POR TRÁS DA CENA: A DITADURA MILITAR REVISITADA NA PEÇA TEATRAL BAILEI NA CURVA, DE JULIO CONTE Anderson Bittencourt Araújo* Fernanda da Silva Moreno† A peça teatral Bailei na Curva, encenada pela primeira vez no ano de 1983, surgiu em um período ímpar da história brasileira. A montagem, assinada pelo dramaturgo gaúcho Julio Conte, baseia-se nas muitas improvisações dos atores Flávio Bicca, Regina Goulart, Márcia do Canto, Lúcia Serpa, Hermes Mancilha, e Cláudia Accurso, que juntamente com Conte, formam o grupo de teatro conhecido como Do Jeito que Dá. Bailei na Curva contempla a história de vida de sete jovens porto-alegrenses e suas famílias, tendo como pano de fundo os acontecimentos marcantes nas três décadas em que o país foi comandado pelos militares. Está dividida em três atos, cada um deles representando uma década; o primeiro começando pelo ano de 1964, reflete a percepção dos personagens ainda crianças, tentando compreender os acontecimentos que lhes cercavam. O segundo ato perpassa os anos 70, e representa a juventude e suas relações pessoais em um contexto político de repressão e autoritarismo. O terceiro e último ato reflete a vida dos protagonistas já adultos, no seio da abertura política da década de 80. Seguindo a linha da comédia crítica, Bailei assemelha-se ao trabalho proposto pelo grupo carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone, que no ano de 1977, com Trate-me Leão, dirigida por Hamilton Vaz Pereira, igualmente representava o comportamento e a reflexão de jovens suburbanos da cidade do Rio de Janeiro, inseridos no contexto da década de 70, sobretudo nos chamados “anos de chumbo”. A peça dirigida por Conte surge em Porto Alegre como precursora de uma vasta gama de espetáculos de prestígio que viriam na década de 80. O teatro gaúcho da década anterior, reduzido a “cacos” (KILPP, 1996) havia perdido muito de seu teor crítico. Seguindo a onda que assolava a todo o país, as formas de expressão artística, ceifadas pela censura, e mais ainda o teatro – entendido como expressão máxima do devir em literatura – viu-se * Licenciado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente, cursando disciplina necessária para obtenção do título de Bacharel em História, através do trabalho intitulado Anos de Chumbo e de Nanquim: as charges de Rango versus a ditadura militar brasileira, 2011. † Mestranda em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente, realizando pesquisa sobre a dramaturgia feminina no Rio Grande do Sul, no século XX. constantemente ameaçado pelo uso pragmático do governo, esvaziado de consciência crítica e carregado de conteúdo político; tornou-se, em todo o país, mais uma ferramenta na busca pela criação de uma “reinvenção do otimismo” (FICO, 1997), direcionado pela ideia de “Brasil Grande” imposta pelo regime e que visava nada mais do que esconder as suas contradições internas. Neste sentido, não raros foram os homens de teatro que, ao evidenciar tal situação, viram-se obrigados a calar-se, enquanto tantos outros eram exilados. A década de 80 apresenta-se, portanto, como a década da retomada de status do teatro brasileiro, com aquisição de nova consciência crítica, retorno de temas “proibidos”, e principalmente, como uma arte para massas. Bailei na Curva acabaria por se tornar umas das peças de maior importância do teatro gaúcho e nacional, há mais de 28 anos sendo montado e remontado por diferentes grupos pelo Brasil, e reavivaria a importância do teatro gaúcho e sua participação no cenário cultural do país. Logo no início da trama, tem-se na fala de um radialista a intenção explicita do autor em delimitar o espaço/tempo das ações, bem como – e principalmente - a atmosfera política que norteava a cidade e o país na década de 60: RÁDIO - Nova Iorque. O Brasil pode explodir a qualquer momento em qualquer direção, informou ontem o editorial do jornal "New York Daily News". Disse o jornal que o Brasil, a maior república da América do Sul, encontra-se num perigoso estado de fermentação. Tem um rico e caprichoso radical chamado João Goulart na presidência, uma inflação galopante, um movimento operário dominado pelos comunistas e uma camarilha militar de direitistas extremistas. (...) Onze horas e trinta e dois minutos. O tempo em Porto Alegre apresenta-se instável sujeito a fortes chuvas no final do período (1984, p. 20). Como se pode perceber, o momento político de fermentação condiz com o sentimento provocado pelo contexto internacional da Guerra Fria, que opunha de um lado os países do bloco dito comunista, liderado pela Rússia, e de outro o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos. O então presidente João Goulart é mencionado como um “rico e caprichoso radical”. Isto por que muitos setores da sociedade não compreendiam como um rico estancieiro nascido em São Borja poderia tomar atitudes comumente ligadas às esquerdas. De acordo como Marieta Ferreira, “a origem de grande estancieiro e proprietário rural de Jango era um impeditivo para seu engajamento numa reforma agrária” e “João Goulart ora é visto como um radical, com um projeto de ruptura com a ordem vigente, ora é rotulado de político incapaz de implementar reformas efetivas em função de sua origem familiar” (2006, p.16). Da mesma forma, suas políticas que, nas palavras de Goulart, visavam um capitalismo mais humanizado e patriótico, foram vistas como ameaças a ordem nacional, e alimentaram as ambições de setores da população e comandos militares que há muito já ansiavam pelo poder. A gota d’água teria sido o discurso realizado por João Goulart a 13 de março de 1964, mencionado mais adiante, na segunda cena da peça: PAI - Pois foi lá. Foi lá e falou comigo [referindo-se a Leonel Brizola]. Bateu no meu ombro assim ó... Disse que o Jango está com ótimas ideias. Vai acabar com a pobreza no Brasil. Deu um discurso para duzentas e cinquenta mil pessoas na Central do Brasil! Falou até em reforma agrária! Sessenta e quatro vai ser o nosso ano! (1984, pp. 27-28). Finalmente, a frase “o tempo em Porto Alegre apresenta-se instável sujeito a fortes chuvas no final do período” parece designar o estado de agitação política que, dentro de pouco tempo, assolaria todo o país. O primeiro ato segue contando, através de pequenos esquetes, o cotidiano destes jovens e de como suas famílias se posicionavam politicamente. O diálogo que se segue na terceira cena, representa esta situação: PAI - (lendo) Duzentos e cinquenta mil pessoas... Isso exige uma resposta! MÃE - Também acho! PAI - Do jeito que anda a situação, isso vai acabar resultando numa guerra civil! CACO - Vai ter guerra? MÃE - Não fala de boca cheia, meu filho! CACO - Quem é que vai lutar? PAI - Os comunistas contra os brasileiros! CACO - Então nós vamos lutar contra o pai do Paulo? MÃE - Por que meu filho? CACO - Estão dizendo em toda a zona que ele é comunista. PAI - O Paulo qual é? MÃE - O vizinho aqui da frente. O pai dele dá aulas na universidade. CACO - Ele não é brasileiro? (1984, pp. 31-32.). A sequência explicita uma conversa entre a família de Caco, filho de um empresário que apoia o movimento militar. Paulo é filho de um professor universitário, engajado no ideário comunista. Trata-se de uma disputa existente entre dois pontos de vista distintos, cujo lema “Deus, pátria e família”, slogan conservador, sobrepunha-se a foice e o martelo, símbolo maior do comunismo no mundo. Da mesma forma, pode-se reconhecer a percepção do jovem Caco, que compreende a situação como uma guerra entre brasileiros, naturalmente, sem entender o motivo ideológico do embate. Já, a partir do segundo ato, os anos 70 são claramente representados como um período de negação das liberdades individuais e de expressão. Logo no início da cena de número dez, mais uma vez o autor se preocupa em delimitar o espírito das cenas que se seguirão. Observe a marcação: Entra canção "Eu te amo meu Brasil" interpretada pelos "Os Incríveis" mixados com gols do Brasil na copa de 70. Adolescentes. (1984, p. 58). A marcação evidencia a atmosfera criada pelo regime, através de slogans patrióticos, como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “ninguém segura este país”, dentre outros, e do uso do futebol como propaganda. Na realidade, a conquista do tricampeonato mundial pela seleção no ano de 1970 foi uma das maiores bandeiras levantadas pelo regime, momento em que o “otimismo transformou-se em ufanismo” (FICO, 1997, p.137) revelando-se a melhor forma de desviar a atenção da população brasileira dos problemas sociais latentes. Entretanto, contrariando a grande maioria das pessoas que se calavam, estes também foram anos de intensa luta, sobretudo por parte dos movimentos estudantis. Na realidade, os decretos número 228, de 1967, e 477 de 1969, que impediam a participação dos estudantes universitários organizados na vida política nacional acabaram demonstrando-se apenas um agravante, em parte, pela eclosão de movimentos estudantis reacionários à proibição. Em um diálogo da cena doze, Pedro, filho de um sindicalista que havia sido preso, demonstra conhecimento da situação política do país: DONA ELVIRA - Teu pai sonhou e olha no que deu. PEDRO - O pai não estava sonhando. DONA ELVIRA - Adianta lutar sozinho? PEDRO - Ele não estava sozinho. Tem muita gente com ele. Porque estão de boca calada não quer dizer que não pensem. Eles pensam e bastante. DONA ELVIRA - Pedro, tu está falando igualzinho ao teu pai. Não quero te ver metido com esta gente. PEDRO - Queres que eu fique de braços cruzados o resto da vida? DONA ELVIRA - Não quero te ouvir falar neste assunto (1984, p.82). Nota-se que a censura e o medo permeavam mais do que a sociedade, mas a vida privada dos indivíduos. As relações pessoais foram transformadas, e no caso de Pedro, não foi diferente. Logo, o rapaz perderia a vida. As cenas que compõem o terceiro ato preocupam-se em demonstrar a memória dos acontecimentos recentes, bem como com constatação daqueles que acabaram por “bailar na curva” da democracia brasileira. Na décima sétima cena, intitulada “A memória” tem-se a presença de Ana, agora adulta e formada em jornalismo, diante da mãe de Pedro, o jovem assassinado, pedindo a senhora que lhe concedesse uma entrevista. Dona Elvira, relutante, responde-lhe “não adianta minha filha. São coisas que não adianta falar, só doem.” E Ana rebate: “dói pra senhora e pra muita gente, mas é importante para a memória nacional. Pra resgate da consciência histórica” (1984. p.107). Ana não consegue a entrevista, mas acaba por escrever um poema em homenagem ao amigo. A década de 80, marcada pela “lenta e gradual” abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel e levada a cabo pelo então presidente João Figueiredo, evocou o entendimento da necessidade de resgate da memória recente, e mais ainda, a retomada da democracia brasileira. Neste sentido, desde então, têm-se multiplicado o número de trabalhos com este intuito. Para o grupo Do jeito que dá, havia “a necessidade de fazer um teatro vital, importante, necessário, que falasse a cada pessoa, que falasse para a comunidade. Que fosse uma reflexão sobre a cidade, sobre o país e principalmente sobre nós mesmos e sobre a própria vida” (1984. p.16-17). Bailei não tem como intenção literária mostrar o gaúcho aos padrões regionalistas como Simões Lopes Neto. Um dos motivos é a transposição identitária pós-moderna, em outras palavras, “a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 1998, p. 20). Para Abrão Slavutzky ao descrever a temática abordada pela peça, “uma das riquezas de Balei na Curva está nos planos simultâneos que a história mostra: a sexualidade, a política, a identidade”. Em seguida Slavutzky acrescenta: “durante vinte anos o país viveu sem democracia, com medo e quase sem esperanças. O fato que os jovens pesquisem o passado pessoal e político é uma forma de recuperar a memória” (1984, p.12-14). Seus códigos lingüísticos são cheios de significados e particularidades pertencentes a um determinado povo. Ao deparar-se com este texto, o público ou leitor reconhece os personagens como gaúchos, mas não somente isso, reconhece também como pertencentes a uma nação, neste caso, a brasileira. Referências BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. DO JEITO QUE DÁ. Bailei na Curva. Porto Alegre: L&PM, 1984. FERREIRA, Marieta de Moraes. João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: FGV, 2006. FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997. KILPP, Suzana. Os cacos do teatro: Porto Alegre anos 70. Porto Alegre: Unidade Editorial, 1996. SLAVUTZKY, Abrão. Um espaço coletivo para pensar. In: DO JEITO QUE DÁ, Grupo. Bailei na Curva. Porto Alegre: L&PM, 1984.