentido apropriado do substantivo rgE se colhe quando aplicado para designar Israel como
peregrino no Egito (cf. Gn 23,9; 15,13). No AT estes ~yrIïgE tem uma posição intermediária entre o
nativo e o estrangeiro de passagem. Devido aos acontecimentos históricos, o imigrante residente
indicava o cananeu residente em Israel ou o fugitivo proveniente do Reino do Norte. Com o passar
do tempo, o termo passou a designar os prosélitos, ou o não israelita que acolhia a fé no Senhor.
Israel deve tratar o refugiado com amor (cf. Dt 10,19; Ex 22,20; 23,9), pois ele mesmo
fez a experiência de rgE (cf. Ex 23,9). A condição de Israel como estrangeiro no Egito (cf. Dt
23,8; 26,5; Is 52,4; Sl 105,23) o leva a estender o mandamento de amar o próximo (cf. Lv
19,18) ao rgE: “O migrante residente entre vós será para vós como o nativo. E deves amá-lo
como a ti mesmo, porque fostes migrantes (~yrIïgE) no país do Egito. Eu sou YHWH, vosso Deus”
(Lv 19,34), de modo amplo todo homem sob a terra é rgE, por isso o salmista (cf. Sl 39,13) sabe
ser diante de Deus, somente um estrangeiro rgEå e um peregrino bv'ªAT÷, como seus pais. Neste
sentido Abrão é o protagonista da história do povo de Deus, hóspede e peregrino sobre a terra.
Nele todos são chamados a refletir sobre a própria condição existencial de homo viator.
38
CONSIDERAÇÕES
Neste primeiro capítulo intitulado “Fome na terra e descida ao Egito”, delimitou-se
para o estudo o referido texto de Gn 12,10-11d. Estes quase dois versículos foram abordados
sob duas perspectivas, ou seja, linguístico-literária e histórico-teológica. Todavia, percebe-se
certo vínculo de complementaridade progressiva entre uma perspectiva e outra, pois uma
lança luzes importantes para o desenvolvimento do tema sucessivo.
No que se refere ao estudo linguístico foi possível apropriar-se do vocabulário, estudar
seu sentido, sua classificação morfológica e sintática a fim de chegar a uma tradução mais fiel
ao texto. Observa-se que os verbos estão na forma qal, com exceção de um que se encontra no
hifil. Tem-se no v. 10 uma estrutura composta de duas orações coordenadas e duas orações
subordinadas. Já no v. 11 tem-se duas orações subordinadas, uma coordenada, e duas
subordinadas. Portanto da construção é possível colher certa sincronia.
Com relação ao seu sentido e estrutura, estes serviram de base para o passo sequente,
ou seja, a análise estilística, nesta percebe-se o modo como o texto foi construído e
estruturado, pois há uma lógica interna bem elaborada. O leitor encontrou-se diante de uma
construção estilística chamada paralelismo reto ABCD = D´C´B´A´. A moldura AB – B´A´
ofereceu informações sobre o sujeito e o complemento do quadro, C e C´ menciona a ação da
personagem, Abrão, e D e D´ referem-se ao destino. Daqui brotaram então os subsídios
significativos para o próximo passo.
O item seguinte trabalhou o texto abordando-o sob a perspectiva da analise narrativa.
Essas poucas linhas correspondem à introdução, onde o narrador procurou situar o leitor no
tempo e no espaço. A soma dos resultados desta primeira perspectiva ofereceu elementos para
prosseguir o estudo no que se refere à sua perspectiva histórico-teológica.
39
No estudo histórico-teológico foram reunidas as indicações oferecidas pelo próprio
texto para maior aprofundamento a fim de chegar o mais próximo de sua essência, ou seja, o
seu sentido teológico. A fome, a migração, o Egito, e o ser estrangeiro, são elementos
constituintes não só da experiência histórica, mas também da identidade e da fé dos
descendentes de Abrão e Sarai. Deste modo o narrador cria todo um contexto, insere o leitor
nele e o prepara para o capítulo sucessivo.
40
CAPÍTULO II
SARAI MULHER DE BELA APARÊNCIA
Numa narrativa o leitor pode identificar ao menos dois níveis de fala, o do narrador e o
das personagens. Os discursos são as várias possibilidades que o narrador dispõe para
registrar as falas das personagens. O discurso direto corresponde ao registro integral da fala de
uma personagem indicando que a personagem fala diretamente, ou seja, sem a interferência
do narrador, pois neste caso o narrador se limitará somente a introduzi-la.
Até o v. 11d, o leitor está no início da narrativa denominado exposição, introdução ou
apresentação. Colhe-se os dados que o situam dentro do quadro em que se desenvolve a
narrativa. O narrador é onisciente, quer dizer dispõe de conhecimentos e informações
inacessíveis a uma pessoa comum, ele sabe o que pensa e diz Abrão, e informa a seu leitor
sem procurar justificar-se ou justificar a personagem.
A esta altura, no v. 11e, o leitor notará uma mudança no discurso, ou seja, uma
passagem da fala do narrador para a fala da personagem. Esta passagem é demarcada pelo
41
verbo rm;a' que aparece como um divisor de águas, introduzindo a fala da personagem Abrão.
O discurso prossegue com a voz profética de Abrão preanunciando o que pode acontecer a ele
e à sua esposa ao entrarem no Egito. Neste ponto a narrativa começa a desencadear uma série
de conflitos. O leitor se prende mais atentamente ao texto participando dos temores que
ameaçam a vida e o futuro do patriarca e de sua esposa.
1. Estudo linguístico-literário de Gn 10,11e-13d
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático
O discurso do narrador neste momento introduz a fala da personagem Abrão.
yTi[.d:êy" an"å-hNEhi
11e
“Eis que sei,
Segundo o estudo o verbo rm;a' pede um complemento de um objeto direto e outro
indireto, o objeto indireto já foi especificado, segue então o complemento objeto direto, com
duas orações subordinadas.
A partícula an"å-hNEhi66 é uma composição de duas interjeições. A primeira em sua forma
simples hNEhi é frequente na prosa hebraica. A maioria das orações com hNEhi acontece em discurso
direto e serve para introduzir uma declaração ou ordem. Segundo Lambdin67, alguns tradutores
acentuam a dificuldade em captar o significado e as funções sintáticas da mesma. Pode ter sentido
demonstrativo: eis! Olha!, apontando para pessoas ou coisas. Pode também fazer referência ao
passado ou ao presente apontando alguma verdade recém declarada ou recém conhecida.
66
Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 210-212; WERNER, Carl Philip. hNEhi. In:
HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K. DITAT. São Paulo: Vida Nova, 1998, p 363.
67
Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 210.
42
A interjeição an"å tem o sentido de súplica e reforça uma expressão, todavia a mesma
parece denotar que a ordem em questão é consequência lógica de uma declaração
imediatamente precedente à situação geral na qual é proferida, mas sua tradução dependerá do
contexto. A fórmula an"-å hNEhi68 é usual para dar ênfase ao discurso, anexá-la ao imperativo que
segue expressa uma proposta de natureza de pedido ou de súplica, traduzida na língua
portuguesa como Eis que!.
Segue o verbo [d:y"69, este abrange o sentido de conhecer, saber. Esta raiz expressa uma
variedade de aspectos do conhecimento adquirido pelos sentidos. O verbo pode designar o
conhecimento que Deus tem do homem (cf. Gn 18,19; Dt 34,10) ou o conhecimento de seus
caminhos (cf. Is 48,8; Sl 1,6). Em certos contextos significa distinguir, conhecer „o bem e o
mal‟ (cf. Gn 3,5.22). Pode ser usado para expressar familiaridade com uma pessoa, até mesmo
o relacionamento íntimo.
É possível assinalar graus ou aspectos distintos do conhecimento tais como supor,
prever, saber, entender, distinguir, certificar-se. Ambos os momentos podem ser especificados
por seu objeto; a) uma pessoa: conhecer, tratar; b) uma coisa: conhecer, ocupar-se de; c) um
fato: saber que, estar informado de; d) um enunciado: saber, saber fazer, habilidade, destreza.
Tratando-se de operações mentais, as fronteiras entre os diversos significados são imprecisas
e nem sempre reconhecíveis. O conhecimento intelectual une-se ao sensorial do perceber,
podendo acrescentar uma atividade emocional ou volitiva 70.
68
Esta partícula assume por vezes um papel importante referente à organização textual, ou seja, organização
interna de frases e orações no discurso bíblico. Tem-se que a base de uma organização textual mais ampla é
fornecida por várias classes de marcadores incluindo entre estes as conjunções w e %a e exclamações e formas
nominais como yhiy>w: rv,a]. Estes sinais macrossintáticos servem para demarcar as divisões maiores de um texto. O
narrador insere tais sinais a fim de realçar para o leitor o começo, as transições, o clímax e as conclusões de sua
comunicação. Os sinais macrossintáticos são classificados como introdutórios e transicionais em diálogos: !he,
hNEh, hT'[w; >. Por exemplo um sinal de interrupção da narrativa: yhiy>w: como introdutório e transicional e hNEh como
transicional. Cf. WALTKE, Buce k. e O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 632,
634-635, 674-683.
69
Cf. LEWIS, Jack P. – GILCHRIST, Paul R. [d"y." In: DITAT, 1998, p. 598.
70
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. [d"y". In: DBHP. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 268-269.
43
Portanto yTi[.d:êy" como verbo perfeito – primeira pessoa masculino singular do qal pode
ser traduzido do hebraico para o português por sei ou conheço . A opção pelo presente se
justifica pelo contexto, pois o que ele sabe é atual. Sobre o verbo segue um acento disjuntivo
zaqef qatan ë 71 que introduz uma pausa, por isso se justifica o ingresso da vírgula.
`T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi²
11f Que és mulher bela de aparência tu.
A conjunção yKi72, como visto anteriormente, pode assumir diversas funções, neste caso é
classificada como uma conjunção que introduz uma oração subordinada substantiva, dado que
o verbo saber pede um complemento objeto direto, portanto foi traduzida do hebraico para o
português pela conjunção que. O substantivo hV'îai é empregado como predicativo que qualifica
o sujeito T.a',( traduzido para o português por tu és mulher. Segue o complemento do substantivo
como adjunto adnominal restritivo, porque qualifica e restringe o mesmo ha,Þr>m;-tp;y>.
Este tp;y>73 é um adjetivo feminino construto e no português abrange o significado de bela,
beleza, agraciado, elegante, arrogante, galhardo, gentil, garrido, bonito, vistoso, lindo, esbelto;
seguido de ha,Þr>m; substantivo masculino singular. Este substantivo tem prefixo m; e se relaciona
com o verbo ha'r"74, referente à capacidade visual, sendo assim a expressão ha,Þr>m;-tp;y> pode ser
71
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
Esta conjunção pode ser traduzida por: como se, por causa de, mas, certamente, exceto, pois, visto que, que,
então, quando. Ela pode expressar relacionamento temporal, causal ou objetivo entre clausuras expressas e nãoexpressas. Em hebraico é usada de quatro maneiras: 1) introduzir uma oração objetiva especialmente depois de
verbos que denotam „ver‟, „dizer‟ (como o caso presente) sendo traduzida pelo pronome relativo que; 2) para
introduzir uma oração temporal, sendo traduzido por quando; 3) para introduzir uma clausula ou oração causal,
porque, por causa de, visto que; e 4) junto com ~yi, para exprimir o motivo pelo qual algo talvez não ocorresse,
exceto, se não. Em todos os casos o uso introduz um determinado fato ou ação que é resultado de algum outro
fato ou ação. Cf. OSWALT, John N. yK².i In: DITAT, 1998, p.716; PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos
para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 89-92, 98-99, 102, 106-107, 140, 143-145.
73
Cf. GILCHRIST, Paul R. hp'y". In: DITAT, 1998, p. 640-641; SCHÖKEL, Luis Alonso. tp;y>. In: DBHP, 2004, p. 285.
74
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ha'r". In: DBHP, 2004, p. 596-598. Sentido genérico diferencia-se segundo um
processo: atividades referentes ao ver: examinar, inspecionar, investigar, reconhecer: o momento inicial da
percepção: perceber, descobrir, avistar, distinguir, notar, advertir, inteirar-se, constatar, encontrar; ação
duradoura: olhar, contemplar, observar, vigiar, assistir; conclusão: comprovar, reconhecer, ser testemunha.
Sentido qualificado: prestar atenção, atender, cuidar, visitar, mostrar consideração, aprovar, escolher. Sentido
translado: sentir, escutar, gozar, desfrutar, sofrer, passar, experimentar.
72
44
traduzido para o português por bela de se ver, ou bela de aparência, segue então o pronome
pessoal da segunda pessoa do feminino singular T.a' que assume a função sintática de sujeito. O
sinal massorético sof pasuq ` 75 identifica o final deste versículo.
hy"©h'w>
12a E acontecerá;
Inicia-se outro versículo, novamente introduzido pela fórmula hy"©h'w>, verbo perfeito
consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal, com valor expletivo76. Nota-se que
esta é a única vez que este verbo aparece na forma do perfeito consecutivo nesta perícope, o que
denota um tempo futuro, em português pode ser traduzido por e acontecerá. Outra observação é
que sobre o verbo encontra-se um sinal massorético disjuntivo chamado revia’ ٠
77
o qual
introduz pausa na pronúncia, em português pode ser representado por ponto e vírgula.
~yrIcê .Mih; ‘%t'ao WaÜr>yI-yKi(
12b Quando virem a ti os egípcios,
A conjunção yKi, no português pode ser traduzida como que, quando, porque. Ela pode
ser utilizada em diversas situações, entre estas para introduzir uma oração subordinada
temporal como no presente caso, traduzida por quando. O verbo ha'r:78 possui uma vasta gama
de sentido na língua portuguesa, desde ver como capacidade visual, examinar, inspecionar
investigar, notar, prestar a atenção, atender, sentir e outros. Neste versículo WaÜr>yI está na forma
do imperfeito - terceira pessoa masculino plural do qal.
75
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p.123.
Como função expletiva, em construções para o passado e para o futuro, introduz uma clausula subordinada
antes da principal (cf. vv. 11.12.14); quando a função é expletiva, não necessariamente é preciso traduzir o verbo
hy'h'. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hy"h'. In: DBHP, 2004, p. 169-176.
77
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
78
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ha'r". In: DBHP, 2004, p. 596-597; CULVER, Robert D. ha'r". In: DITAT, 1998,
p. 1383-1384.
76
45
A composição da conjunção temporal com o verbo no futuro pode ser traduzida no
português como futuro do subjuntivo, quando virem. Este é um verbo transitivo e requer um
complemento, identificável na partícula ta,, portanto o objeto direto com sufixo da terceira
pessoa do feminino singular %t'ao79 traduzida no português resulta em a ti, segue um
substantivo ~yrIêc.Mi no plural acompanhado de vogal h;, traduzida em português por os egípcios.
O acento zaqef qaton ë 80 presente na palavra ~yrIêc.Mi é disjuntivo e introduz uma pausa,
podendo ser uma vírgula. Sobre a palavra ~yrIêc.Mi encontra-se um circelus Ù o qual remete à
massorá parva que traz uma indicação81 informando que esta palavra se encontra somente 5x na
Bíblia, e dessas 4x está presente na Torá, e entre estas 4x, encontra-se 2x no texto em estudo.
tazO= ATåv.ai Wrßm.a'w>
12c Dirão, esta é mulher dele.
O verbo rm'a; já estudado anteriormente, aqui se aplica o mesmo sentido, todavia aparece
não como introdução ao discurso direto e sim como uma reflexão pessoal do que os outros
possam dizer ou pensar a respeito do que vêem, ou seja, do juízo de terceiros. Neste sentido, o
verbo pode ser utilizado para a emissão de um juízo e não tanto para dar voz a uma personagem.
No texto Wrßm.a'w> está na forma de perfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino
plural do qal, o que em português remete a um tempo futuro, podendo ser traduzido por:
pensarão, ou e dirão. Quando rm'a; anuncia e marca o início do discurso, seja direto ou
indireto, este discurso representa o objeto do verbo, portanto a oração que segue é
sintaticamente uma oração subordinada objetiva direta, introduzida pelo verbo Wrßm.a'w>.
79
A partícula ta,e normalmente indica o objeto direto. Quando o objeto direto é um substantivo definido,
precedido de vogal, ou um nome próprio, normalmente é precedido pelo indicador do objeto direto. Quando o
pronome pessoal exerce a função de complemento verbal, pode unir-se como sufixo da partícula ta,. Cf.
LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 51, 63; KELLEY, Page H. Hebraico bíblico,
1998, p. 30, 100, 439.
80
FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
81
Cf. r˜wtb h˜nm d h˜  traduzindo das cinco h˜ quatro d repetições h˜nm na Torá r˜wtb. Conferir Gn 12,12.14; Gn
43,32; Dt 26,6 e Jos 24,7. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 94-106.
46
O substantivo hV'ai, comentado anteriormente, aparece na oração como ATåv.ai,
substantivo feminino singular construto mais sufixo da terceira pessoa masculino singular.
Este pode ser traduzido no português como mulher dele, abrangendo a mesma conotação de
esposa dele. Na oração a expressão ATåv.ai assume a função de predicativo do sujeito. O
pronome possessivo dele assume a função de adjunto adnominal restritivo porque qualifica
restringindo o sentido do predicativo mulher. O pronome demonstrativo feminino singular
tazO=82 traduzido no português por esta assume a função de sujeito da oração. Sob o pronome
demonstrativo tazO= o acento atnah 83
+ indica a divisão na metade do versículo, indicado na
tradução pelo ponto.
ytiÞao Wgðr>h'w>
12d Matarão a mim
O verbo gr:h'84 traduzido para o português compreende o sentido destruir, matar,
assassinar, ferir, golpear, inclui idéias de assassinato e execução judicial, bem como a morte
de animais. Normalmente é usado para descrever a morte violenta de um homem causada por
outro homem – às vezes sem razão. Neste versículo Wgðr>h'w> está na forma de perfeito
consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal. Continuando a sequência do
futuro pode ser traduzido no português por e matarão, sendo este um verbo transitivo direto,
segue a partícula do objeto direto – sufixo da primeira pessoa do singular ytiÞa{, este
corresponde ao a mim na tradução para o português.
82
O pronome demonstrativo pode ser empregado como substantivado ou adjetivado. Na qualidade de adjetivo
atributivo é colocado sempre após o seu substantivo e recebe o artigo, já na qualidade de substantivo, quer como
sujeito quer como predicado, o pronome demonstrativo é anteposto, sem artigo. Cf. HOLLENBERG – BUDDE.
Gramática elementar da língua hebraica. 5. ed. Porto Alegre: Sinodal, 1985, p. 47.
83
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
84
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. gr:h'. In: DBHP, 2004, p. 366-367; FUHS, H. F. gr:h'. In: BOTTERWECK, G.
Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). GLAT. Vol. II di IX. ~¾lwg-#mh. Brescia: Paideia, 2002, p. 514-521.
47
`WY*x;y> %t"ïaow>
12e E a ti manterão viva.
O w de %t"a
ï ow> é uma conjunção que expressa uma sequência, juntamente com a partícula
objeto direto – sufixo da segunda feminina singular, traduzido em português por e a ti. O
verbo hy"x' no qal pode ser traduzido em português por viver e no piel pode ser traduzido por
preservar a vida, manter a vida 85. No texto o verbo WY*x;y> imperfeito – terceira pessoa
masculino plural do piel, portanto pode ser traduzido no português como manterão viva.
Sobre este verbo encontra-se um circelus Ù o qual indica uma nota na massorá parva86. Tal
nota diz que este verbo como está conjugado aparece somente 2x nas sagradas escrituras (cf.
Gn 12,12; Os 14,8). O silluq ` indica o fim da frase.
Algumas expressões deste v.13 são interessantes para compreender a narrativa.
T.a'_ ytixoåa] an"ß-yrIma. i
13a Dize, pois, minha irmã tu,
Depois da alegação de Abrão sobre a tensão vida e morte por causa da beleza de sua
mulher Sarai (cf. v.11-12), usa-se um verbo no imperativo feminino singular mais uma
partícula de interjeição. A expressão an"ß-yrIm.ai é uma composição do verbo rm;a' dizer, falar e a
interjeição an"ß87, esta partícula expressa desejo ou acrescenta ênfase à expressão.
Frequentemente unida a imperativos é conhecida, também, como partícula de súplica,
traduzida no português como, por favor, te peço.
A partícula an"ß denota que a ordem em questão é consequência lógica, seja de uma
declaração precedente (cf. vv.11 e 12), ou situação geral na qual é proferida. Quando ela ocorre
tem-se a pretensão de demonstrar que o orador considera sua ordem como consequência de sua
85
Entre os vários sentidos que este verbo pode assumir está o sentido de existir, durar, estar, permanecer,
continuar. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hy"x'. In: DBHP, 2004, p. 171.
86
Cf. b˜ duas vezes Gn 12,12 e Os 14,8.
87
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. an"ß.. In: DBHP, 2004, p. 414; LAMBDIM, Thomas O. Gramática do hebraico
bíblico. São Paulo: Paulus, 2003, p. 212.
48
afirmação anterior88, na fala de Abrão ela aparece 2x (cf. vv. 11e e 13a). Este tipo de imperativo
traz consigo o sentido de urgência, traduzido por, dize pois. É interessante notar que o discurso
de Abrão coloca Sarai, tu, como sujeito nesta oração, indicando deste modo uma transferência
de responsabilidade para a segunda pessoa do feminino.
O substantivo tAxa'89irmã, no feminino singular construto com sufixo da primeira pessoa
singular ytixoåa] é traduzido no português por minha irmã. O T.a'_ pronome pessoal da segunda pessoa
do feminino singular, traduzido no português por tu, está com o acento atnah Ñ 90, que divide o
versículo ao meio. A questão de estar no feminino inclui, de certo modo, a transferência de
responsabilidade, sendo assim a tensão da solução dos temores do patriarca é transferida para a
matriarca. “Dize, pois, minha irmã tu”. Segue a justificativa.
%rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) ‘![;m;’l.
13b Para que se faça o bem para mim por causa de ti,
Essa preposição ‘![;m;’l.91 funciona como conjunção e introduz uma oração subordinada
adverbial final, deste modo pode ser traduzida no português como para que. O verbo que lhe
segue bj;y"
92
na tradução do hebraico para o português abrange o sentido de ser bom, estar bem,
estar contente, agradar, deve ser traduzido como subjuntivo no português93. Estando no imperfeito
– terceira pessoa do masculino singular qal seguido da preposição yliä com sufixo da primeira
pessoa do singular yli-ä bj;yyI) é traduzido em português como se faça o bem para mim.
88
Cf. WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 578.
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. tAxa'. In: DBHP, 2004, p. 414; WOLF, Herbert. tAxa'. In: DITAT, 1998, p. 49-50.
90
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
91
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 127.
92
Cf. GILCHRIST, Paul R. bj;y". In: DITAT, 1998, p. 612-613.
93
Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 332.
Segundo Ross “essa palavra introduz uma locução de propósito, de modo que o verbo que lhe segue deve ser
traduzido como subjuntivo em português”.
89
49
A preposição %rEêWb[]b;94 resulta da composição de duas preposições B. mais rWb[] e sufixo da
segunda pessoa do feminino singular. Na oração é classificada sintaticamente como um adjunto
adverbial final, traduzida para o português como por causa de ti, sobre esta preposição encontrase o assento zaqef qaton ë 95, que introduz uma pausa.
`%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w>
13c E viverá minha alma por causa de ti.
O verbo hy"x', estudado anteriormente, está no perfeito consecutivo – terceira pessoa do
feminino singular do qal ht'îy>x'w> pode ser traduzido por e viverá. O nome yviÞp.n: é um substantivo
feminino singular construto – sufixo da primeira pessoa singular. A palavra vp,n,96 tem um
significado polissêmico, podendo ser traduzido para o português por alma, vida, criatura,
pessoa, apetite, mente, garganta, respiro. Assim como em outras línguas também no hebraico
é comum que um órgão ou parte do corpo assuma significados emocionais ou espirituais. Em
Gn 1,30 verifica-se o uso da combinação entre hy"x' e vp,n< onde é traduzido como alma vivente,
indicando a totalidade do ser, sua unidade de carne, vontade e vitalidade. A própria existência
envolve impulsos, apetites, desejos e vontade.
Portanto o termo vp,n, oscila entre as noções de alma e vida. Assim, Abrão pede a Sarai
para dizer que é sua irmã para que por tua causa, a minha alma continue a viver. „Minha alma‟
seria toda a pessoa, sua existência, sua individualidade, o eu da pessoa que experimenta desejos e
tem anseios, que ama e odeia, alegra-se e entristece-se.
Seguindo as indicações de Waltke97, quando vp,n< ocorre como sujeito do verbo, em
geral é traduzido por „alma‟, então o termo yviÞp.n: pode ser traduzido em português por minha
94
Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332; PINTO, Carlos Osvaldo
Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 105, 120-121.
95
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
96
Cf. WALTKE, Bruce k. vp,n,. In: DITAT, 1998, p. 981-986.
97
Cf. WALTEK, Bruce k. vp,n,. In: DITAT, 1998, p. 984.
50
alma. A expressão%lE)l'g>Bi98 é uma preposição com sufixo da segunda pessoa feminina
singular, assume a função de adjunto adverbial final. Paralelamente a %rEêWb[]b; essa expressão
significa por causa de ti. O versículo conclui-se com um sinal massorético silluq `99, que
indica o seu fim.
Após o estudo de análise morfológica e sintática, bem como da tradução do texto é
possível evidenciar estruturas que oferecem informações referentes às possibilidades de estilo.
Assim, o leitor é convidado a analisar a maneira como o redator procura dar maior expressão
ao texto, partindo de sua forma.
1.2 Análise estilística
A partir de uma visão global, antes fragmentado para estudo, o leitor é convidado a
analisar o modo como o redator procura dar ênfase e vivacidade ao texto a partir de técnicas
de construção estilística. Desde o momento em que o narrador passa a voz para a personagem
Abrão é possível identificar na construção do texto uma figura de pensamento ou de retórica
chamada gradação.
A gradação100 consiste numa enumeração de palavras, pensamentos ou idéias, cujo
sentido é cada vez mais forte ou visa uma orientação positiva num movimento global de
intensificação. A este tipo de gradação que evolui em crescente, chama-se gradação
ascendente ou clímax. Este exerce influência sob o leitor, por isso é utilizado em textos
argumentativos, quando é necessário ir aumentando a carga emotiva ou a força dos
argumentos, para conduzir a atenção do leitor até um ponto alto e decisivo.
98
Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332.
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
100
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia. Rerrassa: CLIE,
1985, p. 227; SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 35.
99
51
yTi[.d:êy" an"å-hNEhi
`T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi²
11e “Eis que sei,
11f Que és mulher bela de aparência tu.
Quando o leitor se depara com este tipo de construção literária, ou seja, a gradação,
sente uma aceleração na leitura. Um fato, ou seja, saber da beleza de Sarai (v. 11e e 11f)
desencadeia uma série de outros problemas (v. 12).
hy"©h'w>
-yKi(
~yrIêc.Mih; ‘%t'ao WaÜr>yI
tazO= ATåv.ai Wrßm.a'w>
ytiÞao Wgðr>h'w>
`WY*x;y> %t"ïaow>
12a E acontecerá;
12b Quando virem a ti os egípcios,
12c
Dirão, esta é mulher dele.
12d
Matarão a mim
12e E a ti manterão viva.
Nota-se que é crescente a série de problemas que são gerados, portanto esta gradação pode
ser denominada catábasis ou crescente101, ou se preferir escalar porque aponta para um cume, ou
clímax. Observa-se os verbos na terceira pessoa do plural. Nos vv. 12d e 12e verifica-se o auge da
tensão expresso num paralelismo de tipo chiasmo antitético102,expressões e idéias antagônicas,
para enfatizar o ponto alto ou seja a questão da vida e da morte.
ytiÞao Wgðr>h'w>
Matarão a mim
12e
`WY*x;y> %t"ïaow>
A ti manterão viva
12f
É visível o antagonismo entre – mim e ti – primeira e segunda pessoa, entre morte e vida.
A partir do versículo 13a, o leitor notará uma mudança na fala da própria personagem: a
passagem dos verbos do futuro para o imperativo, da terceira pessoa masculino plural para a
segunda pessoa feminina singular, e desta para a primeira pessoa do singular. E no que diz
respeito à estilística há uma mudança na utilização do artifício literário da linguagem, ou seja,
101
102
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 362-364.
Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese Bíblica. São Paulo: Paulus, 2000, p.199.
52
da gradação para o paralelismo sinonímico climático. O paralelismo é um artifício literário da
linguagem poética hebraica, este pode ser definido como rima das idéias.
O paralelismo sinonímico acontece quando o pensamento é semelhante e para tanto se
usa vocábulos sinônimos103. O clímax em uma narrativa é também um artifício literário,
referente à gramática ou à retórica para indicar o ponto de tensão do drama. Neste versículo é
possivel observar esta construção através do seguinte esquema.
T.a'_ ytixoåa] an"ß-yrIma. i
%rEêWb[]b; yli-ä bj;yyI) ‘![;m;’l.
`%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w>
13a Dize, pois, minha irmã tu,
13b Para que se faça o bem para mim por causa de ti,
13c E
viverá minha alma
por causa de ti.
Portanto:
AB
%rEêWb[]b; yliä-bj;yyI)
Ser bom para mim corresponde a ter a vida preservada
A‟B‟
%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w
Por três vezes (cf. vv. 12e, 13b e 13c) no discurso, a personagem Abrão transfere à
Sarai a responsabilidade por sua vida ou por sua morte, o que intensifica a tensão do drama,
gerando expectativas quanto ao seu desfecho.
Após a análise estilística o estudo convida a prosseguir dando passos, uma vez que esta
não se basta em si mesma. A análise estilística oferece elementos para a análise narrativa e
teológica, pois os dados constatados na construção estilística e sobre tudo na beleza da criação
do texto demanda mais comentários que reenvia ao aspecto narrativo, próximo passo a ser dado.
103
Cf. BULLINGER, E. W – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usados en la Bíblia, 1985, p.
292, 227; SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, 78; SILVA, Cássio Murilo Dias
da. Metodologia de exegese bíblica, 2000, p. 163.
53
1.3 Análise narrativa
Seguindo a divisão clássica de uma narrativa, no primeiro capítulo (cf. v.10-11d) o
leitor se deteve no que se denomina exposição, introdução ou apresentação, a mesma foi feita
pelo narrador. Este é onisciente, quer dizer dispõe de conhecimentos e informações
inacessíveis a uma pessoa comum, ele sabe dos fatos, por isso os narra, mas também dá
espaço para que falem e expressem o que sentem e pensam as personagens. Ele oferece dados
importantes como a mudança de tempo, a entrada em cena da nova personagem Sarai, a
informação de que ela é esposa dele, ou melhor, de Abrão o qual lhe dirige a palavra.
Não se sabe quanto tempo o casal levou para chegar onde está, nem a que ponto se
encontra, ou se têm companhia de alguém e se leva algo consigo. Não se diz nada a respeito
do que conversaram durante o caminho até se aproximarem. Qual a reação de Sarai quando se
vê na situação de descer ao Egito por causa da fome104.
Neste segundo capítulo o leitor é convidado a seguir o que na divisão de uma narrativa
se chamaria complicação. Na complicação age uma série de forças auxiliares e opositoras ao
desejo da personagem, o que intensificam os conflitos. Segundo Gancho105, “não basta
perceber que toda história tem começo, meio e fim. É necessário compreender o elemento
estruturador das partes: o conflito”.
O conflito pode ser qualquer componente da história (personagens, fatos, ambiente,
idéias, emoções), que se opõe a outro, criando certa tensão que organiza os fatos e prende a
atenção do leitor. O conflito se caracteriza pela tensão criada entre o desejo da personagem
principal e determinada força opositora.
Neste capítulo, portanto, o narrador passa a palavra à personagem, nota-se a passagem
do discurso indireto para o discurso direto por meio do verbo rm;a' que aparece como um
divisor de águas (cf. v.11d), introduzindo a fala da personagem Abrão (cf. vv. 11e-13c).
104
105
Cf. VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1982, p. 204.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 12-13.
54
yTi[.d:êy" an"å-hNEhi
`T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi²
hy"©h'w>
~yrIcê .Mih; ‘%t'ao WaÜr>yI-yKi(
tazO= ATåv.ai Wrßm.a'w>
ytiÞao Wgðr>h'w>
`WY*x;y> %t"ïaow>
T.a'_ ytixoåa] an"ß-yrIma. i
%rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) ‘![;m;’l.
`%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w>
11e “Eis que sei,
11f Que és mulher bela de aparência tu.
12a E acontecerá;
12b Quando virem a ti os egípcios,
12c Dirão, esta é mulher dele.
12d Matarão a mim
12e E a ti manterão viva.
13a Dize, pois, minha irmã tu,
13b Para que se faça o bem para mim por causa de ti,
13c E viverá minha alma por causa de ti”.
Neste momento os conflitos106 são evidenciados. O primeiro pode ser identificado como
um conflito de ordem psíquico-físico, a necessidade de entrar no Egito versus a beleza de Sarai,
esta parece preocupar Abrão, o qual até o momento não havia dito nada à sua esposa, mas
quando começa a falar se dirige a ela, fazendo-lhe um elogio cheio de tensão e expectativa.
Porque Abrão fala justo isso a Sarai? Porque lhe confessa neste momento saber de sua beleza,
que implicância pode ter a beleza de uma mulher casada? E que relevância tem a beleza diante
de uma situação de fuga da fome, ou melhor, de busca de sobrevivência em terra estrangeira?
Deste primeiro conflito se desencadeia uma série crescente de outros possíveis
conflitos em forma de profecias que parece causar-lhe temor. A personagem expõe suas
emoções em sua fala, o que de certo modo envolve o leitor e o faz identificar uma crescente
de problemas gerados no discurso de Abrão, a ponto de estar entre a vida e a morte.
Nota-se na fala de Abrão uma mudança temporal, introduzida pela conjunção yKi( que
media a transição do perfeito yTi[.d:êy" sei, conheço para o imperfeito WaÜr>yI virem, assim como a
mudança de primeira pessoa do singular para terceira pessoa do plural masculino. Em português o
primeiro verbo foi traduzido no modo indicativo e o segundo no modo subjuntivo, identifica-se a
mudança de tempo do presente indicativo para o futuro do subjuntivo. Segundo Todorov, “[...] As
106
Cf. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas, 2006, p. 13.
55
orações enunciadas no indicativo são percebidas como ações que aconteceram de fato; se o modo
é diferente, é que a ação não se realizou, mas existe em potencial [...]”107.
O discurso de Abrão foi se desdobrando gradativamente e apresentando uma cadeia de
conflitos até chegar ao seu clímax. O clímax ocorre a partir do desenvolvimento de um
conflito, imediatamente antes do desfecho. Este pode ser o momento mais perigoso para o
herói, a crise mais eminente do protagonista, o mais delicado ponto do conflito, onde não se
sabe para que lado a história penderá. O leitor encontra-se na expectativa para saber qual
rumo, ou melhor, qual será o desfecho de todos esses conflitos que envolvem Abrão e Sarai.
A alternância entre a terceira pessoa do plural masculino, a primeira do singular e a
segunda do singular feminino revelam a tensão na narrativa. O uso dos verbos na terceira
pessoa do plural masculino (cf. v. 11 WaÜr>Yi, Wrßm.a'w>, Wgðr>h'w>, WY*x;y>,) mostra o quanto a personagem
se sente ameaçada. Por outro lado, o uso do sufixo na primeira pessoa do singular junto à
preposição yliä-bj;yyI) leva o leitor a interpretar a intenção do patriarca em relação à sua
autopreservação em detrimento do tu feminino como elemento central que sustenta o
conteúdo da trama.
É a presença feminina - T.a,' %rEêWb[]b, %lE)l'g>Bi - que desencadeia todos os acontecimentos,
a forma sufixal no feminino demostra o foco da tensão na narração apontando com ênfase a
pretenção de Abrão com relação à sua esposa, transferindo a ela a responsabilidade pela sua
vida, tendo como eixo a temática da beleza e da esposa ou irmã.
Tais questões geradoras de conflitos agem de tal modo que a verossimilhança 108 dos
fatos desperta a curiosidade sob uma causa e esta vai desencadeando consequências que
envolvem o leitor e o convida a prosseguir o caminho junto às personagens. Porém não se
107
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 41.
Cf. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas, 2006, p. 12; SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus
nas narrativas dos homens. São Paulo: Loyola, 2005, p. 53-54.
108
56
pode pensar que tudo isso seja somente artifício literário, possivelmente há um fundo
teológico sob o qual o leitor é convidado a voltar sua atenção.
2. Estudo histórico-teológico
2.1 A identidade de Sarai109
Sarai é a nova personagem introduzida nesta narrativa. As sagradas escrituras
fornecem algumas informações que possibilitam conhecer melhor a personagem. As primeiras
referências a Sarai se encontram no capítulo 11 do livro do Gênesis descrevendo-a (cf. Gn
11,29): a mulher de Abrão se chamava Sarai (cf. Gn 11,30); Sarai era estéril: não tinha filhos;
é nora de Tare e esposa de Abrão (cf. Gn 11,31).
Juntamente com seu esposo e família partiram de Ur dos caldeus à Canaã, mas
interromperam a viagem e se fixaram em Harã. Quando Abrão tinha 75 anos, deixou a casa
paterna para cumprir a aliança feita com Deus. Levando consigo Sarai e tudo o que tinha
partiu para a terra de Canaã. Dez anos após a chegada na Terra prometida Sarai, não tendo
dado a luz, deu sua serva Agar para que tivesse filho com seu esposo Abrão (cf. Gn 16). Aos
noventa anos, por graça de Deus (cf. Gn 17-18), Sara deu à luz a Isaac (cf. Gn 21,1-7).
Sarai, era 10 anos mais jovem que Abrão (cf. Gn 17,17), viveu até os 127 anos (cf. Gn
23,1), morreu em Cariat Arbe (cf. Hebrom Gn 23,2), na terra de Canaã e foi enterrada na
gruta de Macpela de frente a Mambré, na terra de Canaã (cf. Gn 23,19), adquirida por Abrão
dos filhos de Het (cf. Gn 23,16).
109
Cf. METZGER, Isabel Mackay. Sara. In: BRUCE M. METZEGER – MICHAEL D. COOGAN (Orgs.).
Dicionário da Bíblia Vol.1: as pessoas e os lugares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda. 2002, p. 291;
GOHEN, Gary G. yr"f'. In: DITAT, 1998, p. 1494; SCHÖKEL, Luis Alonso. yr"f'. In: DBHP, 2004, p. 649;
CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas,
2004, p. 77-111; GRENZER, Matthias. Três visitantes. In: Revista de Cultura Teológica. 57 (2006) 14, p. 61-73.
57
Introduzida em Gn 11,29 Sarai, que traduzido para o português significa „minha
princesa‟, é o nome da esposa de Abrão até o Gn 17,15, quando o Senhor muda para Sara
„princesa‟. Deste modo diz-se que a partir de então Sara passou a ser a princesa não apenas de
Abrão e de sua posteridade, mas de todas as famílias da terra110. O profeta Isaias, de certo
modo, ilustra essa passagem do particular para o universal. Em referência explicita a Sarai Is
51,2 a apresenta como mãe, no sentido corporativo, de todos os que buscam YHWH.
Segundo Suzana111, Gn 11,29 trata do matrimônio de Sarai, embora quase nada se fale
de Sarai. Ela é apresentada na genealogia de Taré através da informação: “Abrão e Nacor se
casaram: a mulher de Abrão se chamava Sarai; a mulher de Nacor se chamava Melca, filha de
Arã, que era o Pai de Melca e de Jesca”. Note-se que a Sarai não foi atribuído ascendência, tal
omissão é significativa. Antes de ser esposa de Abrão e nora de Taré, ela não tem identidade.
Sarai é caracterizada por duas negações:
1) A omissão de sua ascendência, ou seja, sem referência de parentes e origens.
2) Sua inabilidade de produzir descendência112 (cf. Gn 11,30; 16,1).
Portanto o status de Sarai dentro da estrutura familiar é indefinido. Sarai não se
encaixa nos padrões estruturais da sociedade com relação à ascendência (passado) e
descendência (futuro). A incapacidade de procriar problematiza sua posição social, por outro
lado sua feminilidade é ressaltada pelo fator da beleza física (cf. v.11f), a ponto de
comprometer sua vida e a de seu esposo, constituindo uma ameaça. Sua não identidade é
relevante se examinada em relação às bases sociais de seu universo: descendência patrilinear,
residência patrilocal e instituição do matrimônio.
110
Rashi comenta que o nome Sarai (yr"f') significa “minha princesa”, sugerindo que ela é uma princesa para
mim, ou seja para Abrão, mas não para os outros. Agora (cf. Gn 17,15) Sara (hr'f') será o seu nome. A ausência
de qualquer sufixo indica que ela será princesa para toda a humanidade. Cf. SEFER BERISHIT 2. O livro do
Gênese: compilado e adaptado por Rabino Chaim Miller; tradução Miriam Pomerou. São Paulo: Maayanot,
2008, p. 95.
111
Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica, 2004, p. 22-23. 27.29. O casal é
estéril no sentido de serem desprovidos de raízes (saíram da casa do pai, e do meio da parentela, são imigrantes)
e de semente (não tem filhos).
112
Por outro lado a nota sobre a infertilidade de Sarai, já de início, deixa em suspense algumas questões: O narrador
estaria antecipando um dado? Como pode saber que Sarai era estéril se ela apenas tinha se casado com Abrão?
58
2.2 Sarai esposa de Abrão113
A sociedade israelita antiga se fundamenta nas relações de parentesco, as pessoas são
conhecidas pelo seu nome, caracterizado pela partícula de filiação !Be ou tB; mais o nome
próprio do pai, nesta ordem a ascendência significa identidade. A mulher, uma vez casada, é
designada pelo nome próprio mais a partícula de afiliação tv,aeÞ e o nome do marido (cf. Gn
11,31 ~r"äb.a; tv,aeÞ yr:äf').
Na sociedade patrilinear a ordem social é estabelecida na relação pai-filho. Neste
sistema as mulheres dão à luz, mas não possuem descendentes. Toda a constituição,
identificação, manutenção e legitimação das estruturas sociais são baseadas em linhas de
parentesco. As filhas que se casam fora do clã, não são membro da linhagem da mesma forma
que seus irmãos. Igualmente suas mães não são membros em sentido pleno da linhagem de
seus maridos e filhos. O sistema de parentesco implica diretamente no status da mulher, visto
que este é a soma de muitos elementos referentes a direitos, deveres, privilégios, opções e
restrições que as mulheres de determinado grupo experimentam ao se deslocarem em
progressão inevitável de grupos de idade e de papéis sociais.
A imagem da mulher nas narrativas do Gênesis depende da posição que ocupa na família:
filha, irmã, esposa, mãe, concubina, serva. Uma variante é a imagem da esposa estéril, esta
qualidade neutraliza dois pressupostos fundantes da instituição do matrimônio patriarcal.
1) A aquisição, através do dote, do poder reprodutivo da noiva pelo futuro marido;
2) O papel da esposa de reproduzir a linhagem do marido;
Oriunda de outra patrilinhagem, a mulher, será estrangeira na família de seu marido
até que gere filhos. Sua integração se dá mediante a geração de filhos para esta linhagem,
113
Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica, 2004, p. 37-44; EISENBERG, Josy.
A mulher no tempo da Bíblia: enfoque histórico sociológico. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 49-54; BARTOLINI,
Elena Lea. Il ruolo della donna nell´ebraismo. In: Le donne nelle culture del mediterraneo: Religione, politica,
libertà di pensiero. Milano: Associazione Culturale Mimesis, 2006, p. 23-46. Quaderni Nangeroni; BIANCHI,
Francesco. La donna del tuo popolo: La proibizione dei matrimoni misti nella Bibbia e nel medio giudaismo.
Roma: Città nuova, 2005, p. 15-34.
59
assim a maternidade implica aquisição de alguma segurança (em termos de herança, caso
morra o marido), autoridade (dentro da família nuclear) e status (de mãe). A mulher é como o
alicerce de uma construção que chega ao auge com a maternidade. Eis por que a omissão da
ascendência e a esterilidade são características de Sarai, que lhe tocam diretamente na
identidade e na promessa de Deus114.
2.3 Sarai mulher bela115
Abrão pela primeira vez na Bíblia dirige a palavra a Sarai, mulher dele, dizendo saber,
conhecer sua beleza. O verbo utilizado tem uma abrangência vasta, pode expressar o conhecimento
adquirido por meio dos sentidos, uma vez que paralelo ao ato cognoscitivo acontece sempre uma
percepção sensorial, tal como ver ou ouvir. Todavia a expressão [d"y116
" vai além do conhecimento
perceptivo, envolve o coração. Esse é a sede do aprofundamento da percepção e do processo de
decisão. No coração os diversos conteúdos do conhecimento se concentram em uma visão da
realidade. Nele são lançados os fundamentos para a fidelidade à aliança.
O conhecimento é fruto de uma busca sistemática. Enquanto expressão de amor, o
verbo conhecer denota também a relação sexual entre o marido e a mulher, podendo significar
o desvelar da primeira noite e até mesmo o ato sexual. Neste sentido Abrão enquanto esposo
de Sarai a conhece sob ângulos que ao leitor o verbo sugestiona não ser o simples saber de
estética, mas se refere também à bondade e à fidelidade relacionada ao coração.
Conforme Bartolini117, a afirmação de que „as filhas de Israel são belas‟, se
fundamenta na antropologia hebraica, segundo a qual o homem e a mulher são compreendidos
como criados a imagem de Deus, na unidade inseparável de corpo e espírito, no qual o
114
Cf. GRENZER, Matthias. Três visitantes. In: Revista de Cultura Teológica. 57 (2006) 14, p. 61-73. Nas
páginas 64-66 o Prof. Matthias apresenta a situação da vida do casal, abordando primeiramente a posição de
Sara, como mulher casada, todavia sem filhos.
115
Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 175-191.
116
Cf. G.J. BOTTERWECK. [d"y". In: GLAT. Vol. III di IX. rmh-qry. Brescia: Paideia, 2003, p. 571-594.
117
Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p.175.
60
coração é centro vital da pessoa, lugar original dos sentimentos, razão e vontade. Deste modo
é difícil considerar a beleza feminina somente do ponto de vista exterior.
Na tradição judaica a beleza de Sarai é reconhecida e exaltada118. A beleza de Sarai
não é exclusiva, mas é inserida na convenção segundo a qual as matriarcas, não obstante a
negatividade da esterilidade são mulheres amadas, preferidas e belas 119. Ao longo do texto se
nota um elogio à beleza da matriarca (cf. vv. 11f, 14d, 15b). A beleza de Sarai não é descrita,
mas exaltada. Na mesma linha de Chalier, Helena Bartolini120 diz que a beleza das matriarcas
deve ser levada em consideração dentro do contexto em que a Tradição Hebraica considera a
beleza feminina, para o qual „todas as filhas de Israel são belas‟.
A autora121 reafirma que a beleza não se limita ao mero aspecto exterior, mas
compreende todas as qualidades da mulher „santa‟ (cf. Pr 12,4) e fonte de „bênção‟ para o
próprio marido. Partindo deste pressuposto, diz a autora, se compreende os comentários do
midrash122, que se referem a Sarai como esplêndida „coroa‟ de Abrão e „princesa de todos‟.
O livro dos Provérbios 12,4 diz: “A mulher forte é a coroa do marido”. Sarai é a coroa
de Abrão porque sua descendência vem de Isaac (cf. Gn 21,12), por isso, Deus diz a Abrão para
118
Segundo Chalier, na tradição hebraica não existe uma única e vinculante interpretação da Bíblia: ao contrário,
cada mestre pode avançar na própria leitura pessoal. Na medida em que encontrem no texto mesmo as
justificações do que ele propõe. A autora lembra que uma das principais preocupações dos mestres foi sempre a
de preencher as „lacunas‟ do texto, dando respostas ao não dito e ao não escrito. Sendo assim, entorno a cada
figura bíblica nasceu uma longa série de interpretações na tentativa de penetrar no mais profundo possível da
narrativa e desvendar seus eventuais segredos após ter interrogado o texto de modo atento e refinado. Por isso
para tratar do tema das matriarcas ela se serve amplamente das tradições (midrashim, targumim, Rashi, Zohar...)
lembrando um conjunto de conceitos importantes a propósito das modalidades seguidas no passado pelos
mestres de Israel ao interpretar o texto sagrado. Cf. CHALIER, Catherine. Le matriarche: Sara, Rebecca,
Rachele e Lea. Firenze: Giuntina, 2002, p. 19-23.
119
As Sagradas Escrituras proclamam a beleza das mulheres em Sarai (cf. Gn 12,11.14), Rebeca (cf. Gn 24,16;
26,7); Raquel (cf. Gn 29,17); Noemi (cf. Rt 1,20); Abigail (cf. 1Sm 25,3); Betsabéia (cf. 2Sm 11,2); Tamar, irmã
de Absalão (cf. 2Sm 13,1); Tamar, filha de Absalão (cf. 2Sm 14,27); Ester (cf. Est 2,7); Sara, filha de Raguel (cf.
Tb 6,12); Judite (cf. Jt 8,7); Susana (cf. Dn 13,2); as filhas de Jó (cf. Jó 42,15). Cf. GILCHRIST, Paul R. hp,y". In:
DITAT, 1998, p. 641; BAUER, J.B. Beleza. In: BAUER. Dicionário bíblico – teológico. São Paulo: Loyola,
2000, p. 40-42.
120
Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 175-184.
121
Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 175.
122
O midrash é uma forma de interpretar o texto bíblico atualizando-o, inicialmente pertencia à tradição oral,
posteriormente foi registrado por escrito. Cf. MALANGA, Eliana Branco. Bíblia hebraica como obra aberta.
São Paulo: Humanitas-FAPESP, 2005, p. 207.
61
„fazer tudo o que Sara pedir‟(cf. Gn 21,12). Segundo Rashi123, Deus disse a Abrão para escutar
a Sarai, porque ela era superior a ele em profecia. Sarai foi abençoada (cf. Gn 17,16) e visitada
por Deus com especial providência (cf. Gn 21,1), devido a sua particular beleza revelada na
fidelidade (cf. Gn 12 e 20), assim ela se tornou canal de bênção para toda a humanidade.
Segundo Chalier124 Sarai é recordada como mulher de extraordinária beleza, mesmo em
idade avançada. Tal beleza pode ser interpretada em chave metafórica. De fato, assim como é
certo que o esplendor juvenil de cada criatura humana é designado a apagar-se, ou pelo menos
atenuar-se, a perpétua beleza de Sarai é interpretada como uma metáfora da aliança que Deus
fez com Israel: laço que nada, nunca, será em grau de destruir. Assim como a beleza de Sarai a
aliança não está sujeita à ação do tempo, ela não é corruptível, permanece sempre, se conserva e
é causa de estupor aos olhos humanos. É uma beleza que confunde os outros povos, bem como
confunde Abrão no momento em que é forçado a migrar ao Egito para fugir da fome125.
2.4 Beleza, vida e morte
A narrativa usa o adjetivo tp;y> para designar o aspecto belo, esta atenção à beleza não é
uma novidade, também os filhos dos deuses escolhem as suas mulheres, ou seja, as filhas dos
homens, segundo a sua beleza (cf. Gn 6,2). O narrador antigo não omite o fato de a beleza
feminina fazer parte da história de decisões humanas desviadas (cf. Gn 6,1-4) até o ponto de
tornar-se um perigo para a vida (cf. Gn 12,11-13), e até mesmo ser falaz (cf. Pr 11,22)126.
123
Cf. SEFER BERISHIT2. O livro do Gênese, 2008, p. 125.
Cf. CHALIER, Catherine. Le matriarche, 2002, p. 27-33.
125
RASHI comenta este versículo dizendo que segundo a agadá, até o presente momento, Abrão não havia fixado o
olhar em Sarai, por causa da castidade que reinava entre ambos, mas teve que fixá-la em função dos acontecimentos
que se narram. Outra explicação é que habitualmente os esforços de uma viagem deixam as pessoas feias, mas para
Sarai foi diferente sua beleza foi conservada. Outra explicação é que chegou a hora de preocupar-se com a beleza de
Sarai, que sempre foi bela, mas agora estariam entrando num país onde as pessoas são feias e não estão habituados a
ver uma mulher bonita. Cf. EL PENTATEUCO. El Pentateuco: Com el comentário de Rabí Sholomo Yitzjaki
(RASHI). 2. ed. Buenos Aires: Editorial Yehuda, 1976, p. 50. Tais comentários se fazem compreender devido ao que o
Egito representa para o povo da Aliança. Esse é lugar de escravidão e sofrimento, portanto é difícil contemplar ou
vivenciar a beleza deste lugar. A verdadeira beleza vem da terra prometida e dos portadores da aliança.
126
Cf. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1975, p. 102-106.
124
62
A beleza tornou-se motivo de tensão contínua. Logo após o chamado divino a
promessa parece ameaçada. Abrão e Sarai se vêem forçados a emigrar por causa da fome que
pesava sobre a terra. Agora uma nova ameaça, a beleza da matriarca. Nestes versículos a
tensão gira em torno ao „ver‟ dessa beleza (cf. vv. 11f, 12b, 14d)127. Embora o problema não é
o fato de somente vê-la como mulher bela, e sim de vê-la como esposa dele (cf. v. 12c-12e).
O temor de Abrão pode fundamentar-se na possibilidade de que quando um soberano se
interessa por uma mulher casada, este pode encontrar estratégias para matar o marido a fim de
possuir a mulher (cf. 2Sam 11,15-17). Este mesmo fato, todavia, não é único, mas se repete
três vezes no Gênesis, ou seja, em Gn 20,2; 26,7 e 12,13128.
12,13
Dize, pois, minha irmã tu,
para que se faça o bem para
mim por causa de ti, e viverá
minha alma por causa de ti.
20,2
Abraão disse a sua mulher
Sara: “é minha irmã” e
Abimelec, rei de Gerara,
mandou buscar Sara.
26,7
Os homens do lugar
interrogaram-no sobre sua
mulher e ele respondeu: “é
minha irmã”.
T.a'_ ytixoåa] an"-ß yrIma. i
%rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) ‘![;m;’l.
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‘~AqM'h; yveÛn>a; Wlúav] .YIw:)
rm,aYOàw: ATêv.ail.
awhi_ ytixoåa]
Cada narrativa tem suas particularidades, por isso a atenção aqui é somente no que diz
respeito ao fato de os patriarcas usarem a mesma estratégia em situações semelhantes e
basicamente pelo memo motivo, ou seja, o temor da morte.
Abrão desempenha de certo modo o papel de profeta. Usando os verbos no futuro
profetiza sob a provável ação dos egípcios e busca precaver-se de proteção. O patriarca vê a
própria vida ameaçada de todos os lados. A mesma situação se repete em Gn 20,11. Abrão é
imigrante em Gerara e prevendo a sua morte procura conservar a sua vida expondo sua
127
128
Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 70; VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis, 1982, p. 204.
Para os textos citados usei a tradução da Bíblia de Jerusalém na versão em português de 1981.
63
esposa, mesmo assim é de Deus que sai a afirmação „ele é um profeta‟ Gn 20,7. A palavra
profeta indica a idéia de porta-voz nomeado por Deus.
A morte os rodeia. Se permanecer na terra pode morrer de fome e se emigra corre o
risco de morrer nas mãos do Faraó. Ele teme „matarão a mim‟ (cf. v. 12d). Seu temor faz
pensar na ordem do Faraó às parteiras, quando os hebreus estavam no Egito: “se for menino,
matai-o. Se for menina, deixai-a viver” (Ex 1,16;22). Abrão se preocupa com a própria vida,
mas coloca em risco a vida de Sarai129. Em „exílio‟, sob o jugo de potências „estrangeiras‟ a
vida do profeta é ameaçada, não só a sua vida é ameaçada, mas também a aliança, o futuro da
geração e de todo o povo130.
Abrão e Sarai podem ser prefigurações da história do povo da aliança. História que
começa com um casal, depois uma família, um clã, uma nação. Não é difícil acreditar na
possibilidade de o povo reler a sua própria vida à luz da fé a partir da experiência do patriarca
e da matriarca. Igualmente hoje também povo em mobilidade pode ter Abrão e Sarai como
prefiguração de suas próprias experiências, que na busca por sobrevivência se vêem
ameaçados pelas grandes potências. De fato os dados apontam aumento na migração
feminina, e um fenômeno notável de exploração da mesma, através do tráfico e outras práticas
de injustiça. A história se repete com as mais diversas personagens.
CONSIDERAÇÕES
Este segundo capítulo tem como título „Sarai mulher de bela aparência‟. Os versículos
referentes a este capítulo são 12,11e-13d, estes foram estudados sob as duas perspectivas
propostas, ou seja: estudo linguístico-literário e o estudo histórico-teológico.
129
CHOURAQUI, André. A Bíblia: no princípio (Gênesis). Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995, p. 135.
Cf. MÜLLER, H. P. aybin". In: GLAT. Vol. V di IX. ~ym-rvn. Brescia: Paideia, 2005, p. 518; CULVER, Robert
D. aybin". In: DITAT, 1998, p. 905-906.
130
64
Quanto ao estudo linguístico-literário, o texto foi analisado em sua estrutura
morfológica, sintática e léxica, chegando à tradução proposta. Ao longo deste estudo nota-se
características particulares destes versículos, tais como a alteração do tempo verbal,
discorrendo entre passado, presente e futuro, bem como, entre o modo ativo e imperativo.
Não só o tempo e o modo dos verbos são alternados, mas também as pessoas, a voz do
patriarca perpassa entre a primeira pessoa do singular, segunda pessoa do singular feminina e
terceira pessoa do plural masculino o que de certo modo revela a tensão contida na narrativa.
Com relação à análise estilística se evidencia a figura de linguagem chamada gradação
ou catábasis, bem como o paralelismo chiasmo antitético, o que contribui para confirmar o
que foi dito referente ao caráter conflituoso deste trecho da narrativa.
Tratando da análise narrativa os versículos estudados neste capítulo correspondem ao
que a critica narrativa chama de complicação, de fato o patriarca e a matriarca vão tecendo e
se envolvendo em uma série de conflitos que geram tensão e expectativas no leitor. Todas
essas questões serviram para o passo sucessivo, ou seja, o estudo histórico-teológico.
No estudo histórico-teológico ao aprofundar sobre a identidade de Sarai, nota-se que ela é
uma pessoa sem passado e com futuro ameaçado, até então sua identidade é ser mulher de Abrão,
todavia não totalmente integrada, pois tal integração se dá quando a mulher tem um filho e Sarai é
estéril, mas nada é impossível para Deus, Ele pode „fazer da estéril mãe feliz‟ (cf. Sl 113,9).
Neste texto é evidente a celebração da beleza da matriarca. Sua beleza não é descrita, mas
sim exaltada, esta parece superar a das mulheres egípcias, despertando a atenção de Abrão, dos
egípcios, dos oficiais do Faraó e do próprio Faraó, o qual a leva para seu harém. Todavia a beleza
incorruptível e cobiçada de Sarai é também, em linguagem metafórica, expressão visível da
eternidade da Aliança de Deus com Israel. Assim como a beleza de Sarai, também a Aliança
tornou-se motivo de perseguição, dominação e morte para seus descendentes.
65
É interessante observar como o redator vai tecendo e interligando os fatos, primeiro
Deus chama o casal, cujo futuro está comprometido devido à esterilidade da esposa, e a estes
promete terra e descendência, mas o que encontram é fome na terra e perseguição por parte de
seus hospedeiros, sendo assim parece improvável que a promessa divina tenha êxito. Como esta
situação poderá ser revertida é o que será estudado no próximo capítulo.
66
CAPÍTULO III
INTERVENÇÃO DO SENHOR POR CAUSA DE SARAI
O narrador desempenha um papel fascinante nas histórias bíblicas, pois ele sabe
combinar onisciência e discrição. Seu saber estende-se desde os primórdios do mundo.
Relatando precisamente nos termos e ordens do Criador, até os pensamentos e sentimentos
ocultos das personagens, o que ele tanto pode resumir como expor das mais diversas formas.
O narrador sabe de todos os detalhes e por isso é confiável, às vezes escolhe surpreender o
leitor, mas não induz ao erro131.
Nesta perícope o trabalho do narrador é de recitar, ele não faz discursos e nem emite
juízo sobre as personagens, parece garantir um saber abrangente compartilhado parcialmente
com o leitor. Em seu modo de narrar demonstra um conhecimento integral e coerente, que é
de Deus, expressando-se como um „delegado‟ divino confiável e anônimo. O leitor é
convidado a continuar o caminho estudando progressivamente a perícope proposta.
131
ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 271-272.
67
1. Estudo linguístico-literário Gn12,14a-18b
1.1 Tradução e análise morfológico-sintático
yhi§y>w:
14a E aconteceu;
O narrador retoma a voz com o verbo hy"x', já analisado anteriormente. Nesta posição o
verbo assume o valor de fórmula expletiva transicional, ou melhor, não mais para introduzir
uma narrativa, mas indicando ao leitor que aqui há uma transição de tempo e de voz. De fato
há uma passagem da voz da personagem para a voz do narrador sem que tal passagem tenha
sido explicitamente anunciada. Sobre a palavra encontra-se um assento massorético disjuntivo
denominado zaqef gadol 132
¨ indicando uma pausa.
hm'y>r"+c.mi ~r"Þb.a; aAbïK.
14b Após chegar Abrão ao Egito
Este verbo awb, já analisado anteriormente (cf. v. 11c), corresponde a muitos significados
em português, diferenciados segundo alguns critérios: entrar, meter-se; transpor; chegar, acercarse; ir, vir, voltar e outros 133. Foi dito que em sentido físico indica o movimento em relação a um
referencial. Se, superado o referencial se diz entrar; a passagem do limite será transpor; tocá-lo é
chegar; maior distância é acercar-se; sem definir distâncias é ir ou vir.
No texto encontra-se como infinitivo construto134 qal aAbïK.' e assume a função de verbo
que introduz uma oração subordinada adverbial temporal. Este infinitivo construto aparece
com a preposição K.135, a qual somada a um verbo no infinitivo assume função temporal. Em
132
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
Cf. MARTENS, Elmer A. awb. In: DITAT, 1998, p. 155.
134
Cf. WALTKE, Bruce K – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 604.
135
O infinitivo construto com a preposição K. pode ser traduzido como verbo de uma oração temporal, não contém
em si a noção de tempo, este é adquirido no contexto. Cf. KELLEY, Page H. Hebraico bíblico, 1998, p. 82 e 217.
133
68
Gn 12,14b o contexto comunica a idéia de que se havia chegado, ou seja, tocado ou superado o
ponto de referência136, deste modo foi traduzido para o português como após ou ao chegar137.
Nome próprio ~r"Þb.a;, Abrão, sujeito da oração.
O substantivo hm'y>r"+c.mi138 é um acusativo terminativo139, indicado pelo sufixo diretivo
he locale h 140
' , este refere-se ao lugar para onde alguém ou algo se dirige, resultando em
português na preposição que indica o sentido para qual se dirige ou está Abrão, ou seja, ao
Egito. Na análise sintática a expressão ao Egito é classificada como adjunto adverbial de
lugar. Sob a palavra encontra-se um assento massorético atnah
+
141
indicando que esta é a
metade do versículo, encontra-se também um sinal massorético denominado circelus Ù com a
seguinte indicação xOkO, o que significa que esta palavra aparece 28x no texto massorético 142.
hV'êaih'ä-ta, ‘~yrIc.Mih; WaÜr>YIw:
14c Viram os egípcios a mulher,
O verbo ha'r", traduzido em português por ver, ou viu. Este verbo estudado
anteriormente (cf. v. 12b), aqui aparece no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do
masculino plural do qal WaÜr>YIw:, foi traduzido para o pretérito perfeito em português, viram. Este
‘~yrIcM. ih; é um substantivo, ou seja, um nome próprio no masculino plural acompanhado de
artigo definido, traduz-se para o português como os egípcios. A palavra hV'êaih'-ä ta, tem o
136
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. awb. In: DBHP, 2004, p. 91.
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. awb. In: DBHP, 2004, p. 304, nº5.
138
Cf. PLUMLEY, J. Martin. Egito. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da
Bíblia Vol.1: as pessoas e os lugares. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor
Ltda, 2002, p. 66-69; HAMILTON, Victor P. my>r'c.mi. In: DITAT, 1998, p. 870-871.
139
Acusativo terminativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo
Testamento, 1998, p. 21-23.
140
O acusativo no hebraico pode assumir várias funções adverbiais, equivalendo a um adjunto adverbial. O
presente caso é um acusativo terminativo, que indica o local para onde alguém ou algo se dirige. Destaca-se
ainda a presença do sufixo h ' denominado he-locale, esse é usado para indicar a direção de um verbo de
movimento. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p.
21. 23-24. O he-locale pode ser acrescentado a substantivos comuns ou advérbios de lugar. Cf. KELLEY, Page
H. Hebraico bíblico, 1998, p. 179-180; BARTELT, Andrew H., Gramática do hebraico bíblico, 2006, p. 124.
141
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
142
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 98 - 99.
137
69
indicador do objeto direto ta, o artigo definido h' e o nome feminino singular absoluto, foi
traduzida para o português como a mulher. Quando o objeto de um verbo é um substantivo
definido ou nome próprio, normalmente é precedido pelo indicador do objeto direto143. Sobre
esta palavra encontra-se um sinal massorético disjuntivo chamado zaqef qaton 144
ë que indica
pausa. No texto massorético encontra-se ainda um circelus Ù sobre a palavra ‘~yrIcM
. ih; que
reenvia à nota indicando rOwtb hOnm dO hO que, das cinco incidências desta palavra, quatro são
constatadas na Torá145.
`dao)m. awhiÞ hp'îy"-yKi(
14d Porque ela era muito linda.
A conjunção yKi146entre outras, tem a função de introduzir uma oração explicativa.
Esta é a segunda vez que este adjetivo hp'y"147 é usado (cf. v. 11f). Neste versículo está no
feminino singular, traduzido no português como porque era bela; awhiÞ148 pronome pessoal
terceira pessoa do feminino singular. Dentre outros a expressão dao)m.149 pode ser classificada
como advérbio de intensidade, pois equivale a forma que acrescentam ênfase, grandeza,
intensidade. No português pode ser traduzida por muito, ou transformada em morfema de
superlativo (-íssima, -aço, -ão) lindíssima. O versículo termina com um sinal massorético
sulluq `150 indicando seu fim.
143
Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 51, 63; KELLEY, Page H. Hebraico
bíblico, 1998, p. 30, 100, 439.
144
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
145
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 98, 97, 102, 97. (cf. Gn 12,12; 12,14;
43,32; Dt 26,6 e Js 24,7).
146
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 139-143.
147
Cf. GILCHRIST, Paul R. hp'y". In: DITAT, 1998, p. 640-641.
148
Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332. Qerê perpetuum awh- ayhi;
FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 118.
149
Cf. KAISER, Walter C. dao)m.. In: DITAT, 1998, p. 801.
150
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
70
h[oêr>p; yrEäf' ‘Ht'ao WaÜr>YIw:
15a Viram a ela os oficiais do Faraó,
O v. 15 inicia com o verbo ha'r", que em português abrange o sentido de ver. Esta é a
terceira vez que ele aparece nesta narrativa (cf. 12b, 14c e 15a). Segue a partícula ‘Ht'ao, composta
pela partícula ta, mais sufixo da terceira pessoa do feminino singular, em português foi traduzida
por a ela. O substantivo masculino plural construto yrEäf151
' em português significa cacique, chefe,
governante, oficial, comandante ou príncipe, oficiais do. O nome h[oêr>p;152 é título do rei do Egito.
O nome Faraó neste versículo é repetido três vezes. Sobre o nome encontra-se um sinal
massorético disjuntivo zaqef gaton 153
ë indicando uma pausa.
h[o+r>P;-la, Ht'Þao Wlïl.h;(y>w:
15b Elogiaram a ela para o Faraó
O verbo ll;h'154 no piel significa louvar, ponderar, admirar, elogiar, enaltecer, exaltar; no
texto Wlïl.h;(y>w: ele está no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino plural do piel.
Seguindo a lógica do tempo e do contexto, o verbo pode ser traduzido para o pretérito perfeito na
língua portuguesa. Segue o indicador do objeto direto com sufixo da terceira feminina singular,
sendo assim a tradução para o português pode ser louvaram-na, elogiaram a ela. Continua o texto
h[o+r>P;-la,, a preposição -la,155 entre outros pode ter sentido de objeto indireto, assim como sentido
direcional, como o verbo é transitivo direto consequentemente o sentido é direcional. Sob o nome
h[o+r>P; encontra-se um sinal massorético disjuntivo atnah =
156
que indica a metade do versículo e
pode introduzir uma pausa.
151
Cf. COHEN, Gary G. rf'. In: DITAT, 1998, p. 1493.
Cf. HAMILTON, Victor P. h[oêr>p'. In: DITAT, 1998, p. 1239.
153
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
154
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ll;h'. DBHP, 2004, p. 180.
155
A preposição la, pode ter diversos sentidos. Dependendo do contexto pode ter sentido de objeto indireto,
desvantagem, benefício ou vantagem, especificação, norma, direcional e sentido locativo. Cf. PINTO, Carlos
Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 116.
156
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p.123.
152
71
`h[o)r>P; tyBeî hV'Þaih' xQ:ïTuw:
15c Levaram a mulher para a casa do Faraó
O verbo xq;l' é polissêmico, tem o sentido de colher, tomar, agarrar, pegar, xQ:ïTuw: é um
imperfeito consecutivo – terceira pessoa do feminino singular do qal passivo, segundo Allen157
“esta forma é forçosamente passiva por causa do padrão u + a, parece um hotfal, mas não é,
restando ser qal passivo, que os massoretas só conseguiram representar com a vocalização desse
tema”, foi traduzido para o português como e levaram (foi levada, foi tomada), segue o
complemento do verbo hV'Þaih', cuja tradução em português pode ser a mulher.
A palavra tyIB'158 abrange o sentido de casa, morada, habitação, domicílio. Seu
significado vai depender do contexto, segundo os sujeitos que a habitam, sua função, suas
qualidades: palácio, mansão, lar, oficina, sala, cárcere, harém, residência, pousada, albergue,
mausoléu. Denota igualmente um espaço ou recinto no qual se contém algo, pelo qual se
atravessa daqui, dentro, por dentro, interior, através de, além de, frasco, redoma, extensão,
perímetro. Os que vivem ou o que há na casa: família, criadagem, vizinhança, corte, dinastia,
abrangendo assim um sentido ampliado para designar grupos humanos, tribos, clãs, nações. O
termo h[o)r>P; tyBeî é substantivo masculino singular construto, traduzido para o português como
casa do Faraó159, este vem acompanhado de um sulluq `160 sinal massorético que indica o fim
do versículo.
Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W
16a E para Abrão foi feito o bem por causa dela,
Como está escrito ~r"îb.a;l.W aparece somente neste texto. Quando o sujeito é colocado em
primeiro lugar na frase a finalidade é evidenciá-lo como destaque. O nome é precedido pela
157
Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332.
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. tyIB. In: DBHP, 2004, p. 101-102.
159
Adjunto adnominal restritivo – genitivo locativo indica o local ou esfera em que algo ou alguém se situa. Cf.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 21.
160
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
158
72
conjunção W e a preposição l., esta preposição entre outros é utilizada para indicar o objeto
indireto, como dativo, no sentido direcional, a tradução para o português pode ser e para Abrão.
O verbo bj;y"161 no qal significa bem, bom, agradável, contente. Esta é a segunda vez
(cf. v. 13b) que este verbo é usado nesta narrativa. No hifil significa alegrar, fazer o bem,
portanto byjiÞyhe é um perfeito - terceira pessoa do masculino singular hifil, traduzido para o
português com foi feito o bem.
A partícula Hr"_Wb[]B;162 é uma preposição composta pelas preposições B.; e rWb[] mais sufixo
da terceira pessoa do feminino singular, a tradução para o português pode ser por causa dela, o
sinal massorético disjuntivo atna 163
= indica a metade do versículo introduzindo uma pausa.
~yrImê xo ]w: ‘rq'b'W-!aco AlÜ-yhiy>w:¥
txoêp'v.W ‘~ydIb'[]w:
`~yLi(m;g>W tnOàtoa]w:
16b E teve para ele ovelha e gado e asnos,
servos e criadas,
Jumentas e camelos.
Nesta construção AlÜ-yhiy>w: tem-se a conjunção w, o verbo hy"h' no imperfeito consecutivo –
terceira pessoa do masculino singular do qal mais a preposição l. com sufixo da terceira
pessoa masculino singular, a tradução para o português pode ser e teve para ele.
Segue uma cadeia de objeto direto: !aco164 substantivo feminino singular, pode ser
rebanho (gado miúdo) de ovelhas ou cabras; ‘rq'b'W165 conjunção mais substantivo masculino
singular traduzido no português por gado, rebanho; ~yrIêmox]w:166 conjunção mais nome
masculino plural, traduzido no português por jumentos, burros, asnos.
161
Cf. GILCHRIST, Paul R. bj;y". In: DITAT, 1998, p. 612-613.
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, p. 120-121.
163
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p.123.
164
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. !aco. In: DBHP, 2004, p. 553; HARTLEY, John E. !aco. In: DITAT, 1998, p. 1255-1256.
165
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. rq'B'. In: DBHP, 2004, p. 114; MARTENS, Allan A. rq'B'. In: DITAT, 1998, p. 208-209.
166
Cf. LIVINGSTON, G. Hebert. ~yrIêmox]. In: DITAT, 1998, p. 489.
162
73
Segue o narrador apresentando a sequência de objetos diretos, alternando entre os
gêneros masculinos e femininos: ‘~ydIb'[]w:167conjunção mais nome masculino plural, traduzido
no português por e servos; txoêp'v.W168 conjunção mais nome feminino plural, pode ser traduzida
no português por e criadas; tnOàtoa]w:169 conjunção mais substantivo feminino plural, no
português seria jumentas, mulas; `~yLi(m;g>W170 conjunção mais nome masculino plural, que
corresponde no português a camelos. O sinal massorético sulluq `171 indica o fim do versículo.
h[o±r>P;-ta, hw"ôhy> [G:‚ny: >w:
~yliÞdoG> ~y[iîg"n>
At+yBe-ta,w
`~r"(b.a; tv,aeî yr:Þf' rb:ïD>-l[;
17a E pesteou o Senhor ao Faraó
Pestes Grandes
e a casa dele;
Por causa de Sarai mulher de Abrão.
O verbo [g:n"172 no qal em português significa tocou, atingiu, feriu. O mesmo [G:‚n:y>w:
imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular piel pode ser traduzido no
português por pesteou. Nesta forma ~y[iîg"n>173 é substantivo masculino plural, traduzido no
português por pestes, mais o ~yliÞdoG>174 adjetivo masculino plural, que pode também indicar
intensidade, significando entre outros o sentido de grande, enorme, imponente, grandioso,
gigantesco, magnífico, esplêndido, colossal; ilustre, admirável, importante, maior, sumo.
As palavras rb:ïD>-l[; são preposição175 mais nome masculino singular. Na composição
o significado de rb'D" é polissêmica e pode significar a palavra, seja o ato de falar, o enunciado
167
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. dIb,[,. In: DBHP, 2004, p. 474-475; KAISER, Walter C. dIb,[,. In: DITAT, 1998, p. 1067.
Cf. AUSTEL, Hermann J. xp;v.. In: DITAT, 1998, p. 1601.
169
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. !Ata'. In: DBHP, 2004, p. 85; HAMILTON, Victor P. !Ata'. In: DITAT, 1998, p. 141-142.
170
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. lm'G". In: DBHP, 2004, p. 142; LEWIS, Jack P. lm'G.. In: DITAT, 1998, p. 275.
171
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
172
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. [g:n,. In: DBHP, 2004, p. 419; Gn 12,17; 2 Re 15,5; 2Cr 26,20.
173
Acusativo cognato: é o objeto direto que procede da mesma raiz do verbo cujo sentido complementa. Cf.
PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 23.
174
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. lÞdoG". In: DBHP, 2004, p. 130.
175
Esta preposição pode assumir vários sentidos, ou seja, locativo, adversativo, vantagem, conformativo,
especificativo, causal, adjunto adverbial de companhia, e dativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso.
Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 133-134.
168
74
ou o seu conteúdo, o assunto ou o tema. Também significa evento ou fato, ocasião, coisa,
algo. No caso ela parece ter uma forma preposicional e adverbial, deste modo em português
poderia ser traduzida como porque, por causa de, por que, por culpa de176.
Nome próprio yr:Þf' acompanhado de tv,aeî feminino singular construto, também chamado
de partícula de afiliação, traduzido no português por mulher de, pode ser analisado como
complemento nominal, especificado pelo genitivo ~r"(b.a; nome próprio ou do proprietário, como
adjunto adnominal restritivo. O sinal massorético sulluq `177indica o fim do versículo.
~r"êb.a;l. ‘h[or>p; ar"Ûq.YIw:
18a E chamou o Faraó a Abrão
O verbo ar"q'178 abrange o significado de gritar, clamar, vozear, chamar, fazer vir. No
texto ar"Ûq.YwI : está no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal,
traduzido no português por e chamou. Segue o sujeito e o objeto direto ~r"êb.a;l. ‘h[or>p;, o Faraó
a Abrão. O sinal massorético disjuntivo zaqef gadol ë indica pausa.
rm,aYO¨w:
18b E disse:
Como foi estudado (cf. v. 11d), a raiz rm;a'179 inclui o sentido de comunicar.
Frequentemente é usado para indicar o início de um discurso. De fato, aqui o narrador se
utiliza deste para introduzir o discurso de uma personagem, ou seja, o Faraó. Como foi visto
este verbo tem um extenso campo semântico. Ele é duplamente transitivo, portanto, requer
176
Esta expressão é polissêmica. Seu significado primeiro é palavra, ou seja, o ato de falar, o enunciado ou seu
conteúdo, significando deste modo tema ou assunto. Significa também a ação ou modo e o modo de fazê-la ou
pô-la em prática, conduta; e seu conteúdo ou a tarefa. Significa, além disso, fato, evento; e sua causa: ocasião,
condição, coisa, algo. Com preposições forma expressões preposicionais ou adverbiais, por, porque, por causa
de. Cf. SCHOKEL, Luis Alonso. rb:ïD>. In: DBHP, 2004, p. 148-149.
177
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
178
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ar'q.' In: DBHP, 2004, p. 588.
179
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. rm;a' In: DBHP, 2004, p.64-65; S. Wagner. rm;a' In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg.
Brescia: Paideia, 1988, p. 707-713.
75
complemento direto e indireto, pois quem diz, diz alguma coisa a alguém. Por isso rm;a'
anuncia e marca o início de um discurso, seja este direto ou indireto, e este discurso
representa o objeto do verbo, correspondendo aqui à voz do Faraó.
Nesta narrativa, pela segunda vez (cf. vv. 11d e 18b), o verbo rm;a' aparece como ‘rm,aYO’w:
imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal sendo traduzido no
pretérito perfeito do português, portanto disse. Este verbo é acentuado por um zaqef qatan ë180,
que tem função disjuntiva. Como será introduzido um discurso direto utilizam-se dois pontos.
O discurso do narrador neste momento introduz a fala da personagem Faraó, que será
estudada no próximo capítulo.
A Palavra de Deus, comunicada através das palavras dos homens, passa também
através da riqueza de um texto literariamente belo e artisticamente trabalhado. Apreciar a
beleza da escritura é um modo importante para descobrir, ao mesmo tempo, um aspecto da
beleza da face de Deus. A Palavra de Deus não ignora a realidade da beleza, ela mesma é um
trabalho estético, isto transparece nos textos do AT, nos quais é possível estudar e apreciar a
beleza da narrativa hebraica 181.
1.2 Análise estilística
A Constituição Apostólica Dei verbum diz que “para a composição dos Livros
Sagrados, Deus escolheu e se serviu de homens no possesso de suas faculdades e
capacidades”182, portanto, o leitor ou intérprete da Bíblia sabe que nas Escrituras, a Palavra de
Deus se comunica através da linguagem dos homens, pois a forma literária do texto não se
separa de seu conteúdo.
180
Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123.
Cf. MAZZINGHI, Lucca. L´estetica della parola: l´arte narrativa e poetica nell´Antico Testamento. In: Parola,
Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 79.
182
CONCILIO VATICANO II. Constituição dogmática Dei Verbum, 18 de novembro de 1965. In: AAS 58
(1966), 817-836, nº 11.
181
76
O redator sacro utilizou uma forma literária artística para comunicar a mensagem. Ele
se serviu da arte narrativa e poética própria de seu tempo para oferecer aos ouvintes um texto
que fosse belo e fascinante, embora este seja um elemento que, não raramente, passa
despercebido aos olhos dos leitores das Sagradas Escrituras.
A análise estilística procura fazer referência à beleza, ou seja, à dimensão estética da
Escritura, pois a Palavra de Deus revelada a Israel, através de sua beleza, desvela um aspecto
da beleza da face divina, o que é possível notar também nas narrativas bíblicas 183.
Nos versículos em estudo tem-se a fala do narrador e nesta é possível colher alguns
detalhes de sua construção estilística. O leitor se depara com um tipo de discurso belo e
envolvente pela sua construção, que o conduz na expectativa de um clímax. A esta figura de
linguagem se dá o nome de anábasis184, subida ou gradação. Esta figura caracteriza o escrito
quando o discurso vai aumentando sua força ou sua ênfase, a observar nos verbos.
xQ:ïTuw:
Wlïl.h;(y>w:
WaÜr>YIw:
Viram
14c
WaÜr>YIw:
Levaram 15c
Elogiaram 15b
Viram 15a
Além da gradação é possível verificar paralelismos, por exemplo, entre os versículos
14c e 15a: verbo-sujeito-objeto – verbo-objeto-sujeito. Este é denominado paralelismo
composto185, mais especificamente do tipo sinonímico alternante. Alternante é a forma de
paralelismo composto, quando as orações aparecem alternando-se de forma que a primeira e a
terceira oração podem ser lidas de forma continua, enquanto a oração intermediária vem a ser
uma espécie de parêntesis.
183
Cf. MAZZINGHI, Lucca. L´estetica della parola: l´arte narrativa e poetica nell´Antico Testamento. In:
Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 80-81.
184
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia. Rerrassa:
CLIE, 1985, p. 359-360.
185
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia., 1985, p. 293.
77
No caso presente a oração que alterna é uma oração explicativa e sendo assim possui
de fato o caráter de parêntesis. Nota-se que o sujeito e o objeto invertem os lugares dentro da
construção formando um quiasma.
14c - hV’êaih-’ä ta,
14d -
(`dao)m.
15 a - h[oêr>p;
‘~yrIc.Mih; WaÜr>YIw:
Viram os egípcios a mulher
awhiÞ hp'’îy"-yKi(
yrEäf' ‘Ht'ao
ABC
Por que ela era muito bela.)
WaÜr>YIw:
Viram a ela os oficiais do Faraó
A‟C‟B‟
Este modelo de construção estilística serve para enfatizar. Deste modo fica claro que o
que está em questão neste momento é o modo de ver dos egípcios a Sarai. O modo no qual
Sarai é vista soa como espantoso e ameaçador para o patriarca e sua esposa, bem como para
os leitores. É interessante notar que a oração explicativa põe em evidência uma das questões
centrais da narrativa, ou seja, a beleza de Sarai.
Na construção do v. 15 é possível identificar, além da gradação como foi comentado, o
paralelismo sinonímico de tipo reto em que os signos equivalentes se encontram na mesma
ordem: verbo - objeto - sujeito (elíptico) - complemento, nas três sequências.
15a h[oêr>p;
yrEäf' ‘Ht'ao WaÜr>YIw:
D
15b h[o+r>P;
C
la,
D‟
15c h[o)r>P;
D‟‟
B
Ht'Þao
C‟
tyBeî
B‟
B‟‟
a ela os oficiais do
Faraó
A
Wlïl.h;(y>w:
- Elogiaram a ela
para o Faraó
A‟
hV'Þaih' xQ:ïTuw:
C‟‟
- Viram
A‟‟
- Levaram a mulher
p/casa do Faraó.
78
Neste versículo 15 observa-se que o nome h[o)r>P; Faraó se repete por três vezes sempre
no fim de cada frase. A este tipo de construção linguística ou figura de linguagem, dá-se o nome
de epístrofe186. A epístrofe é a repetição de uma mesma palavra ou expressão ao fim de
sucessivas frases ou cláusulas. Repetem-se também as referências a Sarai no meio da frase e o
verbo na terceira pessoa do plural. Parece que a intenção do narrador é impressionar o leitor
criando certa perspectiva com referência à tensão entre Sarai e o Faraó, e seus subalternos,
indicando que ela está sendo ameaçada pela imponência e potência desta personagem.
No v. 16 é possível ressaltar a figura de linguagem chamada enumeração187. Esta
consiste na enumeração das partes v.16b - (`~yLi(m;g>W tnOàtoa]w: txoêp'v.W ‘~ydIb'[]w: ~yrIêmox]w: ‘rq'b'W-!aco AlÜ-
yhiy>w:¥) “e teve para ele carneiro e gado e asnos e servos e criadas e jumentas e camelos” - de
um todo já mencionado previamente v.16a - (Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W) “e para Abrão foi feito o
bem por causa dela” - os termos da enumeração não são sinônimos, podem ser de muitas
classes e formas. O objetivo desta figura é enriquecer um discurso, ou parte deste, mediante a
enumeração de detalhes.
O v. 17 apresenta uma mudança de foco, introduzindo a ação de uma nova
personagem hwôhy>, o Senhor, portanto os fatos passam do plano natural para o plano celestial,
neste ponto a narrativa atinge também o seu clímax. Este tipo de clímax pode também ser
denominado anagoge. A anagoge se dá quando a gradação não é um mero aumento de
veemência ou ênfase, mas conduz o leitor a passar do plano das coisas terrestres para o plano
das coisas celestes, de coisas mundanas para coisas espirituais. Veja que a voz do narrador
introduz a ação do Senhor h[o±r>P;-ta, hwôhy> [G:‚n:y>w:.
186
187
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 216-217.
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 366.
79
Neste mesmo versículo verifica-se outra figura de linguagem denominada poliptoto188.
A característica desta figura é a repetição da mesma palavra com diferentes flexões. Neste
estudo especificamente se identifica a repetição de um verbo com seu substantivo a fim: e
feriu ([G:‚n:y>w:) feridas (~y[iîgn.). No estudo da tradução e análise gramatical foi dito que este é um
acusativo cognato e não um simples pleonasmo. A análise estilística o considera como
poliptoto, figura utilizada para dar ênfase a uma expressão. Sendo assim a expressão “Feriu o
Senhor ao Faraó, com feridas grandes” dispensaria o acréscimo do adjetivo ~yliÞdoG>, deste modo
o emprego do adjetivo remete a uma outra figura de ênfase chamada de pleonasmo. O leitor
entende que de fato a ação de Deus foi de uma força intensa.
O estudo estilístico revelou na construção da fala do narrador a presença de figuras de
linguagem carregadas de intensividade e ênfase, tal como repetição. Segundo Alter:
[...] um instrumento estrutural [...] poderoso na prosa bíblica é a repetição. A
repetição é usada em praticamente todo o nível da hierarquia que o texto
constitui, desde sons, palavras e cláusulas das histórias e grupos de histórias.
Raramente é aplicada de forma mecânica ou não artística, e usualmente,
retrata variações engenhosas [...] pelo instrumento da repetição, o Gênesis
está também repleto de paralelismos em vários níveis [...]189.
Entre essas linhas foi possível notar que a narrativa bíblica não é uma historinha
ingênua e sem preocupação estética, mas possui uma beleza literária, esperando ser
descoberta. O exame das palavras, das ações, dos diálogos, das estruturas narrativas de uma
história bíblica revela um mundo complexo povoado de figuras humanas vivas e livres, uma
história que cada ouvinte é convidado a viver. A beleza literária da narrativa não é um
acessório que o leitor pode ignorar, ela é um convite a prosseguir colhendo a riqueza que tal
narrativa tem a revelar.
188
Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica, 2000, p. 157; BULLINGER, E. W. –
LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia,1985, p. 242.
189
FOKKELMAN, J.P. Genesis. In: ALTER, Robert Edmond – KERMODE, Frank (org). Guia literário da
Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997, p. 61.
80
1.3 Análise narrativa
A exegese narrativa valoriza a narrativa bíblica e a sua dimensão estética. A narrativa
bíblica é um convite ao leitor para entrar ao interno do fato narrado. Ela envolve quem a escuta
provocando-o e impulsionando-o a reviver a história, portanto propõe-se a leitura e visualização
do trecho em estudo a fim de facilitar a análise do mesmo, enquanto parte de um todo.
Yhi§y>w:
hm'’y>r+cm. i ~rÞb.a; aAbïK.
hV’êaih’ä-ta, ‘~yrIc.Mih; WaÜr>Yiw:
`dao)m. awhiÞ hp'’îy"-yKi(
h[oêr>p; yrEäf' ‘Ht'ao WaÜr>YIw:
h[o+r>P;-la, Ht'Þao Wlïl.h;(y>w:
`h[o)r>P; tyBeî hV'Þaih' xQ:ïTuw:
Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W
~yrImê xo ]w: ‘rq'b'W-!aco AlÜ-yhiy>w:¥
txoêp'v.W ‘~ydIb'[]w:
`~yLi(m;g>W tnOàtoa]w:
h[o±r>P;-ta, hwôhy> [G:‚ny: >w:
~yliÞdoG> ~y[iîgn>
At+yBe-ta,w>
`~r(b.a; tv,aeî yr:Þf’ rb:ïD>-l[;
~rêb.a;l. ‘h[or>p; arÛq.YIw:
rm,aYO¨w:
14a
E aconteceu;
14b
Após chegar Abrão ao Egito,
14c
Viram os egípcios a mulher,
14d
Por que ela era muito bela.
15a
Viram a ela oficiais do Faraó,
15b
Elogiaram a ela para o Faraó,
15c
Levaram a mulher para a casa do Faraó.
16a
E para Abrão foi feito o bem por causa dela
16b
E teve para ele ovelha e gado e asnos,
servos e criadas,
Jumentas e camelos.
17 a Feriu o SENHOR ao Faraó
Com feridas grandes
E a casa dele;
Por causa de Sarai mulher de Abrão.
18a
Chamou o Faraó a Abrão,
18b
E disse:
Para a exegese narrativa o texto não é somente um documento do passado, imutável, a
ser estudado com critério exclusivamente histórico – crítico, nem um universo fechado em si
mesmo alheio a qualquer realidade histórica. Cada narrativa, e a narrativa bíblica não é exceção,
81
é um evento que se desvela quando „lido‟ ou „escutado‟, um espelho 190 no qual é possível
reencontrar, junto ao passado, também o próprio presente e construir um futuro novo 191.
Nos capítulos anteriores foram estudadas as partes constitutivas da narrativa denominadas
introdução (cf. Capítulo I) e complicação (cf. Capítulo II). Agora o leitor é convidado a voltar sua
atenção ao que a análise narrativa denomina clímax192. O clímax é o momento chave, dinâmico e
emocionante da narrativa. É o momento mais perigoso do herói, a crise mais eminente do
protagonista, o mais delicado ponto do conflito, onde não se sabe para que lado a história tenderá.
Esta cena é caracterizada por significativas tensões, tais como mudança de tempo, de foco e
presença de novas personagens: os egípcios, os oficiais do faraó, o Faraó e o Senhor.
Neste terceiro capítulo o narrador retoma a voz e conduz a narrativa dando como
indicador de mudança de voz e de tempo os verbos Yhi§y>w: e aAbïK. Ele fala em terceira pessoa.
Descrevendo os fatos da trama, em alguns momentos oferece detalhes v.16, em outros os omite.
O narrador 193a primeira vista parece neutro, ou seja, ele diretamente não aponta quem
está certo ou errado, quem é bom ou quem é mau, parece não tomar partido. Todavia ele faz
uso de técnicas linguísticas, tais como a repetição, o paralelismo e assonâncias, o que produz
no leitor determinada expectativa, bem como juízo quanto à ação das personagens visadas194.
O tempo narrativo e o tempo narrado são desproporcionais. O tempo da narrativa
ganha um ritmo acelerado. Nestes versículos o tempo da narrativa não permite ao leitor ter a
„ilusão‟ de que a narrativa se desenrola em „tempo real‟. O narrador não explicita como se dá
a interação entre as personagens (Abrão e Sarai) ou grupos de personagens (egípcios, os
oficiais do faraó, e Faraó) com sua carga de motivações, objetivos, traços de personalidades,
190
Cf. PONTIFICIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da bíblia na Igreja (15 de abril de 1993). 8. ed.
São Paulo: Paulinas, 2009, nº 52.
191
Cf. MAZZINGHI, Lucca. L´estetica della parola: l´arte narrativa e poetica nell´Antico Testamento. In:
Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 81-82.
192
Cf. MOISÉS, Massaud. Clímax. In: Dicionário de termos literário. 12. ed. São Paulo: Cutrix, 2004, p. 78.
193
Cf. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas, 2006, p. 30-33.
194
Cf. MOISÉS, Massaud. A análise literária, 2003, p. 114.
82
condicionamentos políticos, sociais ou religiosos, e significados morais e teológicos 195.
Portanto, o narrador faz um salto no tempo por meio de um sumário, assim a narrativa salta de
uma ação a outra, até o momento determinante da intervenção do Senhor196.
De fato tudo o que Abrão havia previsto acontece197 (cf. vv. 12 e 14-16). Os egípcios
vêem a beleza exuberante de Sarai (cf. v. 14), e não só eles, mas também os oficiais do Faraó
a vêem e se entusiasmam a ponto de louvá-la diante do Faraó. Este de sua parte a toma em sua
casa (cf. v. 15). O verbo usado para dizer que Sarai „foi levada‟ é o verbo xQ:ïTuw: que significa
tomar, apanhar.
Este verbo xQ:ïTuw: é empregado para diferentes procedimentos relacionados ao
casamento, no sentido de „tomar uma mulher‟. Como exemplo Gn 16,3 diz que: “[...] sua
mulher Sarai, tomou (xQ:ïTiw:) Agar, a egípcia, sua serva, e deu-a como mulher a seu marido,
Abrão”. Outro exemplo se encontra em Gn 30,9: “Lia, vendo que tinha deixado de ter filhos,
tomou (xQ:ïTwi ): sua serva Zelfa e deu por mulher a Jacó”; e em 2Sm 12,10: “tomaste (xQ:ïTiw:) a
mulher de Urias, o heteu, para que ela se tornasse sua mulher”. Todavia o narrador não diz
nada se o Faraó chegou a ter qualquer tipo de relação com Sarai198.
Abrão havia pedido a Sarai para dizer que era sua irmã (cf. v. 13ab), mas em toda a
narrativa não consta, em momento algum, que ela tenha dito qualquer palavra. Nos vv. 14-16
nem seu nome é mencionado, refere-se a Sarai como, „a mulher‟ ou „ela‟. Sua presença como
personagem parece passiva, os movimentos do texto é que fazem dela, de sua beleza e de seu
matrimônio parte da centralidade de toda a problemática. Contudo parece que Abrão teve a
sua parte, foi bem recompensado, por causa dela ele teve muitos bens, segue uma lista de
presentes (cf. v. 16)199.
195
Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p.102.
Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p. 120.
197
Cf. VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis, 1982, p. 204.
198
Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72.
199
Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72.
196
83
Mas o Senhor intervém por causa de Sarai200, e o narrador faz questão de detalhar pela
segunda vez (cf. vv. 11d e 17), a mulher de Abrão. Neste momento a narrativa faz um
contorno surpreendente. Uma nova personagem aparece repentinamente na história. Em toda
a narrativa esta é a única vez em que o Senhor é citado. O uso de artifícios literários, tal como
poliptoto seguido do adjetivo de intensidade, faz o leitor intuir que Ele age com grande poder.
O Senhor é mais poderoso do que qualquer soberano e mais potente do que todos os deuses
estrangeiros. Ele feriu o Faraó e sua casa.
A raiz usada para dizer que o Senhor feriu o Faraó. é a mesma usada em situações
semelhantes, como em Ex 11,1201: “O senhor disse a Moisés: Farei vir mais uma praga ([g:n<)
ainda contra o Faraó e contra o Egito, então ele vos deixará partir daqui[...]”. O narrador nada
diz com relação ao tipo de feridas que atingiram ao Faraó e sua casa. O verbo usado é
traduzido outras vezes por lepra, pragas, feridas. Na cena paralela de Gn 20 fica claro que a
punição do Senhor ao soberano foi o fechamento do útero, Gn 20,17 “[...] O Senhor curou
Abimelec, sua mulher e seus servos, a fim de que pudessem ter filhos [...]”, também no livro
do Êxodo se refere à morte dos primogênitos.
As „pragas‟, ~y[iîgn>, ou „feridas‟ que atormentam o Faraó e sua casa parecem convencêlo de ter cometido um ato proibido, mesmo não sabendo qual. O relato não responde como o
Faraó relacionou a sua enfermidade à presença de Sarai. Tais detalhes parecem supérfluos
diante da intervenção de Deus. Chouraqui202 em seu comentário diz que estas são as primeiras
„pragas‟ do Egito, o pré-anúncio da vitória de Israel. Esta aventura se torna mais notável em
200
Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72-73.
A nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém diz que, os últimos versículos do capítulo 10 concluem com a
história das nove pragas, que pertencem à tradição do Êxodo-fuga (cf. Ex 7,8+). A história da décima praga que
começa aqui apresenta o Êxodo como expulsão. As duas concepções são inconciliáveis se tratar do mesmo
grupo. Mas e ambas podem ser justificadas em se tratando de grupos diferentes. A tradição do Êxodo-fuga
refere-se ao grupo de Moisés, que será perseguido pelos egípcios e será beneficiado pelos milagres do mar. O
Êxodo-expulsão refere-se a um grupo semelhante, que teria sido expulso antes (cf. Ex 13,17+).
202
CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 138.
201
84
confronto com o episódio paralelo (cf. Gn 20,2) onde os reis: Faraó e Abimelec parecem
inocentes do que são punidos, pois a responsabilidade deveria ser de Abrão e Sarai.
O texto parece jogar com as personagens, inicialmente quem cria o problema é um fator
natural, a fome, depois o problema se torna a beleza de Sarai, mulher casada. O patriarca tenta
escapar do perigo criando uma situação no mínimo constrangedora para sua esposa. O Faraó,
que não sabe de nada do que foi tramado, é ferido e se torna culpado. Pode se perguntar, quem é
vítima e quem é culpado? A gravidade deste relato é compreendida pelo que antecedeu em Gn
12,1-3, não é somente um casal que está em risco, mas a promessa do Senhor a Abrão, por isso
o Senhor a conserva, salvando Abrão e Sarai independente das ações humanas.
Enfim o narrador parece propor ao leitor a passagem de uma leitura sob a ótica dos
fatos conduzidos pelo humano para uma leitura onde a história é conduzida por Deus. Israel
sempre teve presente a ação salvífica do Senhor, deste modo nota-se como a análise literária
não se fecha em si mesma, mas é uma chave para o estudo teológico.
2. Estudo histórico- teológico
2.1 O Egito para Israel 203
O nome hebraico para „Egito‟, ~yIr;cm
. i, se encontra na tábua dos povos, entre os filhos
de Cam junto a kush (a Núbia), Put (a Líbia) e Canaan (cf. Gn 10,6). Segundo alguns teólogos
a tábua dos povos reflete os grupos históricos e a situação política da época pré-israelitica. Os
irmãos de ~yIr;cm
. i representariam territórios que dependem do Egito.
203
Não é nosso intuito exaurir o comentário sobre o Êxodo ou o Egito, mas somente colher dados que
justifiquem a imagem que Israel formou do Egito ao longo de sua experiência, para justificar a ênfase dada a este
país, ao seu povo e ao seu soberano dentro da narrativa em estudo. Cf. BLANCO, José Ignácio. O povo de Israel.
In: ARAGÜÉS, J. Alegre – FLECHA, J.R. – SCHÖKEL, Alonso (et al.). Personagens do Antigo do Testamento.
Vol I. São Paulo: Loyola, 2002, p. 12-20; CRAGHAN, John F. Êxodo. In: BERGANT, Dianne, CSA –
KARRIS, Robert J., OFM (org.). Comentário bíblico. Vol I. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 91-104;
RINGGREN, H. ~yIr;c.mi. In: GLAT. Vol. V di IX. ~ym-rvn. Brescia: Paideia, 2005, p. 299-213.
85
No imaginário (na tradição, na crença, na experiência) do antigo Israel, conforme as
Sagradas Escrituras, o Egito é considerado casa da escravidão 204 (~ydIêb'[] tyBeämi ‘~yIr:’cM
. imi) da qual
Israel é libertado. Os Israelitas sofreram duras opressões, suas crianças foram assassinadas,
seus filhos submetidos ao trabalho escravo e forçado, o povo foi oprimido pelo Faraó e seus
subalternos. Além do mais, os egípcios são um povo estrangeiro e de língua incompreensível
(cf. Sl 114,1; Is 33,19; Jer 5,15; Dt 28,49).
Por outro lado, o Egito é uma terra rica e fértil, lugar ideal para refugiar-se em tempo
de seca e carestia (cf. Gn 12,10; 42,1ss; 43,1s). A narração do lamento do povo no deserto
apresenta o Egito como o país no qual era possível comer e saciar-se: “quando estávamos
sentados junto às panelas de carne e comíamos pão com fartura” (Ex 16,3), “Lembremo-nos
dos peixes que comíamos de graça no Egito, dos pepinos, dos melões, das verduras, das
cebolas e dos alhos” (Nm 11,5).
O Egito também é visto como uma terra que adorava outros deuses e não o Deus
único. Narra-se que Salomão, por razões políticas, se casou com uma das filhas do Faraó e
construiu uma casa para ela (cf. 1Rs 3,1; 7,8; 9,16.24). A propósito das esposas estrangeiras
do rei 1Rs 11,4 diz que “quando ficou velho, suas mulheres desviaram seu coração para
outros deuses e seu coração não foi mais todo do Senhor, seu Deus, como fora o de Davi, seu
pai”. O texto deixa supor que Salomão tenha adotado também deuses egípcios. O livro da
Sabedoria, nos capítulos 13-15, trata do problema da idolatria em geral e da zoolatria egípcia
em particular. Na história de José e na narração das pragas os videntes ( h'ym,_k'x]) dos egípcios
são referidos como adivinhos e magos, portanto a terra do Egito era vista também como terra
profana e idólatra (cf. Gn 41,8).
204
Cf. “casa de escravidão” (~ydIêb'[] tyBeämi) Ex. 13,3; 20,2; Dt 5,6; 6,12; 7,8; 8,14; 13,6.11; Jz. 6,8; Jr. 34,13; Mq.
6,4; GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia bíblica do Antigo Testamento. São Paulo: Ed. Teológica - Edições
Loyola, 2005, p. 92.
86
Ao longo dos registros Bíblicos, nota-se que entre os dois países vizinhos, o Egito e
Canaã, desenvolveram-se relações de diferentes naturezas. A história de José e a narração da
migração das famílias de Jacó para o Egito refletem eventos que podem não ter acontecido
historicamente, mas pelo fato de serem considerados típicos, não podem ser eliminados como
não históricos205.
Dois grandes complexos narrativos do AT têm como palco o Egito: a história de José (cf.
Gn 37-50) e a história do Êxodo (cf. Ex 1-15). A história de José liga a história dos patriarcas à
narrativa do êxodo, pois explica como e porque os Israelitas chegaram ao Egito. A libertação de
Israel do Egito ocupa um amplo espaço na tradição de Israel enquanto ato fundamental da eleição.
A narrativa do êxodo em sentido estreito é precedida pelo relato das „pragas do Egito‟
(cf. Ex 7,8-10,29). A historia é apresentada como uma luta que opõe Moisés e Aarão, chefes
dos hebreus, ao Faraó com os seus magos, ou, em perspectiva teológica, YHWH aos deuses
do Egito. Desta luta sai um vencedor, YHWH, somente depois da décima praga, o extermínio
dos primogênitos do Egito.
O Salmo 80,9 apresenta uma imagem sugestiva: “Israel é uma vinha que YHWH tirou
do Egito para transplantá-la em Canaã”. Outra imagem é a de Os 11,1: “Israel é o filho de
YHWH que Deus chamou do Egito”. O Egito foi lugar de transição, de fartura, de passagem
de Israel, lugar de escravidão, de contato com uma nação politeísta, mas também, foi o palco
da eleição e manifestação do amor do Senhor, que libertou, conduziu e formou o seu povo.
Nestas linhas é possível se aproximar do que está por traz de todo o suspense gerado
em torno da descida de Abrão e Sarai ao Egito. Mas o leitor pode continuar a interrogar-se,
pois não só o nome Egito se repete como um refrão durante a narrativa, mas também o nome
Faraó é invocado diversas vezes. A tônica em que é invocado leva a crer que esta seja uma
figura soberana e imponente. Ao ler a narrativa, perguntas como: por que Abrão teme entrar
205
Cf. SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens, 2005, p. 53-54.
87
em terra estrangeira? Por que pede a Sarai para dizer que é sua irmã e a entrega ao soberano?
Por que um soberano tomaria uma mulher estrangeira, se ele poderia ter todas as mulheres
que desejasse em seu harém? Para compreender tais indagações é interessante conhecer quem
é essa nova personagem, o que ela significa.
2.2 O Faraó206
No Egito dos faraós207, o Faraó era o responsável de manter a unidade do Estado. Ele
deveria ser uma pessoa de pulso forte e de grande prestigio. O Faraó não era, e não podia ser
um símbolo ornamental, mas um homem de capacidades excepcionais. Era educado pelos
melhores mestres e nobres, os quais podiam chegar a fazer parte da grande família da corte,
através do matrimônio de uma de suas irmãs com o Faraó 208.
O governo dos faraós era essencialmente teocrático. O Faraó era tido como um
deus209, „o bom deus‟, a encarnação de Horus210 triunfante sobre os inimigos. Ele era a
máxima autoridade civil e religiosa, pois além de ser tido como deus, cabia ao mesmo
oferecer sacrifícios aos deuses, embora fosse intermediado por sacerdotes. Em linguagem
alegórica, o Faraó era comparado ao sol. Sendo assim, seu palácio é o „horizonte‟, e portanto
206
Cf. MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos Faraós: história, civilização, cultura. 3. ed. São Paulo:
HEMUS, 1998, p. 99-104; AMENTA, Alessia. Il Faraone. Uomo, sacerdote, dio. Roma: Salerno editrice, 2006;
HORNUNG, Enrik. O Rei. In: DONADONI, Sergio (Dir.). O homem egípcio. Lisboa: Presença, 1994, p. 237263; SCHIMDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 273, 281, 290-291;
SEDIGRAF, Blevio (Coord). Faraoni. Firenze: Demetra, 2002, p. 7-26; HAMILTON, Victor P. h[{r.P;. In:
DITAT, 1998, p. 1239.
207
3100 aC à 30 dC.
208
Cf. MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos Faraós, 1998, p. 99.
209
Cf. BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994, p. 55-56. 62.
210
Segundo a lenda, „no começo‟ não existia nada, somente NUN, o oceano primordial, no qual surgiu uma
montanha e, nela o deus ATUN, o completo e auto criado. De seu sêmen ATUN criou o deus SHU, a atmosfera,
e sua mulher, a deusa TEFNUT, a umidade. SHU e TEFNUT deu à luz GEB, a terra, e NUT, o céu. GEB e NUT
tornaram - se pais de OSÍRIS e sua mulher ISIS, bem como de SETH e sua mulher, NÉFTIS. SETH tinha inveja
das boas criações de OSÍRIS, relacionadas à produção agrícola. Então SETH assassinou OSÍRIS, seu irmão, e
espalhou os membros de seu corpo em diversas partes do Egito. Entretanto ISIS, irmã dos dois e mulher de
OSÍRIS conseguiu reunir os pedaços, reconstruindo o corpo do marido e dele concebeu um filho – HORUS.
HORUS cresceu e lutou com seu tio, SETH, e mesmo perdendo um olho terminou por vencer e foi escolhido por
um tribunal de deuses para governar o Egito. Vitorioso, HORUS passou a representar o rei vivo e a ser
identificado com o falcão, que significa o Céu. O olho saudável era o sol; o olho ferido a lua. HORUS possuía a
MAAT, personificada por uma deusa que segurava uma pena, significando a verdade, o equilíbrio e a justiça,
qualidades constitutivas de um Faraó: o deus vivo. Cf. BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e mitos do Antigo
Egito, 1994, p. 54; MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos Faraós, 1998, p. 99.
88
quando o Faraó se mostra, „nasce‟, quando morre, „se põe‟. O palácio do faraó era a morada
do rei-deus, mas também sede de todos os centros administrativos do país211.
Desde jovem, o Faraó assumia cargos elevados a fim de conhecer os segredos da
administração e do governo. Era ele quem construía os templos, enfrentava as guerras, não
seus arquitetos ou generais. Ao subir ao trono, era o soberano absoluto. Seu poder dependia
do tesouro do qual podia dispor, por isso, para valorizá-lo, organizava continuamente
expedições em busca de minérios.
O nome Faraó deriva justamente do nome de seu palácio que se chamava Phar-o, a
„Grande Casa Dupla‟. Mais tarde, os hebreus atribuíram-lhe este nome como sendo a referência
ao rei do Egito. No palácio, além de todas as sedes administrativas, havia grandes armazéns, o
departamento dos guardas dos reis, os aposentos das rainhas e princesas e o harém. O harém por
vezes, era um lugar turbulento e perigoso, visto que, na ausência de herdeiros diretos, os filhos
do harém tinham direito ao trono; em tal caso, entre as mães surgiam lutas, conspirações e
atentados à vida do mais legítimo herdeiro e até mesmo do Faraó.
O rei soberano e deus tinha que esposar uma princesa de sangue divino, visto que
nenhuma outra poderia tê-lo tão divino quanto sua irmã, os matrimônios entre meio - irmãos
eram frequentes212. Por razões diplomáticas podia casar-se igualmente com outras princesas,
mesmo estrangeiras, que estivessem na corte com categoria de rainhas, mas que não tivessem
nenhum poder político. Enquanto vivesse, a rainha legítima era a primeira mulher, ou seja, a
mãe do primeiro filho do rei, „aquele que via Horus‟, que acompanhava o rei nas cerimônias e
assumia a regência em nome de seu filho, sendo ele menor de idade. Caso não houvesse um
211
Cf. PLUMLEY, J. Martin. Egito. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da
Bíblia Vol.1, 2002, p. 66-69.
212
Eisenberg diz que: “na época em que os hebreus viveram no Egito, de Tão II e Tutmoses IV, conta-se pelo
menos oito faraós que desposaram suas irmãs. A prática foi constante. Mesmo no fim da época bíblica, na
dinastia de Ptolomeu, sete soberanos entre treze se casam com suas irmãs ou meia-irmãs, das quais a mais
famosa é Cleópatra”. Cf. EISENBERG, Josy. A Mulher no tempo da Bíblia, 1997, p. 141-145.
89
herdeiro masculino, bastava uma princesa real se desposar com um nobre e este assumia os
poderes e atributos completos do Faraó.
Nessas poucas linhas é possível colher flashes do que está nas entrelinhas do texto.
Sendo o Faraó um deus poderoso, o que podia um casal de migrante, vulnerável à fome em
busca de refúgio e proteção, contra um deus tão respeitável, forte e que traz prosperidade e
proteção ao seu povo?
2.3 Salvo pelos méritos de Sarai
Segundo Elena Bartolini213, a tradição rabínica fixou no Talmud214 a convenção de que
o povo de Israel „foi liberado do Egito por mérito das mulheres‟. Esta afirmação enfatiza que
a beleza feminina não se limita somente ao aspecto físico, mas é considerada de acordo com o
papel insubstituível da mulher no contexto da reciprocidade conjugal. Por outro lado é
significativo o fato de que também a Torá seja personificada com „mulher, filha, esposa‟ 215.
No texto em questão o leitor se depara com uma situação não estranha ao que afirma a
tradição. Sarai foi motivo de libertação para Abrão tanto no aspecto material quanto à
manutenção e fidelidade à aliança. A narrativa deixa claro que foi por causa dela que o Senhor
interveio para libertar Abrão e tudo o que possuíam.
A narrativa diz no v. 16a “Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W”: “e para Abrão foi feito o bem por
causa dela”. O Faraó beneficiou Abrão por causa de Sarai dando-lhe animais miúdos, bois,
asnos, servos e servas, éguas e camelos (cf. Gn 12,16). Neste contexto a riqueza não se media
em dinheiro, terra cultivada ou propriedades imobiliárias, mas em animais (cf. Gn 12,16;
26,14; 30,43). Quando os animais e rebanhos estão em perigo, são ameaçadas a existência e a
vida de toda a família, por isso, o Faraó tenta vincular os hebreus segurando os seus animais
(cf. Ex 10,24), enquanto Moisés pede a libertação completa (cf. Ex 12,32).
213
Cf. BARTOLINI, Elena Lea. Il ruolo della donna nell´ebraismo, 2006, p. 23.
O Talmud compreende as discussões rabínicas a partir da mishná, ou seja, Torá oral codificada. O Talmud foi
fixado por escrito entre o V e VI século da era presente e se encontra em duas versões: palestino e babilônico.
215
Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 178.
214
90
Na lista de presentes que Abrão recebeu do Faraó está o rebanho de gado miúdo ( !acoo)216,
ou seja, cabras e ovelhas, animais importantes na economia de Israel ao longo da história,
especialmente durante o período patriarcal (cf. Gn 46,32). Davam leite (cf. Dt 32,14), carne e lã,
da qual se teciam panos. Seu couro era utilizado para fazer coberta e tendas (cf. Ex 26,14). A
riqueza de uma pessoa era medida pelo tamanho de seu rebanho (cf. 1Sm 25,2).
Entre os presentes está o gado, ‘rq'b217
' . Para os hebreus, o gado era uma riqueza de valor
elevado (cf. Ex 21,37). Esse animal era utilizado nos trabalhos agrícolas, na produção de carne e
leite, bem como para concluir um pacto ou contrato (cf. Gn 21,27-31) e presentear alguém (cf.
Gn 21,27). Abrão, num gesto de generosidade, honrou a presença dos três hóspedes de
passagem, presenteando-lhes cm um banquete do qual o vitelo fez parte (cf. Gn 18,7).
Outro presente elencado é o ~yrIêmox;, asno218, animal tradicional da caravana do semita
seminômade, atestado desde os patriarcas (cf. Gn 12,16; 22,3.5), diferente do camelo
característico dos beduínos. O asno serve aos israelitas como animal de carga (cf. Gn 42,26;
44,13; 45,23), de trabalho para o cultivo dos campos (cf. Dt 22,10) e meio de transporte. Ele
está entre as criaturas relacionadas como impuras para alimentação (cf. Lv 11,1-8; Dt 14,3-8),
todavia 2Rs 6,25 diz que a sua carne foi comida em época de fome desesperadora. Além do
boi, também o asno é usado como paradigma para indicar o complexo dos animais domésticos
objeto de inveja (cf. Ex 20,17).
Abrão ganha também escravos, ‘~ydIb[' ]219. Contar o escravo entre os presentes se deve
ao fato dele não ser uma pessoa jurídica, mas uma parte da propriedade. Em Israel a
216
Cf. HARTLEY, John E. !aco. In: DITAT, 1998, p. 1255-1256.
Cf. MARTENS, Allan A. rq'B'. In: DITAT, 1998, p. 208-209; BRECK, B. rq'B'. In: GLAT. Vol. I di IX. bahlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 1495-1509.
218
Cf. LIVINGSTON, G. Hebert. ~yrIêmox]. In: DITAT, 1998, p. 489. SMITTEN, W. Th. ~yrIêmox]. In: GLAT. Vol. II
di IX. ~¾lwlg-#mh. Brescia: Paideia, 2002, p. 1908-1110.
219
Cf. KAISER, Walter C.dIb,[., In: DITAT, 1998, p. 1067.
217
91
escravidão não era algo tão repulsivo, visto que a condição de escravo envolvia direitos e,
frequentemente, cargos de confiança 220.
Entre os presentes consta também servas, txoêp'v.W221. Essa era uma escrava que podia ser
dada de presente a uma filha, quando ela se casasse (cf. Gn 29,24-29), para servir-lhe de dama
de companhia. Observa-se que os hebreus não podiam adquirir outros hebreus como escravos,
incluindo-se ai as servas hebréias (cf. Jr 34,9-11; 2Cr 28,10).
A fêmea do asno, tnOàtoa]222 é uma posse de valor (cf. Gn 12,16; 32,16; Jó 1,3; 42,12), as
mesmas excedem os machos em número e em valor, por causa de seu leite e da procriação,
além de serem melhores de montar.
Abrão recebe camelos, ~yLi(m;g>223, todavia há divergências quanto ao camelo na época
patriarcal, julga-se o dado como anacrônico, visto que o camelo passou a ser domesticado na
Idade do ferro (1200 a.C), contudo este animal de carga é mencionado no AT, desde os relatos
patriarcais até o período pós-exílico. Usados para locomoção (cf. Gn 24,61.63; 1Sm 30,17; Is
21,7) e transporte de cargas, também forneciam leite (cf. Gn 32,15.16).
As leis alimentares de Israel proibiam comer carne de camelo, visto que os camelos
ruminam, mas não têm casco fendido (cf. Lv 11,4; Dt 14,7). Esse tinha um papel singular
devido a sua capacidade de passar longos períodos sem água, sendo muito útil para o
comércio de especiarias (cf. 2Cr 9,1) transporte de alimentos para lugares distantes, bem
como para o transporte de produtos de Galaad para o Egito (Cf. Gn 37,25), de tributos (cf.
2Rs 8,9s; 1cr 12,41) e dádivas para o Senhor (cf. Is 60,6).
220
Um israelita não podia manter outro israelita indefinidamente como escravo e contra a vontade deste; o
período da escravidão estava limitado a seis anos (cf. Ex 21,2). Mesmo que o escravo seja descrito como
propriedade do seu senhor (cf. Ex 21,20-21) essa não era uma atitude insensível. Sempre que revogasse o intento
maldoso do senhor (cf. Ex 21,14) ou que o escravo morresse devido a maus tratos (cf. Ex 21,20), o senhor era
passível de castigo. Se houvesse dúvidas quanto à motivação do senhor, um escravo que sofresse dano físico
ganha pelo menos a sua liberdade (cf. Ex 21,26-27) e o senhor perdia o dinheiro que emprestara (cf. 21,21).
Observa-se também a posição de destaque do servo em Gênesis 24,2ss e 41,12. O termo é usado como título
messiânico e como título para Israel.
221
Cf. AUSTEL, Hermann J. hx'p.vi. In: DITAT, 1998, p. 1601.
222
Cf. HAMILTON, Victor P. !Ata'. In: DITAT, 1998, p. 141-142.
223
Cf. LEWIS, Jack P. lm'G.. In: DITAT, 1998, p. 275.
92
As caravanas de camelos variavam em quantidade (cf. Gn 24,10). A riqueza de
homens como Abrão (cf. Gn 12,16; 24,35), Jacó (cf. Gn 30,43) e Jó (cf. Jó 1,3; 42,12) era
contada entre outros (juntamente com seus outros rebanhos) pelo número de camelos. Davi
tinha uma pessoa especialmente encarregada de seus camelos (cf. 1Cr 27,30). As pragas do
Egito atingiram tanto outros tipos de rebanhos, quanto os camelos (cf. Ex 9,3).
Com relação à atitude de Abrão, ao entregar Sarai, o texto não deixa claro qual o real
motivo, embora haja diversas inferências. O estudo de Walter Vogels defendendo Sarai como
vítima, parece apresentar Abrão como quem abusa da própria mulher em beneficio pessoal 224:
O que Abrão esperara aconteceu: „Por causa dela, trataram bem Abrão‟, ou
„de acordo com seu preço‟. Não só se abusa da mulher como ainda por cima
o marido enriquece, como os cafetões se enriquecem à custa de suas
mulheres. O Faraó dá a Abrão, como sinal de reconhecimento – ou como
verdadeiro preço de venda -, „ovelhas e bois [...]‟ 225.
Por outro lado há quem apresente o patriarca como um manipulador da situação e
enganando o Faraó e tirando proveito da situação:
[...] nos três contos da „esposa-irmã‟ em Gênesis (12,10-20; 20,1-18 e 26,111) falam de um patriarca que vive temporariamente num país estrangeiro e
finge que a esposa é sua irmã, enganando o rei estrangeiro, o que é mais
importante, salvando o seu próprio pescoço. Por duas vezes o herói é Abrão
e, na outra Isaac [...]226.
Viviano apresenta a situação como um possível artifício que o narrador usa para
mostrar a superioridade e esperteza do patriarca: “[...] O narrador de Gn 12 não procura
desculpar o comportamento de Abrão, antes parece divertir-se com a sua esperteza [...]”227.
Outros estudiosos apontam o medo como motivo da ação do patriarca:
224
Com as citações literais se pretende demonstrar o que de fato os comentadores têm falado e até mesmo as
palavras que usam para interpretarem o patriarca e sua ação.
225
VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72.
226
GABEL, John – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30.
227
VIVIANO, Pauline A. Gênesis. In: BERGANT, Dianne, CSA - KARRIS, Robert J., OFM (orgs.).
Comentário Bíblico. Vol. I de III. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 70.
93
[...] a mentira, a vileza e o engano figuram aí sem embaraço e, à primeira
vista, os escritores bíblicos não ficam chocados. Abrão faz passar duas vezes
sua mulher por sua irmã (Gn 12,10-20; 20,1-18) [...] esses patriarcas são
mentirosos e não demonstram grande coragem porque expõem suas esposas
aos ultrajes estrangeiros aproveitando-se da ocasião para enriquecer-se [...]228.
[...] é o medo do marido, que o faz pensar [...] na sobrevivência em vista de
sua bela esposa. Como solução do problema ele escolhe negar o vínculo
matrimonial, para tornar sua mulher livre para os homens estranhos. Essa
tensão é solucionada pelo desfecho de que Sara passa de fato para uma nova
relação matrimonial e os temores de Abrão são solucionados [...]229.
Interessante igualmente são as discussões rabínicas em torno deste argumento230. De
acordo com Ramban231, Abrão cometeu um pecado deixando a terra de Canaã, a ele faltou
confiança em Deus que poderia tê-lo salvo da fome. Rashi232 ao invés, esclarece que Deus
consentiu a Abrão deixar a terra. Sua confiança em Deus não foi abalada, teria sido incorreto para
ele permanecer em Canaã, esperando que Deus lhe providenciasse comida, pecado é o homem
não atuar em prol da autopreservação. A defesa da vida não diminui a confiança em Deus uma
vez que acredita que a sua salvação virá d´Ele. Deste modo Abrão agiu corretamente indo à busca
de um „canal físico‟ pelo qual poderia obter comida e salvar a vida de sua família.
Comentários da tradição judaica ao livro do Gênesis 233 afirmam que Abrão não
colocou Sarai sob qualquer risco desnecessário, visto que ele conhecia os grandes méritos
dela. Foi pelos méritos de Sarai que Abrão recebeu a benção Divina de riqueza, já que a
pessoa adquire dinheiro pelo mérito de sua esposa. Abrão não pediu a Deus (para salvar Sarai)
228
SKA, Jean Louis. Como ler o Antigo Testamento?, 2000, p. 26; Cf., SKA, Jean Louis. Introdução à leitura
do Pentateuco, 2003, p. 72-73.
229
ZENGER, Erich. Os livros da Torah/Pentateuco. In: ZENGER, Erich. BRAULIK, Georg (et al.). Introdução
ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 66.
230
Cf. SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis: com comentários de Rashi, Targum Onkelos, Haftorot e
comentários compilados de textos Rabínicos Clássicos e das obras do Rebe de Lubavitch. São Paulo: Maayanot,
2008, p. 75.
231
Rabi Moshe ben Nachman (1194-1270) conheciso por seu acrônimo Ramban (hebraico: ‫) רמב"ן‬, nascido em
Gerna, norte da Espanha, foi um grande conhecedor da Torá, conhecido por sua autoridade em lei judaica.
232
Rabi Shlomo Yitzhaki (1040-1105) conhecido pelo acrônimo Rashi , foi um rabino da França, famoso como o
autor dos primeiros comentários compreensivos sobre o Talmud, Torá, e Tanach.
233
Cf. SEFER BERISHIT1, 2008, p. 74 e 76.
94
por seu próprio mérito, mas sim pelos méritos dela, Ele confiou no mérito dela para não ser
ferido e para ela não ser tocada, por isso, ele não teve medo de dizer: ela é minha irmã.
Enfim Elena Lea Bartolini234 comenta que a beleza de Sarai, poderia ter sido motivo
de ambiguidade, mas se tornou, pela sua coragem, fonte de vida e salvação tanto para o seu
esposo como para todos os que os sucederem. Deste modo é possível colher nas entrelinhas
um papel ativo de Sarai, quem graças a qual Abrão continua a viver e a promessa se mantém,
portanto ela corresponde ao tipo de mulher descrita em Pr 12,4, perfeita e virtuosa, coroa do
marido. As bênçãos de Deus sobre Sarai confirmam a sua fidelidade à promessa, como
„mulher justa‟, portanto, digna de ser visitada pelo Onipotente, canal através do qual as
bênçãos divina se difundem na história.
2.4 Intervenção do SENHOR por causa de Sarai
O Senhor intervém yr:Þf;’ rb:ïD>-l[;, esta é a primeira e única vez em que o Senhor se
manifesta nesta narrativa, sua intervenção é determinante. O Senhor feriu com grandes feridas o
Faraó e a sua casa, como mais tarde, lançará pragas sobre outro Faraó por ter abusado de Israel
(cf. Ex 7,8-11,10)235. Em toda a narrativa, as duas personagens Sarai e YHWH não falam sequer
uma palavra. Sarai parece passiva diante das duas potências que a circunda, Abrão e o Faraó.
Todavia resta-lhe alguém a quem pode se dirigir: e o Senhor a ouviu e interveio.
O narrador diz: „por causa de Sarai‟. A expressão rb:ïD>-l[;, como foi visto
anteriormente, é polissêmica e pode significar a palavra, seja o ato de falar, o enunciado ou o
seu conteúdo, o assunto ou o tema. Também significa evento ou fato, ocasião, coisa, algo.
Resta aqui uma incógnita, de fato não se sabe ao certo o que Sarai terá feito ou pronunciado,
mas sabe-se que foi por ela que o Senhor interveio. A interpretação da expressão deixa
234
235
Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 181-183.
Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72.
95
entender que o Senhor interveio devido ao que aconteceu a Sarai, ou seja, pelo o fato de ter
sido tomada pelo Faraó.
Não se sabe o conteúdo que Sarai dirigiu ao Senhor, poderá ter sido uma súplica, um
grito, um lamento elevado a YHWH “[...] gemendo sob o peso da servidão, clamaram; e do
fundo da servidão o seu clamor subiu a Deus. E Deus ouviu os seus gemidos; Deus lembrouse de sua aliança [...]” (Ex 2,23-24), e assim o Senhor ouviu a Sarai, esposa de Abrão.
A intervenção do Senhor leva a crer que Sarai é uma pessoa respeitada por Deus e que
ela está contemplada em seu projeto sobre Abrão236 (cf. Gn 21,12). Deus a protege e a defende
do Faraó, assim como séculos depois fará com os filhos e as filhas, dos filhos de Sarai, quando
estarão sob a opressão de outro Faraó. O primeiro patriarca e a primeira matriarca antes de
gerarem um filho, geram a história futura daquele povo, Israel, que nascerá do filho, Isaac.
O pensamento clássico 237 judeu explica que esta descida de Abrão e Sarai ao Egito foi
um precursor do exílio egípcio, deste modo a expulsão de Abrão do Egito como um homem
rico abriu caminhos espirituais da redenção que possibilitaram seus descendentes saírem do
Egito carregados de ouro e prata. Igualmente o cuidado de Sarai para não ser desonrada pelo
Faraó dotou, mais tarde, suas descendentes, as mulheres judias do Egito, com a virtude para
permanecerem fiéis às suas famílias.
A ação de Deus salva a promessa nas suas duas dimensões, horizontal e vertical, a
promessa de Deus para com o homem e do homem para com sua semelhante carne de sua
carne, osso dos seus ossos. Livrando Sarai das mãos do Faraó, Deus salva a aliança feita com
Abrão e mostra a dignidade da aliança feita no matrimônio 238.
236
Cf. GRENZER, Matthias. Três visitantes. In: Revista de Cultura Teológica. 57 (2006) 14, p. 66. Segundo o
prof. Matthias “[...] a história de Abraão e Sara, trabalha com a concepção de que o descendente herdeiro das
promessas divinas deve nascer da união deste casal [...] „eu a abençoarei e dela te darei um filho‟ (Gn 17,16).”
237
Cf. SEFER BERISHIT1, 2008, p. 75.
238
Cf. GABEL, John – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30; SKA, Jean Louis.
Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 73.
96
Segundo Ska, a narração é convite a não fixar-se na ordem histórica. Esse corresponde
à reflexão sobre o poder de YHWH, Senhor de Israel, e até mesmo no Egito. O Faraó
demonstrou temor a YHWH. O Deus de Israel é o verdadeiro soberano do Egito, seu poder e
divindade são superiores ao poder e divindade do Faraó, porque de outra ordem. O objetivo
do narrador não é fixar o leitor em eventos sensacionais, tanto que nesta narrativa ele nem
chega a elencar ou descrever que tipos de feridas atingiram o Faraó, mas o convida a ir além e
confirmar a sua experiência de fé no Deus de Israel, o qual nem o Faraó com seus subalternos
são capazes de contornar239.
As pragas que atormentaram o Faraó e sua casa parecem convencê-lo de que cometera
um ato proibido, ainda que não saiba qual. Essas são as primeiras pragas do Egito, primeira
manifestação da vitória dos pais de Israel. Interessante também é o texto paralelo (cf. Gn
20,2), os reis, Faraó e Abimelec, parecem inocentes do malfeito pelo qual são punidos: a
responsabilidade cabe a Abrão e Sarai240.
O Faraó sofre por ignorância, mas é, todavia, punido. Aqui se colhe alguns
pressupostos da „teologia de Israel‟: quem não é filho de Abraão e está fora da família da
aliança é responsabilizado por crimes, ainda que estes sejam cometidos involuntariamente, e
deve, portanto, ser sujeito à punição adequada, caso o crime seja cometido contra um membro
da família de Abrão241.
Na mesma linha de reflexão também Gunkel242 comenta que, o narrador apresenta o
Faraó como inocente do adultério, e ainda assim é ferido por Deus. A variante em Gn 20,7,
narra de forma ainda mais ofensiva à sensibilidade dos leitores. Segundo Gunkel nas
entrelinhas é possível constatar uma idéia de fundo, ou seja, a de que os adversários de Israel
239
Cf. SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens, 2005, p. 56-57.
Cf. CHOURAQUI, Andre. A Bíblia, 1995, p. 138.
241
Cf. HAMILTON, Victor P. The new international commentary on the Old Testament: The book of Genesis
chapters 1-17. Michigan: Grand Raipds, 1990, p. 384-385.
242
Cf. GUNKEL, Hermann . Genesis. Macon, Ga: Mercer University Press, 1997, p. 171.
240
97
sempre se sairão mal, independente do caso, pois YHWH é o Deus de Israel e é mais forte do
que os deuses todos.
Enfim o narrador parece propor ao leitor a convicção de que a ação de Deus é o
essencial. O leitor inicialmente é levado a fixar-se em questões morais, detendo-se no pedido
de Abrão a Sarai, no abandono de Canaã, a traição a que foi vítima Sarai, todavia estes se
tornam secundários diante da intervenção de Deus. Israel sempre teve presente esta salvadora
intervenção de Deus. Aquele que prometeu é verdadeiramente fiel e digno de ser
acreditado243. Todavia a história não acaba por aqui, tem-se ainda um caminho a fazer e o
leitor é convidado a acompanhar o seu desfecho.
CONSIDERAÇÕES
Prosseguindo o estudo desta narrativa, atinente à tradução se observa certa unidade. A
maior parte dos verbos se encontram no modo ativo, conjugados no qal, com exceção de dois
verbos, um no piel (cf. v.15b, Wlïl.h;(y>w:) e outro no hifil (cf. v.16a, byjiÞyhe).
Com relação a análise estilística percebe-se que estes versículos apresentam um tom
carregado de força enfática, reforçado pelo uso de diferentes figuras de linguagem com esta
característica: a anabasis (cf. verbos dos vv. 14c; 15abc) ou gradação; paralelismo composto
(cf. vv. 14cd; 15a); paralelismo reto (cf. v. 15); epístrofe (cf. v. 15), enumeração (cf. v. 16b);
anagoge, poliptoto e pleonasmo (cf. v. 17).
Chegando na análise narrativa percebe-se a relação entre esta e a anterior, ou seja a
estilística. De fato as figuras de linguagem corroboram este momento da narrativa, ou seja, o
clímax, momento chave, dinâmico e emocionante, carregado de conflitos caracterizado por
cenas de tipo sumário, mudanças de tempo, de foco, além da presença de novos e
significativos personagens.
243
Cf. VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis, 1982, p. 205.
98
Destaca-se aqui o contorno surpreendente que sofre a narrativa. A entrada de dois
personagens que nem sequer tiveram voz, o Senhor e Sarai. O uso de artifícios literários,
repetições, pleonasmo, poliptoto e paralelismos, fazem o leitor intuir que o Senhor age com
grande poder, e que Ele é mais poderoso que qualquer soberano e mais potente que todos os
deuses estrangeiros. A ação do Senhor neste capítulo é central e toda a construção linguística
está a seu favor.
O estudo histórico-teológico reafirma os dados do estudo linguístico-literário e
indicam a importância de compreender melhor o que pode significar o Egito na experiência
dos hebreus, assim como o Faraó. Diante de tão grande império e poder, o clamor de uma
vítima chega até Deus e este age em seu favor. Assim a beleza de Sarai, aparente motivo de
ambiguidade, tornou-se, por sua ousadia, sinônimo de vida e salvação para seu esposo, para si
e para todos os que lhes sucedem.
As entrelinhas permitem identificar o protagonismo de Sarai na garantia da fidelidade
e continuidade da promessa feita a Abrão e à posteridade que dela descenderá. É ela o modelo
de mulher justa, digna de ser visitada pelo Onipotente, canal através do qual as bênçãos
divinas se prolongam na história.
99
CAPÍTULO IV
SARAI IRMÃ E ESPOSA DE ABRÃO
Chega-se ao ponto nodal da narrativa, o que se denomina desfecho, desenlace ou
conclusão. Aqui se apresenta a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer o final está se
configurando, seja ele feliz ou não, seja surpreendente, cômico ou trágico.
Após o caminho feito, o narrador passa a voz ao Faraó que até então não havia tomado
a palavra. Dando a palavra ao Faraó, o narrador deixa sair de sua boca a afirmação de que
Sarai não é somente irmã de Abrão, mas também sua mulher. Como o Faraó chegou a esta
conclusão não se sabe, ele parece tão surpreso com a questão quanto os leitores, ele exige
explicações que, no entanto, essa narrativa não evidencia. Todavia, na narrativa paralela (cf.
Gn 20,1-20) o patriarca se justifica.
Neste capítulo se apresentará um estudo sincrônico, analisa-se a narrativa e a
questão da esposa-irmã sob o aspecto literário e histórico-teológico. Tanto na análise
literária quanto na análise cultural têm-se basicamente considerações fundamentadas no
100
contexto histórico cultural do Antigo Oriente Próximo. O leitor é convidado a prosseguir
entrando mais especificamente na temática deste trabalho e assim colher os elementos que
justificam o título escolhido.
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,18c-19
1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático
yLi_ t'yfiä[' taZOà-hm;
18c Por que isso fizeste para mim?
O narrador passa a voz ao Faraó e este inicia seu discurso com uma oração
subordinada objetiva direta, introduzida por uma interrogação taZO-à hm;, também chamado de
marcadores linguísticos de incerteza244. Segundo Waltke e O´Connor245, a forma hm' se coloca
antes de a, h e r; e hm, antes de h e [. Nos demais casos há a duplicação da consoante, o que
justifica o maqqeph no z, e comenta ainda que se usa o hm; quando se tem em vista mais a
circunstância do que a pessoa. O mesmo, com relação à sintaxe, pode preencher qualquer
função, porém é mais comum como objeto direto, podendo ser traduzida em português pelo
por que. A partícula interrogativa é acompanhada do pronome demonstrativo tazO utilizado
para indicar qualquer coisa mais próxima 246, em português corresponde ao demonstrativo isso.
O verbo hf;[;247 traduzido para o português, inclui o significado de agir, proceder,
atuar, trabalhar, ocupar-se, atarefar-se; fazer, executar, criar, elaborar, construir, confeccionar;
preparar; realizar, desempenhar, empreender; levar a cabo, efetuar, cumprir, completar,
terminar, tratar. No texto t'yfiä[' é um perfeito – segunda pessoa masculino singular do qal,
244
Cf. WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p.315.
Cf. WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 317-318.
246
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 32.
247
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hf[. In: DBHP, 2004, p. 519.
245
101
traduzido por fizeste. Segue yLi a preposição mais pronome pessoal da primeira pessoa
singular, traduzido em português como para mim, o qual assume a função de adjunto
adverbial de fim. Sob o mesmo aparece o sinal massorético atnah = que é o principal divisor
do versículo, portanto se inseriu o ponto de interrogação.
yLiê T'd>G:åhi-al{ hM'l'…
18d Por que não esclareceste para mim?
Novamente se usa um interrogativo para iniciar a oração hM'l248
'
traduzido em
português como por que, seguido de uma advérbio de negação al{, que se traduz em
português como não. O verbo dg:n"249 possui um vasto campo semântico em português
carregando o sentido de informar, anunciar, referir, comunicar, avisar; pôr a par, participar;
narrar, relatar, contar, descrever; responder; predizer; explicar, expor, aclamar, interpretar;
apregoar, proclamar, publicar, revelar, descobrir; denunciar, acusar, lançar no rosto, provar,
notificar; declarar, confessar, ditar sentença entre outros.
Segundo Coppes250 este ocorre somente no hifil e no hotfal. O sentido básico desta raiz
é o de colocar algo de forma ostensiva diante de alguém, deixar às claras, mas sua tradução
vai depender do contexto. No texto T'd>G:åhi é um perfeito – segunda pessoa masculino singular
do hifil, e foi traduzido por esclareceste. Novamente segue yLi preposição mais pronome
pessoal da primeira pessoa singular, para mim, o qual assume a função de adjunto adverbial
de fim. Sobre esta se encontra o sinal massorético zaqef qaton :, este acento disjuntivo
introduz uma divisão, ou pausa no versículo. Como este verbo é transitivo direto, ele exige
um objeto direto, o que segue na próxima oração subordinada objetiva direta.
248
Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 103.
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. dg:n". In: DBHP, 2004, p. 417.
250
Cf. COPPES, Leonard J. dg:n". In: DITAT, 1998, p. 914.
249
102
`awhi( ^ßT.v.ai yKiî
18e Que mulher tua é ela!
Segue a afirmação que sai da boca do Faraó, yKiî conjunção subordinada seguida de
^ßT.v.ai substantivo feminino singular com sufixo da segunda pessoa masculino singular,
assumindo a função de predicativo do sujeito, awhi( o pronome pessoal da terceira pessoa do
feminino singular, a tradução para o português pode ser que mulher tua é ela. O sinal
massorético silluq ` demarca o final do versículo.
awhiê ytixoåa] T'r>m;’a' hm'Ûl'
19a Por que disseste minha irmã é ela?
O novo versículo se inicia com a partícula interrogativa hm'Ûl', que no português pode
ser traduzida como por que. O verbo rm;’a', comentado anteriormente, nesta frase encontra-se
no perfeito – segunda pessoa masculino singular qal T'rm
> ;’a', traduzido para o português como
disseste, seguido do objeto direto ytixoåa], traduzido para o português como minha irmã, é um
substantivo feminino mais sufixo da primeira pessoa do singular assumindo a função de
predicativo do objeto awhi,ê ou seja ela, pronome pessoal terceira pessoa do feminino singular,
sobre o qual encontra-se o sinal massorético disjuntivo zaqef qaton ë representado, na tradução
para o português, pelo ponto de interrogação.
hV'_ail. yliÞ Ht'²ao xQ:ïa,w"
19b Tomei-a para mim por mulher.
O verbo xq;l', comentado no v. 15c do capítulo terceiro, tem a conotação de tomar para si,
possuir, desposar. Aqui xQ:ïa,w" é um imperfeito consecutivo – primeira pessoa do singular, e foi
traduzido para o português como tomei, segue a partícula do objeto direto mais o pronome
pessoal terceira pessoa do feminino singular Ht'²ao, a tradução em português é a ela. A preposição
mais pronome pessoal da primeira pessoa singular yli,Þ traduzido em português como para mim.
103
Segue hV'_ail. preposição mais substantivo feminino singular, assume a função sintática de adjunto
adverbial de finalidade, a tradução para o português pode ser por mulher, como mulher, ou como
esposa. Sob esta palavra encontra-se o sinal massorético atnah = indicando divisão do versículo.
^ßT.v.ai hNEïhi hT'§[;w>
19c E agora! Eis, tua mulher!
Segundo Waltke e O´Connor251:
Os advérbios de tempo têm, além de seu uso temporal, um uso lógico ou
enfático; estes dois usos se fundem em tradução e comentário, porque muitas
línguas atribuem valor lógico (cf. português, „já que..., então...‟) ou mesmo
valor enfático (cf. português „Agora pois...‟) [...] a fim de evitar equívoco [...]
a força lógica de (hT'[); usualmente é confinada à combinação (hT'[;w>) [...].
Como se dá no presente caso, portanto, o hT'[;w> como advérbio temporal tem força
lógica e possui um acento massorético disjuntivo, o que reforça tal característica, sendo assim
pode ser traduzido em português por, e agora! A partícula hNEïhi também longamente
comentada no capítulo II (v. 11e). demonstra ter valor enfático. Segue, então o ^ßT.v.ai
substantivo feminino singular com sufixo da segunda pessoa masculino singular, traduzido
em português por tua mulher.
xq:ï
19d Toma!
O verbo xq;l', tomar, agarrar, receber, adquirir, comprar, trazer, tomar por esposa, arrancar.
No texto xq:ï encontra-se no imperativo qal, e pode ser traduzido em português como toma!
251
WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 667.
104
`%lE)w"
19e E vai-te!
O verbo %l;h'252 significa ir, andar, denota movimento em geral, embora usualmente o
descreva em relação às pessoas. Por isso, pode ser empregado com várias conotações. É usado
para descrever a vinda do Senhor ao seu povo em julgamento ou em benção, especialmente
durante a peregrinação no deserto (cf. Ex 33,14; 13,21) bem como, a condição de Abrão (cf.
Gn 5,22; 6,9; 17,1). Neste versículo `%lE)w" é um imperativo masculino singular qal, e foi
traduzido em português por, vai-te!. O sinal massorético silluq ` que o acompanha indica o
fim deste versículo.
1.2 Análise estilística
O estudo estilístico ilumina o texto e o seu significado, sem necessariamente fazer
referências diretas à intenção do autor, desenvolvimentos teológicos, ou fato histórico.
Todavia tais elementos podem ser vislumbrados como anteprimeiro no estudo estilístico dado
que sua função é revelar o texto individual em sua forma e coloridos. Segundo Cássio
Murilo 253, este é um trabalho de garimpo que, em geral, se deve fazer por conta, pois
dificilmente se encontra uma abordagem já pronta.
Nos versículos em estudo, salta aos olhos uma estrutura de palavras semelhantes que
se repetem. Observe, por exemplo, a multiplicidade da preposição, mais sufixo da primeira
pessoa do singular yLi e dos sufixos na segunda pessoa masculino singular, t'yfiä[", T'd>G:åhi, ^ßT.v.ai,
‘T'r>m;’a', ^ßT.v.ai, %lE)w", bem como aos ouvidos sons que conferem certa musicalidade ao texto
tocando a sensibilidade do leitor ou ouvinte, devido à tônica em que é composto, hm', hM'l',
252
253
COPPES, Leonard J. %l;h'. In: DITAT, 1998, p. 355.
Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese Bíblica, 2000, p. 155.
105
hm'Ûl', xq', hT'§[;w>. Igualmente os sinônimos (A e A‟) geram uma impressão quanto à tensão e à
força retórica do discurso proferido a conferir em sua estrutura:
A
A‟
B
C
C‟
B‟
D
D‟
yLi_ t'yfiä[' taZOà-hm;
yLiê T'd>G:åhi-al{
hM'l'
`awhi(
^ßT.v.ai yKiî
awhiê ytixoåa] ‘T'r>m;’a'
hm'Ûl'
hV'_ail.
yliÞ
Ht'²ao xQ:ïa,w"
^ßT.v.ai hNEïhi Ht'§[;w>
xq:ï
`%lE)w"
18c Por que isso fizeste para mim?
18d Por que não esclareceste para mim?
18e Que mulher tua é ela!
19a Por que disseste minha irmã ela!
19b Tomei-a para mim por mulher!
19c E agora, eis, tua mulher!
19d Toma!
19e E vai-te!
Na estrutura apresentada é possível identificar certos paralelismos. Essa figura é um
gênero de sinonímia e consiste na repetição de iguais, sinônimos ou opostos, seja de pensamentos
ou de palavras em linhas sucessivas ou paralelas. O paralelismo simples sinonímico ocorre
quando o pensamento é semelhante nas linhas e se usam vocabulários sinônimos. Veja por
exemplo: A e A´ são interrogações com o mesmo sentido, C e C´ são exclamações, B e B´ são
afirmações em forma de exclamações interpoladas, D e D´ são imperativos.
Outra figura identificada é a chamada erotesis254, ou interrogação a observar em A e
A´. Estas fazem parte das figuras que implicam mudança e é usada quando um orador ou
escritor faz perguntas, todavia nem sempre está pedindo para obter informação. Em vez de
fazer declarações diretas e retas, muda subitamente o estilo e as põe em forma de
interrogações o que estava a ponto de dizer ou podia ter dito, sem precisar de respostas.
Por fim, identifica-se ainda outra figura chamada ecfonesis255 ou exclamação, observe
nas estruturas B e B´, C e C´, D e D´. Esta figura é usada quando, devido a certos sentimentos,
se muda o modo de falar, e em lugar de fazer uma declaração, se expressa mediante
254
255
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 779.
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 770.
106
exclamação. Deste modo, as ecfonesis são como uma explosão de palavras, ocasionadas pela
emoção, e não é usada esperando uma resposta.
Se no segundo capítulo, na fala de Abrão, é notável um significativo número de
sufixos na segunda pessoa do feminino singular, no discurso do Faraó estes também se
evidenciam, todavia na segunda pessoa do masculino singular. Que implicações tais tessituras
podem ter é o que o próximo item se propõe a analisar.
1.3 Análise narrativa
Os versículos em estudo neste capítulo têm caráter de desfecho (cf. vv. 18c-19). Eles
de certo modo já revelam a solução dos conflitos que apareceram ao longo da narrativa. Neste
momento o discurso do Faraó revela o que Abrão procurou velar, Sarai é esposa de Abrão. A
tonalidade do discurso deixa transparecer certa indignação por parte do Faraó. A ele parece
incabível que o hóspede tenha sido capaz de tamanha ousadia diante da qual incisivamente o
interroga três vezes (cf. vv. 18c, 18d e 19a), por que? Por que? Por que? Ele parece sentir-se
injustiçado, ao menos é o que transparece na repetição da preposição direcional com o sufixo
da primeira pessoa do singular yli para mim, para mim, para mim (cf. vv. 18c, 18d e 19b ).
Se no segundo capítulo, na voz de Abrão, chama a atenção o uso da terceira pessoa do
plural masculino. Neste é notável, na voz do Faraó, o uso do sufixo sempre na segunda pessoa
do singular masculino, ao dirigir-se a Abrão. Aqui é o tu masculino o elemento central que
sustenta o conteúdo da trama. Esta forma sufixal demonstra que agora o foco da tensão
narrativa se concentra entre o que disse e o que não disse Abrão. Deste modo o Faraó
transfere a Abrão a responsabilidade do acontecido, ou seja, ele ter tomado Sarai, mulher
casada, por esposa, pensando que a mesma fosse uma mulher núbil.
No texto paralelo (cf. Gn 20,1-18) nota-se que o soberano tomou a mulher do patriarca e
a levou para seu harém exatamente por ter se apresentado como irmã. A narrativa deixa
107
transparecer, que se ele soubesse que se tratava de esposa e não de irmã, ele teria procedido
diversamente (cf. 2Sm 11).
Mesmo que o texto em si não o diga, o tom de temor que flui nos discursos diretos dos
soberanos leva a crer que possuir a mulher de outro homem é algo prescrito negativamente pela
lei, podendo resultar em morte (cf. Lv 18; Dt 27). Sendo assim, os reis procuram apresentar
suas justificativas a fim de provar a inocência de seus atos, pois agiram de acordo com as
palavras dos próprios maridos, que as apresentaram como irmãs.
Certamente também o leitor, ponderando a questão, se faz as mesmas indagações que
fez o Faraó: Por que Abrão fez isso? Por que não disse que Sara era sua esposa desde o início?
É interessante notar que o Faraó não acusa Abrão por mentir, ou seja, suas perguntas não
giram em torno do: Por que você mentiu para mim dizendo que ela era tua irmã? Por que não
me disseste a verdade revelando que ela é tua esposa?
O modo de perguntar não deixa espaço para respostas, pois, quem indaga já o faz sem
intenção de ter respostas, porque já sabe da resposta. Igualmente em vez de fazer declarações
explícitas, o orador se expressa mediante exclamações, onde as mesmas são como uma
explosão de palavras, ocasionadas pelas emoções.
Abrão nem mesmo teve a oportunidade de desculpar-se, o que será possível somente
no texto paralelo (cf. Gn 20,11-13) no qual ele se retrata dizendo ter pensado consigo mesmo
que não havia temor a Deus naquele lugar, e que podiam matá-lo por causa de sua mulher e
reitera o peregrino afirmando que, na verdade, ela é sua irmã por parte de pai e que se tornou
sua mulher, e ainda diz tê-la pedido para dizer ser sua irmã onde quer que fossem. Com isso,
de certo modo, o patriarca parece se justiçar, pois, na realidade ele não mentiu, ele disse
somente a metade da verdade.
Ao empreender uma comparação entre os textos semelhantes, nota-se que a análise
narrativa oferece luzes, mas não é suficiente para responder a questão do tema esposa/irmã,
108
ficando em aberto o sentido histórico teológico que possivelmente influenciou as narrativas
que tem em comum este tema.
2. Estudo histórico-teológico
2.1 Estatuto da irmã-esposa
Com referência a este tema é possível partir do seguinte pressuposto, ou seja, a
legislação sobre a irmã-esposa pode ter sido um preceito comum dentro do corpus legal no
Antigo Oriente, como um particular na questão do casamento, sendo parte integrante de várias
culturas. Com isso, pretende-se dizer que o conteúdo proposto para o estudo desta narrativa
tem fundamento e precedentes na antiguidade, como por exemplo, nos registros encontrados
em locais como Nuzi256 e outros sítios arqueológicos257.
Segundo Speiser 258, o casamento na sociedade hurrita era mais forte e mais solene
quando a mulher possuía, simultaneamente, o estatuto jurídico de irmã, independente dos
laços de sangue. Deste modo, um homem às vezes se casava com uma jovem e a adotava
como sua irmã, em fases distintas e independentes, registrando-as em documentos legais.
256
Esta corresponde a uma das mais interessantes coleções de registros escritos da antiga cidade hurrita de Nuzi,
localizada a leste do rio Tigre. Yorghan Tepe, nos anos de 1915-1931 encontrou cerca de 20.000 documentos de
barro nos arquivos familiares de várias vilas da cidade. A data desses documentos é dada pelos escavadores
como sendo do sec. XV a.C que pode ser três ou quatro séculos mais tardia do que a data tradicional do patriarca
Abrão, como os costumes persistem, os tabletes oferecem informações sobre a estrutura legal e social nestas
terras em séculos passados. Cf. THOMPSON, Dr. John A. A bíblia e a arqueologia: quando a ciência descobre a
fé. São Paulo: Ed. Vida Cristã, 2004, p. 47.
257
Grupo de pessoas contemporâneas a Abrão. Eles começaram a entrar nas terras ao longo do Tigre cerca de
2000 a.C. Alguns tabletes de barro, desse período, introduzem um novo tipo de nome identificado como
hurrianos, que durante os dois séculos seguintes se dispersaram pela Mesopotâmia e formaram a principal
população em vários reinos importantes, como Mitani que ocupou a área entre o Tigre e o Eufrates cerca de 1500
a.C. Recentemente a cidade de Nuzi, a leste do Tigre, forneceu uma coleção de objetos de barro que permitiram
o acesso a noção dos costumes dessas terras. Alguns desses costumes são semelhantes aos costumes patriarcais
descritos em Gênesis. Sendo os hurrianos uma seção de uma sociedade complexa, não é inconcebível que
ancestrais de Israel tivessem contato com os mesmos em algum lugar. Cf. THOMPSON, Dr. John A. A bíblia e a
arqueologia, 2004, p. 39.
258
Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible: Genesis. Garden City, New York: Third Edition, 1986, p. 92-93.
109
A violação das disposições legais dos contratos de irmã-esposa era punida com mais
severidade que as violações de contratos de casamento simplesmente. Speiser
259
diz que esta
prática foi, possivelmente, um reflexo do sistema fratriarcal, o qual dava ao irmão adotivo
maior autoridade que ao marido. Pela mesma razão, a irmã adotiva desfrutava de proteção e
status social proporcionalmente maior.
Caso o pai viesse a falecer, um irmão de sangue tinha automaticamente o mesmo tipo
de autoridade paterna sobre suas irmãs. E quando um irmão, seja natural ou adotivo, dava a
sua irmã em casamento, também neste caso, a lei considerava a mulher como irmã-esposa.
Speiser260 faz uma observação dizendo que, embora a prática da adoção fosse comum entre os
povos vizinhos, todavia há peculiaridades que são próprias das práticas hurritas.
O autor recorda ainda que a instituição do levirato não oferece paralelo, pois sua
preocupação está voltada à manutenção da linha de um irmão falecido. Reitera o autor
acrescentando que, certamente, não é possível dizer o que realmente aconteceu naquelas visitas
ao Egito e Gerara (cf. Gn 12,10-13a; 20,1-18; 26,1-17), supondo que tenham acontecido,
todavia uma suposição plausível é a de que Abrão e Isaac eram casados com mulheres que
gozavam de um status privilegiado para os padrões da sociedade em que viviam.
O status de irmã-esposa era uma marca de posição social desejada, por isso, a tradição
registrou três paralelos, ou seja, devido à sua importância e lugar de destaque para as
matriarcas. Na mesma linha de Speiser comenta Chouraqui261:
[...] Sabe-se que um marido mesopotâmico – especialmente entre os hurritas
de Nuzi – podia legalmente adotar sua esposa por irmã, mesmo que entre
eles não houvesse qualquer laço de consangüinidade. Casamento e adoção
fraternal eram dois atos jurídicos compatíveis [...] os laços assim criados
eram mais fortes do que os laços do casamento, a esposa adotada por irmã
possuía um estatuto legal preferencial, garantido por sanções mais severas no
caso de alguma falta [...].
259
Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible, 1986, p. 92-92.
Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible, 1986, 92-93.
261
CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 137.
260
110
Ao afirmar que Sarai é sua meia irmã 262 (cf. Gn 20,12), Abrão dá espaço para deduzir que
possivelmente Sarai foi uma filha de Taré, seu pai, qualificando-se deste modo como meia irmã.
Mas o pensamento de Speiser não é único. Segundo P. Hamilton 263, a interpretação de
Speiser deixa lacunas quanto ao seu modo de organizar e interpretar os textos de Nuzi, pois
sobre os mesmos, não é possível afirmar que exista uma ordem cronológica de precedências,
adoção seguida de matrimônio. Por outro lado não é correto afirmar que tais casamentos
refletissem as características dos níveis mais altos da sociedade hurrita, pois, escravas libertas
também eram adotadas como irmãs, e também não é certo que estas adoções tenham a
finalidade de ser meio para um vínculo matrimonial.
Outros estudos264 aprofundam mais a questão da adoção, como um meio para manter os
bens e o patrimônio da família, ou garantir a posteridade da mesma e até mesmo dar segurança
ou proteção para um membro desprovido. Justel diz que, provavelmente, a intenção dos atos de
adoção com matrimônio era essencialmente para impedir a dispersão do patrimônio familiar.
Em seu estudo ele apresenta diversos tipos de adoção, entre as quais um tipo denominado in
fratris loco. Nesta uma pessoa era adotada em qualidade de irmão, e afirma que este
procedimento era conhecido no Antigo Oriente Próximo, especialmente em Nuzi. A pretensão
desta prática podia ter sido a de estabelecer um vínculo familiar que implicasse proteção
jurídica ou outros benefícios.
Segundo Tompson265, Nuzi não é a última instância para ditar, esclarecer ou
fundamentar historicamente certos costumes presentes na vida dos patriarcas. Todavia, este
oferece importante e indispensável contribuição para conhecer os costumes e o ambiente
histórico cultural em que viveram e, certamente, foram influenciados os patriarcas.
262
Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 40.
Cf. HAMILTON, Victor P. The book of Genesis: Chapters 1-17. Grand Rapds: Willian B.Eerdmans Pb. Co.,
1991, p. 381-382.
264
Cf. JUSTEL, J. Josué. Prácticas jurídicas y estrategias familiares en el norte de Siria durante el bronce final
(sec. XV-XII a. C). In: Gerión, (2009), vol. 27/1, p. 7-25; LION, Brigitte y MICHEL, Cécile. As mulheres em
sua família: Mesopotâmia, 2º milênio a.C. In: Tempo (2005), vol. 10, p. 20.
265
Cf. THOMPSON, John A. A Bíblia e a arqueologia, 2004, p. 48.
263
111
Melhor reflexão [...] sobre o material de Nuzi levou os eruditos à conclusão
de que ocorrem paralelos entre as narrativas patriarcais e os textos
cuneiformes de várias partes do Oriente Próximo antigo em várias épocas, de
modo que a peculiaridade da relação com Nuzi foi posta em dúvida. Esta
última pesquisa tornou difícil usar esses paralelos de fontes não-bíblicas
como um guia para datar, embora seu valor para ajudar a nossa compreensão
da sociedade do Oriente Próximo antigo no segundo milênio a.C. é
indubitável e, atualmente, a grande maioria dos paralelos sociais relevantes
procede do segundo milênio a.C. Os costumes dos patriarcas se adaptavam
muito bem à cultura mesopotâmica desse período. Podemos inferir que as
tradições bíblicas em Gênesis 12-50, que tratam um profundo conhecimento
do estilo de vida mesopotâmico, foram introduzidas pelos migrantes
originais da Mesopotâmia [...]266.
Evidentemente, como foi dito, este estudo segue o método sincrônico e não tem a
pretensão de discutir a historicidade ou não dos patriarcas, nem de discutir uma determinada
cronologia dos eventos, todavia busca-se ir além do texto, através de seus paralelos históricos,
a fim de evidenciar o colorido do Antigo Oriente, encontrado nas narrativas de forma a
expressar o seu correlato com a cultura oriental antiga. Sabe-se que, uma abordagem
particular não tem a pretensão de dar uma compreensão exaustiva e que a história de textos
como este, representa o desafio de continuar a lê-los na busca de seu significado, o qual
certamente não é dado, mas vai se desvelando à medida da compreensão alcançada.
2.2 Sarai esposa e irmã de Abrão
“Dize que és minha irmã” (cf. Gn 12,13). Este pedido de Abrão a Sarai deixa no leitor
certo ar de desconcerto, isso porque no contexto em que se vive não é „comum‟ este tipo de
relacionamento, denominado incestuoso e, até mesmo, proibido pelas leis de Israel (cf. Lv
18). Como então compreender o pedido de Abrão?
Para Eisenberg267 os três episódios da irmã-esposa causam a seguinte dificuldade:
Como dois fundadores de Israel puderam subtrair à lei? Em geral, resolve-se esse problema
justificando que os fatos ocorreram muito antes que a lei fosse editada, o que é incontestável,
266
267
THOMPSON, John A. A Bíblia e a arqueologia, 2004, p. 48.
Cf. EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia, 1997, p. 145-146.
112
pois realmente os patriarcas não estavam submissos a ela. No caso do patriarca, até então nada
fazia suspeitar que fosse casado com sua irmã. Ao ler o texto, há quem pense que seja uma
artimanha do patriarca, todavia esta é uma espécie de meia verdade.
Tendo como conjetura o que foi estudado anteriormente, com referência ao ambiente
histórico cultural da época patriarcal, onde a adoção de uma pessoa era uma prática comum,
bem como a adoção da esposa como irmã, podem-se inferir no mínimo duas probabilidades:
a) possivelmente Sarai foi uma filha adotiva de Taré; b) ou ele mesmo, Abrão, a adotou como
irmã, qualificando-a deste modo como irmã-esposa.
De fato esta não é uma linguagem estranha nas Sagradas Escrituras. O esposo do
Cântico dos Cânticos se refere à sua amada como minha irmã (ytiäxoa]) “roubaste meu coração,
minha irmã (ytiäxoa]), noiva minha [...]” (Ct 4,9); “Que belos são teus amores, minha irmã (ytiäxoa)]
minha noiva [...]” e segue o noivo repetindo o mesmo apelativo outras vezes (cf. Ct 4,12; 5,1-2).
Segundo Chouraqui268, as palavras „minha irmã, minha esposa‟ constituem uma definição
jurídica mais do que os laços de casamento, pois, a esposa adotada por irmã possuía um estatuto
legal preferencial e garantido por penas severas.
Mas, seria possível encontrar nas Sagradas Escrituras um caminho que corresponda e
fundamente a fala de Abrão, pois ele afirma que Sarai é sua irmã, por parte de pai, mas não
por parte de mãe (cf. Gn 20,12) e que se tornou sua mulher. Tal afirmativa não pode ser
descartada. Voltando à genealogia de Taré assim se lê: “Taré gerou Abrão, Nacor e Arã. Arã
gerou Ló. Arã morreu na presença de seu pai Taré em sua terra natal, Ur dos caldeus. Abrão e
Nacor se casaram: A mulher de Abrão chamava-se Sarai; a mulher de Nacor chamava-se
Melca, filha de Arã, que era pai de Melca e Jesca” (Gn 11,27-29).
Seguindo o esquema abaixo, observa-se que Arã morreu e deixou três filhos. Quando
ele morreu, seu pai Taré era ainda vivo. Deste modo possivelmente Taré pode ter tomado a
268
Cf. CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 137.
113
tutela dos netos. Segue o matrimônio de Nacor e Abrão. Nacor se casa com Melca, filha de
Taré. E Abrão se casa com Sarai, que possivelmente corresponde a Jesca 269, pois o texto
introduz Sarai, e logo conclui dizendo que Arã era o pai de Melca e Jesca. Tal conclusão leva
a pensar que os dois nomes correspondam à mesma pessoa. Tal hipótese esta presente também
nos comentários270 rabínicos, os quais afirmam que Sarai é a sobrinha de Abrão, sendo a filha
de seu irmão Arã. Ela era também chamada "Jesca" (Gn 11,29).
Taré
Abrão
Arãx
Nacor
Lot
?
Melca
Jesca
Apesar de não encontrar nas Sagradas Escrituras a matrilinhagem de Abrão e seus
irmãos, quando Abrão diz que Sarai é sua irmã por parte de pai, mas não por parte de mãe,
pode-se pensar que as mães de Nacor e Abrão não sejam as mesmas, por outro lado de fato
Jesca e Abrão seriam da mesma patrilinhagem, ou seja, ambos têm como ancestral comum
Tare. Entretanto é verdade que a mãe de Jesca não é a mãe de Abrão, mulher de Taré, e sim a
mulher de seu irmão Nacor.
A respeito do que se tratou diz um comentário à Torá:
269
Jesca é a mesma Sarai. Este nome teria como raiz $s¾ que no qal significaria ungir, ser ungido. Os rabinos
interpretaram esses dados dizendo que de fato Sarai foi ungida, e era superior a Abrão em profecia, por isso Deus
disse a Abraão: Faz tudo o que Sara te diz, escuta a voz dela, porque teus descendentes virão de Isaac (Cf. Gn
21,12). Cf. STRONG, James. hks¾. In: Dicionário Bíblico Strong: léxico hebraico, Aramaico e Grego de Strong.
São Paulo: SBB, 2002, p. 428; PATTERSON, R. D. $ws. In: DITAT, 1998, p. 1032; SOCIEDADE BÍBLICA DO
BRASIL. Concordância exaustiva do conhecimento Bíblico. São Paulo: SBB, 2002, p.18; SEFER BERISHIT. O
livro do Gênesis, 2008, p. 125.
270
Cf. hrwt. Torá: a lei de Moisés. Edição revista e atualizada São Paulo: Sefer, 2001, p. 59.
114
12. mas não filha de minha mãe – Abrahão casou-se com Sara da qual
disse ser irmão do mesmo pai, mas não da mesma mãe, porque até a
revelação das leis da Torá, as uniões matrimoniais entre meio-irmãos e
outros parentes parecem ser naturais [...] Na realidade, Sara era sobrinha de
Abrahão dado que ela era filha de Charan, irmão de Abrahão271.
Nem sempre a distinção entre irmã 272 e meia-irmã é esclarecida (cf. Gn 20,5). Em
alguns casos, para se indicar o fato de ser meia-irmã ou meio-irmão, menciona-se que o pai é
o mesmo (cf. Ez 22,11) ou que a mãe é a mesma (cf. Dt 13,6; Sl 50,20; Jz 8,19). Por irmãos
entendem-se também os descendentes remotos de um pai comum. Abrão se dirige a seu
sobrinho Ló como sendo seu irmão (Gn 13,8): “que não haja discórdia entre mim e ti, entre
meus pastores e os teus, pois somos irmãos ( Wnx.n")a] ~yxiÞa;)”.
Na sociedade patriarcal agnática273, ou seja, as ligações dos indivíduos são definidas por
um grupo de parentesco com seu pai, em sentido alargado. Compreendendo assim o termo casa,
ou família, alcança não somente os parentes próximos como a esposa ou esposo, filhos
legítimos, noras e netos, mas também, a mãe, quando viúva, sobrinhos, os filhos dos irmãos são
chamados de irmãos, bem como as eventuais concubinas, seus filhos, escravas e seus filhos.
O clã reúne a família dos irmãos e toda a parentela. O clã se torna tribo e as tribos formam
o povo274. Suzana Chwarts apresenta um esquema que ajuda a compreender melhor a lógica deste
sistema reprodutivo/social/corporada: “zera´ = semente = descendência = ben = filho = bnh =
(construir) = bayt = casa = bnei ysra’el, beit ysra’el (filhos de Israel, Casa de Israel)”275.
A esta altura, pode-se perguntar se de fato o narrador, ao referir-se, a Sarai como irmãesposa de Abrão, cobiçada por sua perene beleza, quer de fato comunicar dados
correspondentes ao parentesco ligado a uma descendência e linhagem, ou se usa tais
hrwt.Torá, 2001, p. 59.
Cf. WOLF, Hebert. tAxa:. In: DITAT, 1998, p, 50.
273
Cf. REDE, Marcelo. Família e patrimônio na antiga Mesopotâmia. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 61-65.
274
Cf. EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia, 1897, p. 49-50.
275
Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica, 2004, 142.
271
272
115
elementos somente como artifícios literários, ou está carregado de sentidos que transcendem a
dimensão ontica dos dados, a fim de comunicar ao leitor sua dimensão teológica.
2.3 Sarai protótipo do povo da Aliança
A auto-compreensão do homem bíblico é também moldada pela idéia da Aliança como
o esponsalício entre Deus e o povo276. Essa perspectiva é transmitida pelo menos por seis
profetas277: Oséias, Isaías278, Jeremias, Ezequiel, o Segundo e o Terceiro Isaías. Neles a
relação de amor humano vira paradigma da relação do amor entre Deus e o povo: “Como a
alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em ti” (Is 62,5).
O texto mais famoso é o do profeta Oséias 279, onde é descrita a dolorosa experiência
matrimonial do profeta. Sua mulher infiel é interpretada como símbolo da infidelidade de
Israel com relação ao seu Deus. Sendo assim, na linha das ações simbólicas dos profetas, a
vida de Oséias revela o mistério do Plano de Deus. Oséias amou e ama uma mulher, que
respondeu ao seu amor com traições. Ele é o primeiro a representar com a imagem do amor
conjugal, as relações do Senhor com o seu povo depois da Aliança do Sinai, e a qualificar a
traição idolátrica de Israel não somente como prostituição, mas como adultério.
Em geral, o grande drama da Aliança judaica corresponde à infidelidade do povo
apresentado sobre a forma de adultério e de prostituição. A reprovação, muitas vezes, é
dirigida a Israel por provocar o amor divino. Mas, em resposta a esta traição da esposa segue a
promessa de uma união ideal (Os 2,21-22): “Eu te desposarei a mim para sempre, eu te
276
Cf. TABORDA, Francisco. Matrimônio: Aliança-Reino. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 29- 43.
Cf. RAVASI, Gianfranco. Il raporto uomo-donna simbolo dell´Alleanza nei profeti. In: Parola Spirito e Vita.
Lo sposo e la sposa. (1986) 13, p. 41-56.
278
Segundo alguns estudiosos o Livro do Profeta Isaías corresponde a três períodos diferentes da história de Israel,
deste modo a divisão dos capítulos 1-39 são situados no pré exílio, ou seja, o VIII a.C século, o Dêutero-Isaías
capítulos de 40-55 corresponde à situação do exílio babilônico, ou seja, 587-537 a.C e o Trito -Isaías referente aos
capítulos 56-66 faz menção ao período pós-exílico. Cf. ZENGER, Erich. Os livros do profetismo. In: ZENGER,
Erich (et al.). Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 380-398; GRADL, Felix –
STENDEBACH, Franz Josef. Israel e seu Deus. São Paulo: Loyola: São Paulo, 2001, p. 157-164.
279
Cf. STEFANO, Virgulin. La sposa infidele in Osea. In: Parola Spirito e Vita. Lo sposo e la sposa. Bologna:
EDB, (1986) 13, p. 27-36.
277
116
desposarei a mim na justiça e no direito, no amor e na ternura eu te desposarei a mim na
fidelidade e conhecerás a Deus”.
Esse tema é retomado em outras passagens (cf. Is 1,21; Jr 2,2, 3,1; 3,6-12). Ezequiel o
desenvolve em duas grandes alegorias (cf. Ez 16 e 23) e conclui com uma promessa: “Sereis
meu povo, e eu serei o vosso Deus” (Ez 36,28). A segunda parte de Isaías apresenta a
restauração de Israel como reconciliação de uma esposa infiel (cf. Is 50,1; 54,6-7; 62,4-5).
Nesse, as vicissitudes desta união são descritas de uma forma muito vivaz. O Senhor
abandona a sua esposa e depois retorna a ela: “teu esposo é o teu criador, Senhor dos
Exércitos é o seu nome” (Is 54,5).
Em Isaías a mudança é ainda mais intensa:
Não te chamarás mais „Abandonada‟, nem a tua terra „Devastada‟, mas serás
chamada „Minha Amada‟ e a tua terra „Esposada‟, porque tu ame o Senhor e
a tua terra terá o seu esposo. Como um jovem esposa uma virgem, assim te
esposará o teu arquiteto; e como se alegra o esposo por sua esposa, assim, o
teu Deus se alegrará com você (Is. 62,4-5).
A relação do Senhor com Israel se faz presente também nas imagens nupciais de
Cântico dos Cânticos280. Em forma poética o autor ajuda a compreender a dimensão da
Aliança como matrimônio. Nesse quadro poético, o pano de fundo leva a considerar que a
Aliança é destinada a impregnar todas as disposições da personalidade humana, sua vida e
seus sentimentos mais profundos.
Outra imagem feminina é a de Sião. Também esta é um paradoxo do povo ou da
esposa (cf. Zc 3,14; 9,9; Sof 3,14-17; Jr 3,14-18). O tempo do noivado é interpretado como o
tempo da fidelidade no deserto que culmina com a Aliança sobre o Sinai (cf. Jr 2,2).
280
Cf. ELLIOT, Timothea. Lo sposo e la sposa nel Catico dei Cantici. In: Parola Spirito e Vita. Lo sposo e la
sposa. Bologna: EDB, (1986) 13, p.57-67.
117
Isaías chama a cidade de Jerusalém „a virgem filha de Sião‟ (cf. Is 37,22), porque
permaneceu inviolada e rejeitou as propostas do rei de Assíria. A expressão „virgem de
Israel‟, quando é usada pelos profetas faz referência ao contexto da Aliança.
Jeremias recorre à imagem da Virgem de Israel para reprovar o povo por ter profanado a
Aliança (cf. Jr 18,13). Como castigo, elas serão violadas pelos inimigos devido à sua infidelidade.
Todavia, depois das ameaças segue, como sempre, a promessa de restauração (cf. Jr 31,3-4). O
profeta promete que, entre o povo e Deus, será restabelecida a antiga relação matrimonial, a qual
será como uma nova criação: “volta, ó virgem de Israel, volta para estas tuas cidades! Até quando
irás de cá para lá, filha rebelde? Porque o Senhor cria algo de novo sobre a terra: a mulher rodeia
para seu marido”! (Jr 31,21-22). A frase sobre a Filha de Sião que retorna ao seu esposo significa
que serão retomadas as relações de amor e de fidelidade entre Israel e seu Esposo, o Senhor.
O título de mãe aplicado a Israel é raro no AT. A idéia, porém da maternidade do povo
de Deus retorna mais vezes. Um dos textos famosos é o Sl 87, intitulado como “Sião, a mãe
de todos os povos”. Sião será a pátria de todos.
O primado do esposo, o amor de Deus precede e supera aquele do homem. A Aliança
divina ressoa antes da resposta humana. De fato, foi Deus quem chamou Abrão e fez a promessa.
Não foi Israel quem por primeiro se interessou por Deus, mas foi o Senhor quem se interessou por
seu povo, buscando-o, seguindo-o, amando-o além da sua pobreza e pequenez (cf. Dt 7,7-8).
O autor do livro de Isaías compôs uma poesia finíssima sobre o tema nupcial (cf. Is
54,1-10). Antes da Aliança com Deus, Israel era como uma mulher estéril, sem marido, só,
sem filhos. No horizonte de sua vida, porém, apareceu o Senhor, aquele que pode reverter
também a esterilidade, como um dia aconteceu a Sarai, esposa de Abrão, porque “somente Ele
pode fazer habitar a estéril na sua casa, como uma mãe alegre de muitos filhos” (Sl 113).
Israel teve que alargar os espaços de sua tenda, estendê-la amplamente, alongar e reforçar,
pois: “Tua descendência se tornará numerosa como a poeira do solo; estender-te-ás para o
118
ocidente e para o oriente, para o norte e para o sul, e todos os clãs da terra serão abençoados por ti
e por tua descendência” (Gn 28,14), pois “o teu esposo será o teu criador” (Is 54,5).
A reflexão deste tema permite entremostrar a tessitura do seguinte paradigma:
Personificação do povo como cidade e da cidade como noiva infiel, mas convertida, bem
como de Sarai, como povo e esposa fiel. Sarai é o protótipo do povo que permaneceu fiel ao
seu esposo. Ela é, portanto, modelo de virtude para todas as filhas de Jerusalém, e a virgem de
Israel, porque se manteve fiel ao único amor281.
Assim como a cidade, a virgem, a esposa e a mulher servem como paradigma para
personificar o povo282, também a figura de Sarai é protótipo do povo virtuoso 283. O primeiro
patriarca e a primeira matriarca de Israel, antes de gerar um filho, geram a história futura
daquele povo, Israel, que nascerá do filho, Isaac. Antecipando e assumindo em si a história de
seus descendentes, ela é a mulher descrita no livro dos provérbios (31,10-31) “Vale mais do
que pérolas”. O referido acima desperta a sensibilidade e convida a dirigir um olhar diferente
à Sarai e à sua identidade.
2.4 Um novo olhar sobre Sarai
Que tipo de paixão pode despertar uma mulher estrangeira, anciã e estéril? Esta é uma
pergunta que certamente incomodou o leitor, caso tenha almejado tomar os dados ao pé da
letra. Mas o percurso feito leva a perceber que a imagem descrita de Sarai revela, ainda em
germe, a história do povo de Israel.
Ela vivência o ambiente desfavorável marcado pela seca e pela fome (formas de
esterilidade) é desenraizada, errante, peregrina e está a caminho. Juntamente com seu esposo,
281
SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis, 2008, p. 75.
Cf. EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia, 1897, p. 50.
283
Cf. CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 139. O texto assume a defesa da virtude das mães de Israel e
precisa que elas, a bem dizer não cometeram adultério; EL PENTATEUCO. El Pentateuco, 1976, p. 50; hrwt.
Torá, 2001, p. 30-31; 49-51. CHUMASH, hrwt yfmwx hfmx. O livro do Gênesis tyfarb rps. São Paulo:
Maayanot, 2008, p. 73-75.
282
119
vão buscar sobrevivência em terra estranha, onde suas vidas estarão sob ameaça. O ambiente,
hostil e adverso à geração da vida, propicia a esterilidade inicial.
Nota-se, portanto, que a linguagem dessa que parece ser uma simples narrativa, está
carregada de simbologia. A primeira a ser posta em evidência é a importância do matrimônio
de Sarai e Abrão. A intervenção de Deus resgata o matrimônio e garante a continuidade da
promessa. Como foi visto anteriormente, o matrimônio é símbolo da Aliança, relação
constantemente atribulada devido às potências estrangeiras.
Outra imagem é a beleza de Sarai, uma beleza que parece incorruptível e cobiçada.
Nem mesmo a ação do tempo e o desgaste do caminho diminuem a beleza de Sarai. Sua
beleza é equivalente à do templo, o qual não se desgasta nem fica feio, nem mesmo depois de
sua destruição e extinção, pois, esse continua a existir na memória do povo, e sua beleza se
perpetua no imaginário nostálgico do povo da Aliança (cf. 1Rs 6-7; 2Cr 2-3).
Também a esterilidade é uma imagem que caracteriza a matriarca. A seca e a fome são
formas de esterilidade, e ao mesmo tempo, experiências críticas que deixam uma profunda
impressão na memória humana. Durante o período da formação de Israel, os hebreus se autocompreendem como seres de passagem, transição, êxodo e desenraizados, na terra que
consideram como sua (cf. Dt 26,5-10).
Suzana284 diz que a esterilidade faz parte da auto-percepção dos israelitas e explica
que o ciclo patriarcal e o ciclo da esterilidade ancestral se superpõem, e estão fundamentados
numa nova ordem do cosmos. Nessa nova ordem, o tema da criação é retomado, tendo como
pano de fundo a esterilidade de Sarai, a qual desencadeia o processo de criação. Primeiro,
Deus se dirige a Abrão por meio da palavra e lhe ordena a ruptura e o desenraizamento (cf.
Gn 12,1) e depois o vincula à promessa de posteridade grandiosa (cf. Gn 12,2).
284
Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica, 2004, p. 22-27.
120
A autora afirma que, todos os modos de esterilidades figurados na Bíblia, são de
origem divina. Estes são apresentados como estados transitórios, ou seja, intermediário onde
se vivencia a escassez e o desnudamento, mas, como espaço de transformação.
Suzana procura demonstrar a complexidade do conceito de esterilidade. O
desdobramento de sentidos conferidos a este termo revelam elementos constitutivos da
religião, da história e da auto-percepção de Israel. Em sua análise, aponta que a esterilidade
recorrente nas tradições bíblicas não se restringe a um recurso literário, mas constitui um
motivo seminal de visões variadas dos antigos israelitas através dos tempos.
Sua hipótese vai além do esquema “esterilidade-matriarcas-feminino”, antes, enfoca a
experiência de Israel que inclui os sentidos de “ruptura, desenraizamento e errância”.
Elementos de três esferas distintas se comunicam formando uma unidade simbólica definindo
o ciclo patriarcal num todo: 1) Infertilidade inicial das matriarcas; 2) O desenraizamento dos
patriarcas; 3) A fome na terra. Suzana faz paralelo entre patriarcas-matriarcas e a terra de
Canaã. Segundo a mesma, os patriarcas e as matriarcas, na qualidade de estrangeiros são
desarraigados e infecundos, assim como a terra de Canaã é seca e marcada pela fome.
A esterilidade patriarcal, arquitetada pela divindade, é mais abrangente do que
simplesmente enaltecer o nascimento de um herói. Essa, assim como o deserto, é o lugar em que a
relação direta com Deus está em primeiro plano. Nesta os humanos vivenciam a humildade.
Neste contexto, Deus revelará sua misericórdia 285 gerando todo o povo de Israel. Por
isso, Ele quis contar com Sarai, símbolo do povo, da Aliança, do templo, da esposa fiel, a
escolhida para colaborar diretamente no plano salvífico, como mãe do filho da promessa. O
texto leva a olhar Sarai, irmã e esposa de Abrão, não somente dentro de uma ordem material,
mas dentro de uma ótica que transcende ao meramente dado, ou seja, a cosmovisão salvífica.
Misericórdia em hebraico é (~ymix]r;),ou seja, a forma plural de útero (~x,r,) A misericórdia de Israel vem do
útero de Deus. Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica, 2004, p. 16.
285
121
CONSIDERAÇÕES
Este capítulo corresponde ao título do trabalho “Sarai irmã e esposa de Abrão”, para
chegar a um sentido plausível com referência a esta questão, estudou-se os versículos
referentes sob a perspectiva linguístico-literária e histórico-teológica.
Com referência ao estudo linguístico e à tradução, o texto segue certa linearidade,
embora não deixe de oferecer dados interessantes, tal como a presença de interrogações,
exclamações e imperativos. Neste capítulo, o narrador passa a voz ao personagem Faraó.
Portanto, é o Faraó o responsável pela apresentação do desfecho da narrativa, cujas expressões
são carregadas de tensões notadas nas interrogações, afirmações e imperativos. Ele descobre
que Sarai é esposa de Abrão. Observa-se que, o Faraó não nega o fato de Abrão e Sarai serem
irmãos, não diz que Abrão mentiu, somente confirma o fato de ser, Sarai esposa de Abrão.
Na análise estilística evidenciaram-se, na voz do Faraó, as repetições dos sufixos de
primeira pessoa do singular, dos sufixos de segunda pessoa masculino singular, a assonância
marcante dos pronomes interrogativos dando força retórica ao discurso. A presença de
paralelismos simples sinonímicos, bem como, das figuras de linguagem denominadas erotesis
ou interrogação e ecfonesis ou exclamações.
Se na voz de Abrão (cf. Cap. II) chamou a atenção o uso da terceira pessoa masculino
plural referente aos oficiais do Faraó, e segunda pessoa do feminino singular referente a Sarai,
revelando, deste modo, seu temor com relação aos egípcios e atribuindo à Sarai a
responsabilidade pela sua vida, neste capítulo, correspondente ao desfecho, na voz do Faraó é
o tu masculino a preponderar, demonstrando que o foco da tensão se concentra entre o que
disse e não disse Abrão.
Com referência ao estudo histórico-teológico, abordou-se o estatuto da irmã esposa
dentro dos costumes legais de povos do Antigo Oriente, contemporâneos ao período patriarcal,
depois se passou a investigar já dentro das Sagradas Escrituras a possibilidade de ela ser
122
realmente sua irmã e esposa, e o significado desta expressão, os resultados levaram a dar um
salto para a dimensão teológica, vendo em Sarai não apenas uma mulher, mas a figura do povo.
O aprofundamento deste tema permitiu chegar à tessitura do seguinte paradigma:
Imagens femininas, como personificação do povo, como a cidade e a noiva infiel, mas
convertida; Sarai, como o povo e a esposa fiel, ela é o protótipo do povo que permaneceu fiel
ao seu esposo, modelo de virtude para as filhas de Jerusalém. Deste modo, o leitor foi
convidado a lançar um novo olhar sobre Sarai, não um olhar cobiçoso como aqueles dos
anfitriões egípcios e de seu esposo, mas um olhar de esperança e de auto-identificação, pois,
assim como o narrador se utiliza de figuras femininas como a cidade, a virgem, a esposa e a
mulher para personificar o povo. Sarai pode, também, ser aqui entendida como este protótipo
do povo virtuoso e sua beleza como expressão da Aliança.
123
CAPÍTULO V
EXPULSÃO E SUBIDA
O caminho de Sarai e Abrão é agora mais claro do que quando foi iniciado. O leitor,
após tê-lo percorrido, pode ver a estrada que o trouxe até aqui. Sob o ponto de vista
romântico, a conclusão apresentada pelo narrador não parece ser um final feliz, mas para os
filhos de Abrão e Sarai, os descendentes da promessa essa conclusão não poderia ser melhor.
Os pais saíram carregados de bens, ou seja, de certo modo, tiveram vantagens, por
outro lado de modo semelhante acontecerá aos hebreus ao saírem do Egito. Segundo a versão
do Êxodo como expulsão (cf. Ex. 11,1; 12,31-32; 4,21; 6,1), tal ocorrido ajudou àquela massa
de peregrinos a se formar e compreender-se como povo de Deus, bem como, a entender-se
como unidade e fundamentar suas origens num ancestral comum. Abrão e Sarai são
124
considerados pais na fé, não só por que foram eles os primeiros a gerarem uma descendência,
mas também, por esta experiência fundante e significativa.
Tem-se, portanto aqui uma dupla expulsão: a primeira foi àquela provocada pela fome,
e essa, gerada pela indignação do soberano. O retorno deu-se carregado de bens, e a vida foi
preservada sem danos. Esse é o sonho do migrante, retornar à sua terra e poder viver na
mesma. Sua terra pode não ser a melhor, a mais rica, mas foi esta que Deus lhe deu e,
portanto, é bendita e é bendito o fruto que daí brota.
1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,20-13,1a
1.4 Tradução e estudo morfológico-sintático
~yvi_n"a] h[oßr>P; wyl'²[' wc;yî >w:
20a E ordenou, sobre ele, o Faraó, homens,
A frase inicia com o verbo hw"c". Segundo Scökel286, este verbo ocorre no piel e no pual.
Nessa narrativa wc;yî >w: é um imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do
piel. Este verbo no piel carrega o sentido de mandar, ordenar, prescrever, decretar, impor,
exigir, portanto, foi traduzido para o português pelo verbo ordenou. O mesmo verbo exige um
complemento de coisa ou de pessoa ou de ambos.
Em seguida, tem-se uma preposição wyl'²['287 mais sufixo da terceira pessoa masculino
singular, podendo ser traduzido em português por sobre ele. O nome h[oßr>P; já foi visto
anteriormente e se refere ao soberano do Egito, o Faraó.
286
287
Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hw"c". In: DBHP, 2004, p. 557; HARTLEY, John E. hwc. In: DITAT, 1998, p. 1269.
Cf. CARR, G. Lloyd. l[". In: DITAT, 1998, p. 1121.
125
Segue o nome ~yvi_n"a]288, substantivo masculino plural, ou seja, homens. Sob a palavra
~yvi_n"a], encontra-se o sinal massorético atnah + indicando pausa, portanto, insere-se uma vírgula
na tradução.
A construção sintática desta frase tem a seguinte estrutura: verbo + objeto indireto +
sujeito + objeto direto. As vírgulas inseridas na tradução se devem ao fato de que a ordem
lógica da frase em português corresponde a sujeito + verbo + objeto.
At°ao WxïL.v;y>w:¥
ATàv.ai-ta,w>
`Al*-rv,a]-lK'-ta,w>
20b E despacharam a ele
E a mulher dele
E a tudo o que era dele.
Esta nova oração, inicia-se com o verbo xl;v'. Esse verbo significa enviar, mandar
embora, soltar, espalhar, disseminar, estender a mão. Segundo Austel289, o significado de
mandar embora é comum no piel (cf. Gn 12,20; 18,6 e 3,23). No terceiro capítulo de Gênesis
envolve claramente uma expulsão.
No texto, esse verbo aparece como WxïL.v;y>w:¥ imperfeito consecutivo – terceira pessoa do
masculino plural do piel, e foi traduzido para o português como despacharam. Com esse
sentido, o verbo encontra-se algumas vezes no livro do Êxodo (cf. Ex 4,21; 5,1; 6,11; 7,14;
8,4; 9,7a; 10,4; 11,10). Acompanha-lhe uma cadeia de objeto direto marcada pelo indicador
do objeto direto, tae, que se repete por três vezes associados à conjunção w>>, sendo traduzido
em português por, a ele, e a mulher dele e a tudo que era dele. O sinal massorético silluq
demarca o final do versículo.
288
289
Cf. MCCOMISKEY, Thomas E. v¾a. In: DITAT, 1998, p. 62.
Cf. AUSTEL, Hermann J. xl;v'. In: DITAT, 1998, p. 1567.
`
126
~yIrøc: .Mimi ~r"’b.a; •l[;Y:w:
ATõv.aiw> aWhû
Al°-rv,a]-lk'w>
13,1a Subiu Abrão do Egito
Ele e a mulher dele
E tudo o que era dele
O versículo inicia referindo-se Abrão, como sujeito, e de sua ação retratada com o verbo
hl[. Este verbo, referindo-se a pessoas, tem a conotação de subir, ascender. Com alusão a um
local indica o ponto de partida ou de chegada. No texto, o verbo •l[;Y:w: está no imperfeito
consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal, sendo traduzido por subiu. Esse
verbo requer um complemento adjunto adverbial de lugar, portanto ~yIr:øc.Mimi, composto pela
preposição !mi pode indicar ponto de partida, de, da, do, mais o substantivo ~yIr;c.mi, Egito. Observase que o sujeito é composto, pois quem subiu foi Abrão, ele, a mulher dele, e tudo o que era dele.
Para o presente trabalho se delimita o texto até aqui, pois neste ponto se nota concluída
a passagem de Abrão e Sarai pelo Egito, no ato de descer e subir, o que de certo modo pode
também ser visualizado na análise estilística.
1.2 Análise estilística
Segundo Bullinger 290, a palavra de Deus pode ser comparada à terra. Todas as coisas
necessárias para o sustento e a vida podem ser obtidas trabalhando a superfície do solo
terrestre, porém, existem tesouros de beleza e riqueza que somente podem ser obtidos por
meio de profundas escavações. O mesmo se passa com as Sagradas Escrituras: todas as coisas
que pertencem à vida e à piedade (cf. 2Pe 1,3) estão na superfície das Escrituras, ao alcance
dos mais humildes e dos crentes; porém, debaixo desta superfície se encontram grandes
despojos (cf. 2Cr 20,25) que, somente, são encontrados por quem os busca com desejo de
encontrá-los, como a um tesouro escondido.
290
Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 13.
127
Em geral, as figuras de linguagem são usadas para centrar a atenção em alguma ênfase
especial. Neste sentido o leitor é levado a examinar diligentemente tais figuras a fim de
descobrir e aprender a verdade que é posta em relevo. Neste capítulo, o leitor sente o sabor da
leitura, ou seja, aqui é possível perceber que esse texto possivelmente passou pelas mãos de
um artista, o qual teceu os „finalmente‟ e conferiu um toque todo especial colocando-lhe numa
moldura que se deixa contemplar por sua expressividade.
A
B
C
D
B´
C´
D´
~yvi_n"a] h[oßr>P; wyl'²[' wc;yî >w:
At°ao WxïL.v;y>w:¥
ATàv.ai-ta,w>
`Al*-rv,a]-lK'-ta,w>
~yIrøc: .Mimi ~r"’b.a; •l[;Y:w:
ATõv.aiw> aWhû
Al°-rv,a]-lk'w>
20a
E ordenou, sobre ele, o Faraó, homens,
20b
E despacharam a ele
E a mulher dele
E a tudo o que era dele.
13,1a Subiu Abrão do Egito
Ele e a mulher dele
E tudo o que era dele
Uma das primeiras coisas que salta aos olhos e soa aos ouvidos é o uso da terceira
pessoa masculino singular referindo-se a Abrão e a tudo o que lhe pertence, ora como objeto
ora como sujeito. É interessante observar esta mudança de estado em poucas linhas. Quando
expulso, Abrão, sua mulher e tudo o que é seu, são objetos da ação e, quando sobem, os
mesmos são sujeitos da ação.
No versículo 20a, identifica-se uma figura de linguagem caracterizada como
hipérbato291. O hipérbato é a inversão da estrutura frasal, ou seja, da ordem direta dos termos
da oração. Aqui se tem a seguinte construção: verbo + objeto indireto + sujeito + objeto
direto, quando a estrutura comum do hebraico tem sua construção básica assim: verbo +
sujeito + objeto + complemento292.
291
292
BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 598.
Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 108.
128
Cada idioma tem suas próprias leis gramaticais enquanto a ordem das palavras,
chamada sintaxe ou coordenação. O mesmo se dá com a sintaxe hebraica. A questão é que
muitas vezes na tradução, caso não se faça atenção a estes pormenores, pode-se perder um
elemento importante da construção estilística da narrativa.
O hipérbato tem a finalidade de atrair a atenção sobre um sujeito ou objeto, merecedor
de ênfase. Neste caso, é o objeto indireto que ganha o foco da atenção, colocado logo após o
verbo. Bullinger 293 ilustra fazendo uma comparação. Alguém tem em sua casa qualquer coisa
de especial e deseja que seus amigos prestem atenção. Colocada entre as demais coisas, esta
passará despercebida, porém, um dia é coloca encima da mesa. Quem entra, logo nota
qualquer coisa diferente sobre a mesa. O mesmo sucede com o hipérbato para atrair a atenção
sobre uma palavra ou frase. Este, colocado no rigor gramatical passa despercebido, porém,
colocado fora de tal ordem, logo o leitor atento notará a diferença.
A respeito do que segue é possível identificar a construção em paralelismo reto: BCD
B´C´D´. Cássio Murilo294 comenta que, neste recurso literário, quer-se rimar conceitos e idéias,
não sendo uma simples repetição do que já foi dito, mas um reforço estruturado sob o que se quer
comunicar, ou seja, o modo como foi expulso o patriarca e o que ele possuía. Na primeira
construção BCD são expulsos o patriarca, sua esposa e pertences, objetos da oração, na segunda
construção B´C´D´ onde sobem, o que significa voltar à terra, os mesmos são sujeitos da oração.
E assim se fecha esta narração da passagem de Abrão e Sarai pelo Egito. A mesma
apresenta um quadro que se abre com a descida do casal patriarcal, ou seja, sua saída da terra
e agora se conclui com a subida de retorno à mesma.
293
294
BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 598.
Cf. DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Metodologia de exegese Bíblica, 2000, p. 303.
129
1.3 Análise narrativa
Nos estudos sobre narrativa referentes ao gênero literário 295, alguns estudiosos
chamam a atenção para cenas com estruturas semelhantes. Estas são designadas “cenas
típicas”296 ou “cenas padrão”297. Segundo Ska298, trata-se de „tipos‟ ou „convenções literárias‟.
Deste modo é possível identificar nas três narrativas da esposa-irmã (cf. Gn 12,10-20; 20,118; 26,1-14) um mesmo esquema, que contém certo número de elementos, e certa ordem
semelhante, todavia é possível identificar também as variações, e estas em geral, evidenciam
singularidade e a intenção do relato.
Cássio Murilo diz que: “não obstante apresentem diferenças de conteúdo, tem formas
semelhantes [...] quando se confrontam textos formalmente semelhantes, é possível abstrair um
esquema básico [...] esse esquema comum é denominado „gênero literário‟” 299.
É possível dizer que Herman Gunkel300 tenha dado a „partida inicial‟ para a evolução
deste tipo de pesquisa ao concentrar-se nas formas literárias usadas no Antigo Israel, o que o
levou a distinguir as diversas formas da literatura veterotestamentária (legendas, hinos,
lamentos, leis, profecia, sabedoria) e a lhes atribuir os diferentes contextos fundamentais dos
quais se originaram.
Levando em consideração o que foi dito Cássio Murilo301 chama a atenção para o fato
de que os manuais de metodologia bíblica, por questão didática e funcional, falam de „gêneros
literários do Antigo Testamento‟ e „gêneros literários do Novo Testamento‟, subdividindo-os
segundo as tradições (histórica, apocalíptica, sapiencial), porém os vários gêneros literários
estão presentes em ambos os testamentos.
295
Cf. DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 41-65.
Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p. 139.
297
Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p. 79-101.
298
Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p. 139.
299
SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 41-42. Cássio observa: “para que haja
um gênero literário, são necessários ao menos dois textos com características formais semelhantes. Todavia, cada
vez que um autor usa um gênero literário, opera nele mudanças e adaptações”.
300
Cf. FITZMYER, Joseph A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997, p. 23.
301
Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 45.
296
130
Ao que sugere Robert Alter302, as chamadas cenas padrão não são sinônimo de simples
repetições, ou originadas de fontes diversas, ou evolução de uma fonte, ou até mesmo autores
diversos. Robert Alter, citando Homero, faz ver que esta é uma característica de narrativas
históricas. As cenas padrão fazem parte de um acordo „tácito‟ entre o artista e o público
relacionado com a organização interna da obra de arte, o qual media o complexo processo de
comunicação da arte.
Os narradores bíblicos usaram essas convenções para pôr em prática seu acordo tácito
com os leitores de seu tempo. Tais convenções literárias são manejadas de caso pensado, os
episódios não são aleatórios, e as repetições não são duplicações, mas são esperados pelo
público. Assim é possível identificar um esquema básico 303 nas três narrativas da esposa-irmã
(cf. Gn 12,10-20; 20,1-18; 26,1-17).
1. O patriarca e a matriarca entram em terra estrangeira.
2. O patriarca teme pela sua segurança e faz a esposa passar por sua irmã.
3. O ardil é descoberto pelo soberano local.
4. O soberano convoca o patriarca para censurá-lo.
Além deste esquema semelhante entre as três narrativas citada é possível identificar
elementos comuns a qualquer narrativa, sendo assim cada capítulo estudado desta narrativa
corresponde à sua parte no enredo: exposição, complicação, clímax, desfecho. Embora o desfecho
tenha sido estudado e apresentado como a conclusão das complicações, este capítulo visa
apresentar de fato os versículos que correspondem à conclusão.
Como cada narrativa tem sua particularidade, não parece problemático visualizar aqui
a conclusão da passagem de Abrão e Sarai pelo Egito. Eles partiram de sua terra de origem e
foram até a terra que o Senhor lhes havia destinado, fixaram-se no Negueb (cf. Gn 12,9). Do
302
303
Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p. 79-101.
SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 72.
131
Negueb eles desceram ao Egito (cf. Gn 12,10), agora eles sobem (cf. Gn 13,1) do Egito ao
Negueb, retornando à terra prometida.
A despedida não parece ser uma das mais triunfantes. O Faraó não se atreve a tirar-lhes
os presentes. Com as últimas palavras - e todos os seus pertences- intencionalmente colocados
no final do enredo, e repetidos por duas vezes, o narrador deixa esboçar certo ar de ironia, e
assim a narrativa parece até mesmo fazer um elogio à vivacidade e esperteza do patriarca.
2. Estudo histórico-teológico
2.1 Incidência 304do caso da esposa irmã
O livro do Gênesis apresenta três versões, ou três narrativas da esposa-irmã (cf. Gn
12,10-13,1; 20,1-18 e 26,1-17). Ao longo dos séculos estas foram abordadas por diferentes
perspectivas305 na tentativa de justificá-las.
Este trabalho aprecia a singularidade, a originalidade e a unidade de cada narrativa, bem
como sua interrelação, embora busque concentrar-se especificamente na primeira narrativa. De
modo algum se tem a pretensão de buscar a origem ou a historicidade de cada variante. Ao
contrário, procura-se trabalhar sobre o texto recebido e colher deste a beleza, a unidade e a
teologia que uma pesquisa sincrônica permite alcançar neste caso.
304
Estas são narrativas similares, as mesmas têm em comum um evento semelhante e um desenvolvimento quase
análogo. Há diferença nos nomes divinos (YHWH e Elorim). As mesmas são atribuídas a autores, documentos
ou tradições diferentes J e E. No entanto há estudiosos que tendem a enfatizar o fato de que a repetição (ou
duplicação) poderia ser usada livremente, o que leva alguns a considerarem as mesmas como narrativas
contemporâneas. Todavia outros ainda afirmam que houve uma versão que foi copiada, revisada e adaptada,
resultando em três versões desta narrativa. As repetições podem ser utilizadas para enfatizar determinado aspecto
ou uma mensagem subliminar em uma narrativa e da mesma forma um fato pode ocorrer mais que uma vez. Cf.
DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20;
20,1-18; 26,1-16). In: WÉNIN, André. Studies in the book of Genesis: literature, redaction and history. Leuven
(Belgium): Leuven University Press, 2001, p. 366-367.
305
Múltipla atestação significa: para hipótese das fontes essas são versões de uma narrativa originária, ou fontal; para a
hipótese documental cada narrativa pertence a um documento J e E; para outros uma é evolução da outra; para outros
são narrativas diferentes, de tempos, lugares e personagens diferentes. Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past
to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 359-369.
132
No que diz respeito à abordagem teológica, é possível identificar elementos
intertextuais nas três narrativas, embora se encontram elementos de descontinuidade, ou seja,
que torna cada uma independente. Estas narrativas envolvem um patriarca, sua esposa e um
soberano estrangeiro. Com referência à temática, é possível observar:
Temática:
12,10-13,1
20,1-18
26,1-17
Patriarca e
matriarca
Abrão e Sarai
Abraão e Sara
Isaac e Rebeca
Soberanos
Faraó (sem nome)
Abimelec
Abimelec
Divindade
YHWH
ELOHIM/YHWH
YHWH
Pragas para o Faraó e sua
casa/ reverte a situação
Abimelec/sonho/fechame
nto dos úteros/reverte a
situação
Abençoa a Isaac
Motivo
Fome (12,10)
-- --
Fome (26,1)
Modo
Imigrante (12,10)
Imigrante (20,1)
Imigrante (26,3)
Lugar
Egito (12,10-11)
Gerara (20,1)
Gerara (26,6)
Beleza
Sarai, muito bela
(12,11.14-15)
-- --
Rebeca era bela (26,7)
Irmã
Apresenta como “irmã”
por medo da morte
(12,13)
Apresenta como “irmã”
por medo da morte (20,2)
Apresenta como “irmã”
por medo da morte (26,7)
Consequências
para matriarca
Sarai é levada para casa
(12,15)
Sara é levada (20,2)
Interrogam sobre a sua
mulher (26,7)
Consequências
para o patriarca
Recebe muitos presentes
(12,16)
Recebe muitos presentes
(20,14-17)
Isaac prospera (26,12-14)
“pragas” (12,17)
“Aviso/sonho” (29,3-7)
“viu pela janela” (26,811)
Abrão foi repreendido
(12,18-19)
Abraão foi repreendido
(20,9-10)
Isaac foi repreendido
(26,9)
Expulso do Egito (12,20)
Livre para habitar
(20,15)
Afastar-se, ir embora
(26,16)
Rico (12,20-13,1)
Rico (20,14)
“mais poderoso que nós”
(26,16)
Ação divina
Revelação da
verdade
Ação do
Soberano
Consequências
Resultado
133
A primeira narrativa (cf. Gn 12,10-13,1) abre-se com uma contextualização, e nesta
encontra-se a causa da migração, ou seja, a fome e o destino, ou seja, o Egito (cf. Gn 12,10). Na
fronteira Abrão revela conhecer a beleza de Sarai (cf. Gn 12,11) e passa a temer a morte devido
à beleza de sua esposa (cf. Gn 12,12). Por isso, como estratégia suplica à Sarai dizer que é sua
irmã, a fim de ter a vida preservada (cf. Gn 12,13). Abrão é categórico, nesta versão ele usa um
imperativo, o que demonstra a tensão vivida no caminho.
De fato, quando chegam ao Egito, os egípcios vêem a beleza de Sarai, elogiam-na ao
Faraó (cf. Gn 12,14-15) e a levam para o harém (cf. Gn 12,15). Por outro lado, Abrão foi
recompensado (cf. Gn 12,16). Entra então a ação do Senhor, YHWH, o qual puniu fortemente
o Faraó (cf. Gn 12,17). Não se sabe como, mas o Faraó descobre que Abrão é esposo de Sarai.
Nas demais versões a descoberta é evidente (cf. Gn 20,3-7; 26,8).
O soberano chama o patriarca e o repreende pelo que fez (cf. Gn 12,18-19; 20,9-10;
26,9). Sarai é restituída (cf. Gn 12,19; 20,14) e ambos, Abrão e Sarai, são escoltados até a
fronteira e expulsos do país, mas saem com os bens que possuíam e com os que conquistaram
(cf. Gn 12,20-13,1).
A segunda versão, um pouco mais longa, não tem mais o Egito como palco, mas sim
Gerara, embora fiquem ocultos ao leitor os motivos que levaram Abraão a morar em Gerara (cf.
Gn 20,1); e os motivos pelos quais Sara foi levada para o harém de Abimelec (cf. Gn 20,2).
A ação do Senhor, nesta narrativa, é única. Ele, ELOHIM, avisou Abimelec em sonho que
Sara era casada (cf. Gn 20,3-7). Também, a atitude de Abimelec aqui é diferenciada, ele chama
seus servos e conta o que aconteceu (cf. Gn 20,8). Em seguida, chama Abraão e o repreende (cf.
Gn 20,9-10). O patriarca tem direito a voz e aproveita para justificar as razões de seu temor (cf.
Gn 20,11). Abraão, somente neste texto, diz que Sara é sua irmã por parte de pai (cf. Gn 20,12), e
explica o motivo que o levou a pedi-la para dizer que era sua irmã (cf. Gn 20,13).
134
Como na versão anterior, o patriarca prospera (cf. Gn 20,14). Mas, aqui há um diferencial,
os presentes são dados posteriormente ao fato de saber quais os verdadeiros laços entre Abraão e
Sara. Sara é restituída ao marido (cf. Gn 20,14)306. Segue então uma série de eventos que são
singulares a esta narrativa. Abrão é convidado a permanecer no país (cf. Gn 20,15); Abimelec fala
com Sarai e a recompensa por sua honra (cf. Gn 20,16). Por fim, Abraão intercede a Deus por
Abimelec e Deus reverte a situação (cf. Gn 20,17), pois Deus havia tornado estéreis todas as
mulheres da casa de Abimelec por causa de Sara, mulher de Abraão (cf. Gn 20,18).
A terceira narrativa, mais curta, apresenta como principais personagens Isaac e Rebeca. O
motivo da migração é o mesmo do tempo de Abrão, a fome, mas o destino, não é mais o Egito e
sim Gerara (cf. Gn 26,1). Deus fala com Isaac e diz para não descer ao Egito. Em seguida, renova
a promessa feita a Abraão (cf. Gn 26,2-6). Os homens do lugar perguntam a respeito de Rebeca e
Isaac a apresenta como sua irmã, por temor devido à beleza de Rebeca (cf. Gn 26,7).
Abimelec descobre que Isaac e Rebeca são casados, porque viu pela janela que ele a
acariciava (cf. Gn 26,8). Então, o soberano chama Isaac e o repreende (cf. Gn 26,9). Como fez a
Abraão, Abimelec dá oportunidade para que Isaac se justifique. Então esse comunica as razões
de seu temor (cf. Gn 26,9). Enfim, o soberano ordenou aos homens para não tocá-los, e Isaac
prosperou, não com presentes, mas com seu trabalho (cf. Gn 26,11-15), porém lhe foi pedido
para apartar-se dali (cf. Gn 26,16).
Na primeira e na terceira narrativas, os patriarcas Abrão e Isaac temem devido à
beleza de suas esposas (cf. Gn 12,11; 26,7), mas nas três versões usam a mesma estratégia,
apresentar a esposa como irmã, para salvar a própria vida (cf. Gn 12,13; 20,2; 26,7).
Somente a primeira e a segunda narrativas comentam o fato de a matriarca ser levada
para o harém (cf. Gn 12,15; 20,2) e, posteriormente, ser devolvida ao esposo legítimo (cf. Gn
12,19; 20,14), portanto, parece que com Rebeca isso não veio a ocorrer.
306
O texto é bem claro ao dizer que Abimelec não tocou em Sara: “Abimelec, que ainda não tinha se aproximado
dela” (Gn 20,4), ou seja, a promessa não foi ameaçada. A promessa também estava vinculada a ela.
135
Chama a atenção o respeito pelo matrimônio e o pavor, que toma conta, com relação à
possibilidade de contrair relações com uma mulher casada (cf. Gn 12,18-19; 20,9-10; 26,10).
Nos três relatos, o rei estrangeiro aparece com uma imagem bem diferente daquela que se
costuma desenhar na mente. Tanto o Faraó, quanto Abimelec, revelam significativo senso de
justiça e de responsabilidade pelos forasteiros307.
Outro elemento a ser destacado é a questão do universalismo e do particularismo. Na
pessoa dos patriarcas vê-se uma defesa do particularismo da fé em Deus, YWHW ou ELOHIM,
por outro lado, na pessoa dos soberanos é possível identificar um discurso universalista do
temor a Deus. As narrativas evidenciam, por fim, que fora de Israel existe sim o temor a Deus,
por mais que os patriarcas pensem o contrário.
2.2 Releitura do Êxodo308
Provavelmente, o termo releitura não seja o mais adequado porque de certa forma remete
a uma hipótese de datação do texto, como se o mesmo fosse posterior ao Êxodo. Quanto a isto,
não se tem uma certeza matematicamente exata. O que se tem são especulações, deste modo não
se tem a pretensão de defender uma verdade, mas apresentar um indicativo condutor de
continuidade e descontinuidade, característico nas Sagradas Escrituras.
307
Caso se parta da hipótese documental, o texto J seria provavelmente do IX sec. a.C e o E seria do VIII a.C,
portanto, época da monarquia, o que permite fazer uma comparação entre o rei Faraó e o rei David. Tanto o
Faraó quanto o rei Abimelec tomaram (Gn 12,15; 20,2) a mulher de um estrangeiro visivelmente bonita, „muito
bonita‟ (12,14; 26,7) pensando que fossem núbeis, mas ao saberem que elas tinham marido, os mesmos as
restituíram. O Faraó e Abimelec são cientes de ter incorrido em grande pecado retendo a esposa de outro
homem. Nota-se que os reis estrangeiros, não israelitas, não conhecem a lei, mas a obedecem, pois eles sabem
lidar de forma adequada com um estrangeiro em sua casa. Portanto, governantes estrangeiros souberam mostrar
respeito para com os peregrinos, diferente do rei da Judéia. Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to
Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 368.
308
Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,1020; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 359-369; André Wénin publicou dois estudos sobre Gênesis 12, na qual ele
destaca os muitos links que este capítulo tem com o ciclo das origens e, em especial com a história da queda, ou
pecado original. Para ele, o Gen 12,10-20 foi concebido como o 'pecado original' de Abraão e Sarai seria uma
contra-imagem de Eva. Ele faz um paralelo com relação à missão de Abrão de ser benção para todos os povos da
terra. Todavia nos interessa mais o paralelo que ele faz com o Êxodo. Cf. WENÍN, André. Abraham: elleción y
salvación. Reflexiones exegéticas y teológicas sobre Génesis 12 em seu contexto narrativo. In: Espíritu y vida
(14) 2005, p. 3-25; WENÍN, André. Abraham: élection et salut. Réflexions exègétiques et théologiques sur
Gênese 12 ans son contexte narratf. In: Revue Théologique de Louvain (27), 1996, p. 2-24.
136
Ao referir-se à releitura, pretende-se apontar alguns elementos intertextuais 309que
possibilitam uma hermenêutica sincrônica, possível de visualizar no quadro ilustrativo:
Abrão e Sarai
José/Israel
12,10 – Aconteceu uma fome na terra
41,54b – Havia fome em todos os países
12,11 – Quando ele se aproximava para chegar
no Egito
46,28 – Eles chegaram à terra de Gessen
12,11 – Disse a Sarai mulher dele
46,31 – José disse a seus irmãos
12,11 – Eis que sei
46,31 – Vou subir para advertir o Faraó [...]
12,12-13 – Acontecerá, que verão a ti os
egípcios, e dirão [...] dize, pois [...]
46,33-34 – Assim quando o Faraó vos chamar e
perguntar [...] vós respondereis [...]
12,13 – Para que se faça o bem para mim por
causa de ti
46,34b – Deste modo podereis permanecer na terra
de Gessen
12,15 – Viram a ela os oficiais do Faraó e
elogiaram a ela para o Faraó
47,1 – Foi, pois, José advertir a Faraó
12,15 – E levaram a mulher para a casa do
Faraó
47,7 – Então José introduziu seu pai Jacó e o
apresentou ao Faraó
12,16 – E para a Abrão foi feito o bem por
causa dela, e teve para ele carneiro, gado e
asnos, servos e criadas, jumentas e camelos.
47,5 – Jacó estabeleceu seu pai e seus irmãos e lhes
deu uma propriedade na terra do Egito, na melhor
região [...]
47,27 – Assim Israel estabeleceu-se na terra do
Egito, na região de Gessen. Aí eles adquiriram
propriedades, foram fecundos e se tornaram
numerosos.
Neste ponto é possível ver a virada que as duas histórias sofrem sendo possível continuar a identificar
aspectos comuns que sugere certa tipologia
12,17 – Feriu (pesteou) o SENHOR ao Faraó
com pestes grandes
Ex 7,14 – 11,10 – Pragas contra o Faraó e o Egito
12,18 – Chamou Faraó a Abrão e disse:
12,31 – E Faraó chamou a Moisés e a Aarão e disse:
12,19 – Toma-a e vai-te
12,32 – Levantai-vos e saí
12,20 – E despacharam a ele [...]
12,33 – Os egípcios pressionavam o povo para que
saísse de pressa
13,01 – Subiu Abrão do Egito [...]
12,37 – E os filhos de Israel partiram de Ramsés
309
Cf. ROMER, Thomas Cristian. La typologie exodique em Gn 12,10-20 et 16. In: WÉNIN, André. Studies in
the book of Genesis: literature, redaction and history. Leuven (Belgium): Leuven University Press, 2001, p. 181198. No fim do artigo Romer, em outras palavras diz que se as alusões de Gn 12 à tradição do êxodo, não são
meras interpretações de intertextualidades ocasionais, pode-se supor que o autor tinha conhecimento dessas
histórias (de uma forma ou de outra). Todavia não se quer dizer, que a saga do Êxodo do Egito dos patriarcas
tenha sido destinada a servir como prólogo para o Êxodo. Por outro lado não se pode negar certa continuidade,
ou similaridade, nem que seja no sentido textual.
137
Em suas características intertextuais o relato de Gn 12,10-20 apresenta semelhanças
com a permanência de Israel no Egito. Pela escolha linguística o narrador evoca a lembrança
do leitor da fome nos dias de José, bem como sua residência subsequente no Egito, que,
eventualmente, levará à escravidão dos israelitas. A frase introdutória (cf. Gn 12,10)
prenuncia a fome que levou os irmãos de José a buscar refúgio no Egito (cf. Gn 41,54). Além
disso, a fome nos dias de Abrão era opressiva, a palavra dbek
î ' expressa a intensidade contida
nas três repetições que descreve a fome no tempo de José (cf. Gn 43,1; 47,4.13). Igualmente
evidentes são as referências ao Faraó e as pragas que recordam o Êxodo 310.
Segundo Niditch311 Gn 12,10-20 é um estilo de narrativa tradicional. Em seus
elementos genéricos e morfológicos é uma narrativa simples e direta. A constelação dos
elementos individuais (Faraó, Egito, pragas, partida precipitada) sustenta a hipótese segundo a
qual tal composição corresponde ao período sucessivo à formação da tradição do Êxodo. A
ausência de amargura para com monarcas estrangeiros e, particularmente, a relativa
segurança, possibilitam deduzir um período em que o êxodo e a conquista fazem parte do
passado integrados num topos literário.
A descida ao Egito devido à fome e o retorno à terra, levando consigo o que possuía,
assemelha-se ao que farão os hebreus em sua partida do Egito. Os „escravos‟ também despojarão
os egípcios e partirão com suas riquezas (cf. Ex 12,35-38). O Faraó foi castigado com pragas, as
quais o fizeram mudar de atitude libertando Sarai e expulsando o casal, assim como outras pragas
farão o Faraó mudar de atitude e o levarão a liberar Israel312.
Como se deu com seus descendentes, também Abrão e Sarai precisaram migrar devido à
fome (Gn 12,10): “Antes que viesse o ano da fome ( b['Þr)" ” (Gn 41,50); “e começaram a vir os
310
Cf. JEANSONNE, Sharon Pace. The women of Genesis: from Sarah to Potiphar´s wife. Minneapolis:
Augsburg Fortress Publishers, 1990, p. 16.
311
Cf. NIDITCH, Susan. The three wife-sister tales of Genesis. In: A prelude to biblical folklore. Urbana:
University of Illinois Press, 2000, p. 62.
312
Há estudiosos que descreve Gn 12,10-20 como uma antecipação do Êxodo, o que não se enquadra as três
narrativas, pois os paralelos não estão no Egito, mas em Gerara terra dos filisteus. Cf. DE HOOP, Raymond. The
Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 367.
138
sete anos de fome [...] havia fome em todos os países” (Gn 41,54); “De toda a terra veio ao
Egito para comprar mantimento [...] pois a fome se agravou por toda a terra” (Gn 41,57);
“foram os filhos de Israel comprar mantimentos [...] porque a fome assolava a terra de Canaã”
(Gn 42,5); “mas a fome assolava a terra [...]” (Gn 43,1).
Sarai foi entregue aos Egípcios pelo seu irmão (cf. Gn 12,11-16), assim como mais
tarde também José será entregue por seus irmãos:
Então disse Judá a seus irmãos: “De que nos adianta matar nosso irmão [...]
vendamo-lo aos ismaelitas [...] é nosso irmão, da mesma carne que nós. E os
irmãos o ouviram [...] venderam José aos ismaelitas [...] e estes o
conduziram ao Egito [...]. (Gn 37)
Assim como Sarai possuía uma beleza particular (`T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi²), capaz de
chamar a atenção dos egípcios e os desejos de posse do Faraó, também José era “belo de porte
(ra;toß-hpey>) e tinha um rosto muito bonito ( ha,(r>m; hpeîywI)” (Gn 39,6) a ponto despertar desejos na
mulher de seu senhor (cf. Gn 39,7-20).
Em meio ao seu sofrimento, como o povo sob o jugo da escravidão, ela se dirigiu ao
Senhor e foi ouvida, o Senhor veio em seu favor (Ex 2,23-25 e Gn 12,17), e feriu313 o Faraó
com grande pragas (cf. Ex 12,29-30; Gn 12,17) libertou a Sarai, figura do povo, das mãos do
Faraó e a devolveu a seu esposo Abrão, e assim eles foram expulsos do Egito (cf. Ex 12,3132; 4,21; 6,1; 11,1; Gn 12,20).
Nos pequenos detalhes é possível contemplar a continuidade com a experiência e
teologia do Êxodo, etapa de importância fundamental para a formação da identidade do povo
e o estabelecimento de relações mais estáveis com Deus. Na libertação de Sarai identifica-se a
313
A intervenção de YHWH contra o Faraó e o Egito permite fazer, através do uso do termo „ferir‟ ([gn), alusão
às pragas do Egito. Todavia a reação do soberano egípcio nesta história é o oposto do que a do Faraó em Ex 12,
nesta o faraó deixou-se convencer imediatamente pelas pragas divinas, devolvendo a liberdade a Abrão e a sua
esposa. É o próprio Faraó quem provoca o êxodo de Abrão expulsando-os do Egito (xl;v', Gn 12,20 e 14,5). Cf.
ROMER, Thomas Cristian. La typologie exodique em Gn 12,10-20 et 16, 2001, p. 196.
139
versão correspondente ao Êxodo como libertação, e na expulsão do casal a identificação do
Êxodo como expulsão. Diz o pensamento clássico hebraico:
A descida de Avraham e Sara ao Egito foi um precursor do exílio Egípcio:

A fuga de Avraham do Egito como um homem rico abriu os canais
espirituais da redenção que possibilitaram a seus filhos saírem do Egito
carregados de ouro e prata.

Da mesma forma, o cuidado extremo de Sara para não ser desonrada
pelo Faraó, dotou mais tarde as mulheres judias do Egito, com a força para
permanecerem fiéis às suas famílias314.
É interessante apreciar a riqueza de detalhes e a beleza deste texto, uma obra moldada
certamente por mãos de artista. Por traz de um véu que delineia aparente simplicidade é
possível ir além e colher verdadeiro tesouro no que diz respeito à autocompreensão de Israel,
fruto de uma longa experiência. Nesta experiência todos os elementos, destacados ao longo do
percurso, se tornaram parte da identidade e da história de todos que se compreendem como
filhos de Abrão e Sarai.
2.3 Subida do Egito
A expressão “subir do Egito” firma-se na memória de Israel, não apenas como síntese
teológica, mas também como trajetória de resistência a sistemas que se alimentam através da
vida das pessoas, expropriando seu trabalho por meio de tributos. Esta expressão recolhe um
legado espiritual, histórico e teológico na identidade dos descendentes de Abrão e Sarai.
Abrão partiu de Harã seguindo a ordem do Senhor (cf. Gn 12,4). Agora ele parte
novamente, mas seguindo a ordem do Faraó, diz o narrador: “Abrão subiu do Egito para o
Négueb”. Abrão foi ao Négueb na terra prometida (cf. Gn 12,9) e de lá “desceu” ao Egito (cf. Gn
12,10). Agora ele “sobe” do Egito ao Negueb, está de volta à terra prometida. O narrador repete
“Ele, sua mulher e tudo o que era dele” (cf. Gn 12,20; 13,1) por duas vezes.
314
SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis, 2008, p. 75.
140
Uma arriscada passagem da narrativa sobre Abrão e Sarai terminou. A abertura do ciclo
de Abrão põe o leitor diante da realidade humana, um drama permeado de ambiguidades e pouco
motivador. O patriarca, chamado por Deus, recebeu promessa de terra e descendência, mas tudo
parece estar ameaçado, o mesmo se viu obrigado a abandonar a terra e a migrar para uma terra na
qual ele temia que seus habitantes o matassem.
Se em sua abertura a narrativa iniciou com uma descida, agora, no seu encerramento, a
conclusão apresenta a subida. O ciclo está completo. Tem-se, portanto, dois movimentos: descida
e subida. Esta carrega a conotação contrária da descida, pois, a subida evoca sair de uma posição
menos favorecida para uma posição melhor. De fato, quando o patriarca e a matriarca desceram
suas condições não era das melhores, fome, medo, perseguição e dominação. Na subida eles
encontram-se livres do que os atormentavam, enriquecidos e protegidos pelo Deus que os livrou,
pois, Ele também os conduz.
Passaram pela fronteira, desceram até o Egito e agora podem retornar à terra que o Senhor
lhes prometera. A sensação de medo e de suspense encontrada pela conjuntura vigente é superada
e a narrativa põe novamente o leitor dentro do conjunto da harmonia inicial da promessa
estabelecida entre o Senhor e Abrão, da qual Sarai é parte constituinte.
O retorno à terra foi mediado por uma mulher da qual a única expressão de ação se
resume numa incógnita que o narrador diz ter provindo da mesma “yr:Þf' rb:ïD>-l[;”, o que vem a
ser, como foi visto, não é tão fácil dizer o que compreende tal expressão, todavia, foi por isso
que o Senhor agiu e os livrou do estado de opressão, garantindo a continuidade da promessa,
o retorno da terra e a geração de descendência.
2.4 Atualidade da narrativa
O documento, “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, da Pontifícia Comissão Bíblica
dedica o seu IV capítulo ao tema da interpretação da Bíblia na vida da Igreja. Este capítulo,
141
em seu primeiro tópico, trata da atualização do texto bíblico, o que compreende princípios,
métodos e limites315. A citação deste documento se faz importante nesta etapa do trabalho
porque é o que se pretende fazer neste tópico.
Conforme o documento, para a Igreja, a Bíblia não é simplesmente um conjunto de
documentos históricos referente ao passado, mas sim Palavra de Deus dirigida à Igreja e ao
mundo inteiro no tempo presente. Esta convicção tem como consequência “a prática da
atualização e da inculturação da mensagem bíblica” 316. Essa é uma prática já presente na
própria Bíblia, onde textos mais antigos foram relidos à luz de novas circunstâncias e
aplicados à situação presente do povo de Deus. Fundamentando-se nestas convicções, a
atualização continua a ser uma prática necessária entre os fiéis.
O documento diz que a atualização é possível, necessária e deve ser constante. A
mensagem bíblica pode fecundar todos os tempos, ela está ao alcance dos homens e mulheres
de hoje, portanto, é necessário aplicar a mensagem desses textos às circunstâncias presentes e
exprimi-la numa linguagem adaptada à época atual.
Observa-se que a atualização não significa manipular o texto, nem projetar sobre os
escritos bíblicos opiniões ou ideologias novas, “mas de procurar com sinceridade a luz que eles
contêm para o tempo presente”317. No parágrafo sucessivo, o documento diz que “graças à
atualização, a Bíblia vem iluminar inúmeros problemas atuais [...] a opção preferencial pelos
pobres [...] a condição da mulher [...] direito da pessoa, proteção a vida humana, preservação da
natureza, aspiração à paz universal”318.
315
Este documento foi lançado em 1993 por ocasião do centenário da Encíclica de Leão XIII Providentissimus
Deus (1893) e do cinquentenário da encíclica de Pio XII, Divino afflante Spiritu. A providentissimus Deus quer
proteger a interpretação católica da Bíblia contra os ataques da ciência racionalista; já a Divino afflante Spiritu
preocupa-se em defender a interpretação católica, contra os ataques que se opõem à utilização da ciência, por
parte de exegetas, que querem impor uma interpretação não cientifica chamada “espiritual” das Sagradas
Escrituras. Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de abril de 1993).
8. ed. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 8.
316
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, 2009, p. 139.
317
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, 2009, p. 140-141.
318
PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, 2009, p. 143.
142
Deste modo pode-se constatar o quanto a narrativa estudada ilumina a vida. A
narrativa em questão é uma história não muito estranha a tantos homens e mulheres dispersos
pelo mundo da migração. Quem nunca ouviu falar de áreas de expulsão e áreas de atração?
Quantos migrantes castigados pela seca e pela aridez de sua terra foram e ainda são expulsos
da mesma devido à fome e se colocaram em marcha, como peregrinos, em busca da
sobrevivência. Esta é a realidade de milhares de nordestinos que deixam o sertão e vem para a
lavoura do corte de cana319 no interior do estado de São Paulo e Minas Gerais.
Aqui se fala em nível local, mas é possível ampliar o horizonte para as realidades
internacionais, veja-se o caso dos migrantes na rota do mediterrâneo 320 que desembarcam em
Lampedusa. São milhares de cidadãos africanos que deixam a sua terra e se aventuram sem
nada a perder, tudo o que acontecer é lucro, pois para eles a morte é uma certeza muito
próxima, a vida é uma esperança, sorte de poucos.
O mesmo vale para os que arriscam a vida na fronteira entre México e Estados Unidos,
bem como, para os Bolivianos em São Paulo. Se as rotas da migração falassem! Quantos
retirantes teceram sonhos de um dia poder retornar!
Segundo a Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais da ONU, os dados de 2005
revelaram que até então 195321 milhões de pessoas viviam fora de seus estados de origem. Os
motivos são variados: parte desses procuram condições materiais dignas para atender suas
319
Cf. AZEVEDO, Luze. Vozes do eito. Petrópolis: Vozes, 2010.
Se teme que 250 migrantes hayan perdido la vida después de que la embarcación a bordo de la que viajaban, y
la cual trasportaba a unas 300 personas, naufragase a primera hora del día de hoy a unos 60 kilómetros de la isla
italiana de Lampedusa. Disponível em: <http://www.iom.int/jahia/Jahia/media/press-briefing-notes/pbnEU/cache
/offonce/lang/es?entryId=29463>. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 20h30min. A Organização Internacional
para as Migrações (OIM) acredita que a embarcação teria partido há dois dias das costas da Líbia com
aproximadamente 300 pessoas, entre eritreus e somalis. UOL NOTÍCIAS. Embarcação pode ter naufragado
com mais de 300 migrantes. Disponível em: <http://noticias.bol.uol.com.br/internacional/2011/04/06/embarcaçãpode-ter-naufragado-com-mais-de-300-imigrantes.jhtm>. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 21h:00min.
321
Cf. Mensagem da diretora-executiva do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas), Thoraya Ahmed
Obaid, para o Dia Internacional dos Migrantes - 18 de dezembro de 2006. “Estimados em 195 milhões em todo o
mundo, mais de 3% da população - que deixaram sua terra natal em busca de vidas melhores”. Disponível em:
<http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id=5092>. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 21h36min;
BRANCO, Rodrigo Castelo. Globalização, tratado de livre comércio da América do Norte e migração
internacional: o capital como barreira aos trabalhadores periféricos. Disponível em: < http://www.pucsp.br/neils
/downloads/ v15_16_castelo_branco.pdf >. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 21h36min.
320
143
necessidades básicas e históricas morais, outros fogem de perseguições políticas, dos desastres
ecológicos, conflitos civis e militares, bem como melhorar suas condições econômicas.
Os migrantes partem na esperança de encontrar melhores oportunidades de vida. Esses
muitas vezes, arriscam a sua vida e a vida de suas famílias na esperança de poder viver com
dignidade. Nas estradas da migração tudo pode acontecer. Mais que nunca hoje se fala da
feminização da migração322, bem como, do tráfico de pessoas para exploração sexual, tráfico
de órgãos e outros. Nem sempre se tem a liberdade de escolher, de decidir por si, nem sempre
sua opinião é pedida ou escutada. Certamente, as vítimas deste tipo de situação se
identificariam com a de Sarai descrita pelo teólogo biblista Walter Vogels:
Agora pela primeira vez no ciclo, pede-se a Sarai que fale [...] não lhe deixa
muita escolha [...] pede que rejeite sua própria identidade [...] Abrão se
interessa pela própria vida [...] o suposto irmão quer vender sua „irmã‟ [...] a
mulher se tornou um objeto do qual se serve e se aproveita... os egípcios
„viram‟ que Sarai não era simplesmente bela, mas „muito linda‟ [...] Quando
sua beleza foi relatada ao Faraó, o olhar não basta mais. Ela „foi levada à
casa do Faraó‟[...]. O texto nem se quer menciona o nome de Sarai, ela se
tornou „a mulher‟. Os ricos e poderosos podem apropriar-se das mulheres
como querem, e delas abusar [...] Não só se abusa da mulher, como ainda por
cima o marido enriquece, como os cafetões se enriquecem à custa de suas
mulheres [...]323.
A narrativa de Abrão e Sarai comunica, não somente ao homem de fé, mas retrata a
história de tantos Gerim (rwg), migrantes que vivem ainda hoje no anonimato sob a exploração e
submissão de potências capitalistas nos haréns de verdadeiros Faraós. Como o patriarca e a
matriarca tantos migrantes sonham, não somente com a sobrevivência, mas também de poderem
retornar à sua terra enriquecidos e protegidos.
322
Cf. OBAID, Thoraya Ahmed (diretora-executiva da UNFPA). Mensagem para o dia internacional dos
migrantes 18 de dezembro de 2006. “Como cerca de metade de todos os migrantes são mulheres, é necessário
focar nas questões associadas à igualdade de gênero. Mulheres migrantes tendem a se concentrar em ocupações
tradicionalmente femininas e setores informais da economia, nos quais elas enfrentam maior risco de exploração
e abuso, incluindo o tráfico de seres humanos”. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?
id=5092> . Acesso em 07 de Abril de 2011 às 22h00min.
323
VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 69-75.
144
A história patriarcal tem um diferencial, a relação interpessoal com Deus. O clamor de
uma vítima chegou até Deus “e do fundo da servidão o seu clamor subiu até Deus. E Deus ouviu
os seus gemidos; Deus lembrou-se da sua Aliança, com Abrão, Isaac e Jacó. Deus viu os filhos de
Israel, e Deus conheceu” (Ex 2,23-25) e Ele interferiu com mão poderosa e braço forte.
Deste modo, pode-se dizer que esta narrativa tem um fundo didático, pois também
ensina a importância da fé como essencial na vida de quem se dispõe a arriscar-se no caminho,
pois, a fronteira e o ser estrangeiro é um desafio para qualquer pessoa, mas o homem de fé sabe
em quem confiar nos momentos mais duros de sua jornada, na certeza de que Deus não
desampara, se ele não livra do sofrimento, Ele se faz peregrino e percorre junto o caminho.
CONSIDERAÇÕES
A passagem de Abrão e Sarai pelo Egito chegou ao fim. Igualmente os conflitos gerados
por sua beleza e por seus laços parentais com Abrão também chegaram ao fim, portanto é hora
de juntar seus pertences, desarmar a tenda e partir. Para onde? De onde vieram! Se na primeira
expulsão causada pela fome eles desceram, agora, na segunda expulsão, causada pelo Faraó, o
casal sobe e retorna à Canaã. O quadro pode ser perfeitamente visualizado descida e subida,
saída e retorno.
Este capítulo intitulado “Expulsão e Subida”, segue o esquema de estudo pré
estabelecido, ou seja, a abordagem linguístico-literária e histórico teológico. Quanto ao estudo
linguístico-literário observa-se certa harmonia no conjunto verbal, onde todos os verbos se
encontram no qal.
Com relação à análise estilística, identificam-se figuras de linguagem como o
hipérbato, cuja finalidade é atrair a atenção do leitor sobre um termo que está em posição
diferente, e paralelismos retos do tipo BCD e B`C`D`. Na primeira BCD construção, referente
à expulsão, nota-se que Abrão, sua esposa e pertences são objetos da oração, enquanto na
145
construção B`C`D`, referente à subida, os mesmos: Abrão, sua esposa e seus pertences são
sujeitos da oração.
Na análise narrativa observa-se como esta narrativa pode estar incluída dentro do que
os estudiosos denominam “cenas típicas”, “cenas padrão”, “tipos” ou “convenções literárias”,
o que é plausível levando em conta as três narrativas da esposa irmã (Gn 12,10-20; 20,1-18;
26,1-14). A narrativa retoma aqui a sua harmonia inicial.
No estudo histórico teológico foram abordados os elementos que convergem ou
divergem nas três incidências das narrativas em que os patriarcas usam o mesmo artifício para
entrarem em um país como estrangeiros.
Seguiu-se com o estudo do texto de Gn 12,10-20 comparando-o ao Êxodo, pois se
observa uma constelação de elementos (Faraó, Egito, pragas, partida precipitada) que sustenta
a hipótese de uma composição correspondente teologicamente com a tradição do Êxodo, etapa
de importância fundamental para a formação da identidade do povo e estabelecimento de
relações mais estáveis entre Deus e o povo. O título „Subida do Egito‟ recolhe esse legado
espiritual, histórico e teológico da identidade dos descendentes de Abrão e Sarai.
Enfim, constata-se que a narrativa estudada ilumina a vida de tantos homens e
mulheres dispersos no mundo da migração, mas aqui se tem um diferencial, a fronteira e o ser
estrangeiro é um desafio a qualquer pessoa, porém o homem de fé sabe em quem confiar nos
momentos mais difíceis de sua jornada. Deus não se omite diante do clamor de uma vítima.
146
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Certamente o estudo aqui apresentado não exauriu toda a beleza e riqueza que a
perícope de Gn 12,10-13a contém. Com esta abordagem, procurou se adentrar neste
fascinante universo da narrativa bíblica acompanhados pelo patriarca e matriarca, buscando
colher alguns aspectos presentes nos fatos aqui apresentados.
A perícope citada foi abordada dentro de duas perspectivas, ou seja, o estudo
linguístico-literário e o estudo histórico-teológico. O estudo realizado se ateve, sobretudo, na
dimensão sincrônica, cuja abordagem exegética foi pautada pela exegese narrativa, ou seja,
com uma abrangência de cunho literário.
Referente ao estudo linguístico-literário, destaca-se que o texto se configura
perfeitamente dentro dos critérios de uma narrativa tradicional, sua construção morfológica e
sintática é bem articulada e não apresentam grandes complicações, ao menos se observa que o
texto usado para o estudo, praticamente não apresenta problemas para a crítica textual, o que
permite fluir a leitura e o estudo.
Quando se diz que é um texto bem articulado, quer-se indicar a complementaridade entre
forma e conteúdo, pois uma etapa de análise ilumina progressivamente a outra, ou seja, os
resultados da análise morfológico-sintática lançam luzes para continuar a análise semântica e os
resultados deste iluminam a análise estilística e a soma destes culmina na análise narrativa e no
estudo histórico teológico.
A partir do estudo morfológico-sintático é possível colher os pontos fortes de tensões
localizados nas variações dos tempos verbais entre presente, passado, futuro, nos modos
imperativo, indicativo e subjuntivo. Igualmente, por meio dos pronomes pessoais e sufixos é
possível visualizar em quem se centra o foco da atenção.
147
Com base na análise estilística chegou-se a uma estrutura que deixa transparecer um
trabalho cuidadoso e bem articulado. Isto permite supor que o texto na forma recebida,
possivelmente foi acurado por um redator final, o qual lhe concedeu complementaridade entre
estrutura e conteúdos, sendo ambos artisticamente elaborados.
Daí resulta a estrutura lógica do mesmo, a qual pode ser apresentada sob diversos
modos. Sinteticamente este se enquadra em uma moldura de „descida e subida‟; „saída da terra
e retorno à mesma‟; „duas expulsões, inicialmente pela fome e no fim pelo Faraó‟. O primeiro
e último capítulo apresentam repetições interessantes: „fome na terra [...] fome na terra‟; „ele a
mulher dele e a tudo o que era dele [...] ele a mulher dele e a tudo que era dele‟; outro
esquema possível e que serviu para o estudo narrativo é o da ordem dos discursos: narrador;
Abrão; narrador; Faraó; narrador.
Partindo da estilística para a análise narrativa, como foi dito, este texto se enquadra
perfeitamente nas exigências de uma narrativa, e aqui é interessante notar como a divisão do
texto, quanto às partes de uma narrativa, corresponde perfeitamente ao esquema estilístico
referente aos discursos. Este mesmo esquema foi utilizado para a subdivisão dos capítulos
neste trabalho, da seguinte forma:
TEXTO
Gênesis
Estilística
(concêntrica)
NARRADOR
Divisão da
narrativa
INTRODUÇÃO
ABRÃO
COMPLICAÇÃO II CAPÍTULO
Sarai mulher de bela aparência
NARRADOR
CLIMAX
III CAPÍTULO
Intervenção do SENHOR por causa de
Sarai
FARAÓ
DESFECHO
IV CAPÍTULO
Sarai irmã e esposa de Abrão
NARRADOR
CONCLUSÃO
V CAPÍTULO
Expulsão e subida do Egito
12,10-11d
12,11e13d
12,14-18b
12,18c-19
12,20-13,1a
Capítulos
I CAPÍTULO
Fome na terra e descida ao Egito
148
Dando um salto para a análise histórico-teologico diga-se de antemão que cada
capítulo por si corresponderia a um tratado. Como este não era o objetivo primeiro deste
trabalho, procurou-se fazer um estudo sumário, mas que não omitisse a importância destes
elementos e temas constituintes da história, identidade e fé dos que se crêem incluídos entre
os herdeiros de Abrão e Sarai.
De fato, a narrativa progressivamente vai apresentando uma constelação de elementos
constituintes da autocompreensão de Israel como povo de Deus, bem como, de sua identidade,
história e fé no Deus único, os quais correspondem e abrangem o conteúdo, ou seja: a fome; o
Egito, o viver como peregrino; o Faraó; a escravidão; a Salvação que vem de Deus; as
bênçãos (materiais e a preservação vida); a liberdade de poder tornar à terra.
Por outro lado, é impossível negar que esta narrativa não contém um elogio e exaltação
à beleza da matriarca Sarai. Desta pode-se inferir ao menos três pressupostos: 1) com exaltação
se contradiz o estereótipo de uma sociedade machista; 2) à raiz de tal exaltação estaria também
a celebração de um orgulho nacional, frente ao grande Egito, lugar de escravidão e opressão
para Israel. Deste modo, à potência egípcia se opõe a beleza da matriarca e à esperteza do
patriarca; 3) a beleza de Sarai é expressão visível da eternidade da Aliança com Israel, e da
beleza do templo, que mesmo destruído, continua ainda presente na memória do povo.
Destacam-se ainda alguns ensinamentos de fundo: a beleza das mulheres israelitas supera
aquela das egípcias (o país do poder); Sarai foi quem salvou a vida de Abrão e foi por seu mérito
pessoal que o mesmo tornou-se rico (cf. Gn 12,16); ninguém pode tocar aqueles que Deus
escolheu por seu designo; deste modo os egípcios conhecem que o Deus de Abrão é o Deus de
toda a terra; Israel será salvo das mãos do Faraó opressor, assim como a matriarca Sarai foi
libertada das mãos deste Faraó; a Aliança foi preservada e garantida em suas duas dimensões, de
Deus com o humano e do esposo com a esposa. Também o Faraó, demonstrou temor ao Deus de
Israel. Contrariando o que pensava o patriarca, fora de Israel existe sim temor a Deus.
149
No referente ao título do trabalho, foi possível perceber uma crescente compreensão
do que pode estar contido dentro da expressão „irmã e esposa‟. Diante dos argumentos
encontrados na história, na arqueologia, na Bíblia e na teologia é plausível dizer que Sarai é
irmã e esposa de Abrão, não só em sentido denotativo, mas também metafórico, porque se
torna chave de interpretação intertextual, pois a irmã e a esposa são também figuras teológicas
na linguagem bíblica. Por fim, foi possível estudar a interrelação desta narrativa com outras
duas narrativas do Gênesis, bem como, com a teologia presente na experiência do êxodo.
Sarai, mesmo sem ter tido espaço para voz, é a protagonista desta narrativa, dado que por
ela, Abrão adquiriu muitos bens e teve a vida, a Aliança e o matrimônio preservado. Foi Sarai
quem suscitou a intervenção de Deus. Assim como Abrão, também Sarai é elemento constituinte
da Aliança, pois a mesma se cumprirá a partir do filho que dela nascer.
Por seus méritos Sarai é reconhecida no Novo Testamento, o qual lhe cita cinco vezes:
em Romanos 4,19 sua esterilidade reforça a fé de Abrão na promessa divina, em Hebreus
11,11 sua fecundidade é mérito de sua fé, colocada sobre o mesmo plano de Abrão; em
1Pedro 3,5 é proposta como modelo de obediência ao marido; o texto de Romanos 9,6-9 faz
alusão à contraposição entre Sarai e Agar e suas respectivas descendência segundo o Plano de
Deus; e Gálatas 4,21-31 em linguagem alegórica apresenta Sarai com símbolo da Jerusalém
celeste, mãe dos filhos „livres‟.
Sarai e Abrão são, para tantos peregrinos, modelo de fé e confiança em Deus, não
obstante suas limitações humanas - medo, submissão, esperteza - o caminho por eles
percorrido não seria o mesmo sem a presença e a ação de Deus.
150
BÍBLIOGRAFIA
1. FONTES
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