Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Elizangela Chaves Dias Sarai como esposa e irmã de Abrão um estudo exegético de Gn 12,10-13,1a MESTRADO EM TEOLOGIA SÃO PAULO 2011 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Elizangela Chaves Dias Sarai como esposa e irmã de Abrão um estudo exegético de Gn 12,10-13,1a MESTRADO EM TEOLOGIA Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Teologia sob a orientação do Prof. Doutor Matthias Grenzer. SÃO PAULO 2011 PÁGINA DE APROVAÇÃO Banca Examinadora ________________________________________ ________________________________________ ________________________________________ DEDICATÓRIA Às Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo – Scalabrinianas, às formandas, aos Leigos Scalabrinianos e aos migrantes. AGRADECIMENTOS Em agradecimento e reconhecimento por todos os que, de diversos modos, fizeram parte desta etapa de minha vida pessoal e acadêmica. Primeiro a Deus, de quem provém todo o conhecimento, fonte de ciência e sabedoria. Aos meus pais pela vida, apoio e incentivo. A congregação das Irmãs missionárias de São Carlos Borromeo - Scalabrinianas, na pessoa da Superiora Provincial, Ir. Neusa de Fátima Mariano, que me motivou e encaminhou para o estudo e aprofundamento acadêmico científico, bem como as Irmãs de seu conselho pelo incentivo e interesse. As co-irmãs de minha comunidade, pelo respeito e paciência, pois a pesquisa exige tempo e dedicação e isto não seria possível sem a colaboração de cada uma. Ao prof. Dr. Matthias Grenzer, que me acolheu nesta instituição, acompanhou meu trabalho, motivou e valorizou a minha investigação. Ao prof. Dr. Bóris, que com sua dedicação, sua maestria e solicitude demonstrou amor pela pesquisa e interesse pelos estudantes, sempre positivo colaborou para o desenvolvimento e êxito desta pesquisa. Ao prof. Vitório, que transmitiu o amor pelo estudo das Escrituras Hebraicas. Aos colegas Frei Tony e Ir. Jilvaneide, que iniciaram este caminho comigo e que embora imersos em seus trabalhos e pesquisa sempre foram muito solícitos em colaborarem comigo. Ao Prof. João Ultramari, Ir. Erta Lemos, Ir. Sandra Maria Pinheiro e Morah Rivka que dedicaram seu tempo para ler, comentar, confrontar e corrigir este trabalho. Agradeço de coração. Aos professores que compõem a banca, por aceitarem o convite e por lerem este trabalho, acolho com muita gratidão todas as observações. A participação e contribuição de cada um me faz crer que, se há algum mérito neste trabalho eu não o alcancei sozinha, por isso tenho a alegria de compartilhá-lo com todos. “A Sabedoria é radiante, não fenece, facilmente é contemplada por aqueles que a amam. Ela mesma se dá a conhecer aos que a desejam. Quem por ela madruga não se cansa: encontra-a sentada à porta. Meditá-la é a perfeição da inteligência”. (Sb 6,12-15) RESUMO A presente dissertação tem como objetivo apresentar um estudo exegético de uma narrativa bíblica: Gênesis 12,10-13,1a. Seguindo o estilo de comentário, a pesquisa avança junto à tradição bíblica em questão. Em cada capítulo, são realizadas duas investigações: 1) um estudo linguistico-literário, que compreende tradução, análises morfológico-sintática, estilística e narrativa; e 2) um estudo histórico-teológico, que se serve de pesquisas referentes ao ambiente histórico-cultural bem como à teologia presente no texto. Neste sentido, esta pesquisa tem como hipótese a questão: “Sarai como esposa e irmã de Abrão”. Ao longo do estudo, será possível constatar uma crescente compreensão do conteúdo da expressão „esposa e irmã‟. Diante dos argumentos encontrados – juntando reflexões histórico-arqueológicas e bíblico-teológicas – parece ser plausível dizer que Sarai é esposa e irmã de Abrão, não somente em sentido denotativo, mas também metafórico. Mais ainda: esta expressão se torna chave de uma interpretação intertextual, pois „irmã‟ e „esposa‟ são figuras de peso teológicosimbólico na linguagem bíblica. Palavras chaves: Sarai, Abrão, esposa, irmã, narrativa, estilística. ABSTRACT This paper aims to present an exegetical study of a biblical narrative: the Genesis 12,10-13,1a. It follows the style of commentary. The research advances with the biblical tradition in question. In each chapter two investigations are carried out. 1) a linguistic and literary study which includes translation, morphological analysis, syntactic, stylistic and narrative; and 2) a historical-theological that serves as a research on the historical and cultural context, as well as, the theology in the text. In this sense, this research has hypothesized the question: 'Sarai as wife and sister of Abraham'. Throughout the study it is possible to visualize a growing understanding of the scope of the term 'wife and sister'. Based on the arguments found, adding reflections on historical-archaeological and biblical-theological, it seems plausible to say that Sarai is Abraham´s wife and sister not only in the denotative sense, but also in a metaphorical one. Moreover, this expression becomes a key to the interpretation as 'sister' and 'wife' that are important characters in the theological and symbolic language of the bible. Keywords: Sarai, Abraham, wife, sister, narrative, style. SIGLAS E ABREVIAÇÕES AT = Antigo Testamento BHS = Bíblia hebraica stuttgartensia D = Deuteronomista DBHP = SCHÖKEL, Luis Alonso. Dicionário bíblico hebraico – português. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2004. DITAT = HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998. E = Eloísta GLAT = BOTTERWECK, G. Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). Grande lessico dell´Antico Testamento. J = Javista NT = Novo Testamento P = Sacerdotal s = seguinte ss = seguintes UNFPA = Fundo de População das Nações Unidas v. = versículo vv. = versículos Vol. = Volume x = vezes SUMÁRIO SUMÁRIO ............................................................................................................................ 9 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11 CAPÍTULO I ...................................................................................................................... 15 FOME NA TERRA E DESCIDA AO EGITO ..................................................................... 15 1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,10-11d .................................................................. 16 1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático ............................................................ 16 1.2 Análise estilística ................................................................................................ 25 1.3 Análise narrativa ................................................................................................ 27 2. Estudo histórico- teológico .............................................................................................. 30 2.1 A personagem Abrão .......................................................................................... 30 2.2 A fome na terra ................................................................................................... 32 2.3 Desceu ao Egito.................................................................................................. 34 2.4 Morar como imigrante ........................................................................................ 36 CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 38 CAPÍTULO II .................................................................................................................... 40 SARAI MULHER DE BELA APARÊNCIA .................................................................... 40 1. Estudo linguístico-literário de Gn 10,11e-13d ................................................................. 41 1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático ............................................................ 41 1.2 Análise estilística ................................................................................................ 50 1.3 Análise narrativa ................................................................................................ 53 2. Estudo histórico-teológico ............................................................................................... 56 2.1 A identidade de Sarai.......................................................................................... 56 2.2 Sarai esposa de Abrão ........................................................................................ 58 2.3 Sarai mulher bela ............................................................................................... 59 2.4 Beleza, vida e morte............................................................................................ 61 CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 63 CAPÍTULO III................................................................................................................... 66 INTERVENÇÃO DO SENHOR POR CAUSA DE SARAI .............................................. 66 1. Estudo linguístico-literário Gn12,14a-18b ...................................................................... 67 1.1 Tradução e análise morfológico-sintático ........................................................... 67 1.2 Análise estilística ................................................................................................ 75 1.3 Análise narrativa ................................................................................................ 80 2. Estudo histórico- teológico .............................................................................................. 84 2.1 O Egito para Israel ............................................................................................ 84 2.2 O Faraó.............................................................................................................. 87 2.3 Salvo pelos méritos de Sarai ............................................................................... 89 2.4 Intervenção do SENHOR por causa de Sarai ...................................................... 94 CONSIDERAÇÕES ......................................................................................................... 97 10 CAPÍTULO IV ................................................................................................................... 99 SARAI IRMÃ E ESPOSA DE ABRÃO ............................................................................ 99 1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,18c-19................................................................. 100 1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático .......................................................... 100 1.2 Análise estilística .............................................................................................. 104 1.3 Análise narrativa .............................................................................................. 106 2. Estudo histórico-teológico ............................................................................................. 108 2.1 Estatuto da irmã-esposa ................................................................................... 108 2.2 Sarai esposa e irmã de Abrão ........................................................................... 111 2.3 Sarai protótipo do povo da Aliança .................................................................. 115 2.4 Um novo olhar sobre Sarai ............................................................................... 118 CONSIDERAÇÕES ....................................................................................................... 121 CAPÍTULO V .................................................................................................................. 123 EXPULSÃO E SUBIDA ................................................................................................ 123 1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,20-13,1a.............................................................. 124 1.4 Tradução e estudo morfológico-sintático .......................................................... 124 1.2 Análise estilística .............................................................................................. 126 1.3 Análise narrativa .............................................................................................. 129 2. Estudo histórico-teológico ............................................................................................. 131 2.1 Incidência do caso da esposa irmã ................................................................... 131 2.2 Releitura do Êxodo ........................................................................................... 135 2.3 Subida do Egito ................................................................................................ 139 2.4 Atualidade da narrativa .................................................................................... 140 CONSIDERAÇÕES ....................................................................................................... 144 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 146 BÍBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 150 11 INTRODUÇÃO Contar histórias é uma atividade presente na vida do homem desde a sua origem. Relatar um fato da vida, discorrer sobre um evento, narrar uma partida de futebol, ler ou ouvir uma novela, contar piadas ou contos de fadas são práticas quotidianas de pessoas comuns. Tendo a Bíblia em mãos o leitor, livre de preconceitos, provavelmente perceberá que o Livro Sagrado não é um tratado de ciências, história ou geografia, e também notará que a mensagem revelada não foi transmitida sob forma de uma sabedoria atemporal. E poderá até mesmo surpreender-se ao verificar que grandes momentos da Revelação foram transmitidos sob forma narrativa. Segundo Ska1 existe uma afinidade entre as narrações bíblicas e a literatura de fiction, pois ambas fazem parte do mesmo gênero narrativo. De fato, entre os elementos constitutivos do gênero narrativo está a dimensão temporal, na qual a sucessão dos elementos é relacionada a uma cronologia e não somente a estruturas de linguagem como a dedução ou a persuasão. Na narrativa, o leitor reconstrói a experiência no tempo de sua leitura. Assim, no plano da forma literária, é possível identificar uma dimensão sine qua non da revelação bíblica, sua inserção na história e no tempo. A narrativa ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e de personagens, não pretende dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha uma série de lacunas. O texto se apresenta como uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho 2. 1 Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa. In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.) – GARGANO, Innocenzo – SKA, Jean Louis – PISANO, Stephen. Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000, p. 126-127. 2 Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 9. 12 Este estudo parte do pressuposto de que o autor da narrativa a ser estudada fez uso de uma das antigas formas literárias da cultura hebraica, a narrativa histórica. Essa apresenta uma síntese da relação da Aliança entre os hebreus e Deus, concentrada nos pontos altos do passado do povo. É uma resposta indireta à pergunta: Quem somos e o que representamos? De onde viemos e como chegamos aqui? 3. As narrativas do Antigo Testamento têm natureza variada. Por isso, não há uma forma literária singular que se possa denominar „narrativa veterotestamentária‟. O que há em comum é o fato de não terem sido compostas originalmente apenas para preservar o conhecimento de que certas coisas aconteceram, servindo sim, para sustentar uma tese teológica ou para ilustrar um evento significativo no processo do povo da Aliança4. Por diversos fatores, costuma ser difícil para os leitores atuais a percepção do significado que pode ter sido óbvio para os autores antigos e seu público. Um exemplo disto são as três narrativas da „esposa-irmã‟ (cf. Gn 12,10-13,1a; 20,1-18; 26,1-17), nas quais o patriarca, para viver temporariamente num país estrangeiro, diz que a esposa é sua irmã, enganando o rei estrangeiro, salvando a si mesmo e lucrando muitos bens. Diante de tal fato, caberia o questionamento se esses relatos que apresentam grandes figuras do passado de Israel, teriam como objetivo propor ao leitor modelos de virtude. Os relatos são „memórias‟ dos fundadores e heróis do passado. Que esses tenham tido defeitos ou não, é secundário, diante do fato de serem antepassados e terem desempenhado um papel determinante na formação do povo. Os relatos não estão preocupados unicamente em oferecer modelos morais a serem imitados. Pelo contrário, oferecem experiências para compartilhar. O drama da personagem não tem a pretensão única de edificar, quer comover. O leitor não é convidado a julgar, reprovar ou condenar. O relato quer convocar o leitor a entrar nas aflições da personagem, 3 4 Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2003, p. 20. Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30. 13 a participar do drama, a recompor uma experiência, a se tornar ativamente consciente das forças que o confronta e de seguir nos tempos da leitura as etapas de seu percurso5. A perícope bíblica delimitada para o presente estudo sincrônico de abordagem literária é uma narrativa. Esta se encontra em Gênesis 12,10–13,1a e se localiza entre o chamado de Abrão e sua separação de Ló. Seguindo o estilo de comentário, em cada capítulo, será realizada duas investigações: 1) Estudo linguístico-literário e 2) Estudo histórico-teológico. Como esse texto massorético6 oferece poucas variantes com relação aos escritos antigos, quando aparecerem as variantes essas serão apresentadas na nota de rodapé. A segmentação do texto para o aprofundamento segue a lógica da análise narrativa. No início, primeiro capítulo, é feita uma apresentação, a fim de introduzir o leitor no contexto da história (cf. vv. 10-11d). Em seguida, no segundo capítulo, o narrador passa a voz a Abrão. Neste capítulo o leitor começa a perceber os conflitos e as complicações em que estão se envolvendo o patriarca e sua esposa (cf. vv. 11e-13). Segue um elevado elogio à beleza da matriarca, o futuro de Sarai é comprometido, e também a promessa de descendência e a aliança parecem ameaçadas, chegando ao clímax da narrativa, (cf. vv. 14-18b) no terceiro capítulo. Nesse, o narrador retoma a voz e apresenta o momento em que Deus intervém em favor dos „indefesos‟. O quarto capítulo delineia o desfecho (cf. vv. 18c-19) onde o narrador passa a voz ao Faraó e este anuncia a verdade sobre Sarai e Abrão. Para concluir Abrão e Sarai podem continuar a caminhar (cf. 12,20–13,1a) rumo à terra que o Senhor lhes prometera, no quinto capítulo. 5 Cf. SKA, Jean Louis. Como ler o Antigo Testamento? In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.). Metodologia do Antigo Testamento, 2000, p. 30-33. 6 Massoretas eram judeus estudiosos que se dedicavam a tarefa de guardar a tradição oral da vocalização e acentuação correta do texto bíblico. À medida que um sistema de vocalização foi sendo desenvolvido, entre VI e X dC, o texto consonantal que receberam dos soferim (escribas) foi sendo por eles cuidadosamente vocalizado e acentuado. Além dos pontos vocálicos e dos acentos, os massoretas acrescentavam também ao texto as massoras marginais (notas) magna, parva e finalis, calculadas pelos soferim. Essas massoras (tradições) eram estatísticas, análises e correções colocadas ao lado das linhas, ao fim das páginas e ao final dos livros. Cf. PISANO, Stephen. O texto do Antigo Testamento. In: YOFRE, Horácio Simian (Coord.). Metodologia do Antigo Testamento, 2000, p. 45-46; FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica: introdução ao texto massorético. São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 142-145. 249. 14 Algumas observações metodológicas: quando se fala ou se faz alguma citação Bíblica, com exceção do texto em estudo, se usará o texto da Bíblia de Jerusalém, das edições Paulinas, na versão em português do ano de 1981. Para o texto em estudo, portanto, se usará a versão hebraica, da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, e a tradução é pessoal como resultado do estudo. A análise morfológica e sintática, bem como a tradução do texto em estudo, virá destacada em itálico no corpo do texto para facilitar a visualização. Mesmo sabendo que o uso de aspas simples é endereçado a citações dentro de outras citações se fará uso das mesmas também quando se pretende dar destaque a uma palavra ou expressão. 15 CAPÍTULO I FOME NA TERRA E DESCIDA AO EGITO Nas Sagradas Escrituras não são raras as narrativas e lendas que falam da fome em Canaã, especialmente como motivo para a emigração (cf. Gn 26,1; 43,1; 47,4; Rt 1,1; 1Rs 4,38; 8,12; Sm 21,1). Por outro lado, o Egito é a terra de ricos grãos, a terra do prazer e da cultura, visada por seus vizinhos. Especialmente em tempos de fome as pessoas buscaram refúgio e grãos no Egito, cuja fertilidade dependia não da chuva como em Canaã, mas apenas do Nilo, pois ele pode gerar riqueza todo o ano, enquanto toda a Canaã lamenta as más colheitas. Desceram ao Egito, pois, saindo de Canaã se vai para baixo (cf. v. 10b). Voltando para Canaã se sobe. O narrador sabe do que se trata ao ilustrar tal detalhe. O casal está na fronteira, uma situação interessante (cf. Gn 31,52; Rt 1,7 ss), uma posição difícil. A fome os leva a ir para o Egito. Mas ali são estrangeiros sem proteção e direito. Abrão tem medo de ser morto por causa de sua esposa bonita. Neste dilema, ele encontra um caminho, sagaz, simples e eficaz, o qual o leitor é convidado a acompanhar atentamente. 16 1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,10-11d 1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático #r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w:7 10a Aconteceu uma fome na terra, O texto inicia com yhiîy>w:, esta é uma fórmula usual para abrir um texto sob seu aspecto narrativo. Esta é a primeira indicação que situa o leitor dentro do estímulo da leitura e introduz a narrativa. O yhiîy>w: inicial instala o leitor num fluxo de continuidade. No livro do Gênesis esse verbo é atestado 316 vezes no qal, e 122 vezes como yhiîy>w:. Em geral o verbo hy"h' é traduzido do hebraico para o português pelos verbos ser e acontecer, mesmo que os motivos estilístico aconselhem outras traduções. Assumindo o sentido de existir, subsistir, serve para indicar o perdurar, ou seja, indicar ou situar no tempo de um acontecimento ou uma condição. Nos textos de caráter narrativo uma parte considerável de atestações são construídas a partir das locuções resultar, acontecer, suceder como uso introdutivo na forma do imperfeito ou do perfeito consecutivo. Nestes casos trata-se de locuções introdutivas formais, também chamadas de função expletiva, ou com especificações relacionadas à situação temporal8. Segundo Schökel, em geral, este verbo expressa uma constatação. O verbo pode ser o predicado de uma oração: há, existe, acontece. O sentido de suceder é comum em narrativas, muitas vezes com função expletiva9. Nas construções yhiîy>w: e hy"h'w> prescindindo da função de auxiliar, obtêm-se dois grupos ternários: existir, haver, suceder; ser, estar, tornar-se. Cada um dos 7 Construção das frases verbais em hebraico: verbo + sujeito + objeto + adjunto. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento: manual de sintaxe hebraica. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 108. 8 Cf. BERNHARDT, K. H. hy"h'. In: BOTTERWECK, G. Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 429-435. 9 A função expletiva: elemento de caráter estilístico que serve somente para realçar. Em construções no passado e no futuro, pode introduzir uma clausula subordinada antes da principal, o verbo mais o infinitivo, ex.: Gn 12,14, quando chegar, ao chegar. Quando a função é expletiva, não é preciso traduzir o verbo hy"h'; algumas vezes pode-se traduzir com a copulativa e, ou indicando consequência então. Nota-se que a tradução do verbo hy"h' se distancia da equivalência formal ser/estar/tornar-se. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hy"h'. In: DBHP. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 169-176. 17 seis elementos pode ser tomado como referência de um paradigma gerado por uma série de operações: por negação: ex. não haver = faltar; por partículas negativas: ex. ter; negativo carecer; por transformação: o intransitivo ficar no transitivo deixar. As operações indicadas podem ser exigidas pela língua receptora ou recomendadas por razões de estilo. O resultado é uma grande variedade de equivalências ou traduções possíveis do verbo hebraico hy"h' 10para o português. O verbo hy"h' é encontrado sete vezes neste texto (cf. vv. 10a, 11a, 12a, 12e, 13c, 14a e 16b), das quais quatro vezes (cf. vv. 10a, 11a, 14a, 16b) se encontram na forma yhiîy>w: imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal e sempre na fala do narrador. Dessas, observa-se no texto massorético que duas possuem o acento disjunto11 (cf. vv. 11a e 14a) zaquef gadol § e as outras duas não (cf. vv. 10a e 16b) possuem o assento disjuntivo. Se é verdade que os assentos massoréticos influenciam na semântica e na sintaxe, nota-se que as formas com acentos disjuntivos assumem função expletiva, enquanto as outras assumem função de predicado. Para a tradução faz-se necessário observar se o verbo apresenta uma ação pontual ou continuada, no presente caso nota-se que o verbo faz parte dos elementos que se designam quadro ou cenário da narrativa, ou seja, dados estáticos. Segundo Ska12, o quadro ou cenário com frequência são descritos pelos recursos a proposições especificantes (função expletiva do verbo), imperfeitos ou também outros tempos segundo o caso. Observando estes dados o verbo foi traduzido para o pretérito perfeito da língua portuguesa, pois o quadro da narrativa pertence aos dados estáticos, sendo assim, traduz-se por aconteceu. 10 As orações sem sujeito são formadas pelos verbos impessoais: haver, significando existir, acontecer, realizarse; fazer, ser e estar, indicando tempo transcorrido ou tempo relativo ao fenômeno da natureza, nevar, chover. Portanto é necessária atenção na tradução do verbo hy"h' e do sentido que ele exerce na frase. 11 Mesmo o estudo não sendo específico sobre os acentos massoréticos ocorre notar que, segundo Edson de Faria, além da vocalização e das notas da Massorá, os massoretas adicionaram ao Texto Massorético sinais de acentuação e estes possuem as seguintes funções: 1) marca a sílaba tônica de cada palavra do versículo; 2) marcam a divisão semântica e estabelecem relações sintáticas; 3) marcam a melodia das palavras dos versículos. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 120-124. 12 Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p.130-132. 18 Segue o termo b['r"13 este é apresentado como substantivo masculino singular, ele assume a função nominativa da frase, ou seja, o sujeito. Como o termo não está acompanhado de artigo, traduz-se do hebraico para o português como sujeito indefinido uma fome. Essa palavra usual para fome ocorre mais de 100x no AT14, podendo também ser traduzida por fome, carestia, necessidade, penúria15. No texto a palavra #r<a'_B' é composta de uma preposição B, um artigo h; e um substantivo masculino singular #r<a,. Esta palavra aparece aproximadamente 2400x no AT. Os dois principais sentidos da palavra são: cosmológico e designação territorial específica, principalmente com referência à terra de Israel16. Sintaticamente17 esta palavra se distingue como um genitivo adverbial, ou melhor, adjunto adverbial, classificado como genitivo locativo. Este caso indica o local ou a esfera em que algo ou alguém se situa. Quando a frase se refere a uma localização, a construção preposicional básica é composta de B, portanto, é traduzida do hebraico para o português por na terra. Sob a palavra #r<a'_B' encontramos o acento chamado atnah +, este é o principal divisor do versículo, o que indica que aqui é introduzida uma pausa maior. Pode ser expresso, em português, por meio de uma vírgula. Novamente há uma nota entre este termo e o anterior referente à massorá parva18 que significa versículo incomum. 13 Entre este termo e o termo anterior encontra-se o sinal ê cicerllus, que remete a uma nota massorética bo na massorá parva, este sinal representa o número dois e significa que a construção se encontra somente duas vezes na Bíblia. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 96. 14 Cf. WHITE, Willian. b['r". In: HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K. Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1437. 15 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. b['r". In: DBHP, 2004, p. 624. 16 Cf. HAMILTON, Victor P. #r<a,. In: DITAT, 1998, p. 125. 17 Na oração o substantivo pode aparecer nos casos: nominativo, acusativo, dativo ou genitivo e assumir diversas funções sintáticas. São genitivos a) as cadeias de construto; b) os sufixos pronominais em substantivos ou preposições; c) os substantivos regidos por preposições. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 18, 21, 117; WALTKE, Bruce K – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2006, p. 136-137. 18 doxym qowsp 19 ‘hm'y>r:’cm. i ~r"Ûb.a; dr<YE‚w: 10b E desceu Abrão para o Egito A oração inicia com o verbo dr:y" que significa descer, ir para baixo, baixar, marchar abaixo, pôr-se. O verbo dr<YE‚w: é imperfeito consecutivo19- terceira pessoa do masculino singular do qal. O verbo é traduzido para o pretérito perfeito do português, portanto desceu, por apresentar uma ação pontual do sujeito ~r"Ûb.a;, Abrão20. A trama desperta curiosidade no leitor, o qual é levado a perguntar para onde desceu, e segue a resposta ‘hm'y>r:’c.mi, em hebraico essa forma designa o Egito, encontra-se no dual, provavelmente identificando as duas divisões básicas daquele país: o alto Egito ao sul e o baixo Egito ao norte, região do delta do Nilo. Nota-se a presença do sufixo diretivo no final conhecido como he locale h 21 ' , resultando na preposição que indica a direção para qual desce Abrão, ou seja para o Egito. ~v'ê rWgæl' 10c Para imigrar ali, Após duas orações coordenadas o leitor se depara com uma oração subordinada adverbial de propósito, formada pela preposição l. mais um verbo no infinitivo construto rWg e um advérbio ~v'ê, nesta frase, com sentido locativo. 19 O wav consecutivo normalmente denota sequência numa narrativa, mas pode indicar também uma sequência lógica ou uma ação que é anterior ao verbo precedente, denominado por alguns linguistas de narrativa descronologizada. Cf. WEBER, Carl Philip. w". In: DITAT, 1998, p. 371-372. 20 O nome de Abrão se tornará Abraão em Gênesis 17,5. O nome é atestado no Oriente próximo antigo, no XX sec. a.C. Popularmente o nome Abraão significa pai de uma multidão. Mas, existem três possibilidades etimológicas: 1) em nexo com o acádio ´abam-rama, amais o pai (exortação ao neonato e aos seus irmãos); 2) interpretando ram como excelso, de origem semítica, o pai é excelso e 3) a interpretação teofânica, ´ab-rami, meu pai é exaltado (é grande em relação ao seu). Cf. CLEMENTS, R. E. ~r"Ûb.a;. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 112; VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda: Gn 12, 1-25,11. São Paulo: Loyola, 2000, p. 25. 21 O acusativo no hebraico pode assumir funções adverbiais, equivalendo de maneira genérica a um adjunto adverbial. Neste caso é presente um acusativo terminativo, que indica o local para onde alguém ou algo se dirige. Destaca-se ainda a presença do sufixo h ' denominado he-locale, esse é usado para indicar a direção de um verbo de movimento. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 21, 23-24. O he-locale pode ser acrescentado a substantivos comuns ou advérbios de lugar. Cf. KELLEY, Page H. Hebraico bíblico: uma Gramática Introdutória. 7. ed. São Leopoldo: SINODAL – FACULDADES EST, 1998, p. 179-180; BARTELT, Andrew H., Gramática do hebraico bíblico: fundamentos. Canoas: ULBRA, 2006, p. 124. 20 Em hebraico a preposição l.; para, em, com relação a, de, por, desde; equivale ao caso dativo. Esta preposição pode indicar a direção para onde um objeto se dirige em seu movimento físico. Ela exprime localização no tempo e/ou no espaço, indica finalidade. A combinação l. + infinitivo construto, pode ser usada como complemento verbal ou para introduzir uma oração subordinativa. As orações infinitivas podem ser de tipos variados, ou seja: propósito, resultado, temporal ou final 22. O sujeito do infinitivo pode ser o sujeito do verbo principal ou um substantivo não envolvido naquela oração. `#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi( 10d Porque pesada era a fome na terra. A conjunção yKi( pode assumir diversas funções na tradução: introduzir orações subordinativas temporais, causais, concessivas, consecutivas e uso adverbial ou enfático. Nesta narrativa é identificada como uma conjunção subordinativa causal e acompanhada de um adjetivo masculino singular dbeîk', traduzido do hebraico para o português pelo adjetivo pesada. O adjetivo em uso predicativo concorda em gênero e número com o substantivo que qualifica. Em orações nominais, como essa, o adjetivo precede o substantivo que qualifica23. A palavra que segue apresenta um diferencial no substantivo b['Þr"h' definido pelo artigo em relação a presença no v. 10a b['Þr". O sinal massorético ` 24sof passuq indica o fim do versículo. yhi§y>w: 11a E aconteceu O versículo inicia com o verbo yhi§y>w:, o mesmo já analisado anteriormente como imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal. Foi dito que este verbo, entre outras 22 Cf. WALTKE, Bruce K- O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 600, 605-607; PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 81-82. 23 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 143-145, 28. 24 FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 121. 21 funções, é utilizado para introduzir uma narrativa, todavia a esta altura a narrativa já foi introduzida. Sendo assim, o verbo nesta posição ganha função temporal, ou seja, indica uma mudança de tempo na narrativa e simultaneamente resgata em si tudo o que foi dito anteriormente. O uso do verbo neste versículo assume uma função expletiva dando certa ênfase ao que segue. Seu uso seria comparado ao de uma interjeição e poderia até mesmo ser suprimido, pois não serve como predicado da oração. O mesmo está significado por um acento massorético disjuntivo zaqef gadol 25 § , o qual acentua a função expletiva do yhi§y>w:, traduzido do hebraico para o português por e aconteceu. byrIßq.hi rv<ïa]K; 11b Quando se aproximava A oração inicia com uma conjunção rv<ïa]K;26 que pode significar quando, como, de acordo com; e pode também indicar uma força causal visto que, por causa de. No texto é identificada como uma conjunção subordinada temporal, traduzida do hebraico para o português por quando. Sendo a função de uma conjunção ligar duas orações ou dois termos semelhantes, esta introduz uma oração subordinada temporal. O versículo não só se abre com uma indicação de mudança de tempo denotado pela fórmula introdutória yhi§y>w:, mas de fato apresenta uma mudança de tempo indicada pela conjunção temporal que introduz uma oração subordinada temporal27. O verbo br"q: pode ser traduzido do hebraico para o português como aproximar-se, acercar-se, apresentar, juntar, agregar. Pode assumir sentido espacial ou temporal. O verbo 25 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. Essa conjunção quando usada para introduzir uma oração subordinada denota que a situação é contemporânea, ou seja, a relação temporal da oração principal com a da oração subordinada é de contemporaneidade. Cf. WALTKE, Buce k. – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 643. 27 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 143; OSWALT, John N. rv<ïa]K. In: DITAT, 1998, p. 693. 26 22 byrIqß .hi28 é um perfeito – terceira pessoa do masculino singular do hifil. Mesmo estando no hifil, ou seja, que tem por característica ser um causativo do qal, no presente caso assume uma voz reflexiva, nesta voz o sujeito é ao mesmo tempo agente e paciente da ação, isto é, pratica e sofre a ação, portanto pode ser traduzido no português por se aproximava. Todavia resta um pouco de suspense sobre quem ou o que se aproximava: Abrão ou o tempo?. hm'y>r"+c.mi aAbål' 11c para chegar ao Egito, Este verbo awb é um dos que mais ocorre no texto massorético, corresponde a muitos significados em português, diferenciados segundo alguns critérios: entrar, meter-se; transpor; chegar, acercar-se; ir, vir, voltar; apresentar-se, comparecer, incorporar-se, acudir; incorrer; atacar; suceder, cumprir-se; futuro, vindouro29. Em sentido físico indica o movimento em relação com seu termo. Para diferenciar seu sentido toma-se como critério a relação do móvel com o limite do referencial espacial. Se, superado o referencial se diz entrar; a passagem do limite será transpor; tocá-lo é chegar; maior distância é acercar-se; sem definir distâncias é ir ou vir. Em Gênesis 12,11c tem-se a idéia de que se estava chegando, ou seja, bem próximo ao ponto de referência30. No texto encontra-se aAbål', infinitivo construto do qal. O infinitivo construto aparece com a preposição l.31 em vários casos complementares e explicativos, geralmente seu significado é de propósito, meta, ou resultado. Ele possui qualidades de substantivos ou verbos, no caso para chegar assume a função de um verbo em uma oração subordinada adverbial final. 28 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. br"q;. In: DBHP, 2004, p. 590. Segundo Lambdin, o uso estativo deste verbo no hifil não é muito comum (Qal br"q; aproximar-se / Hifil byrIßq.hi estar próximo, a ponto de „fazer algo‟). Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 257; COPPES, Leonard J. br"q;. In: DITAT, 1998, p.1367. 29 Cf. MARTENS, Elmer A. awb. In: DITAT, 1998, p. 155. 30 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. awb. In: DBHP, 2004, p. 91. 31 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 81, 104; KELLEY, Page H. Hebraico bíblico, 1998, p. 214-218; BARTELT, Andrew H. Gramática do hebraico bíblico, 2006, p. 129-134. 23 O substantivo hm'y>r"+c.mi é um acusativo terminativo32, ou seja, indica o lugar para onde alguém ou algo se dirige. Na análise sintática é classificado como adjunto adverbial de lugar, traduzido no português como ao Egito. Sob a palavra encontra-se um assento massorético atnah + 33 indicando que esta é a metade do versículo. ATêv.ai yr:äf'-la, ‘rm,aYO’w: 11d Disse a Sarai mulher dele: Depois de duas orações subordinadas segue a oração principal como um divisor de águas entre a fala do narrador e o discurso direto. Dado sua importância se procurará dar maior atenção ao seu sentido e conteúdo. A raiz rm'a;34 é comum nas línguas semíticas e carrega o sentido de comunicar. Em hebraico é centralizada no que indica o processo comunicativo (dizer) como forma verbal presente seja nos textos antigos ou recentes e em qualquer contexto literário. Frequentemente é usado para indicar o início de um discurso. O campo semântico de rm'a; é bastante vasto, neste sentido o verbo dizer pode ser a melhor tradução na língua portuguesa, pois colhe a substância do termo hebraico como comunicar, nomear, mencionar, chamar, assegurar, responder, louvar, insultar, comandar, dizer a si mesmo ou ao coração, pensar, considerar, refletir, interpretar, significar, exclamar, afirmar, prometer e outros. O verbo não se reduz ao falar meramente mecânico, técnico, fonético, mas como expressão racional de um sujeito, perceptível e compreensível da parte de outro sujeito; não é o falar como função dos organismos vocais e como fenômeno físico, mas como portador e transmissor de um conteúdo com significado pronunciado e expresso. 32 Acusativo terminativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 21-23. 33 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 34 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. rm'a'. In: DBHP, 2004, p. 64-65; S. Wagner. rm'a'. In: GLAT. Vol. I di IX. bahlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 707-713. 24 Este verbo se coloca em relações intersubjetivas e é constituído com o duplo objetivo: um no acusativo para a coisa dita e outro no dativo para a pessoa endereçada, ou seja, ele é duplamente transitivo requerendo complemento direto e indireto, pois quem diz, diz alguma coisa a alguém. Por isso rm'a; anuncia e marca o início de um discurso, seja este direto ou indireto e este discurso representa o objeto do verbo. Partindo da pessoa com quem se fala rm'a; pode ser construído com as preposições la, ou l.. Como exprime uma relação pessoal o termo pode ser usado em vários âmbitos da vida social (cultura, moral, direito, religião), e campos interpessoais (sistemas, sentimentos, ensinamento, pensamento, comunicação e outros) configurando relações existentes entre homem e natureza, homem e mundo, homem e criação, Deus e homem, homem e Deus. Sendo assim os sujeitos deste verbo podem ser os mais diferenciados, não só por artifício literário para dar maior vivacidade à narrativa, mas em seu sentido próprio. Nesta narrativa há cinco incidências do verbo rm'a; (cf. vv. 11d; 12c; 13a; 18b; 19a), nesta primeira ele aparece como ‘rm,aYO’w: imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal verbo transitivo direto e indireto, sendo traduzido no pretérito perfeito do português, portanto disse. Como foi visto o verbo solicita complemento direto e indireto. O narrador apresenta então o complemento indireto identificado pela preposição la,. Esta preposição pode ser traduzida por para, em, ao lado, contra, com referência a e contém a idéia de movimento em direção a alguém ou a alguma coisa, podendo ser aplicado em vários contextos que expressam idéia de movimento, de direção ou de localização. Neste estabelece o nexo com a pessoa para quem o interlocutor se dirige yr:äf', demonstra-se aqui a relação intersubjetiva estabelecida pelo verbo rm'a; anteriormente comentada35. 35 Cf. SCOTT, Jack B. la,. In: DITAT, 1998, p. 67. 25 O nome yr:äf'36 é um nome próprio dado à esposa de Abrão. O nome hV'ai37 pode ser traduzido como mulher, esposa, fêmea, cada uma, toda. Por sua vez ATêv.ai é um substantivo feminino construto com sufixo de terceira pessoa do masculino singular, é classificado sintaticamente como um adjunto adnominal restritivo, porque complementa de modo a especificar, delimitando e restringindo o nome yr:äf', como esposa dele, mulher dele. Este substantivo é acentuado por um zaqef qatan ë 38 , que tem função disjuntiva e divide em duas partes a divisão feita pelo atnah. Como será introduzido um discurso direto utiliza-se dois pontos. O discurso do narrador neste momento introduz a fala da personagem Abrão. Até aqui o leitor acompanhou a construção do texto no que diz respeito à sintaxe, morfologia e tradução, todos estes elementos colaboram para colher a beleza de sua construção, assim como o sentido nesta possível tradução, agora o estudo convida a dar mais um passo no que se refere à beleza estilística. 1.2 Análise estilística Nos parágrafos acima, a atenção do estudo estava voltada ao modo como o autor ou redator articula as palavras. No que segue, o leitor é convidado a voltar sua atenção para a maneira com a qual o autor ou redator procura dar maior expressividade, maior colorido, maior vivacidade ao texto. Observando o versículo como um todo é possível colher alguns aspectos referentes à beleza da construção estilística. AB CD C‟D‟ A‟B‟ 36 #r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w: 10a ‘hm'y>r:’cm. i ~r"Ûb.a; dr<YE‚w: 10b ~v'ê rWgæl' 10c `#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi( 10d Aconteceu uma fome na terra E desceu Abrão para o Egito Para imigrar ali, Porque pesada era a fome na terra. Cf. COHEN, Gary G. yr:äf'. In: DITAT, 1998, p. 1494. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hV'ai In: DBHP, 2004, p. 80-81. 38 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 37 26 O leitor se encontra diante de uma construção estilística chamada paralelismo reto39, facilmente visualizável. O sujeito e o complemento „fome na terra‟ se enquadram como uma moldura de um quadro envolvendo o conteúdo do mesmo. A moldura AB e A‟B‟ oferece informação sobre o sujeito e o complemento do quadro, o conteúdo C e C‟ se referem à ação da personagem destacado nesta construção, ou seja, Abrão, enquanto D e D‟ se referem ao lugar de destino. Identifica-se uma relação de oposição entre terra e Egito expressa na construção B x D e entre D‟ x B‟. No v. 10b e 10c identifica-se um paralelismo do tipo CD e C‟D‟ simétrico chamado sintético porque o versículo é organizado em dois períodos consecutivos. Verifica-se que, no segundo período aparecem os mesmos elementos do primeiro ABCD = D‟C‟B‟A‟ e as frases expressam algo equivalente. Do ponto de vista da sintaxe do texto há duas orações coordenadas correspondentes ao v. 10a e 10b e duas orações subordinadas no v. 10c final e 10d explicativa. A primeira oração coordenada apresenta o contexto e, a segunda apresenta a ação da personagem, sendo que as duas subordinadas complementam e justificam a oração da qual são subordinadas, ou seja, v.10b, apresentando a finalidade da ação de Abrão e o porquê da mesma. No v. 11a continua a voz do narrador, mas há uma mudança de tempo introduzida pela fórmula yhi§y>w,: bem como da posição em que se encontra o casal com relação ao destino, conferir nos vv.10b e 11b-c. A construção estilística deste versículo será analisada no próximo capítulo. Todavia cabe ainda observar certa simetria neste versículo, o qual é composto por dois períodos de subordinação centralizados no verbo ‘rm,aYO’w:. 39 Paralelismo: relação de equivalência, por semelhança ou por contraste, entre dois ou mais elementos. Em poesia, paralelismo é o termo que designa, habitualmente, a correspondência rítmica, sintática e semântica entre estruturas frasais. Há três tipos de paralelismos: sinonímico (quando as frases expressam algo equivalente), antitético (quando expressam idéias antagônicas) ou sintético (quando entre as idéias expressas há uma relação de causa-efeito ou quando a segunda frase dá maior precisão à primeira). Cf. SILVA, Cássio Murilo da. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007, p. 35, 75. 27 yhi§y>w: byrIßq.hi rv<ïa]K; hm'y>r"+c.mi aAbål' ATêv.ai yr:äf'-la, ‘rm,aYO’w: 11a Aconteceu, Fórmula expletiva 11b quando se aproximava Or.Sub.adv.temporal 11c para chegar ao Egito, Or.Sub.adv.final 11d disse a Sarai mulher dele: Or. Principal O leitor moderno diante de tais construções provavelmente tentaria fazer ajustes, pois as formas literárias atuais não encorajam a repetição e muito menos a toma por base. Mas o poeta hebreu pensava, exprimia-se e pertencia a uma tradição diversa. Ele parece não ter pressa, um pensamento importante não poderia ser esgotado numa única afirmação, sendo assim, com o uso de paralelismos, o poeta hebreu procura expressar mais plenamente o significado latente do texto40. Numa narração, o estilo não se fecha em si mesmo, mas fornece indicações que revelam o movimento do texto e permitem acompanhar o seu percurso e as suas transformações de modo dinâmico na leitura. 1.3 Análise narrativa A análise narrativa parte do pressuposto de que o texto sagrado faz parte de um todo coerente, contudo para o estudo sente-se a necessidade de elucidar suas estruturas, deixando claro que uma leitura narrativa não elimina outras abordagens. A leitura não é um ato ingênuo, nesta é preciso conhecer as convenções que o texto fornece. O método narrativo respeita as estruturas linguísticas e estilísticas da narrativa, antes parte do exame desses elementos para desvendar a direção que toma a narrativa. Qualquer narrativa se estrutura sobre cinco elementos fundamentais: os fatos que compõe a história; as personagens que vivem estes fatos; o tempo e o lugar em que estes acontecem; e a necessária presença do narrador, pois, ele caracteriza a narrativa. Ele é o 40 Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 45. 28 elemento organizador de todos os outros componentes. É o narrador quem faz o mediador entre o que é narrado (história) e o autor, entre o narrado e o leitor. Eis que o narrador introduz a narrativa: #r<a'_B' b['Þr" yhiîy>w: ‘hm'y>r:’cm. i ~r"Ûb.a; dr<YE‚w: ~v'ê rWgæl' `#r<a'(B' b['Þr"h' dbeîk'-yKi( yhi§y>w: byrIßq.hi rv<ïa]K; hm'y>r"+c.mi aAbål' ATêv.ai yr:äf'-la, ‘rm,aYO’w: 10a Aconteceu uma fome na terra, 10b E desceu Abrão ao Egito 10c Para imigrar ali, 10d Porque pesada era a fome na terra. 11a E aconteceu, 11b quando se aproximava 11c para chegar ao Egito, 11d disse a Sarai mulher dele: O início da narrativa consta da introdução ou apresentação, é também chamada de exposição. Aqui são apresentados os fatos iniciais, as personagens, o tempo e o espaço. É a parte na qual se informa o leitor, situando-o diante da história que confrontará. O leitor é informado de que aconteceu uma fome na terra, sabe-se então tratar de um ambiente hostil de difícil sobrevivência. Os elementos apresentados, fome, imigração, Egito, Abrão, de certa forma criam uma tensão que organiza os fatos e prende a atenção do leitor, gerando certo suspense e curiosidade sobre o que pode vir a acontecer. Segundo a rapidez e duração do relato os críticos distinguem dois tipos: a „cena‟ e o „sumário‟41. No sumário o tempo relatante é mais breve que o tempo relatado, portanto podese dizer que o tempo apresentado é sumário, pois o narrador nada diz a respeito do ano em que aconteceu, desde quando, o que fizeram outras pessoas. O narrador não se demora em detalhes, mas volta o seu foco para a primeira personagem apresentada, Abrão. Este foi 41 Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p. 134-135. 29 obrigado a descer para o Egito e morar ali como estrangeiro, imigrante, porque a fome não era qualquer uma, mas é qualificada como uma fome pesada. Aludindo ao tempo cronológico, o leitor tem uma informação que o situa: a personagem. É narrado um acontecimento com o patriarca Abrão42, ou seja, mais ou menos no século XIX a.C. É uma época de fome, mas como começou não se sabe. De fato, a narrativa ao construir um mundo que inclui uma pluralidade de acontecimentos e de personagens não pode dizer tudo sobre esse mundo. Refere-se a ele e pede ao leitor que preencha uma série de lacunas, afinal o texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho43. No versículo seguinte (cf. v. 11a) continua a voz do narrador, todavia o leitor percebe uma mudança no quadro da narrativa, ou seja, uma mudança temporal, marcada pela fórmula expletiva e aconteceu e pela posição em que se encontra a personagem com relação ao destino. Antes ela estava descendo (cf. v. 10b), agora ela já está se aproximando para chegar (cf. v. 11b-11c), tal mudança gera no leitor certa expectativa e curiosidade a respeito do que pode vir a acontecer. Certamente qualquer pessoa pode ler uma narrativa, porém, dependendo dos leitores os graus de compreensão e impactos da leitura são diferentes. Considerando que o leitor ideal seja um hebreu, ou um dos herdeiros da fé monoteísta e que tem o Patriarca Abrão como ponto comum de fé, as figuras como fome, Abrão, imigrar, Egito, tem uma repercussão, que lhes toca profundamente o sentido da fé e da história pessoal. Por isso, os leitores precisam ter certo conhecimento a respeito do mundo „real‟ para presumi-lo como o pano de fundo do mundo ficcional. 42 43 A época da história nem sempre coincide com o tempo em que a narrativa nasceu ou que o texto foi escrito. Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção, 1994, p. 9. 30 2. Estudo histórico- teológico 2.1 A personagem Abrão44 A narrativa bíblica apresentada coloca o leitor diante de pontos nodais, sobre os quais é chamado a confrontar-se, sendo assim é necessário estabelecer uma ordem, para tanto foi eleita a personagem, Abrão, situando-lhe no tempo e no espaço. O ciclo Abrão é situado, pela maioria dos estudiosos, no século XIX a.C.. Segundo a hipótese documental45, esta narrativa pertence à chamada fonte Javista (J), datada do século IX a.C, por isso há autores que ressaltam a importância das tradições pré-literais. Esta hipótese procura esclarecer, que o documento Javista não é uma invenção do autor do século IX a.C., mas foi escrita no século IX a.C.. Deste modo, restam dez séculos de distância entre a tradição oral e o documento escrito, o que justificará certos anacronismos46 identificado na narrativa. 44 O núcleo histórico das tradições de Abrão é objeto de debates à luz das repercussões arqueológicas. Os documentos de Nuzi, os nomes de pessoa semítico-ocidental de Mari, as relações e os movimentos amoritas entre Canaã e a Mesopotâmia foram utilizados para reconstruir o ambiente histórico cultural de Abraão de Ur da primeira metade do II milênio. Alguns pesquisadores hipotizam para a época patriarcal duas ondas migratórias, uma amorita e outra aramaica, correspondente ao quadro da expansão amorita por volta de 2000a.C. O fato de Abraão ser chamado de Hebreu (cf. Gn 14,12) é considerado como índice de sua participação aos Hapiru. Não obstante tentativas de situar o patriarca em 2000a.C., a Bíblia relaciona os patriarcas entre os arameus “Meu pai era um arameu errante” (cf. Dt 26,5; Gn 25,20; 28,5; 31,20.24), as referências a estes povos se dá num documento assírio datado de cerca de 1110 a.C. Sugere-se que existe uma continuidade racial entre os amoritas da época patriarcal e os arameus dos séculos XI e Xa.C. Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 27-28; CLEMENTS, R.E. ~r"b.a. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 112-113. 45 Embora a referência as fontes, aos documentos ou as tradições não sejam mais relevantes dentro da pesquisa exegética da teologia atual, a maioria dos manuais ainda apresentam essa discussão. Penso ser importante não ignorá-la. Conforme a mesma, o Pentateuco corresponde a compilação de quatro documentos, diversos em idade e de ambiente posterior ao de Moisés. Existiam inicialmente duas obras narrativas: O Javista (J), que usa, desde a narrativa da criação, o nome YHWH (o qual Deus revelou a Moisés), e o Eloísta (E) que se dirige a Deus com nome de Elohim. O J teria sido escrito no século IX a.C., em Judá (Sul), o Eloísta no século VIII a.C., em Israel (Norte). Após a queda do Reino do Norte (722 a.C) os documentos teriam sido fundidos (JE). Na época do rei Josias (622 a.C) teria sido adjunto o Deuteronômio (D) formando um possível documento (JED), e depois do exílio, o Código Sacerdotal (P), o qual serviu na armadura e quadro (JEDP) para o Pentateuco. Cf. SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Loyola, 2003, p. 111-177; VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 21-35; ZENGER, Enrich – BRAULIK, Georg. Os livros da Torá/ do Pentateuco. In: ZENGER, Enrich – BRAULIK, Georg – NIEHR, Herbert (et al.). Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 83-157. 46 Prováveis anacronismos: Gn 21,34 diz que „Abraão viveu muito tempo na terra dos filisteus‟, mas estes povos se instalaram em Canaã somente no 1200a.C.; Gn 11,31 diz que partiram de Ur dos caldeus, mas os caldeus só surgem nos textos assírios no sec. IXa.C.; e a sua ascensão ao poder ocorre somente no sec. VIIa.C; no início do segundo milênio era Ur dos sumérios; a referencia a camelos (cf. Gn 12,16) estes são domesticados e utilizados no Oriente próximo por volta de 1200a.C. Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 28. 31 Outros estudiosos apresentam diferentes possibilidades de datação, há quem diga que a posição de Abrão como ancestral comum a Israel provavelmente se deu no período em que existiam significativos laços entre Judá e Israel, e Judá gozava de uma posição predominante. Estas condições indicam como idade mais adaptada a época do reino davídico – salomônico47. Por outro, lado há quem diga que os escritos definitivos são frutos pós-exílicos48. No Capítulo 11 do livro do Gênesis é possível conhecer a família e a origem de Abrão. Seu pai Taré, teve três filhos: Abrão, Nacor e Arã. Arã morreu deixando um filho, Lot e duas filhas Melca e Jesca. Nacor casou-se com Melca. Abrão casou-se com Sarai, uma mulher estéril. O Pai de Abrão tomou a ele, a Sarai e a Ló e partiram de Ur dos caldeus49 para ir ao país de Canaã, mas chegados em Harã se estabeleceram ali. Diz ainda que os anos de vida de Taré foram duzentos e cinco anos50, e que ele morreu em Harã (Gn 11,27-32). Após tais fatos, Abrão foi chamado a estabelecer uma aliança com Deus, para tanto ele deveria deixar sua parentela e a casa de seu pai e seguir rumo à terra que Deus lhe mostraria. Deus prometeu fazer dele um grande povo e abençoá-lo. Abrão51 juntamente com a esposa Sarai e o sobrinho Ló partiram de Harã caminharam para a terra de Canaã, habitada pelos cananeus, mas o Senhor prometeu a Abrão que esta terra pertenceria a seus descendentes. 47 Cf. CLEMENTS, R.E. ~r'b.a;. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p.113-114. Segundo esta posição o exílio do início do sec. VI a.C. minou a fé do povo, muitos prestavam culto às divindades estrangeiras como Baal (Oséias entre 755-721 a.C., queda da capital, Samaria). O grupo que permaneceu fiel reabriu o coração à esperança de restauração (Ezequiel e Jeremias) do povo (586-538). O sonho se torna possibilidade quando Ciro, o persiano, entra em cena e permite o retorno à pátria (538). Neste ponto os círculos de sacerdotes, escribas e mestres, recolheram os documentos que tinham, interrogaram a memória histórica do povo e si confrontaram com as novas reflexões do período exílico, então a fé de Israel em YHWH é reconfirmada, e o povo de Israel retoma a unidade na fé num ancestral comum Abrão, homem escolhido por Deus e destinatário da promessa divina, exemplo de fé, assim como a unidade através do Templo. Cf. SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 199-243. 49 O nome da Cidade da qual partiram Taré e sua família (Ur dos caldeus) Ur é conhecida e muito antiga, mas o termo “Caldeu” é problemático. Os caldeus só surgem nos textos assírios no século IX a.C e referir-se a “Ur dos Caldeus” pressupõem a ascensão ao poder dos caldeus, ou seja, babilônicos, que acontece somente no século VII a.C, provavelmente no início do segundo milênio seria chamada Ur dos Sumérios. Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 28. 50 Com referência aos anos da vida de Taré existem versões diversas. Segundo o Pentateuco samaritano ele teria morrido aos 145 anos, se ele teve Abrão aos setenta anos (cf. Gn 11,26) e Abrão o deixou quando tinha 75, conclui-se que Abrão tenha deixado Harã somente por ocasião da morte de seu pai (cf. Gn 11,26 e 12,4; At 7,4). Segundo a versão que temos, Taré teria vivido ainda 60 anos após a partida de Abrão. Cf. Nota da Bíblia de Jerusalém em Gn 11,31. 51 Idade de Abrão e Sarai: Abrão contava com 75 anos quando partiu e sua esposa era 10 anos mais nova que ele, portanto tinha 65 anos (cf. Gn 17,17). 48 32 Abrão atravessou o país até Siquém52, denominado lugar santo, onde construiu um altar a YHWH, dali caminhou rumo a Betél53, construindo um altar a YHWH e seguiu de acampamento em acampamento até o Negueb. Este gesto de percorrer de norte a sul, simboliza a tomada de posse da terra, construindo altares como marcas que o ligam a terra, embora Abrão permaneça sempre um estrangeiro de passagem54. Abrão é o eleito de Deus, o escolhido com quem Deus faz aliança e através de quem abençoa todos os povos da terra. Apesar de ter chegado ao Sul do território que o Senhor lhe prometera, passa por uma situação de fome, que o obriga a procurar sobrevivência fora da terra que lhe foi prometida. 2.2 A fome na terra55 No hebraico a palavra terra tem uma gama de sentidos, mas o texto situa o leitor na terra de Canaã56. Como foi visto anteriormente, Abrão veio de acampamento em acampamento até se estabelecer em Negueb, onde a fome era pesada sobre a terra. Neste sentido a terra também pode ser associada a solo, enquanto se refere à condição da terra57 e de seus produtos. Nos tempos antigos a distribuição e a conservação de alimentos eram precárias, a fome significava sofrimento e inanição. 52 A cidade de Siquém terá um papel importante na vida de Jacó (cf. Gn 33,18-20; 35,1-4), mais tarde as tribos formarão ali uma federação (cf. Js 24). Enquanto Betél se tornará a capital do Reino do Norte, após a morte de Salomão (cf. 1Rs 11-12). Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 64. 53 Betél se tornará o centro religioso do Reino do Norte, em competição com Jerusalém (cf. 1Rs 26-33). Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000. p. 65. 54 Cf. NORTH, Roberth. Abraão. In: BRUCE M. METZEGER – MICHAEL D. COOGAN (Orgs.). Dicionário da Bíblia vol.1: as pessoas e os lugares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2002s p. 2-3; VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 65. 55 Cf. GABEL, John B. – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 60-67. 56 O mundo bíblico é divido em duas partes: Israel e as nações, não obstante Deus governe todos os lugares, a área de santidade e autorevelação se limita às fronteiras da terra de Israel. Cf. HAMILTON, Victor P. #r<a,. In: DITAT, 1998, p. 124-25. 57 Com o significado de solo, o termo se refere à condição da terra e dos seus produtos. Essa doa a gordura (cf. Gn 27,28), os produtos (cf. Lv 26,4-20; Dt 32,22; Sl 67,7) as frutas (cf. Nm 13,20.26; Dt 1,25), os vegetais (cf. Is. 61,11) o pão (cf. Sl 104,14; Jo 28,5). A maior parte destes textos designa em primeiro plano o país de Canaã. O A.T conhece também a terra estéril, o deserto (cf. Dt 32,10; Pr 21,19), a terra seca e árida (cf. Sl 63,2; Sl 107,35; Ez 19,13). A improdutibilidade do país aparece como punição divina. O Senhor reduz a terra fértil num pântano por causa da malícia dos seus habitantes (cf. Sl 107,34). Cf. OTTOSSON, K. #r<a.., In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 860-862. 33 A fome pode ter suas origens naturais. Partindo do Negueb, este é caracterizado como uma estepe árida com baixo índice pluviométrico anual, menos de 20 centímetros, o que possibilita o plantio, mas não garante a colheita. Outras regiões relativamente planas são formadas por um solo depositado pelo vento, porém, as alterações climáticas permitem somente a sobrevivência de pastores. O sudeste é um deserto, pois o índice pluviométrico anual é de 10 centímetros, a paisagem é composta de pedras e vales secos, um deserto rochoso e marcado por uádis. Existem regiões que recebem até 50 centímetros de chuva por ano e o solo suporta campos de grãos, oliveiras e vinhas. As alterações nos índices pluviométricos se devem ao fenômeno dos principais ventos de inverno, provenientes da direção leste do Mediterrâneo, estes carregam consigo o ar úmido, e quando encontram as colinas são forçados a vir para baixo, resfriado-se assim até o ponto de orvalho e liberação da umidade em forma de chuva. Mas, do lado contrário das colinas, o ar desce, se aquece e fica seco. As chuvas que caem em raros temporais a leste da crista das colinas de Judá, são localizadas e logo desaparecem nos uádis ou evaporam-se ao sol. O clima é do tipo mediterrâneo, verões quentes sem chuva e invernos frios e úmidos. Praticamente há duas estações, as chuvas se concentram em poucos dias no ano, sendo assim a água da chuva tem poucos dias para penetrar no solo. Chove menos ao sul e vai aumentando à medida que avança ao norte, embora a maior parte da terra é árida e a taxa de evaporação é elevada. Em contraste com o Egito e a Mesopotâmia, como reconhece o Deuteronômio 11,10-12, citando a advertência de Moisés aos Israelitas: Pois a terra em que estais entrando a fim de possuí-la não é como a de onde saístes, a terra do Egito: lá semeavas tua semente e irrigavas com o pé, com uma horta! A terra para a qual passais, a fim de possuí-la é uma terra de montes e vales, que bebe água da chuva do céu, é uma terra de que Ihweh teu Deus cuida. 34 Deste modo é possível compreender porque a maior punição para os israelitas era a ação Divina de bloquear os céus, o que equivale à fome e à morte. Abrão se encontra em dificuldade, e isto surpreende o leitor, pois há pouco Deus prometera aquela terra a ele e à sua posteridade, prometendo também abençoá-lo. Abrão percorre a terra de norte a sul, ou seja, simbolicamente toma posse da terra, mas o que se presencia é uma fome. Como se vê, a seca era frequente em Canaã, enquanto o vale do Nilo e o Egito produziam bastante trigo. De fato a fome é um tema presente na vida do povo de Israel, tanto que levará Israel a habitar no Egito (Gn 47,4). O texto é imparcial quanto à ação de Abrão, não emite julgamentos morais ou dogmáticos, a única explicação oferecida para justificar a ação de Abrão é que a fome era pesada sobre a terra, obrigando-o a buscar no Egito, a sobrevivência. A decisão de Abrão é compreensível. De fato quando a terra não pode manter os seus, esses encontram meios para sobreviver, sendo a migração um dos meios comuns aos pastores transmigrantes. Por outro lado, Israel é peregrino, desde a divina eleição é convidado a colocar-se a caminho. 2.3 Desceu ao Egito A palestina é uma região montanhosa, limitada a oeste pelo Mar Mediterrâneo e a leste pela fenda Araba, abaixo do nível do mar. Sendo assim, por qualquer lugar que se viaje em Canaã se seguirá sempre ou para baixo ou para cima. Estando em Canaã, terra prometida, está geográfica e teologicamente no ponto central da atenção. Segundo Hartley58, com referência a terra de Israel um viajante ou „sobe‟ ou „desce‟. Por vezes o verbo „descer‟ é usado quando de fato o destino é para cima. Em tais casos o sentido é de ir para o sul ou de sair da cidade em direção ao campo, ou até mesmo de ir por altos e baixos. Abrange-se também o sentido de passar de uma posição de evidência para uma de menor importância, neste sentido descer 58 Cf. HARTLEY, John E. dr"y." In: DITAT, 1998, p. 657-658. 35 significa abandonar o lugar de prestígio, logo descer ao Egito tem a nuança de deixar a terra prometida para habitar em meio a pessoas que estão fora da Aliança. Descer ao Egito é equivalente a abandonar a Deus e buscar auxílio humano. A região do delta do Nilo é formada por lodo depositado por milhões de anos, mas o restante do Egito é um longo vale de um rio, limitado ao leste e oeste por grandes desertos áridos e inóspitos. A civilização Egípcia se desenvolveu num clima estável e terras extremamente férteis, regularmente irrigadas pelo Nilo. Por isso, os egípcios puderam desenvolver uma rica economia agrícola produzindo trigo, cevada, vegetais variados, frutas e uvas. Em tempos remotos, o Egito era o celeiro do Oriente Médio, principalmente em tempos de escassez59. O patriarca Abrão é situado no Reino Médio60 2134-1786 a.C. Durante a XI dinastia, monarcas originários de Tebas, estabeleceram o controle sobre todo o Egito e fundaram o Reino Médio. Os soberanos mais poderosos foram os da XII dinastia. O Reino Médio foi significado pela revivescência artística, e mais no fim um período de debilidade política permitiu a entrada de um grupo de estrangeiros na região do delta do Nilo, esses eram conhecidos como hicsos61 ou „chefes das terras estrangeiras‟ e provavelmente de origem pastoril, alguns estudiosos vêem esse período como o cenário das narrativas de José no Egito62. A partir da época Mosaica, em geral, a Bíblia coloca a terra do Egito numa posição negativa. Suas riquezas oriundas do Nilo e sua civilização são vistas, nas tradições bíblicas, como uma tentação constante (cf. Gn 26,1-6; 46,1-4; Nm 11,4-5). É o Faraó quem oprime o povo de Deus, negando-se a dar liberdade a Israel. Por isso, os profetas de Israel atacam a aproximação de seu país ao Egito. No entanto, duas passagens do AT chamam a atenção com referência a este país, Josias, o piedoso rei de Judá, morre porque não deu ouvidos à Palavra 59 Cf. PLUMLEY, J. Martin. Egito. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da Bíblia Vol.1, 2002, p. 66-69. 60 Cf. THOMPSON, Dr. John A. A Bíblia e a Arqueologia. 2. ed. São Paulo: Vida Cristã, 2007, p. 59. 61 Cf. THOMPSON, Dr. John A. A Bíblia e a Arqueologia, 2007, p.60. 62 Cf. MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos faraós: história, civilização e cultura. 3. ed. São Paulo: Hemus, 1998, p. 147. 36 de Deus por boca do Faraó Neco (cf. 2Cr 35,20ss). Na segunda, Isaías (cf. Is 19,16ss) antevê a conversão do Egito e da Assíria ao Senhor63. Os pressupostos possibilitam compreender o que seria para um hebreu ter que ir ao Egito em busca de alimento, submetendo-se, por vezes, ao julgo de um povo que não conhece o Deus único. Essa é uma verdadeira descida, deixar a terra que o Senhor deu, a terra da Aliança, para descer a uma terra pagã e influenciada por „falsos deuses‟ a fim de receber desses o sustento para a vida. 2.4 Morar como imigrante64 Abrão desceu ao Egito, mas ao que tudo indica sua intenção não era somente buscar viveres. Ele desceu para morar ali como imigrante, ou seja, viver entre pessoas que não são parentes consanguíneos. Na condição de imigrante a pessoa não desfrutava os direitos civis dos cidadãos, mas dependia da hospitalidade, a qual desempenha um importante papel no Antigo Oriente. Para a Bíblia o estrangeiro65 e também o inimigo podem chegar a ser considerados como um irmão, mas nunca como iguais, pois as diferenças devem ser respeitadas e acolhidas com a finalidade da fraternidade. A experiência de ser estrangeiro, da migração e do contato com estrangeiros é um tema central na história dos filhos de Israel. O seminomadismo patriarcal, as relações com povos limítrofes, a deportação, o exílio a que foram submetidos e as dominações por potências estrangeiras, mostram que Israel viveu como estrangeiro junto a 63 Cf. HAMILTON, Victor P. ~y>r:’c.mi. In: DITAT, 1998, p. 870-871. Cf. KELLERMANN, D. rwg. In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 2007-2024; WILLIS, Timothy M. rwg. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da Bíblia Vol.1, 2002, p. 94; STIGERS, Harold G. rwg. In: DITAT, 1998, p. 255-256. 65 No AT é possível distinguir três categorias de migrantes Nekar (rk'nE) ou estrangeiro de passagem, desconhecido, forasteiro, intruso (cf. Gn 17,12; Ex 12,43; Lv 22,25); Zar (rz") (cf. Jr 30,8; 51,51; Ez 7,21) estrangeiro étnico e político, inimigo (tzar) grupos confinantes com Israel: assírios, babilônios; Ger, gerim ou gur (rgå)E estrangeiro residente inserido no tecido social, não pertence ao povo por sangue, mas reside estavelmente. Cf. INOCENZZO, Cardellini. Stranieri ed emigrati-residenti in uma sintesi di teologia bíblica. In: Rivista Biblica (1992) 2, p. 129-181; P., Bovatti. Lo straniero nella Bibbia. In: Rivista del Clero Italiano (2002) 7/8, p. 408-502. 64 37 outros povos que, por vezes, teve que viver a própria fé forjando sua identidade cultural no contato com estrangeiros. Entre as causas que levava uma pessoa ou um clã a sair de sua terra está a fome. De fato este é um motivo recorrente no AT: Elimelec parte com a família para Moab como refugiado (cf. Rt 1,1); outra carestia induz Elias a se alojar na casa da viúva de Sarepta (cf. Jr 17,20); Eliseu manda a Sunamita e a sua família para região mais fértil, para fugir da carestia (cf. 2Rs 8,1). A carestia também levou Isaac a buscar refúgio como estrangeiro junto a Abimelec em Gerara (cf. Gn 26,3); a estadia de Israel no Egito é devido ao fato de uma carestia ter expulsado os irmãos de José daquele lugar (cf. Gn 47,4). O mesmo que aqui acontece com Abrão, ele é o protagonista de uma experiência que o coloca em comunhão com os seus descendentes. O sentido apropriado do substantivo rgE se colhe quando aplicado para designar Israel como peregrino no Egito (cf. Gn 23,9; 15,13). No AT estes ~yrIïgE tem uma posição intermediária entre o nativo e o estrangeiro de passagem. Devido aos acontecimentos históricos, o imigrante residente indicava o cananeu residente em Israel ou o fugitivo proveniente do Reino do Norte. Com o passar do tempo, o termo passou a designar os prosélitos, ou o não israelita que acolhia a fé no Senhor. Israel deve tratar o refugiado com amor (cf. Dt 10,19; Ex 22,20; 23,9), pois ele mesmo fez a experiência de rgE (cf. Ex 23,9). A condição de Israel como estrangeiro no Egito (cf. Dt 23,8; 26,5; Is 52,4; Sl 105,23) o leva a estender o mandamento de amar o próximo (cf. Lv 19,18) ao rgE: “O migrante residente entre vós será para vós como o nativo. E deves amá-lo como a ti mesmo, porque fostes migrantes (~yrIïgE) no país do Egito. Eu sou YHWH, vosso Deus” (Lv 19,34), de modo amplo todo homem sob a terra é rgE, por isso o salmista (cf. Sl 39,13) sabe ser diante de Deus, somente um estrangeiro rgEå e um peregrino bv'ªAT÷, como seus pais. Neste sentido Abrão é o protagonista da história do povo de Deus, hóspede e peregrino sobre a terra. Nele todos são chamados a refletir sobre a própria condição existencial de homo viator. 38 CONSIDERAÇÕES Neste primeiro capítulo intitulado “Fome na terra e descida ao Egito”, delimitou-se para o estudo o referido texto de Gn 12,10-11d. Estes quase dois versículos foram abordados sob duas perspectivas, ou seja, linguístico-literária e histórico-teológica. Todavia, percebe-se certo vínculo de complementaridade progressiva entre uma perspectiva e outra, pois uma lança luzes importantes para o desenvolvimento do tema sucessivo. No que se refere ao estudo linguístico foi possível apropriar-se do vocabulário, estudar seu sentido, sua classificação morfológica e sintática a fim de chegar a uma tradução mais fiel ao texto. Observa-se que os verbos estão na forma qal, com exceção de um que se encontra no hifil. Tem-se no v. 10 uma estrutura composta de duas orações coordenadas e duas orações subordinadas. Já no v. 11 tem-se duas orações subordinadas, uma coordenada, e duas subordinadas. Portanto da construção é possível colher certa sincronia. Com relação ao seu sentido e estrutura, estes serviram de base para o passo sequente, ou seja, a análise estilística, nesta percebe-se o modo como o texto foi construído e estruturado, pois há uma lógica interna bem elaborada. O leitor encontrou-se diante de uma construção estilística chamada paralelismo reto ABCD = D´C´B´A´. A moldura AB – B´A´ ofereceu informações sobre o sujeito e o complemento do quadro, C e C´ menciona a ação da personagem, Abrão, e D e D´ referem-se ao destino. Daqui brotaram então os subsídios significativos para o próximo passo. O item seguinte trabalhou o texto abordando-o sob a perspectiva da analise narrativa. Essas poucas linhas correspondem à introdução, onde o narrador procurou situar o leitor no tempo e no espaço. A soma dos resultados desta primeira perspectiva ofereceu elementos para prosseguir o estudo no que se refere à sua perspectiva histórico-teológica. 39 No estudo histórico-teológico foram reunidas as indicações oferecidas pelo próprio texto para maior aprofundamento a fim de chegar o mais próximo de sua essência, ou seja, o seu sentido teológico. A fome, a migração, o Egito, e o ser estrangeiro, são elementos constituintes não só da experiência histórica, mas também da identidade e da fé dos descendentes de Abrão e Sarai. Deste modo o narrador cria todo um contexto, insere o leitor nele e o prepara para o capítulo sucessivo. 40 CAPÍTULO II SARAI MULHER DE BELA APARÊNCIA Numa narrativa o leitor pode identificar ao menos dois níveis de fala, o do narrador e o das personagens. Os discursos são as várias possibilidades que o narrador dispõe para registrar as falas das personagens. O discurso direto corresponde ao registro integral da fala de uma personagem indicando que a personagem fala diretamente, ou seja, sem a interferência do narrador, pois neste caso o narrador se limitará somente a introduzi-la. Até o v. 11d, o leitor está no início da narrativa denominado exposição, introdução ou apresentação. Colhe-se os dados que o situam dentro do quadro em que se desenvolve a narrativa. O narrador é onisciente, quer dizer dispõe de conhecimentos e informações inacessíveis a uma pessoa comum, ele sabe o que pensa e diz Abrão, e informa a seu leitor sem procurar justificar-se ou justificar a personagem. A esta altura, no v. 11e, o leitor notará uma mudança no discurso, ou seja, uma passagem da fala do narrador para a fala da personagem. Esta passagem é demarcada pelo 41 verbo rm;a' que aparece como um divisor de águas, introduzindo a fala da personagem Abrão. O discurso prossegue com a voz profética de Abrão preanunciando o que pode acontecer a ele e à sua esposa ao entrarem no Egito. Neste ponto a narrativa começa a desencadear uma série de conflitos. O leitor se prende mais atentamente ao texto participando dos temores que ameaçam a vida e o futuro do patriarca e de sua esposa. 1. Estudo linguístico-literário de Gn 10,11e-13d 1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático O discurso do narrador neste momento introduz a fala da personagem Abrão. yTi[.d:êy" an"å-hNEhi 11e “Eis que sei, Segundo o estudo o verbo rm;a' pede um complemento de um objeto direto e outro indireto, o objeto indireto já foi especificado, segue então o complemento objeto direto, com duas orações subordinadas. A partícula an"å-hNEhi66 é uma composição de duas interjeições. A primeira em sua forma simples hNEhi é frequente na prosa hebraica. A maioria das orações com hNEhi acontece em discurso direto e serve para introduzir uma declaração ou ordem. Segundo Lambdin67, alguns tradutores acentuam a dificuldade em captar o significado e as funções sintáticas da mesma. Pode ter sentido demonstrativo: eis! Olha!, apontando para pessoas ou coisas. Pode também fazer referência ao passado ou ao presente apontando alguma verdade recém declarada ou recém conhecida. 66 Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 210-212; WERNER, Carl Philip. hNEhi. In: HARRIS, R. Laird – ARCHER, Gleason L. Jr. – WALTKE, Bruce K. DITAT. São Paulo: Vida Nova, 1998, p 363. 67 Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 210. 42 A interjeição an"å tem o sentido de súplica e reforça uma expressão, todavia a mesma parece denotar que a ordem em questão é consequência lógica de uma declaração imediatamente precedente à situação geral na qual é proferida, mas sua tradução dependerá do contexto. A fórmula an"-å hNEhi68 é usual para dar ênfase ao discurso, anexá-la ao imperativo que segue expressa uma proposta de natureza de pedido ou de súplica, traduzida na língua portuguesa como Eis que!. Segue o verbo [d:y"69, este abrange o sentido de conhecer, saber. Esta raiz expressa uma variedade de aspectos do conhecimento adquirido pelos sentidos. O verbo pode designar o conhecimento que Deus tem do homem (cf. Gn 18,19; Dt 34,10) ou o conhecimento de seus caminhos (cf. Is 48,8; Sl 1,6). Em certos contextos significa distinguir, conhecer „o bem e o mal‟ (cf. Gn 3,5.22). Pode ser usado para expressar familiaridade com uma pessoa, até mesmo o relacionamento íntimo. É possível assinalar graus ou aspectos distintos do conhecimento tais como supor, prever, saber, entender, distinguir, certificar-se. Ambos os momentos podem ser especificados por seu objeto; a) uma pessoa: conhecer, tratar; b) uma coisa: conhecer, ocupar-se de; c) um fato: saber que, estar informado de; d) um enunciado: saber, saber fazer, habilidade, destreza. Tratando-se de operações mentais, as fronteiras entre os diversos significados são imprecisas e nem sempre reconhecíveis. O conhecimento intelectual une-se ao sensorial do perceber, podendo acrescentar uma atividade emocional ou volitiva 70. 68 Esta partícula assume por vezes um papel importante referente à organização textual, ou seja, organização interna de frases e orações no discurso bíblico. Tem-se que a base de uma organização textual mais ampla é fornecida por várias classes de marcadores incluindo entre estes as conjunções w e %a e exclamações e formas nominais como yhiy>w: rv,a]. Estes sinais macrossintáticos servem para demarcar as divisões maiores de um texto. O narrador insere tais sinais a fim de realçar para o leitor o começo, as transições, o clímax e as conclusões de sua comunicação. Os sinais macrossintáticos são classificados como introdutórios e transicionais em diálogos: !he, hNEh, hT'[w; >. Por exemplo um sinal de interrupção da narrativa: yhiy>w: como introdutório e transicional e hNEh como transicional. Cf. WALTKE, Buce k. e O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 632, 634-635, 674-683. 69 Cf. LEWIS, Jack P. – GILCHRIST, Paul R. [d"y." In: DITAT, 1998, p. 598. 70 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. [d"y". In: DBHP. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 268-269. 43 Portanto yTi[.d:êy" como verbo perfeito – primeira pessoa masculino singular do qal pode ser traduzido do hebraico para o português por sei ou conheço . A opção pelo presente se justifica pelo contexto, pois o que ele sabe é atual. Sobre o verbo segue um acento disjuntivo zaqef qatan ë 71 que introduz uma pausa, por isso se justifica o ingresso da vírgula. `T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi² 11f Que és mulher bela de aparência tu. A conjunção yKi72, como visto anteriormente, pode assumir diversas funções, neste caso é classificada como uma conjunção que introduz uma oração subordinada substantiva, dado que o verbo saber pede um complemento objeto direto, portanto foi traduzida do hebraico para o português pela conjunção que. O substantivo hV'îai é empregado como predicativo que qualifica o sujeito T.a',( traduzido para o português por tu és mulher. Segue o complemento do substantivo como adjunto adnominal restritivo, porque qualifica e restringe o mesmo ha,Þr>m;-tp;y>. Este tp;y>73 é um adjetivo feminino construto e no português abrange o significado de bela, beleza, agraciado, elegante, arrogante, galhardo, gentil, garrido, bonito, vistoso, lindo, esbelto; seguido de ha,Þr>m; substantivo masculino singular. Este substantivo tem prefixo m; e se relaciona com o verbo ha'r"74, referente à capacidade visual, sendo assim a expressão ha,Þr>m;-tp;y> pode ser 71 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. Esta conjunção pode ser traduzida por: como se, por causa de, mas, certamente, exceto, pois, visto que, que, então, quando. Ela pode expressar relacionamento temporal, causal ou objetivo entre clausuras expressas e nãoexpressas. Em hebraico é usada de quatro maneiras: 1) introduzir uma oração objetiva especialmente depois de verbos que denotam „ver‟, „dizer‟ (como o caso presente) sendo traduzida pelo pronome relativo que; 2) para introduzir uma oração temporal, sendo traduzido por quando; 3) para introduzir uma clausula ou oração causal, porque, por causa de, visto que; e 4) junto com ~yi, para exprimir o motivo pelo qual algo talvez não ocorresse, exceto, se não. Em todos os casos o uso introduz um determinado fato ou ação que é resultado de algum outro fato ou ação. Cf. OSWALT, John N. yK².i In: DITAT, 1998, p.716; PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 89-92, 98-99, 102, 106-107, 140, 143-145. 73 Cf. GILCHRIST, Paul R. hp'y". In: DITAT, 1998, p. 640-641; SCHÖKEL, Luis Alonso. tp;y>. In: DBHP, 2004, p. 285. 74 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ha'r". In: DBHP, 2004, p. 596-598. Sentido genérico diferencia-se segundo um processo: atividades referentes ao ver: examinar, inspecionar, investigar, reconhecer: o momento inicial da percepção: perceber, descobrir, avistar, distinguir, notar, advertir, inteirar-se, constatar, encontrar; ação duradoura: olhar, contemplar, observar, vigiar, assistir; conclusão: comprovar, reconhecer, ser testemunha. Sentido qualificado: prestar atenção, atender, cuidar, visitar, mostrar consideração, aprovar, escolher. Sentido translado: sentir, escutar, gozar, desfrutar, sofrer, passar, experimentar. 72 44 traduzido para o português por bela de se ver, ou bela de aparência, segue então o pronome pessoal da segunda pessoa do feminino singular T.a' que assume a função sintática de sujeito. O sinal massorético sof pasuq ` 75 identifica o final deste versículo. hy"©h'w> 12a E acontecerá; Inicia-se outro versículo, novamente introduzido pela fórmula hy"©h'w>, verbo perfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal, com valor expletivo76. Nota-se que esta é a única vez que este verbo aparece na forma do perfeito consecutivo nesta perícope, o que denota um tempo futuro, em português pode ser traduzido por e acontecerá. Outra observação é que sobre o verbo encontra-se um sinal massorético disjuntivo chamado revia’ ٠ 77 o qual introduz pausa na pronúncia, em português pode ser representado por ponto e vírgula. ~yrIcê .Mih; ‘%t'ao WaÜr>yI-yKi( 12b Quando virem a ti os egípcios, A conjunção yKi, no português pode ser traduzida como que, quando, porque. Ela pode ser utilizada em diversas situações, entre estas para introduzir uma oração subordinada temporal como no presente caso, traduzida por quando. O verbo ha'r:78 possui uma vasta gama de sentido na língua portuguesa, desde ver como capacidade visual, examinar, inspecionar investigar, notar, prestar a atenção, atender, sentir e outros. Neste versículo WaÜr>yI está na forma do imperfeito - terceira pessoa masculino plural do qal. 75 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p.123. Como função expletiva, em construções para o passado e para o futuro, introduz uma clausula subordinada antes da principal (cf. vv. 11.12.14); quando a função é expletiva, não necessariamente é preciso traduzir o verbo hy'h'. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hy"h'. In: DBHP, 2004, p. 169-176. 77 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 78 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ha'r". In: DBHP, 2004, p. 596-597; CULVER, Robert D. ha'r". In: DITAT, 1998, p. 1383-1384. 76 45 A composição da conjunção temporal com o verbo no futuro pode ser traduzida no português como futuro do subjuntivo, quando virem. Este é um verbo transitivo e requer um complemento, identificável na partícula ta,, portanto o objeto direto com sufixo da terceira pessoa do feminino singular %t'ao79 traduzida no português resulta em a ti, segue um substantivo ~yrIêc.Mi no plural acompanhado de vogal h;, traduzida em português por os egípcios. O acento zaqef qaton ë 80 presente na palavra ~yrIêc.Mi é disjuntivo e introduz uma pausa, podendo ser uma vírgula. Sobre a palavra ~yrIêc.Mi encontra-se um circelus Ù o qual remete à massorá parva que traz uma indicação81 informando que esta palavra se encontra somente 5x na Bíblia, e dessas 4x está presente na Torá, e entre estas 4x, encontra-se 2x no texto em estudo. tazO= ATåv.ai Wrßm.a'w> 12c Dirão, esta é mulher dele. O verbo rm'a; já estudado anteriormente, aqui se aplica o mesmo sentido, todavia aparece não como introdução ao discurso direto e sim como uma reflexão pessoal do que os outros possam dizer ou pensar a respeito do que vêem, ou seja, do juízo de terceiros. Neste sentido, o verbo pode ser utilizado para a emissão de um juízo e não tanto para dar voz a uma personagem. No texto Wrßm.a'w> está na forma de perfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino plural do qal, o que em português remete a um tempo futuro, podendo ser traduzido por: pensarão, ou e dirão. Quando rm'a; anuncia e marca o início do discurso, seja direto ou indireto, este discurso representa o objeto do verbo, portanto a oração que segue é sintaticamente uma oração subordinada objetiva direta, introduzida pelo verbo Wrßm.a'w>. 79 A partícula ta,e normalmente indica o objeto direto. Quando o objeto direto é um substantivo definido, precedido de vogal, ou um nome próprio, normalmente é precedido pelo indicador do objeto direto. Quando o pronome pessoal exerce a função de complemento verbal, pode unir-se como sufixo da partícula ta,. Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 51, 63; KELLEY, Page H. Hebraico bíblico, 1998, p. 30, 100, 439. 80 FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 81 Cf. r˜wtb h˜nm d h˜ traduzindo das cinco h˜ quatro d repetições h˜nm na Torá r˜wtb. Conferir Gn 12,12.14; Gn 43,32; Dt 26,6 e Jos 24,7. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 94-106. 46 O substantivo hV'ai, comentado anteriormente, aparece na oração como ATåv.ai, substantivo feminino singular construto mais sufixo da terceira pessoa masculino singular. Este pode ser traduzido no português como mulher dele, abrangendo a mesma conotação de esposa dele. Na oração a expressão ATåv.ai assume a função de predicativo do sujeito. O pronome possessivo dele assume a função de adjunto adnominal restritivo porque qualifica restringindo o sentido do predicativo mulher. O pronome demonstrativo feminino singular tazO=82 traduzido no português por esta assume a função de sujeito da oração. Sob o pronome demonstrativo tazO= o acento atnah 83 + indica a divisão na metade do versículo, indicado na tradução pelo ponto. ytiÞao Wgðr>h'w> 12d Matarão a mim O verbo gr:h'84 traduzido para o português compreende o sentido destruir, matar, assassinar, ferir, golpear, inclui idéias de assassinato e execução judicial, bem como a morte de animais. Normalmente é usado para descrever a morte violenta de um homem causada por outro homem – às vezes sem razão. Neste versículo Wgðr>h'w> está na forma de perfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal. Continuando a sequência do futuro pode ser traduzido no português por e matarão, sendo este um verbo transitivo direto, segue a partícula do objeto direto – sufixo da primeira pessoa do singular ytiÞa{, este corresponde ao a mim na tradução para o português. 82 O pronome demonstrativo pode ser empregado como substantivado ou adjetivado. Na qualidade de adjetivo atributivo é colocado sempre após o seu substantivo e recebe o artigo, já na qualidade de substantivo, quer como sujeito quer como predicado, o pronome demonstrativo é anteposto, sem artigo. Cf. HOLLENBERG – BUDDE. Gramática elementar da língua hebraica. 5. ed. Porto Alegre: Sinodal, 1985, p. 47. 83 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 84 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. gr:h'. In: DBHP, 2004, p. 366-367; FUHS, H. F. gr:h'. In: BOTTERWECK, G. Johannes – RINGGREN, Helmer (a cura di). GLAT. Vol. II di IX. ~¾lwg-#mh. Brescia: Paideia, 2002, p. 514-521. 47 `WY*x;y> %t"ïaow> 12e E a ti manterão viva. O w de %t"a ï ow> é uma conjunção que expressa uma sequência, juntamente com a partícula objeto direto – sufixo da segunda feminina singular, traduzido em português por e a ti. O verbo hy"x' no qal pode ser traduzido em português por viver e no piel pode ser traduzido por preservar a vida, manter a vida 85. No texto o verbo WY*x;y> imperfeito – terceira pessoa masculino plural do piel, portanto pode ser traduzido no português como manterão viva. Sobre este verbo encontra-se um circelus Ù o qual indica uma nota na massorá parva86. Tal nota diz que este verbo como está conjugado aparece somente 2x nas sagradas escrituras (cf. Gn 12,12; Os 14,8). O silluq ` indica o fim da frase. Algumas expressões deste v.13 são interessantes para compreender a narrativa. T.a'_ ytixoåa] an"ß-yrIma. i 13a Dize, pois, minha irmã tu, Depois da alegação de Abrão sobre a tensão vida e morte por causa da beleza de sua mulher Sarai (cf. v.11-12), usa-se um verbo no imperativo feminino singular mais uma partícula de interjeição. A expressão an"ß-yrIm.ai é uma composição do verbo rm;a' dizer, falar e a interjeição an"ß87, esta partícula expressa desejo ou acrescenta ênfase à expressão. Frequentemente unida a imperativos é conhecida, também, como partícula de súplica, traduzida no português como, por favor, te peço. A partícula an"ß denota que a ordem em questão é consequência lógica, seja de uma declaração precedente (cf. vv.11 e 12), ou situação geral na qual é proferida. Quando ela ocorre tem-se a pretensão de demonstrar que o orador considera sua ordem como consequência de sua 85 Entre os vários sentidos que este verbo pode assumir está o sentido de existir, durar, estar, permanecer, continuar. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hy"x'. In: DBHP, 2004, p. 171. 86 Cf. b˜ duas vezes Gn 12,12 e Os 14,8. 87 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. an"ß.. In: DBHP, 2004, p. 414; LAMBDIM, Thomas O. Gramática do hebraico bíblico. São Paulo: Paulus, 2003, p. 212. 48 afirmação anterior88, na fala de Abrão ela aparece 2x (cf. vv. 11e e 13a). Este tipo de imperativo traz consigo o sentido de urgência, traduzido por, dize pois. É interessante notar que o discurso de Abrão coloca Sarai, tu, como sujeito nesta oração, indicando deste modo uma transferência de responsabilidade para a segunda pessoa do feminino. O substantivo tAxa'89irmã, no feminino singular construto com sufixo da primeira pessoa singular ytixoåa] é traduzido no português por minha irmã. O T.a'_ pronome pessoal da segunda pessoa do feminino singular, traduzido no português por tu, está com o acento atnah Ñ 90, que divide o versículo ao meio. A questão de estar no feminino inclui, de certo modo, a transferência de responsabilidade, sendo assim a tensão da solução dos temores do patriarca é transferida para a matriarca. “Dize, pois, minha irmã tu”. Segue a justificativa. %rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) ‘![;m;’l. 13b Para que se faça o bem para mim por causa de ti, Essa preposição ‘![;m;’l.91 funciona como conjunção e introduz uma oração subordinada adverbial final, deste modo pode ser traduzida no português como para que. O verbo que lhe segue bj;y" 92 na tradução do hebraico para o português abrange o sentido de ser bom, estar bem, estar contente, agradar, deve ser traduzido como subjuntivo no português93. Estando no imperfeito – terceira pessoa do masculino singular qal seguido da preposição yliä com sufixo da primeira pessoa do singular yli-ä bj;yyI) é traduzido em português como se faça o bem para mim. 88 Cf. WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 578. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. tAxa'. In: DBHP, 2004, p. 414; WOLF, Herbert. tAxa'. In: DITAT, 1998, p. 49-50. 90 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 91 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 127. 92 Cf. GILCHRIST, Paul R. bj;y". In: DITAT, 1998, p. 612-613. 93 Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 332. Segundo Ross “essa palavra introduz uma locução de propósito, de modo que o verbo que lhe segue deve ser traduzido como subjuntivo em português”. 89 49 A preposição %rEêWb[]b;94 resulta da composição de duas preposições B. mais rWb[] e sufixo da segunda pessoa do feminino singular. Na oração é classificada sintaticamente como um adjunto adverbial final, traduzida para o português como por causa de ti, sobre esta preposição encontrase o assento zaqef qaton ë 95, que introduz uma pausa. `%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w> 13c E viverá minha alma por causa de ti. O verbo hy"x', estudado anteriormente, está no perfeito consecutivo – terceira pessoa do feminino singular do qal ht'îy>x'w> pode ser traduzido por e viverá. O nome yviÞp.n: é um substantivo feminino singular construto – sufixo da primeira pessoa singular. A palavra vp,n,96 tem um significado polissêmico, podendo ser traduzido para o português por alma, vida, criatura, pessoa, apetite, mente, garganta, respiro. Assim como em outras línguas também no hebraico é comum que um órgão ou parte do corpo assuma significados emocionais ou espirituais. Em Gn 1,30 verifica-se o uso da combinação entre hy"x' e vp,n< onde é traduzido como alma vivente, indicando a totalidade do ser, sua unidade de carne, vontade e vitalidade. A própria existência envolve impulsos, apetites, desejos e vontade. Portanto o termo vp,n, oscila entre as noções de alma e vida. Assim, Abrão pede a Sarai para dizer que é sua irmã para que por tua causa, a minha alma continue a viver. „Minha alma‟ seria toda a pessoa, sua existência, sua individualidade, o eu da pessoa que experimenta desejos e tem anseios, que ama e odeia, alegra-se e entristece-se. Seguindo as indicações de Waltke97, quando vp,n< ocorre como sujeito do verbo, em geral é traduzido por „alma‟, então o termo yviÞp.n: pode ser traduzido em português por minha 94 Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332; PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 105, 120-121. 95 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 96 Cf. WALTKE, Bruce k. vp,n,. In: DITAT, 1998, p. 981-986. 97 Cf. WALTEK, Bruce k. vp,n,. In: DITAT, 1998, p. 984. 50 alma. A expressão%lE)l'g>Bi98 é uma preposição com sufixo da segunda pessoa feminina singular, assume a função de adjunto adverbial final. Paralelamente a %rEêWb[]b; essa expressão significa por causa de ti. O versículo conclui-se com um sinal massorético silluq `99, que indica o seu fim. Após o estudo de análise morfológica e sintática, bem como da tradução do texto é possível evidenciar estruturas que oferecem informações referentes às possibilidades de estilo. Assim, o leitor é convidado a analisar a maneira como o redator procura dar maior expressão ao texto, partindo de sua forma. 1.2 Análise estilística A partir de uma visão global, antes fragmentado para estudo, o leitor é convidado a analisar o modo como o redator procura dar ênfase e vivacidade ao texto a partir de técnicas de construção estilística. Desde o momento em que o narrador passa a voz para a personagem Abrão é possível identificar na construção do texto uma figura de pensamento ou de retórica chamada gradação. A gradação100 consiste numa enumeração de palavras, pensamentos ou idéias, cujo sentido é cada vez mais forte ou visa uma orientação positiva num movimento global de intensificação. A este tipo de gradação que evolui em crescente, chama-se gradação ascendente ou clímax. Este exerce influência sob o leitor, por isso é utilizado em textos argumentativos, quando é necessário ir aumentando a carga emotiva ou a força dos argumentos, para conduzir a atenção do leitor até um ponto alto e decisivo. 98 Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332. Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 100 Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia. Rerrassa: CLIE, 1985, p. 227; SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 35. 99 51 yTi[.d:êy" an"å-hNEhi `T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi² 11e “Eis que sei, 11f Que és mulher bela de aparência tu. Quando o leitor se depara com este tipo de construção literária, ou seja, a gradação, sente uma aceleração na leitura. Um fato, ou seja, saber da beleza de Sarai (v. 11e e 11f) desencadeia uma série de outros problemas (v. 12). hy"©h'w> -yKi( ~yrIêc.Mih; ‘%t'ao WaÜr>yI tazO= ATåv.ai Wrßm.a'w> ytiÞao Wgðr>h'w> `WY*x;y> %t"ïaow> 12a E acontecerá; 12b Quando virem a ti os egípcios, 12c Dirão, esta é mulher dele. 12d Matarão a mim 12e E a ti manterão viva. Nota-se que é crescente a série de problemas que são gerados, portanto esta gradação pode ser denominada catábasis ou crescente101, ou se preferir escalar porque aponta para um cume, ou clímax. Observa-se os verbos na terceira pessoa do plural. Nos vv. 12d e 12e verifica-se o auge da tensão expresso num paralelismo de tipo chiasmo antitético102,expressões e idéias antagônicas, para enfatizar o ponto alto ou seja a questão da vida e da morte. ytiÞao Wgðr>h'w> Matarão a mim 12e `WY*x;y> %t"ïaow> A ti manterão viva 12f É visível o antagonismo entre – mim e ti – primeira e segunda pessoa, entre morte e vida. A partir do versículo 13a, o leitor notará uma mudança na fala da própria personagem: a passagem dos verbos do futuro para o imperativo, da terceira pessoa masculino plural para a segunda pessoa feminina singular, e desta para a primeira pessoa do singular. E no que diz respeito à estilística há uma mudança na utilização do artifício literário da linguagem, ou seja, 101 102 Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 362-364. Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese Bíblica. São Paulo: Paulus, 2000, p.199. 52 da gradação para o paralelismo sinonímico climático. O paralelismo é um artifício literário da linguagem poética hebraica, este pode ser definido como rima das idéias. O paralelismo sinonímico acontece quando o pensamento é semelhante e para tanto se usa vocábulos sinônimos103. O clímax em uma narrativa é também um artifício literário, referente à gramática ou à retórica para indicar o ponto de tensão do drama. Neste versículo é possivel observar esta construção através do seguinte esquema. T.a'_ ytixoåa] an"ß-yrIma. i %rEêWb[]b; yli-ä bj;yyI) ‘![;m;’l. `%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w> 13a Dize, pois, minha irmã tu, 13b Para que se faça o bem para mim por causa de ti, 13c E viverá minha alma por causa de ti. Portanto: AB %rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) Ser bom para mim corresponde a ter a vida preservada A‟B‟ %lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w Por três vezes (cf. vv. 12e, 13b e 13c) no discurso, a personagem Abrão transfere à Sarai a responsabilidade por sua vida ou por sua morte, o que intensifica a tensão do drama, gerando expectativas quanto ao seu desfecho. Após a análise estilística o estudo convida a prosseguir dando passos, uma vez que esta não se basta em si mesma. A análise estilística oferece elementos para a análise narrativa e teológica, pois os dados constatados na construção estilística e sobre tudo na beleza da criação do texto demanda mais comentários que reenvia ao aspecto narrativo, próximo passo a ser dado. 103 Cf. BULLINGER, E. W – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usados en la Bíblia, 1985, p. 292, 227; SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, 78; SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica, 2000, p. 163. 53 1.3 Análise narrativa Seguindo a divisão clássica de uma narrativa, no primeiro capítulo (cf. v.10-11d) o leitor se deteve no que se denomina exposição, introdução ou apresentação, a mesma foi feita pelo narrador. Este é onisciente, quer dizer dispõe de conhecimentos e informações inacessíveis a uma pessoa comum, ele sabe dos fatos, por isso os narra, mas também dá espaço para que falem e expressem o que sentem e pensam as personagens. Ele oferece dados importantes como a mudança de tempo, a entrada em cena da nova personagem Sarai, a informação de que ela é esposa dele, ou melhor, de Abrão o qual lhe dirige a palavra. Não se sabe quanto tempo o casal levou para chegar onde está, nem a que ponto se encontra, ou se têm companhia de alguém e se leva algo consigo. Não se diz nada a respeito do que conversaram durante o caminho até se aproximarem. Qual a reação de Sarai quando se vê na situação de descer ao Egito por causa da fome104. Neste segundo capítulo o leitor é convidado a seguir o que na divisão de uma narrativa se chamaria complicação. Na complicação age uma série de forças auxiliares e opositoras ao desejo da personagem, o que intensificam os conflitos. Segundo Gancho105, “não basta perceber que toda história tem começo, meio e fim. É necessário compreender o elemento estruturador das partes: o conflito”. O conflito pode ser qualquer componente da história (personagens, fatos, ambiente, idéias, emoções), que se opõe a outro, criando certa tensão que organiza os fatos e prende a atenção do leitor. O conflito se caracteriza pela tensão criada entre o desejo da personagem principal e determinada força opositora. Neste capítulo, portanto, o narrador passa a palavra à personagem, nota-se a passagem do discurso indireto para o discurso direto por meio do verbo rm;a' que aparece como um divisor de águas (cf. v.11d), introduzindo a fala da personagem Abrão (cf. vv. 11e-13c). 104 105 Cf. VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1982, p. 204. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 9. ed. São Paulo: Ática, 2006, p. 12-13. 54 yTi[.d:êy" an"å-hNEhi `T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi² hy"©h'w> ~yrIcê .Mih; ‘%t'ao WaÜr>yI-yKi( tazO= ATåv.ai Wrßm.a'w> ytiÞao Wgðr>h'w> `WY*x;y> %t"ïaow> T.a'_ ytixoåa] an"ß-yrIma. i %rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) ‘![;m;’l. `%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w> 11e “Eis que sei, 11f Que és mulher bela de aparência tu. 12a E acontecerá; 12b Quando virem a ti os egípcios, 12c Dirão, esta é mulher dele. 12d Matarão a mim 12e E a ti manterão viva. 13a Dize, pois, minha irmã tu, 13b Para que se faça o bem para mim por causa de ti, 13c E viverá minha alma por causa de ti”. Neste momento os conflitos106 são evidenciados. O primeiro pode ser identificado como um conflito de ordem psíquico-físico, a necessidade de entrar no Egito versus a beleza de Sarai, esta parece preocupar Abrão, o qual até o momento não havia dito nada à sua esposa, mas quando começa a falar se dirige a ela, fazendo-lhe um elogio cheio de tensão e expectativa. Porque Abrão fala justo isso a Sarai? Porque lhe confessa neste momento saber de sua beleza, que implicância pode ter a beleza de uma mulher casada? E que relevância tem a beleza diante de uma situação de fuga da fome, ou melhor, de busca de sobrevivência em terra estrangeira? Deste primeiro conflito se desencadeia uma série crescente de outros possíveis conflitos em forma de profecias que parece causar-lhe temor. A personagem expõe suas emoções em sua fala, o que de certo modo envolve o leitor e o faz identificar uma crescente de problemas gerados no discurso de Abrão, a ponto de estar entre a vida e a morte. Nota-se na fala de Abrão uma mudança temporal, introduzida pela conjunção yKi( que media a transição do perfeito yTi[.d:êy" sei, conheço para o imperfeito WaÜr>yI virem, assim como a mudança de primeira pessoa do singular para terceira pessoa do plural masculino. Em português o primeiro verbo foi traduzido no modo indicativo e o segundo no modo subjuntivo, identifica-se a mudança de tempo do presente indicativo para o futuro do subjuntivo. Segundo Todorov, “[...] As 106 Cf. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas, 2006, p. 13. 55 orações enunciadas no indicativo são percebidas como ações que aconteceram de fato; se o modo é diferente, é que a ação não se realizou, mas existe em potencial [...]”107. O discurso de Abrão foi se desdobrando gradativamente e apresentando uma cadeia de conflitos até chegar ao seu clímax. O clímax ocorre a partir do desenvolvimento de um conflito, imediatamente antes do desfecho. Este pode ser o momento mais perigoso para o herói, a crise mais eminente do protagonista, o mais delicado ponto do conflito, onde não se sabe para que lado a história penderá. O leitor encontra-se na expectativa para saber qual rumo, ou melhor, qual será o desfecho de todos esses conflitos que envolvem Abrão e Sarai. A alternância entre a terceira pessoa do plural masculino, a primeira do singular e a segunda do singular feminino revelam a tensão na narrativa. O uso dos verbos na terceira pessoa do plural masculino (cf. v. 11 WaÜr>Yi, Wrßm.a'w>, Wgðr>h'w>, WY*x;y>,) mostra o quanto a personagem se sente ameaçada. Por outro lado, o uso do sufixo na primeira pessoa do singular junto à preposição yliä-bj;yyI) leva o leitor a interpretar a intenção do patriarca em relação à sua autopreservação em detrimento do tu feminino como elemento central que sustenta o conteúdo da trama. É a presença feminina - T.a,' %rEêWb[]b, %lE)l'g>Bi - que desencadeia todos os acontecimentos, a forma sufixal no feminino demostra o foco da tensão na narração apontando com ênfase a pretenção de Abrão com relação à sua esposa, transferindo a ela a responsabilidade pela sua vida, tendo como eixo a temática da beleza e da esposa ou irmã. Tais questões geradoras de conflitos agem de tal modo que a verossimilhança 108 dos fatos desperta a curiosidade sob uma causa e esta vai desencadeando consequências que envolvem o leitor e o convida a prosseguir o caminho junto às personagens. Porém não se 107 TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 41. Cf. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas, 2006, p. 12; SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens. São Paulo: Loyola, 2005, p. 53-54. 108 56 pode pensar que tudo isso seja somente artifício literário, possivelmente há um fundo teológico sob o qual o leitor é convidado a voltar sua atenção. 2. Estudo histórico-teológico 2.1 A identidade de Sarai109 Sarai é a nova personagem introduzida nesta narrativa. As sagradas escrituras fornecem algumas informações que possibilitam conhecer melhor a personagem. As primeiras referências a Sarai se encontram no capítulo 11 do livro do Gênesis descrevendo-a (cf. Gn 11,29): a mulher de Abrão se chamava Sarai (cf. Gn 11,30); Sarai era estéril: não tinha filhos; é nora de Tare e esposa de Abrão (cf. Gn 11,31). Juntamente com seu esposo e família partiram de Ur dos caldeus à Canaã, mas interromperam a viagem e se fixaram em Harã. Quando Abrão tinha 75 anos, deixou a casa paterna para cumprir a aliança feita com Deus. Levando consigo Sarai e tudo o que tinha partiu para a terra de Canaã. Dez anos após a chegada na Terra prometida Sarai, não tendo dado a luz, deu sua serva Agar para que tivesse filho com seu esposo Abrão (cf. Gn 16). Aos noventa anos, por graça de Deus (cf. Gn 17-18), Sara deu à luz a Isaac (cf. Gn 21,1-7). Sarai, era 10 anos mais jovem que Abrão (cf. Gn 17,17), viveu até os 127 anos (cf. Gn 23,1), morreu em Cariat Arbe (cf. Hebrom Gn 23,2), na terra de Canaã e foi enterrada na gruta de Macpela de frente a Mambré, na terra de Canaã (cf. Gn 23,19), adquirida por Abrão dos filhos de Het (cf. Gn 23,16). 109 Cf. METZGER, Isabel Mackay. Sara. In: BRUCE M. METZEGER – MICHAEL D. COOGAN (Orgs.). Dicionário da Bíblia Vol.1: as pessoas e os lugares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda. 2002, p. 291; GOHEN, Gary G. yr"f'. In: DITAT, 1998, p. 1494; SCHÖKEL, Luis Alonso. yr"f'. In: DBHP, 2004, p. 649; CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004, p. 77-111; GRENZER, Matthias. Três visitantes. In: Revista de Cultura Teológica. 57 (2006) 14, p. 61-73. 57 Introduzida em Gn 11,29 Sarai, que traduzido para o português significa „minha princesa‟, é o nome da esposa de Abrão até o Gn 17,15, quando o Senhor muda para Sara „princesa‟. Deste modo diz-se que a partir de então Sara passou a ser a princesa não apenas de Abrão e de sua posteridade, mas de todas as famílias da terra110. O profeta Isaias, de certo modo, ilustra essa passagem do particular para o universal. Em referência explicita a Sarai Is 51,2 a apresenta como mãe, no sentido corporativo, de todos os que buscam YHWH. Segundo Suzana111, Gn 11,29 trata do matrimônio de Sarai, embora quase nada se fale de Sarai. Ela é apresentada na genealogia de Taré através da informação: “Abrão e Nacor se casaram: a mulher de Abrão se chamava Sarai; a mulher de Nacor se chamava Melca, filha de Arã, que era o Pai de Melca e de Jesca”. Note-se que a Sarai não foi atribuído ascendência, tal omissão é significativa. Antes de ser esposa de Abrão e nora de Taré, ela não tem identidade. Sarai é caracterizada por duas negações: 1) A omissão de sua ascendência, ou seja, sem referência de parentes e origens. 2) Sua inabilidade de produzir descendência112 (cf. Gn 11,30; 16,1). Portanto o status de Sarai dentro da estrutura familiar é indefinido. Sarai não se encaixa nos padrões estruturais da sociedade com relação à ascendência (passado) e descendência (futuro). A incapacidade de procriar problematiza sua posição social, por outro lado sua feminilidade é ressaltada pelo fator da beleza física (cf. v.11f), a ponto de comprometer sua vida e a de seu esposo, constituindo uma ameaça. Sua não identidade é relevante se examinada em relação às bases sociais de seu universo: descendência patrilinear, residência patrilocal e instituição do matrimônio. 110 Rashi comenta que o nome Sarai (yr"f') significa “minha princesa”, sugerindo que ela é uma princesa para mim, ou seja para Abrão, mas não para os outros. Agora (cf. Gn 17,15) Sara (hr'f') será o seu nome. A ausência de qualquer sufixo indica que ela será princesa para toda a humanidade. Cf. SEFER BERISHIT 2. O livro do Gênese: compilado e adaptado por Rabino Chaim Miller; tradução Miriam Pomerou. São Paulo: Maayanot, 2008, p. 95. 111 Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica, 2004, p. 22-23. 27.29. O casal é estéril no sentido de serem desprovidos de raízes (saíram da casa do pai, e do meio da parentela, são imigrantes) e de semente (não tem filhos). 112 Por outro lado a nota sobre a infertilidade de Sarai, já de início, deixa em suspense algumas questões: O narrador estaria antecipando um dado? Como pode saber que Sarai era estéril se ela apenas tinha se casado com Abrão? 58 2.2 Sarai esposa de Abrão113 A sociedade israelita antiga se fundamenta nas relações de parentesco, as pessoas são conhecidas pelo seu nome, caracterizado pela partícula de filiação !Be ou tB; mais o nome próprio do pai, nesta ordem a ascendência significa identidade. A mulher, uma vez casada, é designada pelo nome próprio mais a partícula de afiliação tv,aeÞ e o nome do marido (cf. Gn 11,31 ~r"äb.a; tv,aeÞ yr:äf'). Na sociedade patrilinear a ordem social é estabelecida na relação pai-filho. Neste sistema as mulheres dão à luz, mas não possuem descendentes. Toda a constituição, identificação, manutenção e legitimação das estruturas sociais são baseadas em linhas de parentesco. As filhas que se casam fora do clã, não são membro da linhagem da mesma forma que seus irmãos. Igualmente suas mães não são membros em sentido pleno da linhagem de seus maridos e filhos. O sistema de parentesco implica diretamente no status da mulher, visto que este é a soma de muitos elementos referentes a direitos, deveres, privilégios, opções e restrições que as mulheres de determinado grupo experimentam ao se deslocarem em progressão inevitável de grupos de idade e de papéis sociais. A imagem da mulher nas narrativas do Gênesis depende da posição que ocupa na família: filha, irmã, esposa, mãe, concubina, serva. Uma variante é a imagem da esposa estéril, esta qualidade neutraliza dois pressupostos fundantes da instituição do matrimônio patriarcal. 1) A aquisição, através do dote, do poder reprodutivo da noiva pelo futuro marido; 2) O papel da esposa de reproduzir a linhagem do marido; Oriunda de outra patrilinhagem, a mulher, será estrangeira na família de seu marido até que gere filhos. Sua integração se dá mediante a geração de filhos para esta linhagem, 113 Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica, 2004, p. 37-44; EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia: enfoque histórico sociológico. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 49-54; BARTOLINI, Elena Lea. Il ruolo della donna nell´ebraismo. In: Le donne nelle culture del mediterraneo: Religione, politica, libertà di pensiero. Milano: Associazione Culturale Mimesis, 2006, p. 23-46. Quaderni Nangeroni; BIANCHI, Francesco. La donna del tuo popolo: La proibizione dei matrimoni misti nella Bibbia e nel medio giudaismo. Roma: Città nuova, 2005, p. 15-34. 59 assim a maternidade implica aquisição de alguma segurança (em termos de herança, caso morra o marido), autoridade (dentro da família nuclear) e status (de mãe). A mulher é como o alicerce de uma construção que chega ao auge com a maternidade. Eis por que a omissão da ascendência e a esterilidade são características de Sarai, que lhe tocam diretamente na identidade e na promessa de Deus114. 2.3 Sarai mulher bela115 Abrão pela primeira vez na Bíblia dirige a palavra a Sarai, mulher dele, dizendo saber, conhecer sua beleza. O verbo utilizado tem uma abrangência vasta, pode expressar o conhecimento adquirido por meio dos sentidos, uma vez que paralelo ao ato cognoscitivo acontece sempre uma percepção sensorial, tal como ver ou ouvir. Todavia a expressão [d"y116 " vai além do conhecimento perceptivo, envolve o coração. Esse é a sede do aprofundamento da percepção e do processo de decisão. No coração os diversos conteúdos do conhecimento se concentram em uma visão da realidade. Nele são lançados os fundamentos para a fidelidade à aliança. O conhecimento é fruto de uma busca sistemática. Enquanto expressão de amor, o verbo conhecer denota também a relação sexual entre o marido e a mulher, podendo significar o desvelar da primeira noite e até mesmo o ato sexual. Neste sentido Abrão enquanto esposo de Sarai a conhece sob ângulos que ao leitor o verbo sugestiona não ser o simples saber de estética, mas se refere também à bondade e à fidelidade relacionada ao coração. Conforme Bartolini117, a afirmação de que „as filhas de Israel são belas‟, se fundamenta na antropologia hebraica, segundo a qual o homem e a mulher são compreendidos como criados a imagem de Deus, na unidade inseparável de corpo e espírito, no qual o 114 Cf. GRENZER, Matthias. Três visitantes. In: Revista de Cultura Teológica. 57 (2006) 14, p. 61-73. Nas páginas 64-66 o Prof. Matthias apresenta a situação da vida do casal, abordando primeiramente a posição de Sara, como mulher casada, todavia sem filhos. 115 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 175-191. 116 Cf. G.J. BOTTERWECK. [d"y". In: GLAT. Vol. III di IX. rmh-qry. Brescia: Paideia, 2003, p. 571-594. 117 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p.175. 60 coração é centro vital da pessoa, lugar original dos sentimentos, razão e vontade. Deste modo é difícil considerar a beleza feminina somente do ponto de vista exterior. Na tradição judaica a beleza de Sarai é reconhecida e exaltada118. A beleza de Sarai não é exclusiva, mas é inserida na convenção segundo a qual as matriarcas, não obstante a negatividade da esterilidade são mulheres amadas, preferidas e belas 119. Ao longo do texto se nota um elogio à beleza da matriarca (cf. vv. 11f, 14d, 15b). A beleza de Sarai não é descrita, mas exaltada. Na mesma linha de Chalier, Helena Bartolini120 diz que a beleza das matriarcas deve ser levada em consideração dentro do contexto em que a Tradição Hebraica considera a beleza feminina, para o qual „todas as filhas de Israel são belas‟. A autora121 reafirma que a beleza não se limita ao mero aspecto exterior, mas compreende todas as qualidades da mulher „santa‟ (cf. Pr 12,4) e fonte de „bênção‟ para o próprio marido. Partindo deste pressuposto, diz a autora, se compreende os comentários do midrash122, que se referem a Sarai como esplêndida „coroa‟ de Abrão e „princesa de todos‟. O livro dos Provérbios 12,4 diz: “A mulher forte é a coroa do marido”. Sarai é a coroa de Abrão porque sua descendência vem de Isaac (cf. Gn 21,12), por isso, Deus diz a Abrão para 118 Segundo Chalier, na tradição hebraica não existe uma única e vinculante interpretação da Bíblia: ao contrário, cada mestre pode avançar na própria leitura pessoal. Na medida em que encontrem no texto mesmo as justificações do que ele propõe. A autora lembra que uma das principais preocupações dos mestres foi sempre a de preencher as „lacunas‟ do texto, dando respostas ao não dito e ao não escrito. Sendo assim, entorno a cada figura bíblica nasceu uma longa série de interpretações na tentativa de penetrar no mais profundo possível da narrativa e desvendar seus eventuais segredos após ter interrogado o texto de modo atento e refinado. Por isso para tratar do tema das matriarcas ela se serve amplamente das tradições (midrashim, targumim, Rashi, Zohar...) lembrando um conjunto de conceitos importantes a propósito das modalidades seguidas no passado pelos mestres de Israel ao interpretar o texto sagrado. Cf. CHALIER, Catherine. Le matriarche: Sara, Rebecca, Rachele e Lea. Firenze: Giuntina, 2002, p. 19-23. 119 As Sagradas Escrituras proclamam a beleza das mulheres em Sarai (cf. Gn 12,11.14), Rebeca (cf. Gn 24,16; 26,7); Raquel (cf. Gn 29,17); Noemi (cf. Rt 1,20); Abigail (cf. 1Sm 25,3); Betsabéia (cf. 2Sm 11,2); Tamar, irmã de Absalão (cf. 2Sm 13,1); Tamar, filha de Absalão (cf. 2Sm 14,27); Ester (cf. Est 2,7); Sara, filha de Raguel (cf. Tb 6,12); Judite (cf. Jt 8,7); Susana (cf. Dn 13,2); as filhas de Jó (cf. Jó 42,15). Cf. GILCHRIST, Paul R. hp,y". In: DITAT, 1998, p. 641; BAUER, J.B. Beleza. In: BAUER. Dicionário bíblico – teológico. São Paulo: Loyola, 2000, p. 40-42. 120 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 175-184. 121 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 175. 122 O midrash é uma forma de interpretar o texto bíblico atualizando-o, inicialmente pertencia à tradição oral, posteriormente foi registrado por escrito. Cf. MALANGA, Eliana Branco. Bíblia hebraica como obra aberta. São Paulo: Humanitas-FAPESP, 2005, p. 207. 61 „fazer tudo o que Sara pedir‟(cf. Gn 21,12). Segundo Rashi123, Deus disse a Abrão para escutar a Sarai, porque ela era superior a ele em profecia. Sarai foi abençoada (cf. Gn 17,16) e visitada por Deus com especial providência (cf. Gn 21,1), devido a sua particular beleza revelada na fidelidade (cf. Gn 12 e 20), assim ela se tornou canal de bênção para toda a humanidade. Segundo Chalier124 Sarai é recordada como mulher de extraordinária beleza, mesmo em idade avançada. Tal beleza pode ser interpretada em chave metafórica. De fato, assim como é certo que o esplendor juvenil de cada criatura humana é designado a apagar-se, ou pelo menos atenuar-se, a perpétua beleza de Sarai é interpretada como uma metáfora da aliança que Deus fez com Israel: laço que nada, nunca, será em grau de destruir. Assim como a beleza de Sarai a aliança não está sujeita à ação do tempo, ela não é corruptível, permanece sempre, se conserva e é causa de estupor aos olhos humanos. É uma beleza que confunde os outros povos, bem como confunde Abrão no momento em que é forçado a migrar ao Egito para fugir da fome125. 2.4 Beleza, vida e morte A narrativa usa o adjetivo tp;y> para designar o aspecto belo, esta atenção à beleza não é uma novidade, também os filhos dos deuses escolhem as suas mulheres, ou seja, as filhas dos homens, segundo a sua beleza (cf. Gn 6,2). O narrador antigo não omite o fato de a beleza feminina fazer parte da história de decisões humanas desviadas (cf. Gn 6,1-4) até o ponto de tornar-se um perigo para a vida (cf. Gn 12,11-13), e até mesmo ser falaz (cf. Pr 11,22)126. 123 Cf. SEFER BERISHIT2. O livro do Gênese, 2008, p. 125. Cf. CHALIER, Catherine. Le matriarche, 2002, p. 27-33. 125 RASHI comenta este versículo dizendo que segundo a agadá, até o presente momento, Abrão não havia fixado o olhar em Sarai, por causa da castidade que reinava entre ambos, mas teve que fixá-la em função dos acontecimentos que se narram. Outra explicação é que habitualmente os esforços de uma viagem deixam as pessoas feias, mas para Sarai foi diferente sua beleza foi conservada. Outra explicação é que chegou a hora de preocupar-se com a beleza de Sarai, que sempre foi bela, mas agora estariam entrando num país onde as pessoas são feias e não estão habituados a ver uma mulher bonita. Cf. EL PENTATEUCO. El Pentateuco: Com el comentário de Rabí Sholomo Yitzjaki (RASHI). 2. ed. Buenos Aires: Editorial Yehuda, 1976, p. 50. Tais comentários se fazem compreender devido ao que o Egito representa para o povo da Aliança. Esse é lugar de escravidão e sofrimento, portanto é difícil contemplar ou vivenciar a beleza deste lugar. A verdadeira beleza vem da terra prometida e dos portadores da aliança. 126 Cf. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1975, p. 102-106. 124 62 A beleza tornou-se motivo de tensão contínua. Logo após o chamado divino a promessa parece ameaçada. Abrão e Sarai se vêem forçados a emigrar por causa da fome que pesava sobre a terra. Agora uma nova ameaça, a beleza da matriarca. Nestes versículos a tensão gira em torno ao „ver‟ dessa beleza (cf. vv. 11f, 12b, 14d)127. Embora o problema não é o fato de somente vê-la como mulher bela, e sim de vê-la como esposa dele (cf. v. 12c-12e). O temor de Abrão pode fundamentar-se na possibilidade de que quando um soberano se interessa por uma mulher casada, este pode encontrar estratégias para matar o marido a fim de possuir a mulher (cf. 2Sam 11,15-17). Este mesmo fato, todavia, não é único, mas se repete três vezes no Gênesis, ou seja, em Gn 20,2; 26,7 e 12,13128. 12,13 Dize, pois, minha irmã tu, para que se faça o bem para mim por causa de ti, e viverá minha alma por causa de ti. 20,2 Abraão disse a sua mulher Sara: “é minha irmã” e Abimelec, rei de Gerara, mandou buscar Sara. 26,7 Os homens do lugar interrogaram-no sobre sua mulher e ele respondeu: “é minha irmã”. T.a'_ ytixoåa] an"-ß yrIma. i %rEêWb[]b; yliä-bj;yyI) ‘![;m;’l. `%lE)l'g>Bi yviÞp.n: ht'îy>x'w> ~h'²r"b.a; rm,aYOõw: ATßv.ai hr"îf'-la, awhi_ ytixoåa] rr"êG> %l,m,ä ‘%l,m,’ybia] xl;ªv.YIw: `hr"(f'-ta, xQ:ßYIw: ‘~AqM'h; yveÛn>a; Wlúav] .YIw:) rm,aYOàw: ATêv.ail. awhi_ ytixoåa] Cada narrativa tem suas particularidades, por isso a atenção aqui é somente no que diz respeito ao fato de os patriarcas usarem a mesma estratégia em situações semelhantes e basicamente pelo memo motivo, ou seja, o temor da morte. Abrão desempenha de certo modo o papel de profeta. Usando os verbos no futuro profetiza sob a provável ação dos egípcios e busca precaver-se de proteção. O patriarca vê a própria vida ameaçada de todos os lados. A mesma situação se repete em Gn 20,11. Abrão é imigrante em Gerara e prevendo a sua morte procura conservar a sua vida expondo sua 127 128 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 70; VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis, 1982, p. 204. Para os textos citados usei a tradução da Bíblia de Jerusalém na versão em português de 1981. 63 esposa, mesmo assim é de Deus que sai a afirmação „ele é um profeta‟ Gn 20,7. A palavra profeta indica a idéia de porta-voz nomeado por Deus. A morte os rodeia. Se permanecer na terra pode morrer de fome e se emigra corre o risco de morrer nas mãos do Faraó. Ele teme „matarão a mim‟ (cf. v. 12d). Seu temor faz pensar na ordem do Faraó às parteiras, quando os hebreus estavam no Egito: “se for menino, matai-o. Se for menina, deixai-a viver” (Ex 1,16;22). Abrão se preocupa com a própria vida, mas coloca em risco a vida de Sarai129. Em „exílio‟, sob o jugo de potências „estrangeiras‟ a vida do profeta é ameaçada, não só a sua vida é ameaçada, mas também a aliança, o futuro da geração e de todo o povo130. Abrão e Sarai podem ser prefigurações da história do povo da aliança. História que começa com um casal, depois uma família, um clã, uma nação. Não é difícil acreditar na possibilidade de o povo reler a sua própria vida à luz da fé a partir da experiência do patriarca e da matriarca. Igualmente hoje também povo em mobilidade pode ter Abrão e Sarai como prefiguração de suas próprias experiências, que na busca por sobrevivência se vêem ameaçados pelas grandes potências. De fato os dados apontam aumento na migração feminina, e um fenômeno notável de exploração da mesma, através do tráfico e outras práticas de injustiça. A história se repete com as mais diversas personagens. CONSIDERAÇÕES Este segundo capítulo tem como título „Sarai mulher de bela aparência‟. Os versículos referentes a este capítulo são 12,11e-13d, estes foram estudados sob as duas perspectivas propostas, ou seja: estudo linguístico-literário e o estudo histórico-teológico. 129 CHOURAQUI, André. A Bíblia: no princípio (Gênesis). Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995, p. 135. Cf. MÜLLER, H. P. aybin". In: GLAT. Vol. V di IX. ~ym-rvn. Brescia: Paideia, 2005, p. 518; CULVER, Robert D. aybin". In: DITAT, 1998, p. 905-906. 130 64 Quanto ao estudo linguístico-literário, o texto foi analisado em sua estrutura morfológica, sintática e léxica, chegando à tradução proposta. Ao longo deste estudo nota-se características particulares destes versículos, tais como a alteração do tempo verbal, discorrendo entre passado, presente e futuro, bem como, entre o modo ativo e imperativo. Não só o tempo e o modo dos verbos são alternados, mas também as pessoas, a voz do patriarca perpassa entre a primeira pessoa do singular, segunda pessoa do singular feminina e terceira pessoa do plural masculino o que de certo modo revela a tensão contida na narrativa. Com relação à análise estilística se evidencia a figura de linguagem chamada gradação ou catábasis, bem como o paralelismo chiasmo antitético, o que contribui para confirmar o que foi dito referente ao caráter conflituoso deste trecho da narrativa. Tratando da análise narrativa os versículos estudados neste capítulo correspondem ao que a critica narrativa chama de complicação, de fato o patriarca e a matriarca vão tecendo e se envolvendo em uma série de conflitos que geram tensão e expectativas no leitor. Todas essas questões serviram para o passo sucessivo, ou seja, o estudo histórico-teológico. No estudo histórico-teológico ao aprofundar sobre a identidade de Sarai, nota-se que ela é uma pessoa sem passado e com futuro ameaçado, até então sua identidade é ser mulher de Abrão, todavia não totalmente integrada, pois tal integração se dá quando a mulher tem um filho e Sarai é estéril, mas nada é impossível para Deus, Ele pode „fazer da estéril mãe feliz‟ (cf. Sl 113,9). Neste texto é evidente a celebração da beleza da matriarca. Sua beleza não é descrita, mas sim exaltada, esta parece superar a das mulheres egípcias, despertando a atenção de Abrão, dos egípcios, dos oficiais do Faraó e do próprio Faraó, o qual a leva para seu harém. Todavia a beleza incorruptível e cobiçada de Sarai é também, em linguagem metafórica, expressão visível da eternidade da Aliança de Deus com Israel. Assim como a beleza de Sarai, também a Aliança tornou-se motivo de perseguição, dominação e morte para seus descendentes. 65 É interessante observar como o redator vai tecendo e interligando os fatos, primeiro Deus chama o casal, cujo futuro está comprometido devido à esterilidade da esposa, e a estes promete terra e descendência, mas o que encontram é fome na terra e perseguição por parte de seus hospedeiros, sendo assim parece improvável que a promessa divina tenha êxito. Como esta situação poderá ser revertida é o que será estudado no próximo capítulo. 66 CAPÍTULO III INTERVENÇÃO DO SENHOR POR CAUSA DE SARAI O narrador desempenha um papel fascinante nas histórias bíblicas, pois ele sabe combinar onisciência e discrição. Seu saber estende-se desde os primórdios do mundo. Relatando precisamente nos termos e ordens do Criador, até os pensamentos e sentimentos ocultos das personagens, o que ele tanto pode resumir como expor das mais diversas formas. O narrador sabe de todos os detalhes e por isso é confiável, às vezes escolhe surpreender o leitor, mas não induz ao erro131. Nesta perícope o trabalho do narrador é de recitar, ele não faz discursos e nem emite juízo sobre as personagens, parece garantir um saber abrangente compartilhado parcialmente com o leitor. Em seu modo de narrar demonstra um conhecimento integral e coerente, que é de Deus, expressando-se como um „delegado‟ divino confiável e anônimo. O leitor é convidado a continuar o caminho estudando progressivamente a perícope proposta. 131 ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 271-272. 67 1. Estudo linguístico-literário Gn12,14a-18b 1.1 Tradução e análise morfológico-sintático yhi§y>w: 14a E aconteceu; O narrador retoma a voz com o verbo hy"x', já analisado anteriormente. Nesta posição o verbo assume o valor de fórmula expletiva transicional, ou melhor, não mais para introduzir uma narrativa, mas indicando ao leitor que aqui há uma transição de tempo e de voz. De fato há uma passagem da voz da personagem para a voz do narrador sem que tal passagem tenha sido explicitamente anunciada. Sobre a palavra encontra-se um assento massorético disjuntivo denominado zaqef gadol 132 ¨ indicando uma pausa. hm'y>r"+c.mi ~r"Þb.a; aAbïK. 14b Após chegar Abrão ao Egito Este verbo awb, já analisado anteriormente (cf. v. 11c), corresponde a muitos significados em português, diferenciados segundo alguns critérios: entrar, meter-se; transpor; chegar, acercarse; ir, vir, voltar e outros 133. Foi dito que em sentido físico indica o movimento em relação a um referencial. Se, superado o referencial se diz entrar; a passagem do limite será transpor; tocá-lo é chegar; maior distância é acercar-se; sem definir distâncias é ir ou vir. No texto encontra-se como infinitivo construto134 qal aAbïK.' e assume a função de verbo que introduz uma oração subordinada adverbial temporal. Este infinitivo construto aparece com a preposição K.135, a qual somada a um verbo no infinitivo assume função temporal. Em 132 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. Cf. MARTENS, Elmer A. awb. In: DITAT, 1998, p. 155. 134 Cf. WALTKE, Bruce K – O´CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 604. 135 O infinitivo construto com a preposição K. pode ser traduzido como verbo de uma oração temporal, não contém em si a noção de tempo, este é adquirido no contexto. Cf. KELLEY, Page H. Hebraico bíblico, 1998, p. 82 e 217. 133 68 Gn 12,14b o contexto comunica a idéia de que se havia chegado, ou seja, tocado ou superado o ponto de referência136, deste modo foi traduzido para o português como após ou ao chegar137. Nome próprio ~r"Þb.a;, Abrão, sujeito da oração. O substantivo hm'y>r"+c.mi138 é um acusativo terminativo139, indicado pelo sufixo diretivo he locale h 140 ' , este refere-se ao lugar para onde alguém ou algo se dirige, resultando em português na preposição que indica o sentido para qual se dirige ou está Abrão, ou seja, ao Egito. Na análise sintática a expressão ao Egito é classificada como adjunto adverbial de lugar. Sob a palavra encontra-se um assento massorético atnah + 141 indicando que esta é a metade do versículo, encontra-se também um sinal massorético denominado circelus Ù com a seguinte indicação xOkO, o que significa que esta palavra aparece 28x no texto massorético 142. hV'êaih'ä-ta, ‘~yrIc.Mih; WaÜr>YIw: 14c Viram os egípcios a mulher, O verbo ha'r", traduzido em português por ver, ou viu. Este verbo estudado anteriormente (cf. v. 12b), aqui aparece no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino plural do qal WaÜr>YIw:, foi traduzido para o pretérito perfeito em português, viram. Este ‘~yrIcM. ih; é um substantivo, ou seja, um nome próprio no masculino plural acompanhado de artigo definido, traduz-se para o português como os egípcios. A palavra hV'êaih'-ä ta, tem o 136 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. awb. In: DBHP, 2004, p. 91. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. awb. In: DBHP, 2004, p. 304, nº5. 138 Cf. PLUMLEY, J. Martin. Egito. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da Bíblia Vol.1: as pessoas e os lugares. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2002, p. 66-69; HAMILTON, Victor P. my>r'c.mi. In: DITAT, 1998, p. 870-871. 139 Acusativo terminativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 21-23. 140 O acusativo no hebraico pode assumir várias funções adverbiais, equivalendo a um adjunto adverbial. O presente caso é um acusativo terminativo, que indica o local para onde alguém ou algo se dirige. Destaca-se ainda a presença do sufixo h ' denominado he-locale, esse é usado para indicar a direção de um verbo de movimento. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 21. 23-24. O he-locale pode ser acrescentado a substantivos comuns ou advérbios de lugar. Cf. KELLEY, Page H. Hebraico bíblico, 1998, p. 179-180; BARTELT, Andrew H., Gramática do hebraico bíblico, 2006, p. 124. 141 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 142 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 98 - 99. 137 69 indicador do objeto direto ta, o artigo definido h' e o nome feminino singular absoluto, foi traduzida para o português como a mulher. Quando o objeto de um verbo é um substantivo definido ou nome próprio, normalmente é precedido pelo indicador do objeto direto143. Sobre esta palavra encontra-se um sinal massorético disjuntivo chamado zaqef qaton 144 ë que indica pausa. No texto massorético encontra-se ainda um circelus Ù sobre a palavra ‘~yrIcM . ih; que reenvia à nota indicando rOwtb hOnm dO hO que, das cinco incidências desta palavra, quatro são constatadas na Torá145. `dao)m. awhiÞ hp'îy"-yKi( 14d Porque ela era muito linda. A conjunção yKi146entre outras, tem a função de introduzir uma oração explicativa. Esta é a segunda vez que este adjetivo hp'y"147 é usado (cf. v. 11f). Neste versículo está no feminino singular, traduzido no português como porque era bela; awhiÞ148 pronome pessoal terceira pessoa do feminino singular. Dentre outros a expressão dao)m.149 pode ser classificada como advérbio de intensidade, pois equivale a forma que acrescentam ênfase, grandeza, intensidade. No português pode ser traduzida por muito, ou transformada em morfema de superlativo (-íssima, -aço, -ão) lindíssima. O versículo termina com um sinal massorético sulluq `150 indicando seu fim. 143 Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 51, 63; KELLEY, Page H. Hebraico bíblico, 1998, p. 30, 100, 439. 144 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 145 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 98, 97, 102, 97. (cf. Gn 12,12; 12,14; 43,32; Dt 26,6 e Js 24,7). 146 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 139-143. 147 Cf. GILCHRIST, Paul R. hp'y". In: DITAT, 1998, p. 640-641. 148 Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332. Qerê perpetuum awh- ayhi; FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 118. 149 Cf. KAISER, Walter C. dao)m.. In: DITAT, 1998, p. 801. 150 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 70 h[oêr>p; yrEäf' ‘Ht'ao WaÜr>YIw: 15a Viram a ela os oficiais do Faraó, O v. 15 inicia com o verbo ha'r", que em português abrange o sentido de ver. Esta é a terceira vez que ele aparece nesta narrativa (cf. 12b, 14c e 15a). Segue a partícula ‘Ht'ao, composta pela partícula ta, mais sufixo da terceira pessoa do feminino singular, em português foi traduzida por a ela. O substantivo masculino plural construto yrEäf151 ' em português significa cacique, chefe, governante, oficial, comandante ou príncipe, oficiais do. O nome h[oêr>p;152 é título do rei do Egito. O nome Faraó neste versículo é repetido três vezes. Sobre o nome encontra-se um sinal massorético disjuntivo zaqef gaton 153 ë indicando uma pausa. h[o+r>P;-la, Ht'Þao Wlïl.h;(y>w: 15b Elogiaram a ela para o Faraó O verbo ll;h'154 no piel significa louvar, ponderar, admirar, elogiar, enaltecer, exaltar; no texto Wlïl.h;(y>w: ele está no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino plural do piel. Seguindo a lógica do tempo e do contexto, o verbo pode ser traduzido para o pretérito perfeito na língua portuguesa. Segue o indicador do objeto direto com sufixo da terceira feminina singular, sendo assim a tradução para o português pode ser louvaram-na, elogiaram a ela. Continua o texto h[o+r>P;-la,, a preposição -la,155 entre outros pode ter sentido de objeto indireto, assim como sentido direcional, como o verbo é transitivo direto consequentemente o sentido é direcional. Sob o nome h[o+r>P; encontra-se um sinal massorético disjuntivo atnah = 156 que indica a metade do versículo e pode introduzir uma pausa. 151 Cf. COHEN, Gary G. rf'. In: DITAT, 1998, p. 1493. Cf. HAMILTON, Victor P. h[oêr>p'. In: DITAT, 1998, p. 1239. 153 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 154 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ll;h'. DBHP, 2004, p. 180. 155 A preposição la, pode ter diversos sentidos. Dependendo do contexto pode ter sentido de objeto indireto, desvantagem, benefício ou vantagem, especificação, norma, direcional e sentido locativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 116. 156 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p.123. 152 71 `h[o)r>P; tyBeî hV'Þaih' xQ:ïTuw: 15c Levaram a mulher para a casa do Faraó O verbo xq;l' é polissêmico, tem o sentido de colher, tomar, agarrar, pegar, xQ:ïTuw: é um imperfeito consecutivo – terceira pessoa do feminino singular do qal passivo, segundo Allen157 “esta forma é forçosamente passiva por causa do padrão u + a, parece um hotfal, mas não é, restando ser qal passivo, que os massoretas só conseguiram representar com a vocalização desse tema”, foi traduzido para o português como e levaram (foi levada, foi tomada), segue o complemento do verbo hV'Þaih', cuja tradução em português pode ser a mulher. A palavra tyIB'158 abrange o sentido de casa, morada, habitação, domicílio. Seu significado vai depender do contexto, segundo os sujeitos que a habitam, sua função, suas qualidades: palácio, mansão, lar, oficina, sala, cárcere, harém, residência, pousada, albergue, mausoléu. Denota igualmente um espaço ou recinto no qual se contém algo, pelo qual se atravessa daqui, dentro, por dentro, interior, através de, além de, frasco, redoma, extensão, perímetro. Os que vivem ou o que há na casa: família, criadagem, vizinhança, corte, dinastia, abrangendo assim um sentido ampliado para designar grupos humanos, tribos, clãs, nações. O termo h[o)r>P; tyBeî é substantivo masculino singular construto, traduzido para o português como casa do Faraó159, este vem acompanhado de um sulluq `160 sinal massorético que indica o fim do versículo. Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W 16a E para Abrão foi feito o bem por causa dela, Como está escrito ~r"îb.a;l.W aparece somente neste texto. Quando o sujeito é colocado em primeiro lugar na frase a finalidade é evidenciá-lo como destaque. O nome é precedido pela 157 Cf. ROSS, Allen P. Gramática do hebraico bíblico para iniciantes, 2005, p. 332. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. tyIB. In: DBHP, 2004, p. 101-102. 159 Adjunto adnominal restritivo – genitivo locativo indica o local ou esfera em que algo ou alguém se situa. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 21. 160 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 158 72 conjunção W e a preposição l., esta preposição entre outros é utilizada para indicar o objeto indireto, como dativo, no sentido direcional, a tradução para o português pode ser e para Abrão. O verbo bj;y"161 no qal significa bem, bom, agradável, contente. Esta é a segunda vez (cf. v. 13b) que este verbo é usado nesta narrativa. No hifil significa alegrar, fazer o bem, portanto byjiÞyhe é um perfeito - terceira pessoa do masculino singular hifil, traduzido para o português com foi feito o bem. A partícula Hr"_Wb[]B;162 é uma preposição composta pelas preposições B.; e rWb[] mais sufixo da terceira pessoa do feminino singular, a tradução para o português pode ser por causa dela, o sinal massorético disjuntivo atna 163 = indica a metade do versículo introduzindo uma pausa. ~yrImê xo ]w: ‘rq'b'W-!aco AlÜ-yhiy>w:¥ txoêp'v.W ‘~ydIb'[]w: `~yLi(m;g>W tnOàtoa]w: 16b E teve para ele ovelha e gado e asnos, servos e criadas, Jumentas e camelos. Nesta construção AlÜ-yhiy>w: tem-se a conjunção w, o verbo hy"h' no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal mais a preposição l. com sufixo da terceira pessoa masculino singular, a tradução para o português pode ser e teve para ele. Segue uma cadeia de objeto direto: !aco164 substantivo feminino singular, pode ser rebanho (gado miúdo) de ovelhas ou cabras; ‘rq'b'W165 conjunção mais substantivo masculino singular traduzido no português por gado, rebanho; ~yrIêmox]w:166 conjunção mais nome masculino plural, traduzido no português por jumentos, burros, asnos. 161 Cf. GILCHRIST, Paul R. bj;y". In: DITAT, 1998, p. 612-613. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, p. 120-121. 163 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p.123. 164 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. !aco. In: DBHP, 2004, p. 553; HARTLEY, John E. !aco. In: DITAT, 1998, p. 1255-1256. 165 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. rq'B'. In: DBHP, 2004, p. 114; MARTENS, Allan A. rq'B'. In: DITAT, 1998, p. 208-209. 166 Cf. LIVINGSTON, G. Hebert. ~yrIêmox]. In: DITAT, 1998, p. 489. 162 73 Segue o narrador apresentando a sequência de objetos diretos, alternando entre os gêneros masculinos e femininos: ‘~ydIb'[]w:167conjunção mais nome masculino plural, traduzido no português por e servos; txoêp'v.W168 conjunção mais nome feminino plural, pode ser traduzida no português por e criadas; tnOàtoa]w:169 conjunção mais substantivo feminino plural, no português seria jumentas, mulas; `~yLi(m;g>W170 conjunção mais nome masculino plural, que corresponde no português a camelos. O sinal massorético sulluq `171 indica o fim do versículo. h[o±r>P;-ta, hw"ôhy> [G:‚ny: >w: ~yliÞdoG> ~y[iîg"n> At+yBe-ta,w `~r"(b.a; tv,aeî yr:Þf' rb:ïD>-l[; 17a E pesteou o Senhor ao Faraó Pestes Grandes e a casa dele; Por causa de Sarai mulher de Abrão. O verbo [g:n"172 no qal em português significa tocou, atingiu, feriu. O mesmo [G:‚n:y>w: imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular piel pode ser traduzido no português por pesteou. Nesta forma ~y[iîg"n>173 é substantivo masculino plural, traduzido no português por pestes, mais o ~yliÞdoG>174 adjetivo masculino plural, que pode também indicar intensidade, significando entre outros o sentido de grande, enorme, imponente, grandioso, gigantesco, magnífico, esplêndido, colossal; ilustre, admirável, importante, maior, sumo. As palavras rb:ïD>-l[; são preposição175 mais nome masculino singular. Na composição o significado de rb'D" é polissêmica e pode significar a palavra, seja o ato de falar, o enunciado 167 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. dIb,[,. In: DBHP, 2004, p. 474-475; KAISER, Walter C. dIb,[,. In: DITAT, 1998, p. 1067. Cf. AUSTEL, Hermann J. xp;v.. In: DITAT, 1998, p. 1601. 169 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. !Ata'. In: DBHP, 2004, p. 85; HAMILTON, Victor P. !Ata'. In: DITAT, 1998, p. 141-142. 170 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. lm'G". In: DBHP, 2004, p. 142; LEWIS, Jack P. lm'G.. In: DITAT, 1998, p. 275. 171 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 172 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. [g:n,. In: DBHP, 2004, p. 419; Gn 12,17; 2 Re 15,5; 2Cr 26,20. 173 Acusativo cognato: é o objeto direto que procede da mesma raiz do verbo cujo sentido complementa. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 23. 174 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. lÞdoG". In: DBHP, 2004, p. 130. 175 Esta preposição pode assumir vários sentidos, ou seja, locativo, adversativo, vantagem, conformativo, especificativo, causal, adjunto adverbial de companhia, e dativo. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 133-134. 168 74 ou o seu conteúdo, o assunto ou o tema. Também significa evento ou fato, ocasião, coisa, algo. No caso ela parece ter uma forma preposicional e adverbial, deste modo em português poderia ser traduzida como porque, por causa de, por que, por culpa de176. Nome próprio yr:Þf' acompanhado de tv,aeî feminino singular construto, também chamado de partícula de afiliação, traduzido no português por mulher de, pode ser analisado como complemento nominal, especificado pelo genitivo ~r"(b.a; nome próprio ou do proprietário, como adjunto adnominal restritivo. O sinal massorético sulluq `177indica o fim do versículo. ~r"êb.a;l. ‘h[or>p; ar"Ûq.YIw: 18a E chamou o Faraó a Abrão O verbo ar"q'178 abrange o significado de gritar, clamar, vozear, chamar, fazer vir. No texto ar"Ûq.YwI : está no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal, traduzido no português por e chamou. Segue o sujeito e o objeto direto ~r"êb.a;l. ‘h[or>p;, o Faraó a Abrão. O sinal massorético disjuntivo zaqef gadol ë indica pausa. rm,aYO¨w: 18b E disse: Como foi estudado (cf. v. 11d), a raiz rm;a'179 inclui o sentido de comunicar. Frequentemente é usado para indicar o início de um discurso. De fato, aqui o narrador se utiliza deste para introduzir o discurso de uma personagem, ou seja, o Faraó. Como foi visto este verbo tem um extenso campo semântico. Ele é duplamente transitivo, portanto, requer 176 Esta expressão é polissêmica. Seu significado primeiro é palavra, ou seja, o ato de falar, o enunciado ou seu conteúdo, significando deste modo tema ou assunto. Significa também a ação ou modo e o modo de fazê-la ou pô-la em prática, conduta; e seu conteúdo ou a tarefa. Significa, além disso, fato, evento; e sua causa: ocasião, condição, coisa, algo. Com preposições forma expressões preposicionais ou adverbiais, por, porque, por causa de. Cf. SCHOKEL, Luis Alonso. rb:ïD>. In: DBHP, 2004, p. 148-149. 177 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. 178 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. ar'q.' In: DBHP, 2004, p. 588. 179 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. rm;a' In: DBHP, 2004, p.64-65; S. Wagner. rm;a' In: GLAT. Vol. I di IX. ba-hlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 707-713. 75 complemento direto e indireto, pois quem diz, diz alguma coisa a alguém. Por isso rm;a' anuncia e marca o início de um discurso, seja este direto ou indireto, e este discurso representa o objeto do verbo, correspondendo aqui à voz do Faraó. Nesta narrativa, pela segunda vez (cf. vv. 11d e 18b), o verbo rm;a' aparece como ‘rm,aYO’w: imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal sendo traduzido no pretérito perfeito do português, portanto disse. Este verbo é acentuado por um zaqef qatan ë180, que tem função disjuntiva. Como será introduzido um discurso direto utilizam-se dois pontos. O discurso do narrador neste momento introduz a fala da personagem Faraó, que será estudada no próximo capítulo. A Palavra de Deus, comunicada através das palavras dos homens, passa também através da riqueza de um texto literariamente belo e artisticamente trabalhado. Apreciar a beleza da escritura é um modo importante para descobrir, ao mesmo tempo, um aspecto da beleza da face de Deus. A Palavra de Deus não ignora a realidade da beleza, ela mesma é um trabalho estético, isto transparece nos textos do AT, nos quais é possível estudar e apreciar a beleza da narrativa hebraica 181. 1.2 Análise estilística A Constituição Apostólica Dei verbum diz que “para a composição dos Livros Sagrados, Deus escolheu e se serviu de homens no possesso de suas faculdades e capacidades”182, portanto, o leitor ou intérprete da Bíblia sabe que nas Escrituras, a Palavra de Deus se comunica através da linguagem dos homens, pois a forma literária do texto não se separa de seu conteúdo. 180 Cf. FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia hebraica, 2003, p. 123. Cf. MAZZINGHI, Lucca. L´estetica della parola: l´arte narrativa e poetica nell´Antico Testamento. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 79. 182 CONCILIO VATICANO II. Constituição dogmática Dei Verbum, 18 de novembro de 1965. In: AAS 58 (1966), 817-836, nº 11. 181 76 O redator sacro utilizou uma forma literária artística para comunicar a mensagem. Ele se serviu da arte narrativa e poética própria de seu tempo para oferecer aos ouvintes um texto que fosse belo e fascinante, embora este seja um elemento que, não raramente, passa despercebido aos olhos dos leitores das Sagradas Escrituras. A análise estilística procura fazer referência à beleza, ou seja, à dimensão estética da Escritura, pois a Palavra de Deus revelada a Israel, através de sua beleza, desvela um aspecto da beleza da face divina, o que é possível notar também nas narrativas bíblicas 183. Nos versículos em estudo tem-se a fala do narrador e nesta é possível colher alguns detalhes de sua construção estilística. O leitor se depara com um tipo de discurso belo e envolvente pela sua construção, que o conduz na expectativa de um clímax. A esta figura de linguagem se dá o nome de anábasis184, subida ou gradação. Esta figura caracteriza o escrito quando o discurso vai aumentando sua força ou sua ênfase, a observar nos verbos. xQ:ïTuw: Wlïl.h;(y>w: WaÜr>YIw: Viram 14c WaÜr>YIw: Levaram 15c Elogiaram 15b Viram 15a Além da gradação é possível verificar paralelismos, por exemplo, entre os versículos 14c e 15a: verbo-sujeito-objeto – verbo-objeto-sujeito. Este é denominado paralelismo composto185, mais especificamente do tipo sinonímico alternante. Alternante é a forma de paralelismo composto, quando as orações aparecem alternando-se de forma que a primeira e a terceira oração podem ser lidas de forma continua, enquanto a oração intermediária vem a ser uma espécie de parêntesis. 183 Cf. MAZZINGHI, Lucca. L´estetica della parola: l´arte narrativa e poetica nell´Antico Testamento. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 80-81. 184 Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia. Rerrassa: CLIE, 1985, p. 359-360. 185 Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia., 1985, p. 293. 77 No caso presente a oração que alterna é uma oração explicativa e sendo assim possui de fato o caráter de parêntesis. Nota-se que o sujeito e o objeto invertem os lugares dentro da construção formando um quiasma. 14c - hV’êaih-’ä ta, 14d - (`dao)m. 15 a - h[oêr>p; ‘~yrIc.Mih; WaÜr>YIw: Viram os egípcios a mulher awhiÞ hp'’îy"-yKi( yrEäf' ‘Ht'ao ABC Por que ela era muito bela.) WaÜr>YIw: Viram a ela os oficiais do Faraó A‟C‟B‟ Este modelo de construção estilística serve para enfatizar. Deste modo fica claro que o que está em questão neste momento é o modo de ver dos egípcios a Sarai. O modo no qual Sarai é vista soa como espantoso e ameaçador para o patriarca e sua esposa, bem como para os leitores. É interessante notar que a oração explicativa põe em evidência uma das questões centrais da narrativa, ou seja, a beleza de Sarai. Na construção do v. 15 é possível identificar, além da gradação como foi comentado, o paralelismo sinonímico de tipo reto em que os signos equivalentes se encontram na mesma ordem: verbo - objeto - sujeito (elíptico) - complemento, nas três sequências. 15a h[oêr>p; yrEäf' ‘Ht'ao WaÜr>YIw: D 15b h[o+r>P; C la, D‟ 15c h[o)r>P; D‟‟ B Ht'Þao C‟ tyBeî B‟ B‟‟ a ela os oficiais do Faraó A Wlïl.h;(y>w: - Elogiaram a ela para o Faraó A‟ hV'Þaih' xQ:ïTuw: C‟‟ - Viram A‟‟ - Levaram a mulher p/casa do Faraó. 78 Neste versículo 15 observa-se que o nome h[o)r>P; Faraó se repete por três vezes sempre no fim de cada frase. A este tipo de construção linguística ou figura de linguagem, dá-se o nome de epístrofe186. A epístrofe é a repetição de uma mesma palavra ou expressão ao fim de sucessivas frases ou cláusulas. Repetem-se também as referências a Sarai no meio da frase e o verbo na terceira pessoa do plural. Parece que a intenção do narrador é impressionar o leitor criando certa perspectiva com referência à tensão entre Sarai e o Faraó, e seus subalternos, indicando que ela está sendo ameaçada pela imponência e potência desta personagem. No v. 16 é possível ressaltar a figura de linguagem chamada enumeração187. Esta consiste na enumeração das partes v.16b - (`~yLi(m;g>W tnOàtoa]w: txoêp'v.W ‘~ydIb'[]w: ~yrIêmox]w: ‘rq'b'W-!aco AlÜ- yhiy>w:¥) “e teve para ele carneiro e gado e asnos e servos e criadas e jumentas e camelos” - de um todo já mencionado previamente v.16a - (Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W) “e para Abrão foi feito o bem por causa dela” - os termos da enumeração não são sinônimos, podem ser de muitas classes e formas. O objetivo desta figura é enriquecer um discurso, ou parte deste, mediante a enumeração de detalhes. O v. 17 apresenta uma mudança de foco, introduzindo a ação de uma nova personagem hwôhy>, o Senhor, portanto os fatos passam do plano natural para o plano celestial, neste ponto a narrativa atinge também o seu clímax. Este tipo de clímax pode também ser denominado anagoge. A anagoge se dá quando a gradação não é um mero aumento de veemência ou ênfase, mas conduz o leitor a passar do plano das coisas terrestres para o plano das coisas celestes, de coisas mundanas para coisas espirituais. Veja que a voz do narrador introduz a ação do Senhor h[o±r>P;-ta, hwôhy> [G:‚n:y>w:. 186 187 Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 216-217. Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 366. 79 Neste mesmo versículo verifica-se outra figura de linguagem denominada poliptoto188. A característica desta figura é a repetição da mesma palavra com diferentes flexões. Neste estudo especificamente se identifica a repetição de um verbo com seu substantivo a fim: e feriu ([G:‚n:y>w:) feridas (~y[iîgn.). No estudo da tradução e análise gramatical foi dito que este é um acusativo cognato e não um simples pleonasmo. A análise estilística o considera como poliptoto, figura utilizada para dar ênfase a uma expressão. Sendo assim a expressão “Feriu o Senhor ao Faraó, com feridas grandes” dispensaria o acréscimo do adjetivo ~yliÞdoG>, deste modo o emprego do adjetivo remete a uma outra figura de ênfase chamada de pleonasmo. O leitor entende que de fato a ação de Deus foi de uma força intensa. O estudo estilístico revelou na construção da fala do narrador a presença de figuras de linguagem carregadas de intensividade e ênfase, tal como repetição. Segundo Alter: [...] um instrumento estrutural [...] poderoso na prosa bíblica é a repetição. A repetição é usada em praticamente todo o nível da hierarquia que o texto constitui, desde sons, palavras e cláusulas das histórias e grupos de histórias. Raramente é aplicada de forma mecânica ou não artística, e usualmente, retrata variações engenhosas [...] pelo instrumento da repetição, o Gênesis está também repleto de paralelismos em vários níveis [...]189. Entre essas linhas foi possível notar que a narrativa bíblica não é uma historinha ingênua e sem preocupação estética, mas possui uma beleza literária, esperando ser descoberta. O exame das palavras, das ações, dos diálogos, das estruturas narrativas de uma história bíblica revela um mundo complexo povoado de figuras humanas vivas e livres, uma história que cada ouvinte é convidado a viver. A beleza literária da narrativa não é um acessório que o leitor pode ignorar, ela é um convite a prosseguir colhendo a riqueza que tal narrativa tem a revelar. 188 Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bíblica, 2000, p. 157; BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia,1985, p. 242. 189 FOKKELMAN, J.P. Genesis. In: ALTER, Robert Edmond – KERMODE, Frank (org). Guia literário da Bíblia. São Paulo: UNESP, 1997, p. 61. 80 1.3 Análise narrativa A exegese narrativa valoriza a narrativa bíblica e a sua dimensão estética. A narrativa bíblica é um convite ao leitor para entrar ao interno do fato narrado. Ela envolve quem a escuta provocando-o e impulsionando-o a reviver a história, portanto propõe-se a leitura e visualização do trecho em estudo a fim de facilitar a análise do mesmo, enquanto parte de um todo. Yhi§y>w: hm'’y>r+cm. i ~rÞb.a; aAbïK. hV’êaih’ä-ta, ‘~yrIc.Mih; WaÜr>Yiw: `dao)m. awhiÞ hp'’îy"-yKi( h[oêr>p; yrEäf' ‘Ht'ao WaÜr>YIw: h[o+r>P;-la, Ht'Þao Wlïl.h;(y>w: `h[o)r>P; tyBeî hV'Þaih' xQ:ïTuw: Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W ~yrImê xo ]w: ‘rq'b'W-!aco AlÜ-yhiy>w:¥ txoêp'v.W ‘~ydIb'[]w: `~yLi(m;g>W tnOàtoa]w: h[o±r>P;-ta, hwôhy> [G:‚ny: >w: ~yliÞdoG> ~y[iîgn> At+yBe-ta,w> `~r(b.a; tv,aeî yr:Þf’ rb:ïD>-l[; ~rêb.a;l. ‘h[or>p; arÛq.YIw: rm,aYO¨w: 14a E aconteceu; 14b Após chegar Abrão ao Egito, 14c Viram os egípcios a mulher, 14d Por que ela era muito bela. 15a Viram a ela oficiais do Faraó, 15b Elogiaram a ela para o Faraó, 15c Levaram a mulher para a casa do Faraó. 16a E para Abrão foi feito o bem por causa dela 16b E teve para ele ovelha e gado e asnos, servos e criadas, Jumentas e camelos. 17 a Feriu o SENHOR ao Faraó Com feridas grandes E a casa dele; Por causa de Sarai mulher de Abrão. 18a Chamou o Faraó a Abrão, 18b E disse: Para a exegese narrativa o texto não é somente um documento do passado, imutável, a ser estudado com critério exclusivamente histórico – crítico, nem um universo fechado em si mesmo alheio a qualquer realidade histórica. Cada narrativa, e a narrativa bíblica não é exceção, 81 é um evento que se desvela quando „lido‟ ou „escutado‟, um espelho 190 no qual é possível reencontrar, junto ao passado, também o próprio presente e construir um futuro novo 191. Nos capítulos anteriores foram estudadas as partes constitutivas da narrativa denominadas introdução (cf. Capítulo I) e complicação (cf. Capítulo II). Agora o leitor é convidado a voltar sua atenção ao que a análise narrativa denomina clímax192. O clímax é o momento chave, dinâmico e emocionante da narrativa. É o momento mais perigoso do herói, a crise mais eminente do protagonista, o mais delicado ponto do conflito, onde não se sabe para que lado a história tenderá. Esta cena é caracterizada por significativas tensões, tais como mudança de tempo, de foco e presença de novas personagens: os egípcios, os oficiais do faraó, o Faraó e o Senhor. Neste terceiro capítulo o narrador retoma a voz e conduz a narrativa dando como indicador de mudança de voz e de tempo os verbos Yhi§y>w: e aAbïK. Ele fala em terceira pessoa. Descrevendo os fatos da trama, em alguns momentos oferece detalhes v.16, em outros os omite. O narrador 193a primeira vista parece neutro, ou seja, ele diretamente não aponta quem está certo ou errado, quem é bom ou quem é mau, parece não tomar partido. Todavia ele faz uso de técnicas linguísticas, tais como a repetição, o paralelismo e assonâncias, o que produz no leitor determinada expectativa, bem como juízo quanto à ação das personagens visadas194. O tempo narrativo e o tempo narrado são desproporcionais. O tempo da narrativa ganha um ritmo acelerado. Nestes versículos o tempo da narrativa não permite ao leitor ter a „ilusão‟ de que a narrativa se desenrola em „tempo real‟. O narrador não explicita como se dá a interação entre as personagens (Abrão e Sarai) ou grupos de personagens (egípcios, os oficiais do faraó, e Faraó) com sua carga de motivações, objetivos, traços de personalidades, 190 Cf. PONTIFICIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da bíblia na Igreja (15 de abril de 1993). 8. ed. São Paulo: Paulinas, 2009, nº 52. 191 Cf. MAZZINGHI, Lucca. L´estetica della parola: l´arte narrativa e poetica nell´Antico Testamento. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 81-82. 192 Cf. MOISÉS, Massaud. Clímax. In: Dicionário de termos literário. 12. ed. São Paulo: Cutrix, 2004, p. 78. 193 Cf. GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas, 2006, p. 30-33. 194 Cf. MOISÉS, Massaud. A análise literária, 2003, p. 114. 82 condicionamentos políticos, sociais ou religiosos, e significados morais e teológicos 195. Portanto, o narrador faz um salto no tempo por meio de um sumário, assim a narrativa salta de uma ação a outra, até o momento determinante da intervenção do Senhor196. De fato tudo o que Abrão havia previsto acontece197 (cf. vv. 12 e 14-16). Os egípcios vêem a beleza exuberante de Sarai (cf. v. 14), e não só eles, mas também os oficiais do Faraó a vêem e se entusiasmam a ponto de louvá-la diante do Faraó. Este de sua parte a toma em sua casa (cf. v. 15). O verbo usado para dizer que Sarai „foi levada‟ é o verbo xQ:ïTuw: que significa tomar, apanhar. Este verbo xQ:ïTuw: é empregado para diferentes procedimentos relacionados ao casamento, no sentido de „tomar uma mulher‟. Como exemplo Gn 16,3 diz que: “[...] sua mulher Sarai, tomou (xQ:ïTiw:) Agar, a egípcia, sua serva, e deu-a como mulher a seu marido, Abrão”. Outro exemplo se encontra em Gn 30,9: “Lia, vendo que tinha deixado de ter filhos, tomou (xQ:ïTwi ): sua serva Zelfa e deu por mulher a Jacó”; e em 2Sm 12,10: “tomaste (xQ:ïTiw:) a mulher de Urias, o heteu, para que ela se tornasse sua mulher”. Todavia o narrador não diz nada se o Faraó chegou a ter qualquer tipo de relação com Sarai198. Abrão havia pedido a Sarai para dizer que era sua irmã (cf. v. 13ab), mas em toda a narrativa não consta, em momento algum, que ela tenha dito qualquer palavra. Nos vv. 14-16 nem seu nome é mencionado, refere-se a Sarai como, „a mulher‟ ou „ela‟. Sua presença como personagem parece passiva, os movimentos do texto é que fazem dela, de sua beleza e de seu matrimônio parte da centralidade de toda a problemática. Contudo parece que Abrão teve a sua parte, foi bem recompensado, por causa dela ele teve muitos bens, segue uma lista de presentes (cf. v. 16)199. 195 Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p.102. Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p. 120. 197 Cf. VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis, 1982, p. 204. 198 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72. 199 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72. 196 83 Mas o Senhor intervém por causa de Sarai200, e o narrador faz questão de detalhar pela segunda vez (cf. vv. 11d e 17), a mulher de Abrão. Neste momento a narrativa faz um contorno surpreendente. Uma nova personagem aparece repentinamente na história. Em toda a narrativa esta é a única vez em que o Senhor é citado. O uso de artifícios literários, tal como poliptoto seguido do adjetivo de intensidade, faz o leitor intuir que Ele age com grande poder. O Senhor é mais poderoso do que qualquer soberano e mais potente do que todos os deuses estrangeiros. Ele feriu o Faraó e sua casa. A raiz usada para dizer que o Senhor feriu o Faraó. é a mesma usada em situações semelhantes, como em Ex 11,1201: “O senhor disse a Moisés: Farei vir mais uma praga ([g:n<) ainda contra o Faraó e contra o Egito, então ele vos deixará partir daqui[...]”. O narrador nada diz com relação ao tipo de feridas que atingiram ao Faraó e sua casa. O verbo usado é traduzido outras vezes por lepra, pragas, feridas. Na cena paralela de Gn 20 fica claro que a punição do Senhor ao soberano foi o fechamento do útero, Gn 20,17 “[...] O Senhor curou Abimelec, sua mulher e seus servos, a fim de que pudessem ter filhos [...]”, também no livro do Êxodo se refere à morte dos primogênitos. As „pragas‟, ~y[iîgn>, ou „feridas‟ que atormentam o Faraó e sua casa parecem convencêlo de ter cometido um ato proibido, mesmo não sabendo qual. O relato não responde como o Faraó relacionou a sua enfermidade à presença de Sarai. Tais detalhes parecem supérfluos diante da intervenção de Deus. Chouraqui202 em seu comentário diz que estas são as primeiras „pragas‟ do Egito, o pré-anúncio da vitória de Israel. Esta aventura se torna mais notável em 200 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72-73. A nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém diz que, os últimos versículos do capítulo 10 concluem com a história das nove pragas, que pertencem à tradição do Êxodo-fuga (cf. Ex 7,8+). A história da décima praga que começa aqui apresenta o Êxodo como expulsão. As duas concepções são inconciliáveis se tratar do mesmo grupo. Mas e ambas podem ser justificadas em se tratando de grupos diferentes. A tradição do Êxodo-fuga refere-se ao grupo de Moisés, que será perseguido pelos egípcios e será beneficiado pelos milagres do mar. O Êxodo-expulsão refere-se a um grupo semelhante, que teria sido expulso antes (cf. Ex 13,17+). 202 CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 138. 201 84 confronto com o episódio paralelo (cf. Gn 20,2) onde os reis: Faraó e Abimelec parecem inocentes do que são punidos, pois a responsabilidade deveria ser de Abrão e Sarai. O texto parece jogar com as personagens, inicialmente quem cria o problema é um fator natural, a fome, depois o problema se torna a beleza de Sarai, mulher casada. O patriarca tenta escapar do perigo criando uma situação no mínimo constrangedora para sua esposa. O Faraó, que não sabe de nada do que foi tramado, é ferido e se torna culpado. Pode se perguntar, quem é vítima e quem é culpado? A gravidade deste relato é compreendida pelo que antecedeu em Gn 12,1-3, não é somente um casal que está em risco, mas a promessa do Senhor a Abrão, por isso o Senhor a conserva, salvando Abrão e Sarai independente das ações humanas. Enfim o narrador parece propor ao leitor a passagem de uma leitura sob a ótica dos fatos conduzidos pelo humano para uma leitura onde a história é conduzida por Deus. Israel sempre teve presente a ação salvífica do Senhor, deste modo nota-se como a análise literária não se fecha em si mesma, mas é uma chave para o estudo teológico. 2. Estudo histórico- teológico 2.1 O Egito para Israel 203 O nome hebraico para „Egito‟, ~yIr;cm . i, se encontra na tábua dos povos, entre os filhos de Cam junto a kush (a Núbia), Put (a Líbia) e Canaan (cf. Gn 10,6). Segundo alguns teólogos a tábua dos povos reflete os grupos históricos e a situação política da época pré-israelitica. Os irmãos de ~yIr;cm . i representariam territórios que dependem do Egito. 203 Não é nosso intuito exaurir o comentário sobre o Êxodo ou o Egito, mas somente colher dados que justifiquem a imagem que Israel formou do Egito ao longo de sua experiência, para justificar a ênfase dada a este país, ao seu povo e ao seu soberano dentro da narrativa em estudo. Cf. BLANCO, José Ignácio. O povo de Israel. In: ARAGÜÉS, J. Alegre – FLECHA, J.R. – SCHÖKEL, Alonso (et al.). Personagens do Antigo do Testamento. Vol I. São Paulo: Loyola, 2002, p. 12-20; CRAGHAN, John F. Êxodo. In: BERGANT, Dianne, CSA – KARRIS, Robert J., OFM (org.). Comentário bíblico. Vol I. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 91-104; RINGGREN, H. ~yIr;c.mi. In: GLAT. Vol. V di IX. ~ym-rvn. Brescia: Paideia, 2005, p. 299-213. 85 No imaginário (na tradição, na crença, na experiência) do antigo Israel, conforme as Sagradas Escrituras, o Egito é considerado casa da escravidão 204 (~ydIêb'[] tyBeämi ‘~yIr:’cM . imi) da qual Israel é libertado. Os Israelitas sofreram duras opressões, suas crianças foram assassinadas, seus filhos submetidos ao trabalho escravo e forçado, o povo foi oprimido pelo Faraó e seus subalternos. Além do mais, os egípcios são um povo estrangeiro e de língua incompreensível (cf. Sl 114,1; Is 33,19; Jer 5,15; Dt 28,49). Por outro lado, o Egito é uma terra rica e fértil, lugar ideal para refugiar-se em tempo de seca e carestia (cf. Gn 12,10; 42,1ss; 43,1s). A narração do lamento do povo no deserto apresenta o Egito como o país no qual era possível comer e saciar-se: “quando estávamos sentados junto às panelas de carne e comíamos pão com fartura” (Ex 16,3), “Lembremo-nos dos peixes que comíamos de graça no Egito, dos pepinos, dos melões, das verduras, das cebolas e dos alhos” (Nm 11,5). O Egito também é visto como uma terra que adorava outros deuses e não o Deus único. Narra-se que Salomão, por razões políticas, se casou com uma das filhas do Faraó e construiu uma casa para ela (cf. 1Rs 3,1; 7,8; 9,16.24). A propósito das esposas estrangeiras do rei 1Rs 11,4 diz que “quando ficou velho, suas mulheres desviaram seu coração para outros deuses e seu coração não foi mais todo do Senhor, seu Deus, como fora o de Davi, seu pai”. O texto deixa supor que Salomão tenha adotado também deuses egípcios. O livro da Sabedoria, nos capítulos 13-15, trata do problema da idolatria em geral e da zoolatria egípcia em particular. Na história de José e na narração das pragas os videntes ( h'ym,_k'x]) dos egípcios são referidos como adivinhos e magos, portanto a terra do Egito era vista também como terra profana e idólatra (cf. Gn 41,8). 204 Cf. “casa de escravidão” (~ydIêb'[] tyBeämi) Ex. 13,3; 20,2; Dt 5,6; 6,12; 7,8; 8,14; 13,6.11; Jz. 6,8; Jr. 34,13; Mq. 6,4; GUNNEWEG, Antonius H. J. Teologia bíblica do Antigo Testamento. São Paulo: Ed. Teológica - Edições Loyola, 2005, p. 92. 86 Ao longo dos registros Bíblicos, nota-se que entre os dois países vizinhos, o Egito e Canaã, desenvolveram-se relações de diferentes naturezas. A história de José e a narração da migração das famílias de Jacó para o Egito refletem eventos que podem não ter acontecido historicamente, mas pelo fato de serem considerados típicos, não podem ser eliminados como não históricos205. Dois grandes complexos narrativos do AT têm como palco o Egito: a história de José (cf. Gn 37-50) e a história do Êxodo (cf. Ex 1-15). A história de José liga a história dos patriarcas à narrativa do êxodo, pois explica como e porque os Israelitas chegaram ao Egito. A libertação de Israel do Egito ocupa um amplo espaço na tradição de Israel enquanto ato fundamental da eleição. A narrativa do êxodo em sentido estreito é precedida pelo relato das „pragas do Egito‟ (cf. Ex 7,8-10,29). A historia é apresentada como uma luta que opõe Moisés e Aarão, chefes dos hebreus, ao Faraó com os seus magos, ou, em perspectiva teológica, YHWH aos deuses do Egito. Desta luta sai um vencedor, YHWH, somente depois da décima praga, o extermínio dos primogênitos do Egito. O Salmo 80,9 apresenta uma imagem sugestiva: “Israel é uma vinha que YHWH tirou do Egito para transplantá-la em Canaã”. Outra imagem é a de Os 11,1: “Israel é o filho de YHWH que Deus chamou do Egito”. O Egito foi lugar de transição, de fartura, de passagem de Israel, lugar de escravidão, de contato com uma nação politeísta, mas também, foi o palco da eleição e manifestação do amor do Senhor, que libertou, conduziu e formou o seu povo. Nestas linhas é possível se aproximar do que está por traz de todo o suspense gerado em torno da descida de Abrão e Sarai ao Egito. Mas o leitor pode continuar a interrogar-se, pois não só o nome Egito se repete como um refrão durante a narrativa, mas também o nome Faraó é invocado diversas vezes. A tônica em que é invocado leva a crer que esta seja uma figura soberana e imponente. Ao ler a narrativa, perguntas como: por que Abrão teme entrar 205 Cf. SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens, 2005, p. 53-54. 87 em terra estrangeira? Por que pede a Sarai para dizer que é sua irmã e a entrega ao soberano? Por que um soberano tomaria uma mulher estrangeira, se ele poderia ter todas as mulheres que desejasse em seu harém? Para compreender tais indagações é interessante conhecer quem é essa nova personagem, o que ela significa. 2.2 O Faraó206 No Egito dos faraós207, o Faraó era o responsável de manter a unidade do Estado. Ele deveria ser uma pessoa de pulso forte e de grande prestigio. O Faraó não era, e não podia ser um símbolo ornamental, mas um homem de capacidades excepcionais. Era educado pelos melhores mestres e nobres, os quais podiam chegar a fazer parte da grande família da corte, através do matrimônio de uma de suas irmãs com o Faraó 208. O governo dos faraós era essencialmente teocrático. O Faraó era tido como um deus209, „o bom deus‟, a encarnação de Horus210 triunfante sobre os inimigos. Ele era a máxima autoridade civil e religiosa, pois além de ser tido como deus, cabia ao mesmo oferecer sacrifícios aos deuses, embora fosse intermediado por sacerdotes. Em linguagem alegórica, o Faraó era comparado ao sol. Sendo assim, seu palácio é o „horizonte‟, e portanto 206 Cf. MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos Faraós: história, civilização, cultura. 3. ed. São Paulo: HEMUS, 1998, p. 99-104; AMENTA, Alessia. Il Faraone. Uomo, sacerdote, dio. Roma: Salerno editrice, 2006; HORNUNG, Enrik. O Rei. In: DONADONI, Sergio (Dir.). O homem egípcio. Lisboa: Presença, 1994, p. 237263; SCHIMDT, Werner H. A fé do Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 273, 281, 290-291; SEDIGRAF, Blevio (Coord). Faraoni. Firenze: Demetra, 2002, p. 7-26; HAMILTON, Victor P. h[{r.P;. In: DITAT, 1998, p. 1239. 207 3100 aC à 30 dC. 208 Cf. MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos Faraós, 1998, p. 99. 209 Cf. BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994, p. 55-56. 62. 210 Segundo a lenda, „no começo‟ não existia nada, somente NUN, o oceano primordial, no qual surgiu uma montanha e, nela o deus ATUN, o completo e auto criado. De seu sêmen ATUN criou o deus SHU, a atmosfera, e sua mulher, a deusa TEFNUT, a umidade. SHU e TEFNUT deu à luz GEB, a terra, e NUT, o céu. GEB e NUT tornaram - se pais de OSÍRIS e sua mulher ISIS, bem como de SETH e sua mulher, NÉFTIS. SETH tinha inveja das boas criações de OSÍRIS, relacionadas à produção agrícola. Então SETH assassinou OSÍRIS, seu irmão, e espalhou os membros de seu corpo em diversas partes do Egito. Entretanto ISIS, irmã dos dois e mulher de OSÍRIS conseguiu reunir os pedaços, reconstruindo o corpo do marido e dele concebeu um filho – HORUS. HORUS cresceu e lutou com seu tio, SETH, e mesmo perdendo um olho terminou por vencer e foi escolhido por um tribunal de deuses para governar o Egito. Vitorioso, HORUS passou a representar o rei vivo e a ser identificado com o falcão, que significa o Céu. O olho saudável era o sol; o olho ferido a lua. HORUS possuía a MAAT, personificada por uma deusa que segurava uma pena, significando a verdade, o equilíbrio e a justiça, qualidades constitutivas de um Faraó: o deus vivo. Cf. BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e mitos do Antigo Egito, 1994, p. 54; MELLA, Frederico A. Arborio. O Egito dos Faraós, 1998, p. 99. 88 quando o Faraó se mostra, „nasce‟, quando morre, „se põe‟. O palácio do faraó era a morada do rei-deus, mas também sede de todos os centros administrativos do país211. Desde jovem, o Faraó assumia cargos elevados a fim de conhecer os segredos da administração e do governo. Era ele quem construía os templos, enfrentava as guerras, não seus arquitetos ou generais. Ao subir ao trono, era o soberano absoluto. Seu poder dependia do tesouro do qual podia dispor, por isso, para valorizá-lo, organizava continuamente expedições em busca de minérios. O nome Faraó deriva justamente do nome de seu palácio que se chamava Phar-o, a „Grande Casa Dupla‟. Mais tarde, os hebreus atribuíram-lhe este nome como sendo a referência ao rei do Egito. No palácio, além de todas as sedes administrativas, havia grandes armazéns, o departamento dos guardas dos reis, os aposentos das rainhas e princesas e o harém. O harém por vezes, era um lugar turbulento e perigoso, visto que, na ausência de herdeiros diretos, os filhos do harém tinham direito ao trono; em tal caso, entre as mães surgiam lutas, conspirações e atentados à vida do mais legítimo herdeiro e até mesmo do Faraó. O rei soberano e deus tinha que esposar uma princesa de sangue divino, visto que nenhuma outra poderia tê-lo tão divino quanto sua irmã, os matrimônios entre meio - irmãos eram frequentes212. Por razões diplomáticas podia casar-se igualmente com outras princesas, mesmo estrangeiras, que estivessem na corte com categoria de rainhas, mas que não tivessem nenhum poder político. Enquanto vivesse, a rainha legítima era a primeira mulher, ou seja, a mãe do primeiro filho do rei, „aquele que via Horus‟, que acompanhava o rei nas cerimônias e assumia a regência em nome de seu filho, sendo ele menor de idade. Caso não houvesse um 211 Cf. PLUMLEY, J. Martin. Egito. In: METZEGER, Bruce M. – COOGAN, Michael D. (Orgs.). Dicionário da Bíblia Vol.1, 2002, p. 66-69. 212 Eisenberg diz que: “na época em que os hebreus viveram no Egito, de Tão II e Tutmoses IV, conta-se pelo menos oito faraós que desposaram suas irmãs. A prática foi constante. Mesmo no fim da época bíblica, na dinastia de Ptolomeu, sete soberanos entre treze se casam com suas irmãs ou meia-irmãs, das quais a mais famosa é Cleópatra”. Cf. EISENBERG, Josy. A Mulher no tempo da Bíblia, 1997, p. 141-145. 89 herdeiro masculino, bastava uma princesa real se desposar com um nobre e este assumia os poderes e atributos completos do Faraó. Nessas poucas linhas é possível colher flashes do que está nas entrelinhas do texto. Sendo o Faraó um deus poderoso, o que podia um casal de migrante, vulnerável à fome em busca de refúgio e proteção, contra um deus tão respeitável, forte e que traz prosperidade e proteção ao seu povo? 2.3 Salvo pelos méritos de Sarai Segundo Elena Bartolini213, a tradição rabínica fixou no Talmud214 a convenção de que o povo de Israel „foi liberado do Egito por mérito das mulheres‟. Esta afirmação enfatiza que a beleza feminina não se limita somente ao aspecto físico, mas é considerada de acordo com o papel insubstituível da mulher no contexto da reciprocidade conjugal. Por outro lado é significativo o fato de que também a Torá seja personificada com „mulher, filha, esposa‟ 215. No texto em questão o leitor se depara com uma situação não estranha ao que afirma a tradição. Sarai foi motivo de libertação para Abrão tanto no aspecto material quanto à manutenção e fidelidade à aliança. A narrativa deixa claro que foi por causa dela que o Senhor interveio para libertar Abrão e tudo o que possuíam. A narrativa diz no v. 16a “Hr"_Wb[]B; byjiÞyhe ~r"îb.a;l.W”: “e para Abrão foi feito o bem por causa dela”. O Faraó beneficiou Abrão por causa de Sarai dando-lhe animais miúdos, bois, asnos, servos e servas, éguas e camelos (cf. Gn 12,16). Neste contexto a riqueza não se media em dinheiro, terra cultivada ou propriedades imobiliárias, mas em animais (cf. Gn 12,16; 26,14; 30,43). Quando os animais e rebanhos estão em perigo, são ameaçadas a existência e a vida de toda a família, por isso, o Faraó tenta vincular os hebreus segurando os seus animais (cf. Ex 10,24), enquanto Moisés pede a libertação completa (cf. Ex 12,32). 213 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. Il ruolo della donna nell´ebraismo, 2006, p. 23. O Talmud compreende as discussões rabínicas a partir da mishná, ou seja, Torá oral codificada. O Talmud foi fixado por escrito entre o V e VI século da era presente e se encontra em duas versões: palestino e babilônico. 215 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 178. 214 90 Na lista de presentes que Abrão recebeu do Faraó está o rebanho de gado miúdo ( !acoo)216, ou seja, cabras e ovelhas, animais importantes na economia de Israel ao longo da história, especialmente durante o período patriarcal (cf. Gn 46,32). Davam leite (cf. Dt 32,14), carne e lã, da qual se teciam panos. Seu couro era utilizado para fazer coberta e tendas (cf. Ex 26,14). A riqueza de uma pessoa era medida pelo tamanho de seu rebanho (cf. 1Sm 25,2). Entre os presentes está o gado, ‘rq'b217 ' . Para os hebreus, o gado era uma riqueza de valor elevado (cf. Ex 21,37). Esse animal era utilizado nos trabalhos agrícolas, na produção de carne e leite, bem como para concluir um pacto ou contrato (cf. Gn 21,27-31) e presentear alguém (cf. Gn 21,27). Abrão, num gesto de generosidade, honrou a presença dos três hóspedes de passagem, presenteando-lhes cm um banquete do qual o vitelo fez parte (cf. Gn 18,7). Outro presente elencado é o ~yrIêmox;, asno218, animal tradicional da caravana do semita seminômade, atestado desde os patriarcas (cf. Gn 12,16; 22,3.5), diferente do camelo característico dos beduínos. O asno serve aos israelitas como animal de carga (cf. Gn 42,26; 44,13; 45,23), de trabalho para o cultivo dos campos (cf. Dt 22,10) e meio de transporte. Ele está entre as criaturas relacionadas como impuras para alimentação (cf. Lv 11,1-8; Dt 14,3-8), todavia 2Rs 6,25 diz que a sua carne foi comida em época de fome desesperadora. Além do boi, também o asno é usado como paradigma para indicar o complexo dos animais domésticos objeto de inveja (cf. Ex 20,17). Abrão ganha também escravos, ‘~ydIb[' ]219. Contar o escravo entre os presentes se deve ao fato dele não ser uma pessoa jurídica, mas uma parte da propriedade. Em Israel a 216 Cf. HARTLEY, John E. !aco. In: DITAT, 1998, p. 1255-1256. Cf. MARTENS, Allan A. rq'B'. In: DITAT, 1998, p. 208-209; BRECK, B. rq'B'. In: GLAT. Vol. I di IX. bahlg. Brescia: Paideia, 1988, p. 1495-1509. 218 Cf. LIVINGSTON, G. Hebert. ~yrIêmox]. In: DITAT, 1998, p. 489. SMITTEN, W. Th. ~yrIêmox]. In: GLAT. Vol. II di IX. ~¾lwlg-#mh. Brescia: Paideia, 2002, p. 1908-1110. 219 Cf. KAISER, Walter C.dIb,[., In: DITAT, 1998, p. 1067. 217 91 escravidão não era algo tão repulsivo, visto que a condição de escravo envolvia direitos e, frequentemente, cargos de confiança 220. Entre os presentes consta também servas, txoêp'v.W221. Essa era uma escrava que podia ser dada de presente a uma filha, quando ela se casasse (cf. Gn 29,24-29), para servir-lhe de dama de companhia. Observa-se que os hebreus não podiam adquirir outros hebreus como escravos, incluindo-se ai as servas hebréias (cf. Jr 34,9-11; 2Cr 28,10). A fêmea do asno, tnOàtoa]222 é uma posse de valor (cf. Gn 12,16; 32,16; Jó 1,3; 42,12), as mesmas excedem os machos em número e em valor, por causa de seu leite e da procriação, além de serem melhores de montar. Abrão recebe camelos, ~yLi(m;g>223, todavia há divergências quanto ao camelo na época patriarcal, julga-se o dado como anacrônico, visto que o camelo passou a ser domesticado na Idade do ferro (1200 a.C), contudo este animal de carga é mencionado no AT, desde os relatos patriarcais até o período pós-exílico. Usados para locomoção (cf. Gn 24,61.63; 1Sm 30,17; Is 21,7) e transporte de cargas, também forneciam leite (cf. Gn 32,15.16). As leis alimentares de Israel proibiam comer carne de camelo, visto que os camelos ruminam, mas não têm casco fendido (cf. Lv 11,4; Dt 14,7). Esse tinha um papel singular devido a sua capacidade de passar longos períodos sem água, sendo muito útil para o comércio de especiarias (cf. 2Cr 9,1) transporte de alimentos para lugares distantes, bem como para o transporte de produtos de Galaad para o Egito (Cf. Gn 37,25), de tributos (cf. 2Rs 8,9s; 1cr 12,41) e dádivas para o Senhor (cf. Is 60,6). 220 Um israelita não podia manter outro israelita indefinidamente como escravo e contra a vontade deste; o período da escravidão estava limitado a seis anos (cf. Ex 21,2). Mesmo que o escravo seja descrito como propriedade do seu senhor (cf. Ex 21,20-21) essa não era uma atitude insensível. Sempre que revogasse o intento maldoso do senhor (cf. Ex 21,14) ou que o escravo morresse devido a maus tratos (cf. Ex 21,20), o senhor era passível de castigo. Se houvesse dúvidas quanto à motivação do senhor, um escravo que sofresse dano físico ganha pelo menos a sua liberdade (cf. Ex 21,26-27) e o senhor perdia o dinheiro que emprestara (cf. 21,21). Observa-se também a posição de destaque do servo em Gênesis 24,2ss e 41,12. O termo é usado como título messiânico e como título para Israel. 221 Cf. AUSTEL, Hermann J. hx'p.vi. In: DITAT, 1998, p. 1601. 222 Cf. HAMILTON, Victor P. !Ata'. In: DITAT, 1998, p. 141-142. 223 Cf. LEWIS, Jack P. lm'G.. In: DITAT, 1998, p. 275. 92 As caravanas de camelos variavam em quantidade (cf. Gn 24,10). A riqueza de homens como Abrão (cf. Gn 12,16; 24,35), Jacó (cf. Gn 30,43) e Jó (cf. Jó 1,3; 42,12) era contada entre outros (juntamente com seus outros rebanhos) pelo número de camelos. Davi tinha uma pessoa especialmente encarregada de seus camelos (cf. 1Cr 27,30). As pragas do Egito atingiram tanto outros tipos de rebanhos, quanto os camelos (cf. Ex 9,3). Com relação à atitude de Abrão, ao entregar Sarai, o texto não deixa claro qual o real motivo, embora haja diversas inferências. O estudo de Walter Vogels defendendo Sarai como vítima, parece apresentar Abrão como quem abusa da própria mulher em beneficio pessoal 224: O que Abrão esperara aconteceu: „Por causa dela, trataram bem Abrão‟, ou „de acordo com seu preço‟. Não só se abusa da mulher como ainda por cima o marido enriquece, como os cafetões se enriquecem à custa de suas mulheres. O Faraó dá a Abrão, como sinal de reconhecimento – ou como verdadeiro preço de venda -, „ovelhas e bois [...]‟ 225. Por outro lado há quem apresente o patriarca como um manipulador da situação e enganando o Faraó e tirando proveito da situação: [...] nos três contos da „esposa-irmã‟ em Gênesis (12,10-20; 20,1-18 e 26,111) falam de um patriarca que vive temporariamente num país estrangeiro e finge que a esposa é sua irmã, enganando o rei estrangeiro, o que é mais importante, salvando o seu próprio pescoço. Por duas vezes o herói é Abrão e, na outra Isaac [...]226. Viviano apresenta a situação como um possível artifício que o narrador usa para mostrar a superioridade e esperteza do patriarca: “[...] O narrador de Gn 12 não procura desculpar o comportamento de Abrão, antes parece divertir-se com a sua esperteza [...]”227. Outros estudiosos apontam o medo como motivo da ação do patriarca: 224 Com as citações literais se pretende demonstrar o que de fato os comentadores têm falado e até mesmo as palavras que usam para interpretarem o patriarca e sua ação. 225 VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72. 226 GABEL, John – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30. 227 VIVIANO, Pauline A. Gênesis. In: BERGANT, Dianne, CSA - KARRIS, Robert J., OFM (orgs.). Comentário Bíblico. Vol. I de III. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2001, p. 70. 93 [...] a mentira, a vileza e o engano figuram aí sem embaraço e, à primeira vista, os escritores bíblicos não ficam chocados. Abrão faz passar duas vezes sua mulher por sua irmã (Gn 12,10-20; 20,1-18) [...] esses patriarcas são mentirosos e não demonstram grande coragem porque expõem suas esposas aos ultrajes estrangeiros aproveitando-se da ocasião para enriquecer-se [...]228. [...] é o medo do marido, que o faz pensar [...] na sobrevivência em vista de sua bela esposa. Como solução do problema ele escolhe negar o vínculo matrimonial, para tornar sua mulher livre para os homens estranhos. Essa tensão é solucionada pelo desfecho de que Sara passa de fato para uma nova relação matrimonial e os temores de Abrão são solucionados [...]229. Interessante igualmente são as discussões rabínicas em torno deste argumento230. De acordo com Ramban231, Abrão cometeu um pecado deixando a terra de Canaã, a ele faltou confiança em Deus que poderia tê-lo salvo da fome. Rashi232 ao invés, esclarece que Deus consentiu a Abrão deixar a terra. Sua confiança em Deus não foi abalada, teria sido incorreto para ele permanecer em Canaã, esperando que Deus lhe providenciasse comida, pecado é o homem não atuar em prol da autopreservação. A defesa da vida não diminui a confiança em Deus uma vez que acredita que a sua salvação virá d´Ele. Deste modo Abrão agiu corretamente indo à busca de um „canal físico‟ pelo qual poderia obter comida e salvar a vida de sua família. Comentários da tradição judaica ao livro do Gênesis 233 afirmam que Abrão não colocou Sarai sob qualquer risco desnecessário, visto que ele conhecia os grandes méritos dela. Foi pelos méritos de Sarai que Abrão recebeu a benção Divina de riqueza, já que a pessoa adquire dinheiro pelo mérito de sua esposa. Abrão não pediu a Deus (para salvar Sarai) 228 SKA, Jean Louis. Como ler o Antigo Testamento?, 2000, p. 26; Cf., SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 72-73. 229 ZENGER, Erich. Os livros da Torah/Pentateuco. In: ZENGER, Erich. BRAULIK, Georg (et al.). Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 66. 230 Cf. SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis: com comentários de Rashi, Targum Onkelos, Haftorot e comentários compilados de textos Rabínicos Clássicos e das obras do Rebe de Lubavitch. São Paulo: Maayanot, 2008, p. 75. 231 Rabi Moshe ben Nachman (1194-1270) conheciso por seu acrônimo Ramban (hebraico: ) רמב"ן, nascido em Gerna, norte da Espanha, foi um grande conhecedor da Torá, conhecido por sua autoridade em lei judaica. 232 Rabi Shlomo Yitzhaki (1040-1105) conhecido pelo acrônimo Rashi , foi um rabino da França, famoso como o autor dos primeiros comentários compreensivos sobre o Talmud, Torá, e Tanach. 233 Cf. SEFER BERISHIT1, 2008, p. 74 e 76. 94 por seu próprio mérito, mas sim pelos méritos dela, Ele confiou no mérito dela para não ser ferido e para ela não ser tocada, por isso, ele não teve medo de dizer: ela é minha irmã. Enfim Elena Lea Bartolini234 comenta que a beleza de Sarai, poderia ter sido motivo de ambiguidade, mas se tornou, pela sua coragem, fonte de vida e salvação tanto para o seu esposo como para todos os que os sucederem. Deste modo é possível colher nas entrelinhas um papel ativo de Sarai, quem graças a qual Abrão continua a viver e a promessa se mantém, portanto ela corresponde ao tipo de mulher descrita em Pr 12,4, perfeita e virtuosa, coroa do marido. As bênçãos de Deus sobre Sarai confirmam a sua fidelidade à promessa, como „mulher justa‟, portanto, digna de ser visitada pelo Onipotente, canal através do qual as bênçãos divina se difundem na história. 2.4 Intervenção do SENHOR por causa de Sarai O Senhor intervém yr:Þf;’ rb:ïD>-l[;, esta é a primeira e única vez em que o Senhor se manifesta nesta narrativa, sua intervenção é determinante. O Senhor feriu com grandes feridas o Faraó e a sua casa, como mais tarde, lançará pragas sobre outro Faraó por ter abusado de Israel (cf. Ex 7,8-11,10)235. Em toda a narrativa, as duas personagens Sarai e YHWH não falam sequer uma palavra. Sarai parece passiva diante das duas potências que a circunda, Abrão e o Faraó. Todavia resta-lhe alguém a quem pode se dirigir: e o Senhor a ouviu e interveio. O narrador diz: „por causa de Sarai‟. A expressão rb:ïD>-l[;, como foi visto anteriormente, é polissêmica e pode significar a palavra, seja o ato de falar, o enunciado ou o seu conteúdo, o assunto ou o tema. Também significa evento ou fato, ocasião, coisa, algo. Resta aqui uma incógnita, de fato não se sabe ao certo o que Sarai terá feito ou pronunciado, mas sabe-se que foi por ela que o Senhor interveio. A interpretação da expressão deixa 234 235 Cf. BARTOLINI, Elena Lea. La bellezza delle matriarche. In: Parola, Spiritu e Vita. 44 (2001) 2, p. 181-183. Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 72. 95 entender que o Senhor interveio devido ao que aconteceu a Sarai, ou seja, pelo o fato de ter sido tomada pelo Faraó. Não se sabe o conteúdo que Sarai dirigiu ao Senhor, poderá ter sido uma súplica, um grito, um lamento elevado a YHWH “[...] gemendo sob o peso da servidão, clamaram; e do fundo da servidão o seu clamor subiu a Deus. E Deus ouviu os seus gemidos; Deus lembrouse de sua aliança [...]” (Ex 2,23-24), e assim o Senhor ouviu a Sarai, esposa de Abrão. A intervenção do Senhor leva a crer que Sarai é uma pessoa respeitada por Deus e que ela está contemplada em seu projeto sobre Abrão236 (cf. Gn 21,12). Deus a protege e a defende do Faraó, assim como séculos depois fará com os filhos e as filhas, dos filhos de Sarai, quando estarão sob a opressão de outro Faraó. O primeiro patriarca e a primeira matriarca antes de gerarem um filho, geram a história futura daquele povo, Israel, que nascerá do filho, Isaac. O pensamento clássico 237 judeu explica que esta descida de Abrão e Sarai ao Egito foi um precursor do exílio egípcio, deste modo a expulsão de Abrão do Egito como um homem rico abriu caminhos espirituais da redenção que possibilitaram seus descendentes saírem do Egito carregados de ouro e prata. Igualmente o cuidado de Sarai para não ser desonrada pelo Faraó dotou, mais tarde, suas descendentes, as mulheres judias do Egito, com a virtude para permanecerem fiéis às suas famílias. A ação de Deus salva a promessa nas suas duas dimensões, horizontal e vertical, a promessa de Deus para com o homem e do homem para com sua semelhante carne de sua carne, osso dos seus ossos. Livrando Sarai das mãos do Faraó, Deus salva a aliança feita com Abrão e mostra a dignidade da aliança feita no matrimônio 238. 236 Cf. GRENZER, Matthias. Três visitantes. In: Revista de Cultura Teológica. 57 (2006) 14, p. 66. Segundo o prof. Matthias “[...] a história de Abraão e Sara, trabalha com a concepção de que o descendente herdeiro das promessas divinas deve nascer da união deste casal [...] „eu a abençoarei e dela te darei um filho‟ (Gn 17,16).” 237 Cf. SEFER BERISHIT1, 2008, p. 75. 238 Cf. GABEL, John – WHEELER, Charles B. A Bíblia como literatura, 2003, p. 30; SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 73. 96 Segundo Ska, a narração é convite a não fixar-se na ordem histórica. Esse corresponde à reflexão sobre o poder de YHWH, Senhor de Israel, e até mesmo no Egito. O Faraó demonstrou temor a YHWH. O Deus de Israel é o verdadeiro soberano do Egito, seu poder e divindade são superiores ao poder e divindade do Faraó, porque de outra ordem. O objetivo do narrador não é fixar o leitor em eventos sensacionais, tanto que nesta narrativa ele nem chega a elencar ou descrever que tipos de feridas atingiram o Faraó, mas o convida a ir além e confirmar a sua experiência de fé no Deus de Israel, o qual nem o Faraó com seus subalternos são capazes de contornar239. As pragas que atormentaram o Faraó e sua casa parecem convencê-lo de que cometera um ato proibido, ainda que não saiba qual. Essas são as primeiras pragas do Egito, primeira manifestação da vitória dos pais de Israel. Interessante também é o texto paralelo (cf. Gn 20,2), os reis, Faraó e Abimelec, parecem inocentes do malfeito pelo qual são punidos: a responsabilidade cabe a Abrão e Sarai240. O Faraó sofre por ignorância, mas é, todavia, punido. Aqui se colhe alguns pressupostos da „teologia de Israel‟: quem não é filho de Abraão e está fora da família da aliança é responsabilizado por crimes, ainda que estes sejam cometidos involuntariamente, e deve, portanto, ser sujeito à punição adequada, caso o crime seja cometido contra um membro da família de Abrão241. Na mesma linha de reflexão também Gunkel242 comenta que, o narrador apresenta o Faraó como inocente do adultério, e ainda assim é ferido por Deus. A variante em Gn 20,7, narra de forma ainda mais ofensiva à sensibilidade dos leitores. Segundo Gunkel nas entrelinhas é possível constatar uma idéia de fundo, ou seja, a de que os adversários de Israel 239 Cf. SKA, Jean Louis. A Palavra de Deus nas narrativas dos homens, 2005, p. 56-57. Cf. CHOURAQUI, Andre. A Bíblia, 1995, p. 138. 241 Cf. HAMILTON, Victor P. The new international commentary on the Old Testament: The book of Genesis chapters 1-17. Michigan: Grand Raipds, 1990, p. 384-385. 242 Cf. GUNKEL, Hermann . Genesis. Macon, Ga: Mercer University Press, 1997, p. 171. 240 97 sempre se sairão mal, independente do caso, pois YHWH é o Deus de Israel e é mais forte do que os deuses todos. Enfim o narrador parece propor ao leitor a convicção de que a ação de Deus é o essencial. O leitor inicialmente é levado a fixar-se em questões morais, detendo-se no pedido de Abrão a Sarai, no abandono de Canaã, a traição a que foi vítima Sarai, todavia estes se tornam secundários diante da intervenção de Deus. Israel sempre teve presente esta salvadora intervenção de Deus. Aquele que prometeu é verdadeiramente fiel e digno de ser acreditado243. Todavia a história não acaba por aqui, tem-se ainda um caminho a fazer e o leitor é convidado a acompanhar o seu desfecho. CONSIDERAÇÕES Prosseguindo o estudo desta narrativa, atinente à tradução se observa certa unidade. A maior parte dos verbos se encontram no modo ativo, conjugados no qal, com exceção de dois verbos, um no piel (cf. v.15b, Wlïl.h;(y>w:) e outro no hifil (cf. v.16a, byjiÞyhe). Com relação a análise estilística percebe-se que estes versículos apresentam um tom carregado de força enfática, reforçado pelo uso de diferentes figuras de linguagem com esta característica: a anabasis (cf. verbos dos vv. 14c; 15abc) ou gradação; paralelismo composto (cf. vv. 14cd; 15a); paralelismo reto (cf. v. 15); epístrofe (cf. v. 15), enumeração (cf. v. 16b); anagoge, poliptoto e pleonasmo (cf. v. 17). Chegando na análise narrativa percebe-se a relação entre esta e a anterior, ou seja a estilística. De fato as figuras de linguagem corroboram este momento da narrativa, ou seja, o clímax, momento chave, dinâmico e emocionante, carregado de conflitos caracterizado por cenas de tipo sumário, mudanças de tempo, de foco, além da presença de novos e significativos personagens. 243 Cf. VON RAD, Gerhard. El libro del Genesis, 1982, p. 205. 98 Destaca-se aqui o contorno surpreendente que sofre a narrativa. A entrada de dois personagens que nem sequer tiveram voz, o Senhor e Sarai. O uso de artifícios literários, repetições, pleonasmo, poliptoto e paralelismos, fazem o leitor intuir que o Senhor age com grande poder, e que Ele é mais poderoso que qualquer soberano e mais potente que todos os deuses estrangeiros. A ação do Senhor neste capítulo é central e toda a construção linguística está a seu favor. O estudo histórico-teológico reafirma os dados do estudo linguístico-literário e indicam a importância de compreender melhor o que pode significar o Egito na experiência dos hebreus, assim como o Faraó. Diante de tão grande império e poder, o clamor de uma vítima chega até Deus e este age em seu favor. Assim a beleza de Sarai, aparente motivo de ambiguidade, tornou-se, por sua ousadia, sinônimo de vida e salvação para seu esposo, para si e para todos os que lhes sucedem. As entrelinhas permitem identificar o protagonismo de Sarai na garantia da fidelidade e continuidade da promessa feita a Abrão e à posteridade que dela descenderá. É ela o modelo de mulher justa, digna de ser visitada pelo Onipotente, canal através do qual as bênçãos divinas se prolongam na história. 99 CAPÍTULO IV SARAI IRMÃ E ESPOSA DE ABRÃO Chega-se ao ponto nodal da narrativa, o que se denomina desfecho, desenlace ou conclusão. Aqui se apresenta a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer o final está se configurando, seja ele feliz ou não, seja surpreendente, cômico ou trágico. Após o caminho feito, o narrador passa a voz ao Faraó que até então não havia tomado a palavra. Dando a palavra ao Faraó, o narrador deixa sair de sua boca a afirmação de que Sarai não é somente irmã de Abrão, mas também sua mulher. Como o Faraó chegou a esta conclusão não se sabe, ele parece tão surpreso com a questão quanto os leitores, ele exige explicações que, no entanto, essa narrativa não evidencia. Todavia, na narrativa paralela (cf. Gn 20,1-20) o patriarca se justifica. Neste capítulo se apresentará um estudo sincrônico, analisa-se a narrativa e a questão da esposa-irmã sob o aspecto literário e histórico-teológico. Tanto na análise literária quanto na análise cultural têm-se basicamente considerações fundamentadas no 100 contexto histórico cultural do Antigo Oriente Próximo. O leitor é convidado a prosseguir entrando mais especificamente na temática deste trabalho e assim colher os elementos que justificam o título escolhido. 1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,18c-19 1.1 Tradução e estudo morfológico-sintático yLi_ t'yfiä[' taZOà-hm; 18c Por que isso fizeste para mim? O narrador passa a voz ao Faraó e este inicia seu discurso com uma oração subordinada objetiva direta, introduzida por uma interrogação taZO-à hm;, também chamado de marcadores linguísticos de incerteza244. Segundo Waltke e O´Connor245, a forma hm' se coloca antes de a, h e r; e hm, antes de h e [. Nos demais casos há a duplicação da consoante, o que justifica o maqqeph no z, e comenta ainda que se usa o hm; quando se tem em vista mais a circunstância do que a pessoa. O mesmo, com relação à sintaxe, pode preencher qualquer função, porém é mais comum como objeto direto, podendo ser traduzida em português pelo por que. A partícula interrogativa é acompanhada do pronome demonstrativo tazO utilizado para indicar qualquer coisa mais próxima 246, em português corresponde ao demonstrativo isso. O verbo hf;[;247 traduzido para o português, inclui o significado de agir, proceder, atuar, trabalhar, ocupar-se, atarefar-se; fazer, executar, criar, elaborar, construir, confeccionar; preparar; realizar, desempenhar, empreender; levar a cabo, efetuar, cumprir, completar, terminar, tratar. No texto t'yfiä[' é um perfeito – segunda pessoa masculino singular do qal, 244 Cf. WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p.315. Cf. WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 317-318. 246 Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 32. 247 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hf[. In: DBHP, 2004, p. 519. 245 101 traduzido por fizeste. Segue yLi a preposição mais pronome pessoal da primeira pessoa singular, traduzido em português como para mim, o qual assume a função de adjunto adverbial de fim. Sob o mesmo aparece o sinal massorético atnah = que é o principal divisor do versículo, portanto se inseriu o ponto de interrogação. yLiê T'd>G:åhi-al{ hM'l'… 18d Por que não esclareceste para mim? Novamente se usa um interrogativo para iniciar a oração hM'l248 ' traduzido em português como por que, seguido de uma advérbio de negação al{, que se traduz em português como não. O verbo dg:n"249 possui um vasto campo semântico em português carregando o sentido de informar, anunciar, referir, comunicar, avisar; pôr a par, participar; narrar, relatar, contar, descrever; responder; predizer; explicar, expor, aclamar, interpretar; apregoar, proclamar, publicar, revelar, descobrir; denunciar, acusar, lançar no rosto, provar, notificar; declarar, confessar, ditar sentença entre outros. Segundo Coppes250 este ocorre somente no hifil e no hotfal. O sentido básico desta raiz é o de colocar algo de forma ostensiva diante de alguém, deixar às claras, mas sua tradução vai depender do contexto. No texto T'd>G:åhi é um perfeito – segunda pessoa masculino singular do hifil, e foi traduzido por esclareceste. Novamente segue yLi preposição mais pronome pessoal da primeira pessoa singular, para mim, o qual assume a função de adjunto adverbial de fim. Sobre esta se encontra o sinal massorético zaqef qaton :, este acento disjuntivo introduz uma divisão, ou pausa no versículo. Como este verbo é transitivo direto, ele exige um objeto direto, o que segue na próxima oração subordinada objetiva direta. 248 Cf. LAMBIDIN, Tomas O. Gramática do hebraico bíblico, 2003, p. 103. Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. dg:n". In: DBHP, 2004, p. 417. 250 Cf. COPPES, Leonard J. dg:n". In: DITAT, 1998, p. 914. 249 102 `awhi( ^ßT.v.ai yKiî 18e Que mulher tua é ela! Segue a afirmação que sai da boca do Faraó, yKiî conjunção subordinada seguida de ^ßT.v.ai substantivo feminino singular com sufixo da segunda pessoa masculino singular, assumindo a função de predicativo do sujeito, awhi( o pronome pessoal da terceira pessoa do feminino singular, a tradução para o português pode ser que mulher tua é ela. O sinal massorético silluq ` demarca o final do versículo. awhiê ytixoåa] T'r>m;’a' hm'Ûl' 19a Por que disseste minha irmã é ela? O novo versículo se inicia com a partícula interrogativa hm'Ûl', que no português pode ser traduzida como por que. O verbo rm;’a', comentado anteriormente, nesta frase encontra-se no perfeito – segunda pessoa masculino singular qal T'rm > ;’a', traduzido para o português como disseste, seguido do objeto direto ytixoåa], traduzido para o português como minha irmã, é um substantivo feminino mais sufixo da primeira pessoa do singular assumindo a função de predicativo do objeto awhi,ê ou seja ela, pronome pessoal terceira pessoa do feminino singular, sobre o qual encontra-se o sinal massorético disjuntivo zaqef qaton ë representado, na tradução para o português, pelo ponto de interrogação. hV'_ail. yliÞ Ht'²ao xQ:ïa,w" 19b Tomei-a para mim por mulher. O verbo xq;l', comentado no v. 15c do capítulo terceiro, tem a conotação de tomar para si, possuir, desposar. Aqui xQ:ïa,w" é um imperfeito consecutivo – primeira pessoa do singular, e foi traduzido para o português como tomei, segue a partícula do objeto direto mais o pronome pessoal terceira pessoa do feminino singular Ht'²ao, a tradução em português é a ela. A preposição mais pronome pessoal da primeira pessoa singular yli,Þ traduzido em português como para mim. 103 Segue hV'_ail. preposição mais substantivo feminino singular, assume a função sintática de adjunto adverbial de finalidade, a tradução para o português pode ser por mulher, como mulher, ou como esposa. Sob esta palavra encontra-se o sinal massorético atnah = indicando divisão do versículo. ^ßT.v.ai hNEïhi hT'§[;w> 19c E agora! Eis, tua mulher! Segundo Waltke e O´Connor251: Os advérbios de tempo têm, além de seu uso temporal, um uso lógico ou enfático; estes dois usos se fundem em tradução e comentário, porque muitas línguas atribuem valor lógico (cf. português, „já que..., então...‟) ou mesmo valor enfático (cf. português „Agora pois...‟) [...] a fim de evitar equívoco [...] a força lógica de (hT'[); usualmente é confinada à combinação (hT'[;w>) [...]. Como se dá no presente caso, portanto, o hT'[;w> como advérbio temporal tem força lógica e possui um acento massorético disjuntivo, o que reforça tal característica, sendo assim pode ser traduzido em português por, e agora! A partícula hNEïhi também longamente comentada no capítulo II (v. 11e). demonstra ter valor enfático. Segue, então o ^ßT.v.ai substantivo feminino singular com sufixo da segunda pessoa masculino singular, traduzido em português por tua mulher. xq:ï 19d Toma! O verbo xq;l', tomar, agarrar, receber, adquirir, comprar, trazer, tomar por esposa, arrancar. No texto xq:ï encontra-se no imperativo qal, e pode ser traduzido em português como toma! 251 WALTKE, Bruce k. – O‟CONNOR, M. Introdução à sintaxe do hebraico bíblico, 2006, p. 667. 104 `%lE)w" 19e E vai-te! O verbo %l;h'252 significa ir, andar, denota movimento em geral, embora usualmente o descreva em relação às pessoas. Por isso, pode ser empregado com várias conotações. É usado para descrever a vinda do Senhor ao seu povo em julgamento ou em benção, especialmente durante a peregrinação no deserto (cf. Ex 33,14; 13,21) bem como, a condição de Abrão (cf. Gn 5,22; 6,9; 17,1). Neste versículo `%lE)w" é um imperativo masculino singular qal, e foi traduzido em português por, vai-te!. O sinal massorético silluq ` que o acompanha indica o fim deste versículo. 1.2 Análise estilística O estudo estilístico ilumina o texto e o seu significado, sem necessariamente fazer referências diretas à intenção do autor, desenvolvimentos teológicos, ou fato histórico. Todavia tais elementos podem ser vislumbrados como anteprimeiro no estudo estilístico dado que sua função é revelar o texto individual em sua forma e coloridos. Segundo Cássio Murilo 253, este é um trabalho de garimpo que, em geral, se deve fazer por conta, pois dificilmente se encontra uma abordagem já pronta. Nos versículos em estudo, salta aos olhos uma estrutura de palavras semelhantes que se repetem. Observe, por exemplo, a multiplicidade da preposição, mais sufixo da primeira pessoa do singular yLi e dos sufixos na segunda pessoa masculino singular, t'yfiä[", T'd>G:åhi, ^ßT.v.ai, ‘T'r>m;’a', ^ßT.v.ai, %lE)w", bem como aos ouvidos sons que conferem certa musicalidade ao texto tocando a sensibilidade do leitor ou ouvinte, devido à tônica em que é composto, hm', hM'l', 252 253 COPPES, Leonard J. %l;h'. In: DITAT, 1998, p. 355. Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Metodologia de exegese Bíblica, 2000, p. 155. 105 hm'Ûl', xq', hT'§[;w>. Igualmente os sinônimos (A e A‟) geram uma impressão quanto à tensão e à força retórica do discurso proferido a conferir em sua estrutura: A A‟ B C C‟ B‟ D D‟ yLi_ t'yfiä[' taZOà-hm; yLiê T'd>G:åhi-al{ hM'l' `awhi( ^ßT.v.ai yKiî awhiê ytixoåa] ‘T'r>m;’a' hm'Ûl' hV'_ail. yliÞ Ht'²ao xQ:ïa,w" ^ßT.v.ai hNEïhi Ht'§[;w> xq:ï `%lE)w" 18c Por que isso fizeste para mim? 18d Por que não esclareceste para mim? 18e Que mulher tua é ela! 19a Por que disseste minha irmã ela! 19b Tomei-a para mim por mulher! 19c E agora, eis, tua mulher! 19d Toma! 19e E vai-te! Na estrutura apresentada é possível identificar certos paralelismos. Essa figura é um gênero de sinonímia e consiste na repetição de iguais, sinônimos ou opostos, seja de pensamentos ou de palavras em linhas sucessivas ou paralelas. O paralelismo simples sinonímico ocorre quando o pensamento é semelhante nas linhas e se usam vocabulários sinônimos. Veja por exemplo: A e A´ são interrogações com o mesmo sentido, C e C´ são exclamações, B e B´ são afirmações em forma de exclamações interpoladas, D e D´ são imperativos. Outra figura identificada é a chamada erotesis254, ou interrogação a observar em A e A´. Estas fazem parte das figuras que implicam mudança e é usada quando um orador ou escritor faz perguntas, todavia nem sempre está pedindo para obter informação. Em vez de fazer declarações diretas e retas, muda subitamente o estilo e as põe em forma de interrogações o que estava a ponto de dizer ou podia ter dito, sem precisar de respostas. Por fim, identifica-se ainda outra figura chamada ecfonesis255 ou exclamação, observe nas estruturas B e B´, C e C´, D e D´. Esta figura é usada quando, devido a certos sentimentos, se muda o modo de falar, e em lugar de fazer uma declaração, se expressa mediante 254 255 Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 779. Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 770. 106 exclamação. Deste modo, as ecfonesis são como uma explosão de palavras, ocasionadas pela emoção, e não é usada esperando uma resposta. Se no segundo capítulo, na fala de Abrão, é notável um significativo número de sufixos na segunda pessoa do feminino singular, no discurso do Faraó estes também se evidenciam, todavia na segunda pessoa do masculino singular. Que implicações tais tessituras podem ter é o que o próximo item se propõe a analisar. 1.3 Análise narrativa Os versículos em estudo neste capítulo têm caráter de desfecho (cf. vv. 18c-19). Eles de certo modo já revelam a solução dos conflitos que apareceram ao longo da narrativa. Neste momento o discurso do Faraó revela o que Abrão procurou velar, Sarai é esposa de Abrão. A tonalidade do discurso deixa transparecer certa indignação por parte do Faraó. A ele parece incabível que o hóspede tenha sido capaz de tamanha ousadia diante da qual incisivamente o interroga três vezes (cf. vv. 18c, 18d e 19a), por que? Por que? Por que? Ele parece sentir-se injustiçado, ao menos é o que transparece na repetição da preposição direcional com o sufixo da primeira pessoa do singular yli para mim, para mim, para mim (cf. vv. 18c, 18d e 19b ). Se no segundo capítulo, na voz de Abrão, chama a atenção o uso da terceira pessoa do plural masculino. Neste é notável, na voz do Faraó, o uso do sufixo sempre na segunda pessoa do singular masculino, ao dirigir-se a Abrão. Aqui é o tu masculino o elemento central que sustenta o conteúdo da trama. Esta forma sufixal demonstra que agora o foco da tensão narrativa se concentra entre o que disse e o que não disse Abrão. Deste modo o Faraó transfere a Abrão a responsabilidade do acontecido, ou seja, ele ter tomado Sarai, mulher casada, por esposa, pensando que a mesma fosse uma mulher núbil. No texto paralelo (cf. Gn 20,1-18) nota-se que o soberano tomou a mulher do patriarca e a levou para seu harém exatamente por ter se apresentado como irmã. A narrativa deixa 107 transparecer, que se ele soubesse que se tratava de esposa e não de irmã, ele teria procedido diversamente (cf. 2Sm 11). Mesmo que o texto em si não o diga, o tom de temor que flui nos discursos diretos dos soberanos leva a crer que possuir a mulher de outro homem é algo prescrito negativamente pela lei, podendo resultar em morte (cf. Lv 18; Dt 27). Sendo assim, os reis procuram apresentar suas justificativas a fim de provar a inocência de seus atos, pois agiram de acordo com as palavras dos próprios maridos, que as apresentaram como irmãs. Certamente também o leitor, ponderando a questão, se faz as mesmas indagações que fez o Faraó: Por que Abrão fez isso? Por que não disse que Sara era sua esposa desde o início? É interessante notar que o Faraó não acusa Abrão por mentir, ou seja, suas perguntas não giram em torno do: Por que você mentiu para mim dizendo que ela era tua irmã? Por que não me disseste a verdade revelando que ela é tua esposa? O modo de perguntar não deixa espaço para respostas, pois, quem indaga já o faz sem intenção de ter respostas, porque já sabe da resposta. Igualmente em vez de fazer declarações explícitas, o orador se expressa mediante exclamações, onde as mesmas são como uma explosão de palavras, ocasionadas pelas emoções. Abrão nem mesmo teve a oportunidade de desculpar-se, o que será possível somente no texto paralelo (cf. Gn 20,11-13) no qual ele se retrata dizendo ter pensado consigo mesmo que não havia temor a Deus naquele lugar, e que podiam matá-lo por causa de sua mulher e reitera o peregrino afirmando que, na verdade, ela é sua irmã por parte de pai e que se tornou sua mulher, e ainda diz tê-la pedido para dizer ser sua irmã onde quer que fossem. Com isso, de certo modo, o patriarca parece se justiçar, pois, na realidade ele não mentiu, ele disse somente a metade da verdade. Ao empreender uma comparação entre os textos semelhantes, nota-se que a análise narrativa oferece luzes, mas não é suficiente para responder a questão do tema esposa/irmã, 108 ficando em aberto o sentido histórico teológico que possivelmente influenciou as narrativas que tem em comum este tema. 2. Estudo histórico-teológico 2.1 Estatuto da irmã-esposa Com referência a este tema é possível partir do seguinte pressuposto, ou seja, a legislação sobre a irmã-esposa pode ter sido um preceito comum dentro do corpus legal no Antigo Oriente, como um particular na questão do casamento, sendo parte integrante de várias culturas. Com isso, pretende-se dizer que o conteúdo proposto para o estudo desta narrativa tem fundamento e precedentes na antiguidade, como por exemplo, nos registros encontrados em locais como Nuzi256 e outros sítios arqueológicos257. Segundo Speiser 258, o casamento na sociedade hurrita era mais forte e mais solene quando a mulher possuía, simultaneamente, o estatuto jurídico de irmã, independente dos laços de sangue. Deste modo, um homem às vezes se casava com uma jovem e a adotava como sua irmã, em fases distintas e independentes, registrando-as em documentos legais. 256 Esta corresponde a uma das mais interessantes coleções de registros escritos da antiga cidade hurrita de Nuzi, localizada a leste do rio Tigre. Yorghan Tepe, nos anos de 1915-1931 encontrou cerca de 20.000 documentos de barro nos arquivos familiares de várias vilas da cidade. A data desses documentos é dada pelos escavadores como sendo do sec. XV a.C que pode ser três ou quatro séculos mais tardia do que a data tradicional do patriarca Abrão, como os costumes persistem, os tabletes oferecem informações sobre a estrutura legal e social nestas terras em séculos passados. Cf. THOMPSON, Dr. John A. A bíblia e a arqueologia: quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Ed. Vida Cristã, 2004, p. 47. 257 Grupo de pessoas contemporâneas a Abrão. Eles começaram a entrar nas terras ao longo do Tigre cerca de 2000 a.C. Alguns tabletes de barro, desse período, introduzem um novo tipo de nome identificado como hurrianos, que durante os dois séculos seguintes se dispersaram pela Mesopotâmia e formaram a principal população em vários reinos importantes, como Mitani que ocupou a área entre o Tigre e o Eufrates cerca de 1500 a.C. Recentemente a cidade de Nuzi, a leste do Tigre, forneceu uma coleção de objetos de barro que permitiram o acesso a noção dos costumes dessas terras. Alguns desses costumes são semelhantes aos costumes patriarcais descritos em Gênesis. Sendo os hurrianos uma seção de uma sociedade complexa, não é inconcebível que ancestrais de Israel tivessem contato com os mesmos em algum lugar. Cf. THOMPSON, Dr. John A. A bíblia e a arqueologia, 2004, p. 39. 258 Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible: Genesis. Garden City, New York: Third Edition, 1986, p. 92-93. 109 A violação das disposições legais dos contratos de irmã-esposa era punida com mais severidade que as violações de contratos de casamento simplesmente. Speiser 259 diz que esta prática foi, possivelmente, um reflexo do sistema fratriarcal, o qual dava ao irmão adotivo maior autoridade que ao marido. Pela mesma razão, a irmã adotiva desfrutava de proteção e status social proporcionalmente maior. Caso o pai viesse a falecer, um irmão de sangue tinha automaticamente o mesmo tipo de autoridade paterna sobre suas irmãs. E quando um irmão, seja natural ou adotivo, dava a sua irmã em casamento, também neste caso, a lei considerava a mulher como irmã-esposa. Speiser260 faz uma observação dizendo que, embora a prática da adoção fosse comum entre os povos vizinhos, todavia há peculiaridades que são próprias das práticas hurritas. O autor recorda ainda que a instituição do levirato não oferece paralelo, pois sua preocupação está voltada à manutenção da linha de um irmão falecido. Reitera o autor acrescentando que, certamente, não é possível dizer o que realmente aconteceu naquelas visitas ao Egito e Gerara (cf. Gn 12,10-13a; 20,1-18; 26,1-17), supondo que tenham acontecido, todavia uma suposição plausível é a de que Abrão e Isaac eram casados com mulheres que gozavam de um status privilegiado para os padrões da sociedade em que viviam. O status de irmã-esposa era uma marca de posição social desejada, por isso, a tradição registrou três paralelos, ou seja, devido à sua importância e lugar de destaque para as matriarcas. Na mesma linha de Speiser comenta Chouraqui261: [...] Sabe-se que um marido mesopotâmico – especialmente entre os hurritas de Nuzi – podia legalmente adotar sua esposa por irmã, mesmo que entre eles não houvesse qualquer laço de consangüinidade. Casamento e adoção fraternal eram dois atos jurídicos compatíveis [...] os laços assim criados eram mais fortes do que os laços do casamento, a esposa adotada por irmã possuía um estatuto legal preferencial, garantido por sanções mais severas no caso de alguma falta [...]. 259 Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible, 1986, p. 92-92. Cf. SPEISER, E.A. The Anchor Bible, 1986, 92-93. 261 CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 137. 260 110 Ao afirmar que Sarai é sua meia irmã 262 (cf. Gn 20,12), Abrão dá espaço para deduzir que possivelmente Sarai foi uma filha de Taré, seu pai, qualificando-se deste modo como meia irmã. Mas o pensamento de Speiser não é único. Segundo P. Hamilton 263, a interpretação de Speiser deixa lacunas quanto ao seu modo de organizar e interpretar os textos de Nuzi, pois sobre os mesmos, não é possível afirmar que exista uma ordem cronológica de precedências, adoção seguida de matrimônio. Por outro lado não é correto afirmar que tais casamentos refletissem as características dos níveis mais altos da sociedade hurrita, pois, escravas libertas também eram adotadas como irmãs, e também não é certo que estas adoções tenham a finalidade de ser meio para um vínculo matrimonial. Outros estudos264 aprofundam mais a questão da adoção, como um meio para manter os bens e o patrimônio da família, ou garantir a posteridade da mesma e até mesmo dar segurança ou proteção para um membro desprovido. Justel diz que, provavelmente, a intenção dos atos de adoção com matrimônio era essencialmente para impedir a dispersão do patrimônio familiar. Em seu estudo ele apresenta diversos tipos de adoção, entre as quais um tipo denominado in fratris loco. Nesta uma pessoa era adotada em qualidade de irmão, e afirma que este procedimento era conhecido no Antigo Oriente Próximo, especialmente em Nuzi. A pretensão desta prática podia ter sido a de estabelecer um vínculo familiar que implicasse proteção jurídica ou outros benefícios. Segundo Tompson265, Nuzi não é a última instância para ditar, esclarecer ou fundamentar historicamente certos costumes presentes na vida dos patriarcas. Todavia, este oferece importante e indispensável contribuição para conhecer os costumes e o ambiente histórico cultural em que viveram e, certamente, foram influenciados os patriarcas. 262 Cf. VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 40. Cf. HAMILTON, Victor P. The book of Genesis: Chapters 1-17. Grand Rapds: Willian B.Eerdmans Pb. Co., 1991, p. 381-382. 264 Cf. JUSTEL, J. Josué. Prácticas jurídicas y estrategias familiares en el norte de Siria durante el bronce final (sec. XV-XII a. C). In: Gerión, (2009), vol. 27/1, p. 7-25; LION, Brigitte y MICHEL, Cécile. As mulheres em sua família: Mesopotâmia, 2º milênio a.C. In: Tempo (2005), vol. 10, p. 20. 265 Cf. THOMPSON, John A. A Bíblia e a arqueologia, 2004, p. 48. 263 111 Melhor reflexão [...] sobre o material de Nuzi levou os eruditos à conclusão de que ocorrem paralelos entre as narrativas patriarcais e os textos cuneiformes de várias partes do Oriente Próximo antigo em várias épocas, de modo que a peculiaridade da relação com Nuzi foi posta em dúvida. Esta última pesquisa tornou difícil usar esses paralelos de fontes não-bíblicas como um guia para datar, embora seu valor para ajudar a nossa compreensão da sociedade do Oriente Próximo antigo no segundo milênio a.C. é indubitável e, atualmente, a grande maioria dos paralelos sociais relevantes procede do segundo milênio a.C. Os costumes dos patriarcas se adaptavam muito bem à cultura mesopotâmica desse período. Podemos inferir que as tradições bíblicas em Gênesis 12-50, que tratam um profundo conhecimento do estilo de vida mesopotâmico, foram introduzidas pelos migrantes originais da Mesopotâmia [...]266. Evidentemente, como foi dito, este estudo segue o método sincrônico e não tem a pretensão de discutir a historicidade ou não dos patriarcas, nem de discutir uma determinada cronologia dos eventos, todavia busca-se ir além do texto, através de seus paralelos históricos, a fim de evidenciar o colorido do Antigo Oriente, encontrado nas narrativas de forma a expressar o seu correlato com a cultura oriental antiga. Sabe-se que, uma abordagem particular não tem a pretensão de dar uma compreensão exaustiva e que a história de textos como este, representa o desafio de continuar a lê-los na busca de seu significado, o qual certamente não é dado, mas vai se desvelando à medida da compreensão alcançada. 2.2 Sarai esposa e irmã de Abrão “Dize que és minha irmã” (cf. Gn 12,13). Este pedido de Abrão a Sarai deixa no leitor certo ar de desconcerto, isso porque no contexto em que se vive não é „comum‟ este tipo de relacionamento, denominado incestuoso e, até mesmo, proibido pelas leis de Israel (cf. Lv 18). Como então compreender o pedido de Abrão? Para Eisenberg267 os três episódios da irmã-esposa causam a seguinte dificuldade: Como dois fundadores de Israel puderam subtrair à lei? Em geral, resolve-se esse problema justificando que os fatos ocorreram muito antes que a lei fosse editada, o que é incontestável, 266 267 THOMPSON, John A. A Bíblia e a arqueologia, 2004, p. 48. Cf. EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia, 1997, p. 145-146. 112 pois realmente os patriarcas não estavam submissos a ela. No caso do patriarca, até então nada fazia suspeitar que fosse casado com sua irmã. Ao ler o texto, há quem pense que seja uma artimanha do patriarca, todavia esta é uma espécie de meia verdade. Tendo como conjetura o que foi estudado anteriormente, com referência ao ambiente histórico cultural da época patriarcal, onde a adoção de uma pessoa era uma prática comum, bem como a adoção da esposa como irmã, podem-se inferir no mínimo duas probabilidades: a) possivelmente Sarai foi uma filha adotiva de Taré; b) ou ele mesmo, Abrão, a adotou como irmã, qualificando-a deste modo como irmã-esposa. De fato esta não é uma linguagem estranha nas Sagradas Escrituras. O esposo do Cântico dos Cânticos se refere à sua amada como minha irmã (ytiäxoa]) “roubaste meu coração, minha irmã (ytiäxoa]), noiva minha [...]” (Ct 4,9); “Que belos são teus amores, minha irmã (ytiäxoa)] minha noiva [...]” e segue o noivo repetindo o mesmo apelativo outras vezes (cf. Ct 4,12; 5,1-2). Segundo Chouraqui268, as palavras „minha irmã, minha esposa‟ constituem uma definição jurídica mais do que os laços de casamento, pois, a esposa adotada por irmã possuía um estatuto legal preferencial e garantido por penas severas. Mas, seria possível encontrar nas Sagradas Escrituras um caminho que corresponda e fundamente a fala de Abrão, pois ele afirma que Sarai é sua irmã, por parte de pai, mas não por parte de mãe (cf. Gn 20,12) e que se tornou sua mulher. Tal afirmativa não pode ser descartada. Voltando à genealogia de Taré assim se lê: “Taré gerou Abrão, Nacor e Arã. Arã gerou Ló. Arã morreu na presença de seu pai Taré em sua terra natal, Ur dos caldeus. Abrão e Nacor se casaram: A mulher de Abrão chamava-se Sarai; a mulher de Nacor chamava-se Melca, filha de Arã, que era pai de Melca e Jesca” (Gn 11,27-29). Seguindo o esquema abaixo, observa-se que Arã morreu e deixou três filhos. Quando ele morreu, seu pai Taré era ainda vivo. Deste modo possivelmente Taré pode ter tomado a 268 Cf. CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 137. 113 tutela dos netos. Segue o matrimônio de Nacor e Abrão. Nacor se casa com Melca, filha de Taré. E Abrão se casa com Sarai, que possivelmente corresponde a Jesca 269, pois o texto introduz Sarai, e logo conclui dizendo que Arã era o pai de Melca e Jesca. Tal conclusão leva a pensar que os dois nomes correspondam à mesma pessoa. Tal hipótese esta presente também nos comentários270 rabínicos, os quais afirmam que Sarai é a sobrinha de Abrão, sendo a filha de seu irmão Arã. Ela era também chamada "Jesca" (Gn 11,29). Taré Abrão Arãx Nacor Lot ? Melca Jesca Apesar de não encontrar nas Sagradas Escrituras a matrilinhagem de Abrão e seus irmãos, quando Abrão diz que Sarai é sua irmã por parte de pai, mas não por parte de mãe, pode-se pensar que as mães de Nacor e Abrão não sejam as mesmas, por outro lado de fato Jesca e Abrão seriam da mesma patrilinhagem, ou seja, ambos têm como ancestral comum Tare. Entretanto é verdade que a mãe de Jesca não é a mãe de Abrão, mulher de Taré, e sim a mulher de seu irmão Nacor. A respeito do que se tratou diz um comentário à Torá: 269 Jesca é a mesma Sarai. Este nome teria como raiz $s¾ que no qal significaria ungir, ser ungido. Os rabinos interpretaram esses dados dizendo que de fato Sarai foi ungida, e era superior a Abrão em profecia, por isso Deus disse a Abraão: Faz tudo o que Sara te diz, escuta a voz dela, porque teus descendentes virão de Isaac (Cf. Gn 21,12). Cf. STRONG, James. hks¾. In: Dicionário Bíblico Strong: léxico hebraico, Aramaico e Grego de Strong. São Paulo: SBB, 2002, p. 428; PATTERSON, R. D. $ws. In: DITAT, 1998, p. 1032; SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL. Concordância exaustiva do conhecimento Bíblico. São Paulo: SBB, 2002, p.18; SEFER BERISHIT. O livro do Gênesis, 2008, p. 125. 270 Cf. hrwt. Torá: a lei de Moisés. Edição revista e atualizada São Paulo: Sefer, 2001, p. 59. 114 12. mas não filha de minha mãe – Abrahão casou-se com Sara da qual disse ser irmão do mesmo pai, mas não da mesma mãe, porque até a revelação das leis da Torá, as uniões matrimoniais entre meio-irmãos e outros parentes parecem ser naturais [...] Na realidade, Sara era sobrinha de Abrahão dado que ela era filha de Charan, irmão de Abrahão271. Nem sempre a distinção entre irmã 272 e meia-irmã é esclarecida (cf. Gn 20,5). Em alguns casos, para se indicar o fato de ser meia-irmã ou meio-irmão, menciona-se que o pai é o mesmo (cf. Ez 22,11) ou que a mãe é a mesma (cf. Dt 13,6; Sl 50,20; Jz 8,19). Por irmãos entendem-se também os descendentes remotos de um pai comum. Abrão se dirige a seu sobrinho Ló como sendo seu irmão (Gn 13,8): “que não haja discórdia entre mim e ti, entre meus pastores e os teus, pois somos irmãos ( Wnx.n")a] ~yxiÞa;)”. Na sociedade patriarcal agnática273, ou seja, as ligações dos indivíduos são definidas por um grupo de parentesco com seu pai, em sentido alargado. Compreendendo assim o termo casa, ou família, alcança não somente os parentes próximos como a esposa ou esposo, filhos legítimos, noras e netos, mas também, a mãe, quando viúva, sobrinhos, os filhos dos irmãos são chamados de irmãos, bem como as eventuais concubinas, seus filhos, escravas e seus filhos. O clã reúne a família dos irmãos e toda a parentela. O clã se torna tribo e as tribos formam o povo274. Suzana Chwarts apresenta um esquema que ajuda a compreender melhor a lógica deste sistema reprodutivo/social/corporada: “zera´ = semente = descendência = ben = filho = bnh = (construir) = bayt = casa = bnei ysra’el, beit ysra’el (filhos de Israel, Casa de Israel)”275. A esta altura, pode-se perguntar se de fato o narrador, ao referir-se, a Sarai como irmãesposa de Abrão, cobiçada por sua perene beleza, quer de fato comunicar dados correspondentes ao parentesco ligado a uma descendência e linhagem, ou se usa tais hrwt.Torá, 2001, p. 59. Cf. WOLF, Hebert. tAxa:. In: DITAT, 1998, p, 50. 273 Cf. REDE, Marcelo. Família e patrimônio na antiga Mesopotâmia. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 61-65. 274 Cf. EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia, 1897, p. 49-50. 275 Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia hebraica, 2004, 142. 271 272 115 elementos somente como artifícios literários, ou está carregado de sentidos que transcendem a dimensão ontica dos dados, a fim de comunicar ao leitor sua dimensão teológica. 2.3 Sarai protótipo do povo da Aliança A auto-compreensão do homem bíblico é também moldada pela idéia da Aliança como o esponsalício entre Deus e o povo276. Essa perspectiva é transmitida pelo menos por seis profetas277: Oséias, Isaías278, Jeremias, Ezequiel, o Segundo e o Terceiro Isaías. Neles a relação de amor humano vira paradigma da relação do amor entre Deus e o povo: “Como a alegria do noivo pela sua noiva, tal será a alegria que o teu Deus sentirá em ti” (Is 62,5). O texto mais famoso é o do profeta Oséias 279, onde é descrita a dolorosa experiência matrimonial do profeta. Sua mulher infiel é interpretada como símbolo da infidelidade de Israel com relação ao seu Deus. Sendo assim, na linha das ações simbólicas dos profetas, a vida de Oséias revela o mistério do Plano de Deus. Oséias amou e ama uma mulher, que respondeu ao seu amor com traições. Ele é o primeiro a representar com a imagem do amor conjugal, as relações do Senhor com o seu povo depois da Aliança do Sinai, e a qualificar a traição idolátrica de Israel não somente como prostituição, mas como adultério. Em geral, o grande drama da Aliança judaica corresponde à infidelidade do povo apresentado sobre a forma de adultério e de prostituição. A reprovação, muitas vezes, é dirigida a Israel por provocar o amor divino. Mas, em resposta a esta traição da esposa segue a promessa de uma união ideal (Os 2,21-22): “Eu te desposarei a mim para sempre, eu te 276 Cf. TABORDA, Francisco. Matrimônio: Aliança-Reino. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005, p. 29- 43. Cf. RAVASI, Gianfranco. Il raporto uomo-donna simbolo dell´Alleanza nei profeti. In: Parola Spirito e Vita. Lo sposo e la sposa. (1986) 13, p. 41-56. 278 Segundo alguns estudiosos o Livro do Profeta Isaías corresponde a três períodos diferentes da história de Israel, deste modo a divisão dos capítulos 1-39 são situados no pré exílio, ou seja, o VIII a.C século, o Dêutero-Isaías capítulos de 40-55 corresponde à situação do exílio babilônico, ou seja, 587-537 a.C e o Trito -Isaías referente aos capítulos 56-66 faz menção ao período pós-exílico. Cf. ZENGER, Erich. Os livros do profetismo. In: ZENGER, Erich (et al.). Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 380-398; GRADL, Felix – STENDEBACH, Franz Josef. Israel e seu Deus. São Paulo: Loyola: São Paulo, 2001, p. 157-164. 279 Cf. STEFANO, Virgulin. La sposa infidele in Osea. In: Parola Spirito e Vita. Lo sposo e la sposa. Bologna: EDB, (1986) 13, p. 27-36. 277 116 desposarei a mim na justiça e no direito, no amor e na ternura eu te desposarei a mim na fidelidade e conhecerás a Deus”. Esse tema é retomado em outras passagens (cf. Is 1,21; Jr 2,2, 3,1; 3,6-12). Ezequiel o desenvolve em duas grandes alegorias (cf. Ez 16 e 23) e conclui com uma promessa: “Sereis meu povo, e eu serei o vosso Deus” (Ez 36,28). A segunda parte de Isaías apresenta a restauração de Israel como reconciliação de uma esposa infiel (cf. Is 50,1; 54,6-7; 62,4-5). Nesse, as vicissitudes desta união são descritas de uma forma muito vivaz. O Senhor abandona a sua esposa e depois retorna a ela: “teu esposo é o teu criador, Senhor dos Exércitos é o seu nome” (Is 54,5). Em Isaías a mudança é ainda mais intensa: Não te chamarás mais „Abandonada‟, nem a tua terra „Devastada‟, mas serás chamada „Minha Amada‟ e a tua terra „Esposada‟, porque tu ame o Senhor e a tua terra terá o seu esposo. Como um jovem esposa uma virgem, assim te esposará o teu arquiteto; e como se alegra o esposo por sua esposa, assim, o teu Deus se alegrará com você (Is. 62,4-5). A relação do Senhor com Israel se faz presente também nas imagens nupciais de Cântico dos Cânticos280. Em forma poética o autor ajuda a compreender a dimensão da Aliança como matrimônio. Nesse quadro poético, o pano de fundo leva a considerar que a Aliança é destinada a impregnar todas as disposições da personalidade humana, sua vida e seus sentimentos mais profundos. Outra imagem feminina é a de Sião. Também esta é um paradoxo do povo ou da esposa (cf. Zc 3,14; 9,9; Sof 3,14-17; Jr 3,14-18). O tempo do noivado é interpretado como o tempo da fidelidade no deserto que culmina com a Aliança sobre o Sinai (cf. Jr 2,2). 280 Cf. ELLIOT, Timothea. Lo sposo e la sposa nel Catico dei Cantici. In: Parola Spirito e Vita. Lo sposo e la sposa. Bologna: EDB, (1986) 13, p.57-67. 117 Isaías chama a cidade de Jerusalém „a virgem filha de Sião‟ (cf. Is 37,22), porque permaneceu inviolada e rejeitou as propostas do rei de Assíria. A expressão „virgem de Israel‟, quando é usada pelos profetas faz referência ao contexto da Aliança. Jeremias recorre à imagem da Virgem de Israel para reprovar o povo por ter profanado a Aliança (cf. Jr 18,13). Como castigo, elas serão violadas pelos inimigos devido à sua infidelidade. Todavia, depois das ameaças segue, como sempre, a promessa de restauração (cf. Jr 31,3-4). O profeta promete que, entre o povo e Deus, será restabelecida a antiga relação matrimonial, a qual será como uma nova criação: “volta, ó virgem de Israel, volta para estas tuas cidades! Até quando irás de cá para lá, filha rebelde? Porque o Senhor cria algo de novo sobre a terra: a mulher rodeia para seu marido”! (Jr 31,21-22). A frase sobre a Filha de Sião que retorna ao seu esposo significa que serão retomadas as relações de amor e de fidelidade entre Israel e seu Esposo, o Senhor. O título de mãe aplicado a Israel é raro no AT. A idéia, porém da maternidade do povo de Deus retorna mais vezes. Um dos textos famosos é o Sl 87, intitulado como “Sião, a mãe de todos os povos”. Sião será a pátria de todos. O primado do esposo, o amor de Deus precede e supera aquele do homem. A Aliança divina ressoa antes da resposta humana. De fato, foi Deus quem chamou Abrão e fez a promessa. Não foi Israel quem por primeiro se interessou por Deus, mas foi o Senhor quem se interessou por seu povo, buscando-o, seguindo-o, amando-o além da sua pobreza e pequenez (cf. Dt 7,7-8). O autor do livro de Isaías compôs uma poesia finíssima sobre o tema nupcial (cf. Is 54,1-10). Antes da Aliança com Deus, Israel era como uma mulher estéril, sem marido, só, sem filhos. No horizonte de sua vida, porém, apareceu o Senhor, aquele que pode reverter também a esterilidade, como um dia aconteceu a Sarai, esposa de Abrão, porque “somente Ele pode fazer habitar a estéril na sua casa, como uma mãe alegre de muitos filhos” (Sl 113). Israel teve que alargar os espaços de sua tenda, estendê-la amplamente, alongar e reforçar, pois: “Tua descendência se tornará numerosa como a poeira do solo; estender-te-ás para o 118 ocidente e para o oriente, para o norte e para o sul, e todos os clãs da terra serão abençoados por ti e por tua descendência” (Gn 28,14), pois “o teu esposo será o teu criador” (Is 54,5). A reflexão deste tema permite entremostrar a tessitura do seguinte paradigma: Personificação do povo como cidade e da cidade como noiva infiel, mas convertida, bem como de Sarai, como povo e esposa fiel. Sarai é o protótipo do povo que permaneceu fiel ao seu esposo. Ela é, portanto, modelo de virtude para todas as filhas de Jerusalém, e a virgem de Israel, porque se manteve fiel ao único amor281. Assim como a cidade, a virgem, a esposa e a mulher servem como paradigma para personificar o povo282, também a figura de Sarai é protótipo do povo virtuoso 283. O primeiro patriarca e a primeira matriarca de Israel, antes de gerar um filho, geram a história futura daquele povo, Israel, que nascerá do filho, Isaac. Antecipando e assumindo em si a história de seus descendentes, ela é a mulher descrita no livro dos provérbios (31,10-31) “Vale mais do que pérolas”. O referido acima desperta a sensibilidade e convida a dirigir um olhar diferente à Sarai e à sua identidade. 2.4 Um novo olhar sobre Sarai Que tipo de paixão pode despertar uma mulher estrangeira, anciã e estéril? Esta é uma pergunta que certamente incomodou o leitor, caso tenha almejado tomar os dados ao pé da letra. Mas o percurso feito leva a perceber que a imagem descrita de Sarai revela, ainda em germe, a história do povo de Israel. Ela vivência o ambiente desfavorável marcado pela seca e pela fome (formas de esterilidade) é desenraizada, errante, peregrina e está a caminho. Juntamente com seu esposo, 281 SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis, 2008, p. 75. Cf. EISENBERG, Josy. A mulher no tempo da Bíblia, 1897, p. 50. 283 Cf. CHOURAQUI, André. A Bíblia, 1995, p. 139. O texto assume a defesa da virtude das mães de Israel e precisa que elas, a bem dizer não cometeram adultério; EL PENTATEUCO. El Pentateuco, 1976, p. 50; hrwt. Torá, 2001, p. 30-31; 49-51. CHUMASH, hrwt yfmwx hfmx. O livro do Gênesis tyfarb rps. São Paulo: Maayanot, 2008, p. 73-75. 282 119 vão buscar sobrevivência em terra estranha, onde suas vidas estarão sob ameaça. O ambiente, hostil e adverso à geração da vida, propicia a esterilidade inicial. Nota-se, portanto, que a linguagem dessa que parece ser uma simples narrativa, está carregada de simbologia. A primeira a ser posta em evidência é a importância do matrimônio de Sarai e Abrão. A intervenção de Deus resgata o matrimônio e garante a continuidade da promessa. Como foi visto anteriormente, o matrimônio é símbolo da Aliança, relação constantemente atribulada devido às potências estrangeiras. Outra imagem é a beleza de Sarai, uma beleza que parece incorruptível e cobiçada. Nem mesmo a ação do tempo e o desgaste do caminho diminuem a beleza de Sarai. Sua beleza é equivalente à do templo, o qual não se desgasta nem fica feio, nem mesmo depois de sua destruição e extinção, pois, esse continua a existir na memória do povo, e sua beleza se perpetua no imaginário nostálgico do povo da Aliança (cf. 1Rs 6-7; 2Cr 2-3). Também a esterilidade é uma imagem que caracteriza a matriarca. A seca e a fome são formas de esterilidade, e ao mesmo tempo, experiências críticas que deixam uma profunda impressão na memória humana. Durante o período da formação de Israel, os hebreus se autocompreendem como seres de passagem, transição, êxodo e desenraizados, na terra que consideram como sua (cf. Dt 26,5-10). Suzana284 diz que a esterilidade faz parte da auto-percepção dos israelitas e explica que o ciclo patriarcal e o ciclo da esterilidade ancestral se superpõem, e estão fundamentados numa nova ordem do cosmos. Nessa nova ordem, o tema da criação é retomado, tendo como pano de fundo a esterilidade de Sarai, a qual desencadeia o processo de criação. Primeiro, Deus se dirige a Abrão por meio da palavra e lhe ordena a ruptura e o desenraizamento (cf. Gn 12,1) e depois o vincula à promessa de posteridade grandiosa (cf. Gn 12,2). 284 Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica, 2004, p. 22-27. 120 A autora afirma que, todos os modos de esterilidades figurados na Bíblia, são de origem divina. Estes são apresentados como estados transitórios, ou seja, intermediário onde se vivencia a escassez e o desnudamento, mas, como espaço de transformação. Suzana procura demonstrar a complexidade do conceito de esterilidade. O desdobramento de sentidos conferidos a este termo revelam elementos constitutivos da religião, da história e da auto-percepção de Israel. Em sua análise, aponta que a esterilidade recorrente nas tradições bíblicas não se restringe a um recurso literário, mas constitui um motivo seminal de visões variadas dos antigos israelitas através dos tempos. Sua hipótese vai além do esquema “esterilidade-matriarcas-feminino”, antes, enfoca a experiência de Israel que inclui os sentidos de “ruptura, desenraizamento e errância”. Elementos de três esferas distintas se comunicam formando uma unidade simbólica definindo o ciclo patriarcal num todo: 1) Infertilidade inicial das matriarcas; 2) O desenraizamento dos patriarcas; 3) A fome na terra. Suzana faz paralelo entre patriarcas-matriarcas e a terra de Canaã. Segundo a mesma, os patriarcas e as matriarcas, na qualidade de estrangeiros são desarraigados e infecundos, assim como a terra de Canaã é seca e marcada pela fome. A esterilidade patriarcal, arquitetada pela divindade, é mais abrangente do que simplesmente enaltecer o nascimento de um herói. Essa, assim como o deserto, é o lugar em que a relação direta com Deus está em primeiro plano. Nesta os humanos vivenciam a humildade. Neste contexto, Deus revelará sua misericórdia 285 gerando todo o povo de Israel. Por isso, Ele quis contar com Sarai, símbolo do povo, da Aliança, do templo, da esposa fiel, a escolhida para colaborar diretamente no plano salvífico, como mãe do filho da promessa. O texto leva a olhar Sarai, irmã e esposa de Abrão, não somente dentro de uma ordem material, mas dentro de uma ótica que transcende ao meramente dado, ou seja, a cosmovisão salvífica. Misericórdia em hebraico é (~ymix]r;),ou seja, a forma plural de útero (~x,r,) A misericórdia de Israel vem do útero de Deus. Cf. CHWARTS, Suzana. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica, 2004, p. 16. 285 121 CONSIDERAÇÕES Este capítulo corresponde ao título do trabalho “Sarai irmã e esposa de Abrão”, para chegar a um sentido plausível com referência a esta questão, estudou-se os versículos referentes sob a perspectiva linguístico-literária e histórico-teológica. Com referência ao estudo linguístico e à tradução, o texto segue certa linearidade, embora não deixe de oferecer dados interessantes, tal como a presença de interrogações, exclamações e imperativos. Neste capítulo, o narrador passa a voz ao personagem Faraó. Portanto, é o Faraó o responsável pela apresentação do desfecho da narrativa, cujas expressões são carregadas de tensões notadas nas interrogações, afirmações e imperativos. Ele descobre que Sarai é esposa de Abrão. Observa-se que, o Faraó não nega o fato de Abrão e Sarai serem irmãos, não diz que Abrão mentiu, somente confirma o fato de ser, Sarai esposa de Abrão. Na análise estilística evidenciaram-se, na voz do Faraó, as repetições dos sufixos de primeira pessoa do singular, dos sufixos de segunda pessoa masculino singular, a assonância marcante dos pronomes interrogativos dando força retórica ao discurso. A presença de paralelismos simples sinonímicos, bem como, das figuras de linguagem denominadas erotesis ou interrogação e ecfonesis ou exclamações. Se na voz de Abrão (cf. Cap. II) chamou a atenção o uso da terceira pessoa masculino plural referente aos oficiais do Faraó, e segunda pessoa do feminino singular referente a Sarai, revelando, deste modo, seu temor com relação aos egípcios e atribuindo à Sarai a responsabilidade pela sua vida, neste capítulo, correspondente ao desfecho, na voz do Faraó é o tu masculino a preponderar, demonstrando que o foco da tensão se concentra entre o que disse e não disse Abrão. Com referência ao estudo histórico-teológico, abordou-se o estatuto da irmã esposa dentro dos costumes legais de povos do Antigo Oriente, contemporâneos ao período patriarcal, depois se passou a investigar já dentro das Sagradas Escrituras a possibilidade de ela ser 122 realmente sua irmã e esposa, e o significado desta expressão, os resultados levaram a dar um salto para a dimensão teológica, vendo em Sarai não apenas uma mulher, mas a figura do povo. O aprofundamento deste tema permitiu chegar à tessitura do seguinte paradigma: Imagens femininas, como personificação do povo, como a cidade e a noiva infiel, mas convertida; Sarai, como o povo e a esposa fiel, ela é o protótipo do povo que permaneceu fiel ao seu esposo, modelo de virtude para as filhas de Jerusalém. Deste modo, o leitor foi convidado a lançar um novo olhar sobre Sarai, não um olhar cobiçoso como aqueles dos anfitriões egípcios e de seu esposo, mas um olhar de esperança e de auto-identificação, pois, assim como o narrador se utiliza de figuras femininas como a cidade, a virgem, a esposa e a mulher para personificar o povo. Sarai pode, também, ser aqui entendida como este protótipo do povo virtuoso e sua beleza como expressão da Aliança. 123 CAPÍTULO V EXPULSÃO E SUBIDA O caminho de Sarai e Abrão é agora mais claro do que quando foi iniciado. O leitor, após tê-lo percorrido, pode ver a estrada que o trouxe até aqui. Sob o ponto de vista romântico, a conclusão apresentada pelo narrador não parece ser um final feliz, mas para os filhos de Abrão e Sarai, os descendentes da promessa essa conclusão não poderia ser melhor. Os pais saíram carregados de bens, ou seja, de certo modo, tiveram vantagens, por outro lado de modo semelhante acontecerá aos hebreus ao saírem do Egito. Segundo a versão do Êxodo como expulsão (cf. Ex. 11,1; 12,31-32; 4,21; 6,1), tal ocorrido ajudou àquela massa de peregrinos a se formar e compreender-se como povo de Deus, bem como, a entender-se como unidade e fundamentar suas origens num ancestral comum. Abrão e Sarai são 124 considerados pais na fé, não só por que foram eles os primeiros a gerarem uma descendência, mas também, por esta experiência fundante e significativa. Tem-se, portanto aqui uma dupla expulsão: a primeira foi àquela provocada pela fome, e essa, gerada pela indignação do soberano. O retorno deu-se carregado de bens, e a vida foi preservada sem danos. Esse é o sonho do migrante, retornar à sua terra e poder viver na mesma. Sua terra pode não ser a melhor, a mais rica, mas foi esta que Deus lhe deu e, portanto, é bendita e é bendito o fruto que daí brota. 1. Estudo linguístico-literário de Gn 12,20-13,1a 1.4 Tradução e estudo morfológico-sintático ~yvi_n"a] h[oßr>P; wyl'²[' wc;yî >w: 20a E ordenou, sobre ele, o Faraó, homens, A frase inicia com o verbo hw"c". Segundo Scökel286, este verbo ocorre no piel e no pual. Nessa narrativa wc;yî >w: é um imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do piel. Este verbo no piel carrega o sentido de mandar, ordenar, prescrever, decretar, impor, exigir, portanto, foi traduzido para o português pelo verbo ordenou. O mesmo verbo exige um complemento de coisa ou de pessoa ou de ambos. Em seguida, tem-se uma preposição wyl'²['287 mais sufixo da terceira pessoa masculino singular, podendo ser traduzido em português por sobre ele. O nome h[oßr>P; já foi visto anteriormente e se refere ao soberano do Egito, o Faraó. 286 287 Cf. SCHÖKEL, Luis Alonso. hw"c". In: DBHP, 2004, p. 557; HARTLEY, John E. hwc. In: DITAT, 1998, p. 1269. Cf. CARR, G. Lloyd. l[". In: DITAT, 1998, p. 1121. 125 Segue o nome ~yvi_n"a]288, substantivo masculino plural, ou seja, homens. Sob a palavra ~yvi_n"a], encontra-se o sinal massorético atnah + indicando pausa, portanto, insere-se uma vírgula na tradução. A construção sintática desta frase tem a seguinte estrutura: verbo + objeto indireto + sujeito + objeto direto. As vírgulas inseridas na tradução se devem ao fato de que a ordem lógica da frase em português corresponde a sujeito + verbo + objeto. At°ao WxïL.v;y>w:¥ ATàv.ai-ta,w> `Al*-rv,a]-lK'-ta,w> 20b E despacharam a ele E a mulher dele E a tudo o que era dele. Esta nova oração, inicia-se com o verbo xl;v'. Esse verbo significa enviar, mandar embora, soltar, espalhar, disseminar, estender a mão. Segundo Austel289, o significado de mandar embora é comum no piel (cf. Gn 12,20; 18,6 e 3,23). No terceiro capítulo de Gênesis envolve claramente uma expulsão. No texto, esse verbo aparece como WxïL.v;y>w:¥ imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino plural do piel, e foi traduzido para o português como despacharam. Com esse sentido, o verbo encontra-se algumas vezes no livro do Êxodo (cf. Ex 4,21; 5,1; 6,11; 7,14; 8,4; 9,7a; 10,4; 11,10). Acompanha-lhe uma cadeia de objeto direto marcada pelo indicador do objeto direto, tae, que se repete por três vezes associados à conjunção w>>, sendo traduzido em português por, a ele, e a mulher dele e a tudo que era dele. O sinal massorético silluq demarca o final do versículo. 288 289 Cf. MCCOMISKEY, Thomas E. v¾a. In: DITAT, 1998, p. 62. Cf. AUSTEL, Hermann J. xl;v'. In: DITAT, 1998, p. 1567. ` 126 ~yIrøc: .Mimi ~r"’b.a; •l[;Y:w: ATõv.aiw> aWhû Al°-rv,a]-lk'w> 13,1a Subiu Abrão do Egito Ele e a mulher dele E tudo o que era dele O versículo inicia referindo-se Abrão, como sujeito, e de sua ação retratada com o verbo hl[. Este verbo, referindo-se a pessoas, tem a conotação de subir, ascender. Com alusão a um local indica o ponto de partida ou de chegada. No texto, o verbo •l[;Y:w: está no imperfeito consecutivo – terceira pessoa do masculino singular do qal, sendo traduzido por subiu. Esse verbo requer um complemento adjunto adverbial de lugar, portanto ~yIr:øc.Mimi, composto pela preposição !mi pode indicar ponto de partida, de, da, do, mais o substantivo ~yIr;c.mi, Egito. Observase que o sujeito é composto, pois quem subiu foi Abrão, ele, a mulher dele, e tudo o que era dele. Para o presente trabalho se delimita o texto até aqui, pois neste ponto se nota concluída a passagem de Abrão e Sarai pelo Egito, no ato de descer e subir, o que de certo modo pode também ser visualizado na análise estilística. 1.2 Análise estilística Segundo Bullinger 290, a palavra de Deus pode ser comparada à terra. Todas as coisas necessárias para o sustento e a vida podem ser obtidas trabalhando a superfície do solo terrestre, porém, existem tesouros de beleza e riqueza que somente podem ser obtidos por meio de profundas escavações. O mesmo se passa com as Sagradas Escrituras: todas as coisas que pertencem à vida e à piedade (cf. 2Pe 1,3) estão na superfície das Escrituras, ao alcance dos mais humildes e dos crentes; porém, debaixo desta superfície se encontram grandes despojos (cf. 2Cr 20,25) que, somente, são encontrados por quem os busca com desejo de encontrá-los, como a um tesouro escondido. 290 Cf. BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 13. 127 Em geral, as figuras de linguagem são usadas para centrar a atenção em alguma ênfase especial. Neste sentido o leitor é levado a examinar diligentemente tais figuras a fim de descobrir e aprender a verdade que é posta em relevo. Neste capítulo, o leitor sente o sabor da leitura, ou seja, aqui é possível perceber que esse texto possivelmente passou pelas mãos de um artista, o qual teceu os „finalmente‟ e conferiu um toque todo especial colocando-lhe numa moldura que se deixa contemplar por sua expressividade. A B C D B´ C´ D´ ~yvi_n"a] h[oßr>P; wyl'²[' wc;yî >w: At°ao WxïL.v;y>w:¥ ATàv.ai-ta,w> `Al*-rv,a]-lK'-ta,w> ~yIrøc: .Mimi ~r"’b.a; •l[;Y:w: ATõv.aiw> aWhû Al°-rv,a]-lk'w> 20a E ordenou, sobre ele, o Faraó, homens, 20b E despacharam a ele E a mulher dele E a tudo o que era dele. 13,1a Subiu Abrão do Egito Ele e a mulher dele E tudo o que era dele Uma das primeiras coisas que salta aos olhos e soa aos ouvidos é o uso da terceira pessoa masculino singular referindo-se a Abrão e a tudo o que lhe pertence, ora como objeto ora como sujeito. É interessante observar esta mudança de estado em poucas linhas. Quando expulso, Abrão, sua mulher e tudo o que é seu, são objetos da ação e, quando sobem, os mesmos são sujeitos da ação. No versículo 20a, identifica-se uma figura de linguagem caracterizada como hipérbato291. O hipérbato é a inversão da estrutura frasal, ou seja, da ordem direta dos termos da oração. Aqui se tem a seguinte construção: verbo + objeto indireto + sujeito + objeto direto, quando a estrutura comum do hebraico tem sua construção básica assim: verbo + sujeito + objeto + complemento292. 291 292 BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 598. Cf. PINTO, Carlos Osvaldo Cardoso. Fundamentos para a exegese do Antigo Testamento, 1998, p. 108. 128 Cada idioma tem suas próprias leis gramaticais enquanto a ordem das palavras, chamada sintaxe ou coordenação. O mesmo se dá com a sintaxe hebraica. A questão é que muitas vezes na tradução, caso não se faça atenção a estes pormenores, pode-se perder um elemento importante da construção estilística da narrativa. O hipérbato tem a finalidade de atrair a atenção sobre um sujeito ou objeto, merecedor de ênfase. Neste caso, é o objeto indireto que ganha o foco da atenção, colocado logo após o verbo. Bullinger 293 ilustra fazendo uma comparação. Alguém tem em sua casa qualquer coisa de especial e deseja que seus amigos prestem atenção. Colocada entre as demais coisas, esta passará despercebida, porém, um dia é coloca encima da mesa. Quem entra, logo nota qualquer coisa diferente sobre a mesa. O mesmo sucede com o hipérbato para atrair a atenção sobre uma palavra ou frase. Este, colocado no rigor gramatical passa despercebido, porém, colocado fora de tal ordem, logo o leitor atento notará a diferença. A respeito do que segue é possível identificar a construção em paralelismo reto: BCD B´C´D´. Cássio Murilo294 comenta que, neste recurso literário, quer-se rimar conceitos e idéias, não sendo uma simples repetição do que já foi dito, mas um reforço estruturado sob o que se quer comunicar, ou seja, o modo como foi expulso o patriarca e o que ele possuía. Na primeira construção BCD são expulsos o patriarca, sua esposa e pertences, objetos da oração, na segunda construção B´C´D´ onde sobem, o que significa voltar à terra, os mesmos são sujeitos da oração. E assim se fecha esta narração da passagem de Abrão e Sarai pelo Egito. A mesma apresenta um quadro que se abre com a descida do casal patriarcal, ou seja, sua saída da terra e agora se conclui com a subida de retorno à mesma. 293 294 BULLINGER, E. W. – LACUEVA, F. Diccionario de figuras de dicción usada en la Biblia, 1985, p. 598. Cf. DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Metodologia de exegese Bíblica, 2000, p. 303. 129 1.3 Análise narrativa Nos estudos sobre narrativa referentes ao gênero literário 295, alguns estudiosos chamam a atenção para cenas com estruturas semelhantes. Estas são designadas “cenas típicas”296 ou “cenas padrão”297. Segundo Ska298, trata-se de „tipos‟ ou „convenções literárias‟. Deste modo é possível identificar nas três narrativas da esposa-irmã (cf. Gn 12,10-20; 20,118; 26,1-14) um mesmo esquema, que contém certo número de elementos, e certa ordem semelhante, todavia é possível identificar também as variações, e estas em geral, evidenciam singularidade e a intenção do relato. Cássio Murilo diz que: “não obstante apresentem diferenças de conteúdo, tem formas semelhantes [...] quando se confrontam textos formalmente semelhantes, é possível abstrair um esquema básico [...] esse esquema comum é denominado „gênero literário‟” 299. É possível dizer que Herman Gunkel300 tenha dado a „partida inicial‟ para a evolução deste tipo de pesquisa ao concentrar-se nas formas literárias usadas no Antigo Israel, o que o levou a distinguir as diversas formas da literatura veterotestamentária (legendas, hinos, lamentos, leis, profecia, sabedoria) e a lhes atribuir os diferentes contextos fundamentais dos quais se originaram. Levando em consideração o que foi dito Cássio Murilo301 chama a atenção para o fato de que os manuais de metodologia bíblica, por questão didática e funcional, falam de „gêneros literários do Antigo Testamento‟ e „gêneros literários do Novo Testamento‟, subdividindo-os segundo as tradições (histórica, apocalíptica, sapiencial), porém os vários gêneros literários estão presentes em ambos os testamentos. 295 Cf. DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 41-65. Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p. 139. 297 Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p. 79-101. 298 Cf. SKA, Jean Louis. Sincronia: a análise narrativa, 2000, p. 139. 299 SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 41-42. Cássio observa: “para que haja um gênero literário, são necessários ao menos dois textos com características formais semelhantes. Todavia, cada vez que um autor usa um gênero literário, opera nele mudanças e adaptações”. 300 Cf. FITZMYER, Joseph A. A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997, p. 23. 301 Cf. SILVA, Cássio Murilo Dias da. Leia a Bíblia como literatura, 2007, p. 45. 296 130 Ao que sugere Robert Alter302, as chamadas cenas padrão não são sinônimo de simples repetições, ou originadas de fontes diversas, ou evolução de uma fonte, ou até mesmo autores diversos. Robert Alter, citando Homero, faz ver que esta é uma característica de narrativas históricas. As cenas padrão fazem parte de um acordo „tácito‟ entre o artista e o público relacionado com a organização interna da obra de arte, o qual media o complexo processo de comunicação da arte. Os narradores bíblicos usaram essas convenções para pôr em prática seu acordo tácito com os leitores de seu tempo. Tais convenções literárias são manejadas de caso pensado, os episódios não são aleatórios, e as repetições não são duplicações, mas são esperados pelo público. Assim é possível identificar um esquema básico 303 nas três narrativas da esposa-irmã (cf. Gn 12,10-20; 20,1-18; 26,1-17). 1. O patriarca e a matriarca entram em terra estrangeira. 2. O patriarca teme pela sua segurança e faz a esposa passar por sua irmã. 3. O ardil é descoberto pelo soberano local. 4. O soberano convoca o patriarca para censurá-lo. Além deste esquema semelhante entre as três narrativas citada é possível identificar elementos comuns a qualquer narrativa, sendo assim cada capítulo estudado desta narrativa corresponde à sua parte no enredo: exposição, complicação, clímax, desfecho. Embora o desfecho tenha sido estudado e apresentado como a conclusão das complicações, este capítulo visa apresentar de fato os versículos que correspondem à conclusão. Como cada narrativa tem sua particularidade, não parece problemático visualizar aqui a conclusão da passagem de Abrão e Sarai pelo Egito. Eles partiram de sua terra de origem e foram até a terra que o Senhor lhes havia destinado, fixaram-se no Negueb (cf. Gn 12,9). Do 302 303 Cf. ALTER, Robert. A arte da narrativa bíblica, 2007, p. 79-101. SKA, Jean Louis. Introdução à leitura do Pentateuco, 2003, p. 72. 131 Negueb eles desceram ao Egito (cf. Gn 12,10), agora eles sobem (cf. Gn 13,1) do Egito ao Negueb, retornando à terra prometida. A despedida não parece ser uma das mais triunfantes. O Faraó não se atreve a tirar-lhes os presentes. Com as últimas palavras - e todos os seus pertences- intencionalmente colocados no final do enredo, e repetidos por duas vezes, o narrador deixa esboçar certo ar de ironia, e assim a narrativa parece até mesmo fazer um elogio à vivacidade e esperteza do patriarca. 2. Estudo histórico-teológico 2.1 Incidência 304do caso da esposa irmã O livro do Gênesis apresenta três versões, ou três narrativas da esposa-irmã (cf. Gn 12,10-13,1; 20,1-18 e 26,1-17). Ao longo dos séculos estas foram abordadas por diferentes perspectivas305 na tentativa de justificá-las. Este trabalho aprecia a singularidade, a originalidade e a unidade de cada narrativa, bem como sua interrelação, embora busque concentrar-se especificamente na primeira narrativa. De modo algum se tem a pretensão de buscar a origem ou a historicidade de cada variante. Ao contrário, procura-se trabalhar sobre o texto recebido e colher deste a beleza, a unidade e a teologia que uma pesquisa sincrônica permite alcançar neste caso. 304 Estas são narrativas similares, as mesmas têm em comum um evento semelhante e um desenvolvimento quase análogo. Há diferença nos nomes divinos (YHWH e Elorim). As mesmas são atribuídas a autores, documentos ou tradições diferentes J e E. No entanto há estudiosos que tendem a enfatizar o fato de que a repetição (ou duplicação) poderia ser usada livremente, o que leva alguns a considerarem as mesmas como narrativas contemporâneas. Todavia outros ainda afirmam que houve uma versão que foi copiada, revisada e adaptada, resultando em três versões desta narrativa. As repetições podem ser utilizadas para enfatizar determinado aspecto ou uma mensagem subliminar em uma narrativa e da mesma forma um fato pode ocorrer mais que uma vez. Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20; 20,1-18; 26,1-16). In: WÉNIN, André. Studies in the book of Genesis: literature, redaction and history. Leuven (Belgium): Leuven University Press, 2001, p. 366-367. 305 Múltipla atestação significa: para hipótese das fontes essas são versões de uma narrativa originária, ou fontal; para a hipótese documental cada narrativa pertence a um documento J e E; para outros uma é evolução da outra; para outros são narrativas diferentes, de tempos, lugares e personagens diferentes. Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 359-369. 132 No que diz respeito à abordagem teológica, é possível identificar elementos intertextuais nas três narrativas, embora se encontram elementos de descontinuidade, ou seja, que torna cada uma independente. Estas narrativas envolvem um patriarca, sua esposa e um soberano estrangeiro. Com referência à temática, é possível observar: Temática: 12,10-13,1 20,1-18 26,1-17 Patriarca e matriarca Abrão e Sarai Abraão e Sara Isaac e Rebeca Soberanos Faraó (sem nome) Abimelec Abimelec Divindade YHWH ELOHIM/YHWH YHWH Pragas para o Faraó e sua casa/ reverte a situação Abimelec/sonho/fechame nto dos úteros/reverte a situação Abençoa a Isaac Motivo Fome (12,10) -- -- Fome (26,1) Modo Imigrante (12,10) Imigrante (20,1) Imigrante (26,3) Lugar Egito (12,10-11) Gerara (20,1) Gerara (26,6) Beleza Sarai, muito bela (12,11.14-15) -- -- Rebeca era bela (26,7) Irmã Apresenta como “irmã” por medo da morte (12,13) Apresenta como “irmã” por medo da morte (20,2) Apresenta como “irmã” por medo da morte (26,7) Consequências para matriarca Sarai é levada para casa (12,15) Sara é levada (20,2) Interrogam sobre a sua mulher (26,7) Consequências para o patriarca Recebe muitos presentes (12,16) Recebe muitos presentes (20,14-17) Isaac prospera (26,12-14) “pragas” (12,17) “Aviso/sonho” (29,3-7) “viu pela janela” (26,811) Abrão foi repreendido (12,18-19) Abraão foi repreendido (20,9-10) Isaac foi repreendido (26,9) Expulso do Egito (12,20) Livre para habitar (20,15) Afastar-se, ir embora (26,16) Rico (12,20-13,1) Rico (20,14) “mais poderoso que nós” (26,16) Ação divina Revelação da verdade Ação do Soberano Consequências Resultado 133 A primeira narrativa (cf. Gn 12,10-13,1) abre-se com uma contextualização, e nesta encontra-se a causa da migração, ou seja, a fome e o destino, ou seja, o Egito (cf. Gn 12,10). Na fronteira Abrão revela conhecer a beleza de Sarai (cf. Gn 12,11) e passa a temer a morte devido à beleza de sua esposa (cf. Gn 12,12). Por isso, como estratégia suplica à Sarai dizer que é sua irmã, a fim de ter a vida preservada (cf. Gn 12,13). Abrão é categórico, nesta versão ele usa um imperativo, o que demonstra a tensão vivida no caminho. De fato, quando chegam ao Egito, os egípcios vêem a beleza de Sarai, elogiam-na ao Faraó (cf. Gn 12,14-15) e a levam para o harém (cf. Gn 12,15). Por outro lado, Abrão foi recompensado (cf. Gn 12,16). Entra então a ação do Senhor, YHWH, o qual puniu fortemente o Faraó (cf. Gn 12,17). Não se sabe como, mas o Faraó descobre que Abrão é esposo de Sarai. Nas demais versões a descoberta é evidente (cf. Gn 20,3-7; 26,8). O soberano chama o patriarca e o repreende pelo que fez (cf. Gn 12,18-19; 20,9-10; 26,9). Sarai é restituída (cf. Gn 12,19; 20,14) e ambos, Abrão e Sarai, são escoltados até a fronteira e expulsos do país, mas saem com os bens que possuíam e com os que conquistaram (cf. Gn 12,20-13,1). A segunda versão, um pouco mais longa, não tem mais o Egito como palco, mas sim Gerara, embora fiquem ocultos ao leitor os motivos que levaram Abraão a morar em Gerara (cf. Gn 20,1); e os motivos pelos quais Sara foi levada para o harém de Abimelec (cf. Gn 20,2). A ação do Senhor, nesta narrativa, é única. Ele, ELOHIM, avisou Abimelec em sonho que Sara era casada (cf. Gn 20,3-7). Também, a atitude de Abimelec aqui é diferenciada, ele chama seus servos e conta o que aconteceu (cf. Gn 20,8). Em seguida, chama Abraão e o repreende (cf. Gn 20,9-10). O patriarca tem direito a voz e aproveita para justificar as razões de seu temor (cf. Gn 20,11). Abraão, somente neste texto, diz que Sara é sua irmã por parte de pai (cf. Gn 20,12), e explica o motivo que o levou a pedi-la para dizer que era sua irmã (cf. Gn 20,13). 134 Como na versão anterior, o patriarca prospera (cf. Gn 20,14). Mas, aqui há um diferencial, os presentes são dados posteriormente ao fato de saber quais os verdadeiros laços entre Abraão e Sara. Sara é restituída ao marido (cf. Gn 20,14)306. Segue então uma série de eventos que são singulares a esta narrativa. Abrão é convidado a permanecer no país (cf. Gn 20,15); Abimelec fala com Sarai e a recompensa por sua honra (cf. Gn 20,16). Por fim, Abraão intercede a Deus por Abimelec e Deus reverte a situação (cf. Gn 20,17), pois Deus havia tornado estéreis todas as mulheres da casa de Abimelec por causa de Sara, mulher de Abraão (cf. Gn 20,18). A terceira narrativa, mais curta, apresenta como principais personagens Isaac e Rebeca. O motivo da migração é o mesmo do tempo de Abrão, a fome, mas o destino, não é mais o Egito e sim Gerara (cf. Gn 26,1). Deus fala com Isaac e diz para não descer ao Egito. Em seguida, renova a promessa feita a Abraão (cf. Gn 26,2-6). Os homens do lugar perguntam a respeito de Rebeca e Isaac a apresenta como sua irmã, por temor devido à beleza de Rebeca (cf. Gn 26,7). Abimelec descobre que Isaac e Rebeca são casados, porque viu pela janela que ele a acariciava (cf. Gn 26,8). Então, o soberano chama Isaac e o repreende (cf. Gn 26,9). Como fez a Abraão, Abimelec dá oportunidade para que Isaac se justifique. Então esse comunica as razões de seu temor (cf. Gn 26,9). Enfim, o soberano ordenou aos homens para não tocá-los, e Isaac prosperou, não com presentes, mas com seu trabalho (cf. Gn 26,11-15), porém lhe foi pedido para apartar-se dali (cf. Gn 26,16). Na primeira e na terceira narrativas, os patriarcas Abrão e Isaac temem devido à beleza de suas esposas (cf. Gn 12,11; 26,7), mas nas três versões usam a mesma estratégia, apresentar a esposa como irmã, para salvar a própria vida (cf. Gn 12,13; 20,2; 26,7). Somente a primeira e a segunda narrativas comentam o fato de a matriarca ser levada para o harém (cf. Gn 12,15; 20,2) e, posteriormente, ser devolvida ao esposo legítimo (cf. Gn 12,19; 20,14), portanto, parece que com Rebeca isso não veio a ocorrer. 306 O texto é bem claro ao dizer que Abimelec não tocou em Sara: “Abimelec, que ainda não tinha se aproximado dela” (Gn 20,4), ou seja, a promessa não foi ameaçada. A promessa também estava vinculada a ela. 135 Chama a atenção o respeito pelo matrimônio e o pavor, que toma conta, com relação à possibilidade de contrair relações com uma mulher casada (cf. Gn 12,18-19; 20,9-10; 26,10). Nos três relatos, o rei estrangeiro aparece com uma imagem bem diferente daquela que se costuma desenhar na mente. Tanto o Faraó, quanto Abimelec, revelam significativo senso de justiça e de responsabilidade pelos forasteiros307. Outro elemento a ser destacado é a questão do universalismo e do particularismo. Na pessoa dos patriarcas vê-se uma defesa do particularismo da fé em Deus, YWHW ou ELOHIM, por outro lado, na pessoa dos soberanos é possível identificar um discurso universalista do temor a Deus. As narrativas evidenciam, por fim, que fora de Israel existe sim o temor a Deus, por mais que os patriarcas pensem o contrário. 2.2 Releitura do Êxodo308 Provavelmente, o termo releitura não seja o mais adequado porque de certa forma remete a uma hipótese de datação do texto, como se o mesmo fosse posterior ao Êxodo. Quanto a isto, não se tem uma certeza matematicamente exata. O que se tem são especulações, deste modo não se tem a pretensão de defender uma verdade, mas apresentar um indicativo condutor de continuidade e descontinuidade, característico nas Sagradas Escrituras. 307 Caso se parta da hipótese documental, o texto J seria provavelmente do IX sec. a.C e o E seria do VIII a.C, portanto, época da monarquia, o que permite fazer uma comparação entre o rei Faraó e o rei David. Tanto o Faraó quanto o rei Abimelec tomaram (Gn 12,15; 20,2) a mulher de um estrangeiro visivelmente bonita, „muito bonita‟ (12,14; 26,7) pensando que fossem núbeis, mas ao saberem que elas tinham marido, os mesmos as restituíram. O Faraó e Abimelec são cientes de ter incorrido em grande pecado retendo a esposa de outro homem. Nota-se que os reis estrangeiros, não israelitas, não conhecem a lei, mas a obedecem, pois eles sabem lidar de forma adequada com um estrangeiro em sua casa. Portanto, governantes estrangeiros souberam mostrar respeito para com os peregrinos, diferente do rei da Judéia. Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 368. 308 Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,1020; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 359-369; André Wénin publicou dois estudos sobre Gênesis 12, na qual ele destaca os muitos links que este capítulo tem com o ciclo das origens e, em especial com a história da queda, ou pecado original. Para ele, o Gen 12,10-20 foi concebido como o 'pecado original' de Abraão e Sarai seria uma contra-imagem de Eva. Ele faz um paralelo com relação à missão de Abrão de ser benção para todos os povos da terra. Todavia nos interessa mais o paralelo que ele faz com o Êxodo. Cf. WENÍN, André. Abraham: elleción y salvación. Reflexiones exegéticas y teológicas sobre Génesis 12 em seu contexto narrativo. In: Espíritu y vida (14) 2005, p. 3-25; WENÍN, André. Abraham: élection et salut. Réflexions exègétiques et théologiques sur Gênese 12 ans son contexte narratf. In: Revue Théologique de Louvain (27), 1996, p. 2-24. 136 Ao referir-se à releitura, pretende-se apontar alguns elementos intertextuais 309que possibilitam uma hermenêutica sincrônica, possível de visualizar no quadro ilustrativo: Abrão e Sarai José/Israel 12,10 – Aconteceu uma fome na terra 41,54b – Havia fome em todos os países 12,11 – Quando ele se aproximava para chegar no Egito 46,28 – Eles chegaram à terra de Gessen 12,11 – Disse a Sarai mulher dele 46,31 – José disse a seus irmãos 12,11 – Eis que sei 46,31 – Vou subir para advertir o Faraó [...] 12,12-13 – Acontecerá, que verão a ti os egípcios, e dirão [...] dize, pois [...] 46,33-34 – Assim quando o Faraó vos chamar e perguntar [...] vós respondereis [...] 12,13 – Para que se faça o bem para mim por causa de ti 46,34b – Deste modo podereis permanecer na terra de Gessen 12,15 – Viram a ela os oficiais do Faraó e elogiaram a ela para o Faraó 47,1 – Foi, pois, José advertir a Faraó 12,15 – E levaram a mulher para a casa do Faraó 47,7 – Então José introduziu seu pai Jacó e o apresentou ao Faraó 12,16 – E para a Abrão foi feito o bem por causa dela, e teve para ele carneiro, gado e asnos, servos e criadas, jumentas e camelos. 47,5 – Jacó estabeleceu seu pai e seus irmãos e lhes deu uma propriedade na terra do Egito, na melhor região [...] 47,27 – Assim Israel estabeleceu-se na terra do Egito, na região de Gessen. Aí eles adquiriram propriedades, foram fecundos e se tornaram numerosos. Neste ponto é possível ver a virada que as duas histórias sofrem sendo possível continuar a identificar aspectos comuns que sugere certa tipologia 12,17 – Feriu (pesteou) o SENHOR ao Faraó com pestes grandes Ex 7,14 – 11,10 – Pragas contra o Faraó e o Egito 12,18 – Chamou Faraó a Abrão e disse: 12,31 – E Faraó chamou a Moisés e a Aarão e disse: 12,19 – Toma-a e vai-te 12,32 – Levantai-vos e saí 12,20 – E despacharam a ele [...] 12,33 – Os egípcios pressionavam o povo para que saísse de pressa 13,01 – Subiu Abrão do Egito [...] 12,37 – E os filhos de Israel partiram de Ramsés 309 Cf. ROMER, Thomas Cristian. La typologie exodique em Gn 12,10-20 et 16. In: WÉNIN, André. Studies in the book of Genesis: literature, redaction and history. Leuven (Belgium): Leuven University Press, 2001, p. 181198. No fim do artigo Romer, em outras palavras diz que se as alusões de Gn 12 à tradição do êxodo, não são meras interpretações de intertextualidades ocasionais, pode-se supor que o autor tinha conhecimento dessas histórias (de uma forma ou de outra). Todavia não se quer dizer, que a saga do Êxodo do Egito dos patriarcas tenha sido destinada a servir como prólogo para o Êxodo. Por outro lado não se pode negar certa continuidade, ou similaridade, nem que seja no sentido textual. 137 Em suas características intertextuais o relato de Gn 12,10-20 apresenta semelhanças com a permanência de Israel no Egito. Pela escolha linguística o narrador evoca a lembrança do leitor da fome nos dias de José, bem como sua residência subsequente no Egito, que, eventualmente, levará à escravidão dos israelitas. A frase introdutória (cf. Gn 12,10) prenuncia a fome que levou os irmãos de José a buscar refúgio no Egito (cf. Gn 41,54). Além disso, a fome nos dias de Abrão era opressiva, a palavra dbek î ' expressa a intensidade contida nas três repetições que descreve a fome no tempo de José (cf. Gn 43,1; 47,4.13). Igualmente evidentes são as referências ao Faraó e as pragas que recordam o Êxodo 310. Segundo Niditch311 Gn 12,10-20 é um estilo de narrativa tradicional. Em seus elementos genéricos e morfológicos é uma narrativa simples e direta. A constelação dos elementos individuais (Faraó, Egito, pragas, partida precipitada) sustenta a hipótese segundo a qual tal composição corresponde ao período sucessivo à formação da tradição do Êxodo. A ausência de amargura para com monarcas estrangeiros e, particularmente, a relativa segurança, possibilitam deduzir um período em que o êxodo e a conquista fazem parte do passado integrados num topos literário. A descida ao Egito devido à fome e o retorno à terra, levando consigo o que possuía, assemelha-se ao que farão os hebreus em sua partida do Egito. Os „escravos‟ também despojarão os egípcios e partirão com suas riquezas (cf. Ex 12,35-38). O Faraó foi castigado com pragas, as quais o fizeram mudar de atitude libertando Sarai e expulsando o casal, assim como outras pragas farão o Faraó mudar de atitude e o levarão a liberar Israel312. Como se deu com seus descendentes, também Abrão e Sarai precisaram migrar devido à fome (Gn 12,10): “Antes que viesse o ano da fome ( b['Þr)" ” (Gn 41,50); “e começaram a vir os 310 Cf. JEANSONNE, Sharon Pace. The women of Genesis: from Sarah to Potiphar´s wife. Minneapolis: Augsburg Fortress Publishers, 1990, p. 16. 311 Cf. NIDITCH, Susan. The three wife-sister tales of Genesis. In: A prelude to biblical folklore. Urbana: University of Illinois Press, 2000, p. 62. 312 Há estudiosos que descreve Gn 12,10-20 como uma antecipação do Êxodo, o que não se enquadra as três narrativas, pois os paralelos não estão no Egito, mas em Gerara terra dos filisteus. Cf. DE HOOP, Raymond. The Use of the Past to Address the Present: The wife-sister-incidents (Gen 12,10-20; 20,1-18; 26,1-16), 2001, p. 367. 138 sete anos de fome [...] havia fome em todos os países” (Gn 41,54); “De toda a terra veio ao Egito para comprar mantimento [...] pois a fome se agravou por toda a terra” (Gn 41,57); “foram os filhos de Israel comprar mantimentos [...] porque a fome assolava a terra de Canaã” (Gn 42,5); “mas a fome assolava a terra [...]” (Gn 43,1). Sarai foi entregue aos Egípcios pelo seu irmão (cf. Gn 12,11-16), assim como mais tarde também José será entregue por seus irmãos: Então disse Judá a seus irmãos: “De que nos adianta matar nosso irmão [...] vendamo-lo aos ismaelitas [...] é nosso irmão, da mesma carne que nós. E os irmãos o ouviram [...] venderam José aos ismaelitas [...] e estes o conduziram ao Egito [...]. (Gn 37) Assim como Sarai possuía uma beleza particular (`T.a'( ha,Þr>m;-tp;y> hV'îai yKi²), capaz de chamar a atenção dos egípcios e os desejos de posse do Faraó, também José era “belo de porte (ra;toß-hpey>) e tinha um rosto muito bonito ( ha,(r>m; hpeîywI)” (Gn 39,6) a ponto despertar desejos na mulher de seu senhor (cf. Gn 39,7-20). Em meio ao seu sofrimento, como o povo sob o jugo da escravidão, ela se dirigiu ao Senhor e foi ouvida, o Senhor veio em seu favor (Ex 2,23-25 e Gn 12,17), e feriu313 o Faraó com grande pragas (cf. Ex 12,29-30; Gn 12,17) libertou a Sarai, figura do povo, das mãos do Faraó e a devolveu a seu esposo Abrão, e assim eles foram expulsos do Egito (cf. Ex 12,3132; 4,21; 6,1; 11,1; Gn 12,20). Nos pequenos detalhes é possível contemplar a continuidade com a experiência e teologia do Êxodo, etapa de importância fundamental para a formação da identidade do povo e o estabelecimento de relações mais estáveis com Deus. Na libertação de Sarai identifica-se a 313 A intervenção de YHWH contra o Faraó e o Egito permite fazer, através do uso do termo „ferir‟ ([gn), alusão às pragas do Egito. Todavia a reação do soberano egípcio nesta história é o oposto do que a do Faraó em Ex 12, nesta o faraó deixou-se convencer imediatamente pelas pragas divinas, devolvendo a liberdade a Abrão e a sua esposa. É o próprio Faraó quem provoca o êxodo de Abrão expulsando-os do Egito (xl;v', Gn 12,20 e 14,5). Cf. ROMER, Thomas Cristian. La typologie exodique em Gn 12,10-20 et 16, 2001, p. 196. 139 versão correspondente ao Êxodo como libertação, e na expulsão do casal a identificação do Êxodo como expulsão. Diz o pensamento clássico hebraico: A descida de Avraham e Sara ao Egito foi um precursor do exílio Egípcio: A fuga de Avraham do Egito como um homem rico abriu os canais espirituais da redenção que possibilitaram a seus filhos saírem do Egito carregados de ouro e prata. Da mesma forma, o cuidado extremo de Sara para não ser desonrada pelo Faraó, dotou mais tarde as mulheres judias do Egito, com a força para permanecerem fiéis às suas famílias314. É interessante apreciar a riqueza de detalhes e a beleza deste texto, uma obra moldada certamente por mãos de artista. Por traz de um véu que delineia aparente simplicidade é possível ir além e colher verdadeiro tesouro no que diz respeito à autocompreensão de Israel, fruto de uma longa experiência. Nesta experiência todos os elementos, destacados ao longo do percurso, se tornaram parte da identidade e da história de todos que se compreendem como filhos de Abrão e Sarai. 2.3 Subida do Egito A expressão “subir do Egito” firma-se na memória de Israel, não apenas como síntese teológica, mas também como trajetória de resistência a sistemas que se alimentam através da vida das pessoas, expropriando seu trabalho por meio de tributos. Esta expressão recolhe um legado espiritual, histórico e teológico na identidade dos descendentes de Abrão e Sarai. Abrão partiu de Harã seguindo a ordem do Senhor (cf. Gn 12,4). Agora ele parte novamente, mas seguindo a ordem do Faraó, diz o narrador: “Abrão subiu do Egito para o Négueb”. Abrão foi ao Négueb na terra prometida (cf. Gn 12,9) e de lá “desceu” ao Egito (cf. Gn 12,10). Agora ele “sobe” do Egito ao Negueb, está de volta à terra prometida. O narrador repete “Ele, sua mulher e tudo o que era dele” (cf. Gn 12,20; 13,1) por duas vezes. 314 SEFER BERISHIT1. O livro de Gênesis, 2008, p. 75. 140 Uma arriscada passagem da narrativa sobre Abrão e Sarai terminou. A abertura do ciclo de Abrão põe o leitor diante da realidade humana, um drama permeado de ambiguidades e pouco motivador. O patriarca, chamado por Deus, recebeu promessa de terra e descendência, mas tudo parece estar ameaçado, o mesmo se viu obrigado a abandonar a terra e a migrar para uma terra na qual ele temia que seus habitantes o matassem. Se em sua abertura a narrativa iniciou com uma descida, agora, no seu encerramento, a conclusão apresenta a subida. O ciclo está completo. Tem-se, portanto, dois movimentos: descida e subida. Esta carrega a conotação contrária da descida, pois, a subida evoca sair de uma posição menos favorecida para uma posição melhor. De fato, quando o patriarca e a matriarca desceram suas condições não era das melhores, fome, medo, perseguição e dominação. Na subida eles encontram-se livres do que os atormentavam, enriquecidos e protegidos pelo Deus que os livrou, pois, Ele também os conduz. Passaram pela fronteira, desceram até o Egito e agora podem retornar à terra que o Senhor lhes prometera. A sensação de medo e de suspense encontrada pela conjuntura vigente é superada e a narrativa põe novamente o leitor dentro do conjunto da harmonia inicial da promessa estabelecida entre o Senhor e Abrão, da qual Sarai é parte constituinte. O retorno à terra foi mediado por uma mulher da qual a única expressão de ação se resume numa incógnita que o narrador diz ter provindo da mesma “yr:Þf' rb:ïD>-l[;”, o que vem a ser, como foi visto, não é tão fácil dizer o que compreende tal expressão, todavia, foi por isso que o Senhor agiu e os livrou do estado de opressão, garantindo a continuidade da promessa, o retorno da terra e a geração de descendência. 2.4 Atualidade da narrativa O documento, “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, da Pontifícia Comissão Bíblica dedica o seu IV capítulo ao tema da interpretação da Bíblia na vida da Igreja. Este capítulo, 141 em seu primeiro tópico, trata da atualização do texto bíblico, o que compreende princípios, métodos e limites315. A citação deste documento se faz importante nesta etapa do trabalho porque é o que se pretende fazer neste tópico. Conforme o documento, para a Igreja, a Bíblia não é simplesmente um conjunto de documentos históricos referente ao passado, mas sim Palavra de Deus dirigida à Igreja e ao mundo inteiro no tempo presente. Esta convicção tem como consequência “a prática da atualização e da inculturação da mensagem bíblica” 316. Essa é uma prática já presente na própria Bíblia, onde textos mais antigos foram relidos à luz de novas circunstâncias e aplicados à situação presente do povo de Deus. Fundamentando-se nestas convicções, a atualização continua a ser uma prática necessária entre os fiéis. O documento diz que a atualização é possível, necessária e deve ser constante. A mensagem bíblica pode fecundar todos os tempos, ela está ao alcance dos homens e mulheres de hoje, portanto, é necessário aplicar a mensagem desses textos às circunstâncias presentes e exprimi-la numa linguagem adaptada à época atual. Observa-se que a atualização não significa manipular o texto, nem projetar sobre os escritos bíblicos opiniões ou ideologias novas, “mas de procurar com sinceridade a luz que eles contêm para o tempo presente”317. No parágrafo sucessivo, o documento diz que “graças à atualização, a Bíblia vem iluminar inúmeros problemas atuais [...] a opção preferencial pelos pobres [...] a condição da mulher [...] direito da pessoa, proteção a vida humana, preservação da natureza, aspiração à paz universal”318. 315 Este documento foi lançado em 1993 por ocasião do centenário da Encíclica de Leão XIII Providentissimus Deus (1893) e do cinquentenário da encíclica de Pio XII, Divino afflante Spiritu. A providentissimus Deus quer proteger a interpretação católica da Bíblia contra os ataques da ciência racionalista; já a Divino afflante Spiritu preocupa-se em defender a interpretação católica, contra os ataques que se opõem à utilização da ciência, por parte de exegetas, que querem impor uma interpretação não cientifica chamada “espiritual” das Sagradas Escrituras. Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de abril de 1993). 8. ed. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 8. 316 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, 2009, p. 139. 317 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, 2009, p. 140-141. 318 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A interpretação da Bíblia na Igreja, 2009, p. 143. 142 Deste modo pode-se constatar o quanto a narrativa estudada ilumina a vida. A narrativa em questão é uma história não muito estranha a tantos homens e mulheres dispersos pelo mundo da migração. Quem nunca ouviu falar de áreas de expulsão e áreas de atração? Quantos migrantes castigados pela seca e pela aridez de sua terra foram e ainda são expulsos da mesma devido à fome e se colocaram em marcha, como peregrinos, em busca da sobrevivência. Esta é a realidade de milhares de nordestinos que deixam o sertão e vem para a lavoura do corte de cana319 no interior do estado de São Paulo e Minas Gerais. Aqui se fala em nível local, mas é possível ampliar o horizonte para as realidades internacionais, veja-se o caso dos migrantes na rota do mediterrâneo 320 que desembarcam em Lampedusa. São milhares de cidadãos africanos que deixam a sua terra e se aventuram sem nada a perder, tudo o que acontecer é lucro, pois para eles a morte é uma certeza muito próxima, a vida é uma esperança, sorte de poucos. O mesmo vale para os que arriscam a vida na fronteira entre México e Estados Unidos, bem como, para os Bolivianos em São Paulo. Se as rotas da migração falassem! Quantos retirantes teceram sonhos de um dia poder retornar! Segundo a Comissão Mundial sobre as Migrações Internacionais da ONU, os dados de 2005 revelaram que até então 195321 milhões de pessoas viviam fora de seus estados de origem. Os motivos são variados: parte desses procuram condições materiais dignas para atender suas 319 Cf. AZEVEDO, Luze. Vozes do eito. Petrópolis: Vozes, 2010. Se teme que 250 migrantes hayan perdido la vida después de que la embarcación a bordo de la que viajaban, y la cual trasportaba a unas 300 personas, naufragase a primera hora del día de hoy a unos 60 kilómetros de la isla italiana de Lampedusa. Disponível em: <http://www.iom.int/jahia/Jahia/media/press-briefing-notes/pbnEU/cache /offonce/lang/es?entryId=29463>. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 20h30min. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) acredita que a embarcação teria partido há dois dias das costas da Líbia com aproximadamente 300 pessoas, entre eritreus e somalis. UOL NOTÍCIAS. Embarcação pode ter naufragado com mais de 300 migrantes. Disponível em: <http://noticias.bol.uol.com.br/internacional/2011/04/06/embarcaçãpode-ter-naufragado-com-mais-de-300-imigrantes.jhtm>. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 21h:00min. 321 Cf. Mensagem da diretora-executiva do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas), Thoraya Ahmed Obaid, para o Dia Internacional dos Migrantes - 18 de dezembro de 2006. “Estimados em 195 milhões em todo o mundo, mais de 3% da população - que deixaram sua terra natal em busca de vidas melhores”. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id=5092>. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 21h36min; BRANCO, Rodrigo Castelo. Globalização, tratado de livre comércio da América do Norte e migração internacional: o capital como barreira aos trabalhadores periféricos. Disponível em: < http://www.pucsp.br/neils /downloads/ v15_16_castelo_branco.pdf >. Acesso em 07 de Abril de 2011 às 21h36min. 320 143 necessidades básicas e históricas morais, outros fogem de perseguições políticas, dos desastres ecológicos, conflitos civis e militares, bem como melhorar suas condições econômicas. Os migrantes partem na esperança de encontrar melhores oportunidades de vida. Esses muitas vezes, arriscam a sua vida e a vida de suas famílias na esperança de poder viver com dignidade. Nas estradas da migração tudo pode acontecer. Mais que nunca hoje se fala da feminização da migração322, bem como, do tráfico de pessoas para exploração sexual, tráfico de órgãos e outros. Nem sempre se tem a liberdade de escolher, de decidir por si, nem sempre sua opinião é pedida ou escutada. Certamente, as vítimas deste tipo de situação se identificariam com a de Sarai descrita pelo teólogo biblista Walter Vogels: Agora pela primeira vez no ciclo, pede-se a Sarai que fale [...] não lhe deixa muita escolha [...] pede que rejeite sua própria identidade [...] Abrão se interessa pela própria vida [...] o suposto irmão quer vender sua „irmã‟ [...] a mulher se tornou um objeto do qual se serve e se aproveita... os egípcios „viram‟ que Sarai não era simplesmente bela, mas „muito linda‟ [...] Quando sua beleza foi relatada ao Faraó, o olhar não basta mais. Ela „foi levada à casa do Faraó‟[...]. O texto nem se quer menciona o nome de Sarai, ela se tornou „a mulher‟. Os ricos e poderosos podem apropriar-se das mulheres como querem, e delas abusar [...] Não só se abusa da mulher, como ainda por cima o marido enriquece, como os cafetões se enriquecem à custa de suas mulheres [...]323. A narrativa de Abrão e Sarai comunica, não somente ao homem de fé, mas retrata a história de tantos Gerim (rwg), migrantes que vivem ainda hoje no anonimato sob a exploração e submissão de potências capitalistas nos haréns de verdadeiros Faraós. Como o patriarca e a matriarca tantos migrantes sonham, não somente com a sobrevivência, mas também de poderem retornar à sua terra enriquecidos e protegidos. 322 Cf. OBAID, Thoraya Ahmed (diretora-executiva da UNFPA). Mensagem para o dia internacional dos migrantes 18 de dezembro de 2006. “Como cerca de metade de todos os migrantes são mulheres, é necessário focar nas questões associadas à igualdade de gênero. Mulheres migrantes tendem a se concentrar em ocupações tradicionalmente femininas e setores informais da economia, nos quais elas enfrentam maior risco de exploração e abuso, incluindo o tráfico de seres humanos”. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php? id=5092> . Acesso em 07 de Abril de 2011 às 22h00min. 323 VOGELS, Walter. Abraão e a sua lenda, 2000, p. 69-75. 144 A história patriarcal tem um diferencial, a relação interpessoal com Deus. O clamor de uma vítima chegou até Deus “e do fundo da servidão o seu clamor subiu até Deus. E Deus ouviu os seus gemidos; Deus lembrou-se da sua Aliança, com Abrão, Isaac e Jacó. Deus viu os filhos de Israel, e Deus conheceu” (Ex 2,23-25) e Ele interferiu com mão poderosa e braço forte. Deste modo, pode-se dizer que esta narrativa tem um fundo didático, pois também ensina a importância da fé como essencial na vida de quem se dispõe a arriscar-se no caminho, pois, a fronteira e o ser estrangeiro é um desafio para qualquer pessoa, mas o homem de fé sabe em quem confiar nos momentos mais duros de sua jornada, na certeza de que Deus não desampara, se ele não livra do sofrimento, Ele se faz peregrino e percorre junto o caminho. CONSIDERAÇÕES A passagem de Abrão e Sarai pelo Egito chegou ao fim. Igualmente os conflitos gerados por sua beleza e por seus laços parentais com Abrão também chegaram ao fim, portanto é hora de juntar seus pertences, desarmar a tenda e partir. Para onde? De onde vieram! Se na primeira expulsão causada pela fome eles desceram, agora, na segunda expulsão, causada pelo Faraó, o casal sobe e retorna à Canaã. O quadro pode ser perfeitamente visualizado descida e subida, saída e retorno. Este capítulo intitulado “Expulsão e Subida”, segue o esquema de estudo pré estabelecido, ou seja, a abordagem linguístico-literária e histórico teológico. Quanto ao estudo linguístico-literário observa-se certa harmonia no conjunto verbal, onde todos os verbos se encontram no qal. Com relação à análise estilística, identificam-se figuras de linguagem como o hipérbato, cuja finalidade é atrair a atenção do leitor sobre um termo que está em posição diferente, e paralelismos retos do tipo BCD e B`C`D`. Na primeira BCD construção, referente à expulsão, nota-se que Abrão, sua esposa e pertences são objetos da oração, enquanto na 145 construção B`C`D`, referente à subida, os mesmos: Abrão, sua esposa e seus pertences são sujeitos da oração. Na análise narrativa observa-se como esta narrativa pode estar incluída dentro do que os estudiosos denominam “cenas típicas”, “cenas padrão”, “tipos” ou “convenções literárias”, o que é plausível levando em conta as três narrativas da esposa irmã (Gn 12,10-20; 20,1-18; 26,1-14). A narrativa retoma aqui a sua harmonia inicial. No estudo histórico teológico foram abordados os elementos que convergem ou divergem nas três incidências das narrativas em que os patriarcas usam o mesmo artifício para entrarem em um país como estrangeiros. Seguiu-se com o estudo do texto de Gn 12,10-20 comparando-o ao Êxodo, pois se observa uma constelação de elementos (Faraó, Egito, pragas, partida precipitada) que sustenta a hipótese de uma composição correspondente teologicamente com a tradição do Êxodo, etapa de importância fundamental para a formação da identidade do povo e estabelecimento de relações mais estáveis entre Deus e o povo. O título „Subida do Egito‟ recolhe esse legado espiritual, histórico e teológico da identidade dos descendentes de Abrão e Sarai. Enfim, constata-se que a narrativa estudada ilumina a vida de tantos homens e mulheres dispersos no mundo da migração, mas aqui se tem um diferencial, a fronteira e o ser estrangeiro é um desafio a qualquer pessoa, porém o homem de fé sabe em quem confiar nos momentos mais difíceis de sua jornada. Deus não se omite diante do clamor de uma vítima. 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS Certamente o estudo aqui apresentado não exauriu toda a beleza e riqueza que a perícope de Gn 12,10-13a contém. Com esta abordagem, procurou se adentrar neste fascinante universo da narrativa bíblica acompanhados pelo patriarca e matriarca, buscando colher alguns aspectos presentes nos fatos aqui apresentados. A perícope citada foi abordada dentro de duas perspectivas, ou seja, o estudo linguístico-literário e o estudo histórico-teológico. O estudo realizado se ateve, sobretudo, na dimensão sincrônica, cuja abordagem exegética foi pautada pela exegese narrativa, ou seja, com uma abrangência de cunho literário. Referente ao estudo linguístico-literário, destaca-se que o texto se configura perfeitamente dentro dos critérios de uma narrativa tradicional, sua construção morfológica e sintática é bem articulada e não apresentam grandes complicações, ao menos se observa que o texto usado para o estudo, praticamente não apresenta problemas para a crítica textual, o que permite fluir a leitura e o estudo. Quando se diz que é um texto bem articulado, quer-se indicar a complementaridade entre forma e conteúdo, pois uma etapa de análise ilumina progressivamente a outra, ou seja, os resultados da análise morfológico-sintática lançam luzes para continuar a análise semântica e os resultados deste iluminam a análise estilística e a soma destes culmina na análise narrativa e no estudo histórico teológico. A partir do estudo morfológico-sintático é possível colher os pontos fortes de tensões localizados nas variações dos tempos verbais entre presente, passado, futuro, nos modos imperativo, indicativo e subjuntivo. Igualmente, por meio dos pronomes pessoais e sufixos é possível visualizar em quem se centra o foco da atenção. 147 Com base na análise estilística chegou-se a uma estrutura que deixa transparecer um trabalho cuidadoso e bem articulado. Isto permite supor que o texto na forma recebida, possivelmente foi acurado por um redator final, o qual lhe concedeu complementaridade entre estrutura e conteúdos, sendo ambos artisticamente elaborados. Daí resulta a estrutura lógica do mesmo, a qual pode ser apresentada sob diversos modos. Sinteticamente este se enquadra em uma moldura de „descida e subida‟; „saída da terra e retorno à mesma‟; „duas expulsões, inicialmente pela fome e no fim pelo Faraó‟. O primeiro e último capítulo apresentam repetições interessantes: „fome na terra [...] fome na terra‟; „ele a mulher dele e a tudo o que era dele [...] ele a mulher dele e a tudo que era dele‟; outro esquema possível e que serviu para o estudo narrativo é o da ordem dos discursos: narrador; Abrão; narrador; Faraó; narrador. Partindo da estilística para a análise narrativa, como foi dito, este texto se enquadra perfeitamente nas exigências de uma narrativa, e aqui é interessante notar como a divisão do texto, quanto às partes de uma narrativa, corresponde perfeitamente ao esquema estilístico referente aos discursos. Este mesmo esquema foi utilizado para a subdivisão dos capítulos neste trabalho, da seguinte forma: TEXTO Gênesis Estilística (concêntrica) NARRADOR Divisão da narrativa INTRODUÇÃO ABRÃO COMPLICAÇÃO II CAPÍTULO Sarai mulher de bela aparência NARRADOR CLIMAX III CAPÍTULO Intervenção do SENHOR por causa de Sarai FARAÓ DESFECHO IV CAPÍTULO Sarai irmã e esposa de Abrão NARRADOR CONCLUSÃO V CAPÍTULO Expulsão e subida do Egito 12,10-11d 12,11e13d 12,14-18b 12,18c-19 12,20-13,1a Capítulos I CAPÍTULO Fome na terra e descida ao Egito 148 Dando um salto para a análise histórico-teologico diga-se de antemão que cada capítulo por si corresponderia a um tratado. Como este não era o objetivo primeiro deste trabalho, procurou-se fazer um estudo sumário, mas que não omitisse a importância destes elementos e temas constituintes da história, identidade e fé dos que se crêem incluídos entre os herdeiros de Abrão e Sarai. De fato, a narrativa progressivamente vai apresentando uma constelação de elementos constituintes da autocompreensão de Israel como povo de Deus, bem como, de sua identidade, história e fé no Deus único, os quais correspondem e abrangem o conteúdo, ou seja: a fome; o Egito, o viver como peregrino; o Faraó; a escravidão; a Salvação que vem de Deus; as bênçãos (materiais e a preservação vida); a liberdade de poder tornar à terra. Por outro lado, é impossível negar que esta narrativa não contém um elogio e exaltação à beleza da matriarca Sarai. Desta pode-se inferir ao menos três pressupostos: 1) com exaltação se contradiz o estereótipo de uma sociedade machista; 2) à raiz de tal exaltação estaria também a celebração de um orgulho nacional, frente ao grande Egito, lugar de escravidão e opressão para Israel. Deste modo, à potência egípcia se opõe a beleza da matriarca e à esperteza do patriarca; 3) a beleza de Sarai é expressão visível da eternidade da Aliança com Israel, e da beleza do templo, que mesmo destruído, continua ainda presente na memória do povo. Destacam-se ainda alguns ensinamentos de fundo: a beleza das mulheres israelitas supera aquela das egípcias (o país do poder); Sarai foi quem salvou a vida de Abrão e foi por seu mérito pessoal que o mesmo tornou-se rico (cf. Gn 12,16); ninguém pode tocar aqueles que Deus escolheu por seu designo; deste modo os egípcios conhecem que o Deus de Abrão é o Deus de toda a terra; Israel será salvo das mãos do Faraó opressor, assim como a matriarca Sarai foi libertada das mãos deste Faraó; a Aliança foi preservada e garantida em suas duas dimensões, de Deus com o humano e do esposo com a esposa. Também o Faraó, demonstrou temor ao Deus de Israel. Contrariando o que pensava o patriarca, fora de Israel existe sim temor a Deus. 149 No referente ao título do trabalho, foi possível perceber uma crescente compreensão do que pode estar contido dentro da expressão „irmã e esposa‟. Diante dos argumentos encontrados na história, na arqueologia, na Bíblia e na teologia é plausível dizer que Sarai é irmã e esposa de Abrão, não só em sentido denotativo, mas também metafórico, porque se torna chave de interpretação intertextual, pois a irmã e a esposa são também figuras teológicas na linguagem bíblica. Por fim, foi possível estudar a interrelação desta narrativa com outras duas narrativas do Gênesis, bem como, com a teologia presente na experiência do êxodo. Sarai, mesmo sem ter tido espaço para voz, é a protagonista desta narrativa, dado que por ela, Abrão adquiriu muitos bens e teve a vida, a Aliança e o matrimônio preservado. Foi Sarai quem suscitou a intervenção de Deus. Assim como Abrão, também Sarai é elemento constituinte da Aliança, pois a mesma se cumprirá a partir do filho que dela nascer. Por seus méritos Sarai é reconhecida no Novo Testamento, o qual lhe cita cinco vezes: em Romanos 4,19 sua esterilidade reforça a fé de Abrão na promessa divina, em Hebreus 11,11 sua fecundidade é mérito de sua fé, colocada sobre o mesmo plano de Abrão; em 1Pedro 3,5 é proposta como modelo de obediência ao marido; o texto de Romanos 9,6-9 faz alusão à contraposição entre Sarai e Agar e suas respectivas descendência segundo o Plano de Deus; e Gálatas 4,21-31 em linguagem alegórica apresenta Sarai com símbolo da Jerusalém celeste, mãe dos filhos „livres‟. Sarai e Abrão são, para tantos peregrinos, modelo de fé e confiança em Deus, não obstante suas limitações humanas - medo, submissão, esperteza - o caminho por eles percorrido não seria o mesmo sem a presença e a ação de Deus. 150 BÍBLIOGRAFIA 1. FONTES BÍBLIA Hebraica Stuttgartensia. 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