Cenas Imaginárias: o processo de criação musical do

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Cenas Imaginárias:
O processo de criação musical do
tecnobrega paraense
Sonia Chada*
Luiz Moraes Filho**
Resumo:
O tecnobrega é uma modalidade de música eletrônica dançante,
com texto, que prioriza o uso de tecnologias computacionais,
geralmente associada à periferia urbana belenense. O grande
impacto para a produção musical acontece com a facilidade de
aquisição de computadores e a criação de estúdios caseiros. O uso
do computador é fundamental nos processos de produção musical
e, até na performance. Neste contexto, a produção de música
acontece de várias formas, sendo altamente dependente da
tecnologia disponível, da habilidade do criador em manipular essa
tecnologia, além da sua imaginação, musicalidade e criatividade.
Considerando as análises realizadas pode-se afirmar que o que não
muda no processo da transmissão oral é a “batida base” e a
utilização de tecnologias computacionais na manipulação de
timbres, melodias e ritmos, consistindo em outra forma de se fazer
música.
Palavras-chave: Tecnobrega; Música Eletrônica; Produção Musical; Criação
Musical.
Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 2 (2013), pp. 117-136
Abstract:
Tecnobrega is a form of electronic dance music, with text, that
prioritizes the use of computer technology, usually associated with
belenense urban periphery. The major impact on music production
happens with the ease of purchasing computers and setting up
home studios. Computer use is essential in the process of music
production and even in performance. In this context, the
production of music happens in several ways, being highly
dependent on the technology available, the ability of the designer
to manipulate this technology beyond imagination, creativity and
musicality. Considering the analyzes it can be stated that what does
not change in the process of oral transmission is the "basic beat"
and the use of computer technologies in the management of
timbres, melodies and rhythms, consisting of another way of
making music.
Keywords: Tecnobrega; Electronic Music; Musical Production; Musical Creation.
O tecnobrega, frequentemente associado ao público jovem e ao modo
de vida das classes populares da periferia urbana belenense, é uma
modalidade de música eletrônica concebida geralmente distante das
grandes gravadoras e dos meios de comunicação de massa. Essa
modalidade ganhou espaço no contexto paraense, originando,
posteriormente, festas denominadas de tecnobrega. Pedrinho Callado,
reconhecido compositor e cantor paraense, considera-o como “um gênero
genuinamente do Pará”1.
O grande impacto para a produção do tecnobrega acontece com a
facilidade de aquisição de computadores e a criação de estúdios caseiros.
118 • Revista Estudos Amazônicos
Assim, esta nova prática de produção musical abriu espaço para a atuação
amadorística de “compositores não músicos”, tornando-se promissor para
amadores em busca de prestígio junto a outros criadores e estrelas deste
meio.
O uso do computador e suas funcionalidades passaram a auxiliar e são
fundamentais nos processos de produção musical desde a fase de
composição até a masterização e a própria performance. Martins e Cunha
apresentam essa etapa como algo positivo para a criação musical:
Os
aplicativos
computacionais
também
possibilitam que o compositor tenha acesso, em um
único ambiente, a outras ferramentas tais como
instrumento acústico, gravador, sintetizador, mesa
de mixagem de som (...). Estes recursos dão suporte
à
atividade
composicional
apresentando
possibilidades mais potentes e diversificadas para o
compositor expressar e trabalhar suas ideias 2.
Nos estúdios da cidade de Belém, a tecnologia já usada por produtores
e bandas locais começou a se disseminar através da internet e de suas
facilidades em obter programas muitas vezes pirateados, em outras áreas
da cidade, fomentando, em músicos, bandas e produtores musicais da
periferia ideias, novos conceitos e uma nova metodologia de se produzir
música mais intuitivo-pragmática do que técnica. Isso talvez seja oriundo
d a “facilidade” em obter recursos que antes só se poderia obter através
de toda uma gama de produção “humana”.
Revista Estudos Amazônicos • 119
Em meio às mudanças comportamentais e mercadológicas, o músicoprodutor pôde acrescentar ao seu rol de criação as inúmeras ferramentas
proporcionadas pelas novas tecnologias:
Hoje, o músico ou o produtor possuem uma série
de ferramentas que oferecem os mais diversos tipos
de sonoridades e possibilidades para a produção
musical. Gravadores, processadores de som,
sintetizadores, samplers, softwares de síntese,
sequenciadores, entre os vários recursos que são
desenvolvidos a cada dia, estão todos disponíveis ao
músico que esteja disposto a utilizá-los em seu
trabalho3.
Com o acréscimo de novas ferramentas, as possibilidades de criação
também se ampliaram e, dessa maneira, os processos de criação musical
cresceram em qualidade e diversidade. Vieira e Ray4 afirmam que a
inserção de instrumentos e periféricos na criação e performances
proporciona novos pontos de pesquisa ao músico e o leva a buscar uma
constante atualização não somente em conhecimentos na área musical,
mas também em áreas transversais como a área de Tecnologia da
Informação, a fim de se manter constantemente atualizado acerca dos
recursos disponíveis para a realização de seus trabalhos.
Para Castro5, a apropriação das novas tecnologias da informação e
comunicação foi a chave para o ciclo produtivo do tecnobrega. Afirma
ainda que estúdios caseiros só foram possíveis graças ao acesso a
equipamentos, computadores e programas. De acordo com a autora, as
produções do tecnobrega inicialmente eram realizadas em estúdios
120 • Revista Estudos Amazônicos
domésticos, os chamados Home Studios, sendo esses as principais fontes de
desenvolvimento de produções musicais desse gênero.
Neste contexto, a produção de música acontece de várias formas.
Geralmente inicia com uma “ideia musical”, quase sempre relacionada ao
cotidiano. Em seguida, esta “ideia musical” se transforma em tecnobrega
com a ajuda de teclados eletrônicos, mesa de som e computador. As duas
fases podem, também, ocorrer simultaneamente. Entretanto, o processo
de criação musical do tecnobrega não se afasta das características
universais da composição musical.
O programa mais utilizado para a produção musical é o Fruity Loops6,
algumas vezes associado a outros programas disponíveis. Com a utilização
deste programa, o repertório musical do tecnobrega apresenta algumas
características interessantes: 1.
Quantização – o tempo da música cai
exatamente no tempo certo. 2. Correção de quase 100% da afinação das
vozes - quando isso ocorre, a passagem entre a altura de um som para
outro é brusca, “robotizando” a voz. 3. Compressão das vozes – as vozes
são “comprimidas” gerando uma dinâmica igual para todas as vozes –
humanas e instrumentos. Esses efeitos produzem uma música mais
“robotizada”, dificilmente alcançada pela interpretação humana. Podemos
perceber que há uma interação entre o processo criativo e o processo de
edição musical. Desta forma, o papel do compositor e o do produtor se
tornam um só.
Neste contexto, o criador musical, o compositor e/ou o arranjador
e/ou o produtor musical lança mão de tecnologias digitais a partir das
quais emergem formas inovadoras de propaganda, difusão e consumo
musical7.
O estúdio, como já mencionado, na maioria das vezes caseiro, a banda
e a festa de aparelhagem são os três espaços de produção musical do
tecnobrega. O cantor geralmente é o compositor envolvido no processo
de produção musical. Existem, todavia, compositores não intérpretes que
Revista Estudos Amazônicos • 121
compõem para bandas e artistas reconhecidos pelo público. O DJ atua nas
festas de aparelhagem e também na produção musical. O produtor musical
geralmente está relacionado ao estúdio.
O repertório musical do tecnobrega é funcional. Sua função principal
é a dança. A ênfase é percussiva, os elementos rítmicos guiando os
movimentos corporais. Utiliza principalmente instrumentos eletrônicos,
como a bateria, o baixo e o teclado (sons sintetizados), algumas vezes em
conjunto com instrumentos acústicos, e voz feminina e/ou masculina,
priorizando o uso de tecnologias computacionais na manipulação de
timbres, melodias e ritmos. As músicas apresentam pulso rápido (cerca de
160 a 200 batidas por minuto)8 e compasso quaternário. É perceptível a
apropriação de timbres e fragmentos sampleados de diversas músicas, a
mistura de múltiplas sonoridades, a incorporação no repertório musical de
diferentes gêneros, de lugares e épocas distintas, assim enriquecendo a
produção musical.
Considerando as músicas analisadas,9 pode-se afirmar que, grosso
modo: os textos tratam de diferentes temas, dentre os quais o amor, a
tristeza, a alegria, o ciúme, a traição, a cultura regional e homenagens a
personagens e instituições integrantes desse contexto; as melodias são
construídas em tonalidades maiores e menores; a harmonia é geralmente
baseada em quatro acordes, podendo se apresentar em um contexto tonal
com funções de tônica, subdominante e dominante ou em um contexto
modal geralmente ligadas ao modo eólio ou dórico e, em relação à forma,
apresentam as seguintes partes: Batida base, Introdução – na maioria das
músicas, instrumental, Parte A – melodia com texto, algumas vezes um
diálogo entre voz feminina e masculina; Parte B - melodia com texto,
algumas vezes um diálogo entre voz feminina e masculina (essa parte
algumas vezes é uma variação da Parte A); Refrão. A música é tocada duas
vezes na sua forma completa ou, na repetição, são selecionadas algumas
122 • Revista Estudos Amazônicos
partes. A Introdução, na repetição, funcionando como um Interlúdio
instrumental onde são inseridas as vinhetas ou “assinaturas”. A música
finaliza com uma Coda instrumental. É utilizada a mesma harmonia em
cada uma dessas partes. O que muda são as “cenas”10 criadas em cada uma
dessas partes, elaboradas com a adição, supressão e/ou combinação de
elementos musicais variados.
Na tentativa de demonstrar o processo de criação musical do
tecnobrega paraense e de descrever como são criadas diversas cenas em
um tecnobrega, tomou-se, como exemplo, a música “Amor a três”11,
gravada pela Banda Batidão12. Este tecnobrega apresenta bpm
Cada cena é estruturada em quatro ou oito compassos. É perceptível em
toda a música que a marcação/batida da música cai exatamente no tempo
certo (quantização). E que as vozes são “comprimidas” gerando uma
dinâmica igual para todas as vozes e instrumentos, uma das características
do tecnobrega, como mencionado. Este repertório musical mantem uma
dinâmica única do começo ao fim da música gerando uma sensação
“robotizada”.
Cena 1: Batida base
A música inicia com a externalização da “batida base”, tocada pelo
bumbo e pela caixa da bateria eletrônica. O resultado sonoro são alturas
distintas, visto que o bumbo e a caixa possuem timbres distintos. A
marcação do bumbo é conhecida como “bumbo reto” ou “bumbo no
chão”. O padrão rítmico é baseado em uma matriz ou ciclo duracional de
16 pulsações, ritmo duplo, pulso básico semínima (4). A caixa apresenta
três batidas e o bumbo duas na matriz. A batida base é ouvida durante
toda a música - com raríssimas exceções, em alguns poucos compassos a
batida é supressa ou substituída pelas “viradas” executadas pelos tom-tons
da bateria eletrônica, geralmente entre uma parte e outra da música. Todo
tecnobrega inicia com essa batida base. Segundo Waldo Squash, para ser
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tecnobrega, a música tem que ter essa batida. O DJ precisa dessa batida
para sua orientação e performance “para botar no tempo futuros
elementos a serem acrescentados” (Entrevista realizada em 30.05.2013):
Segundo Nketia (1974, p. 131-2):
(...) as tradições africanas externalizam o pulso
básico. (...) pode ser demonstrado através de bater
palmas ou através das batidas de um idiofone
simples. (...) Uma vez que a time line é emitida como
parte da música, é considerada como um ritmo de
acompanhamento e um meio pelo qual o
movimento rítmico é sustentado.13
Partindo da definição do autor, podemos considerar a batida base uma
time line, uma vez que faz parte do tecnobrega, sendo um ritmo de
acompanhamento, que estrutura a música. Como já mencionado, todo
tecnobrega externaliza essa batida base.
Cena 2: Introdução
A introdução é constituída de duas vozes de instrumentos, pergunta e
resposta, utilizando sons sintetizados: voz aguda, pergunta – piano digital,
voz grave, resposta – acordeon. Na metade do compasso dez, em mínima
e duas semibreves, é acrescentado um som mais eletrônico (synth) e a
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levada do reggae pelo órgão e pela guitarra, resultando na acentuação do
segundo e do quarto tempo da batida base do tecnobrega. A introdução é
tocada duas vezes, na segunda vez a bateria eletrônica apresenta ritmos e
timbres distintos:
Cena 3: Parte A
O tema é cantado por uma voz feminina, com a correção de quase
100% da afinação da voz, gerando um efeito “robotizado”, mantido em
toda a música, acompanhado pela guitarra, teclado e bateria eletrônica.
Essa parte apresenta efeitos mais rítmicos no acompanhamento da
melodia, como sons sintetizados em colcheias e em decrescendo (delay):
Texto: Passo noites em claro/A solidão ao meu lado/Vendo suas
fotos/Como aguentar.
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Cena 4: Parte A’
A parte A’ é cantada com as mesmas características da parte A. A
melodia de A’ é uma variação da parte A. A harmonia é mantida. Nesta
cena é acrescentado um som sintético mais melódico fazendo um
contracanto com a voz e uma voz feminina fazendo respostas à voz
principal nos compassos 26 e 28. Os elementos em colcheias, rítmicos, da
cena anterior, são substituídos por elementos mais melódicos. Assim, é
estabelecido um contraste entre as duas cenas. A cena três possui
características de acompanhamento mais rítmicas e a cena quatro mais
melódicas:
Texto: Cai a noite/Eu fico vendo estrelas/Pensando em você/Que
não
está
aqui.
Cena 5: Parte A’’
A melodia cantada é uma variação de A, mais rítmica, fornecendo um
movimento rítmico a esta cena. A melodia é acompanhada pelos
elementos rítmicos da cena 3 e os elementos melódicos da cena 4, além do
acréscimo de vários elementos sonoros. No compasso 36 há uma “virada”
da bateria eletrônica como preparação para a cena seguinte:
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Texto: Eu entendo/Não posso te amar/Por isso tento ocultar/O que
me faz chorar e chorar.
Cena 6: Parte B
Nesta cena é retirada a levada do reggae até o compasso 40 e são
acrescentados diversos efeitos sonoros eletrônicos. A melodia é
estruturada em colcheias gerando um movimento ainda mais rítmico que
o da cena anterior. Há uma mudança na harmonia, passa da tônica para a
dominante e as mudanças dos acordes acontece a cada compasso e não
mais de dois em dois compassos como nas cenas anteriores. É
acrescentado um compasso ao final desta cena, para uma virada da bateria
eletrônica como preparação para a cena seguinte e modificando a estrutura
das cenas de quatro ou oito compassos, assim esta cena passa a ter nove
compassos:
Revista Estudos Amazônicos • 127
Texto: No meio da noite eu te ligo/Para saber como estais/Se ainda
pensa em mim/Não deixou de me amar/Ninguém vai entender/Se eu
contar esta história para alguém/Por isso sofro.
Cena 7 – Refrão
A melodia do refrão é construída em uma tessitura mais aguda que a
das outras cenas, assim como os elementos eletrônicos utilizados no
acompanhamento estão numa tessitura mais aguda do que os das cenas
anteriores, produzindo resultados sonoros distintos. A harmonia volta
para a tônica – La M, mais mantem a mudança de acordes a cada compasso
como na cena anterior:
Texto: Quero me arriscar/Sei que não é certo/Mais não quero te
perder/Eu te amo.
Cena 8 – Refrão’’
A melodia desta cena é uma variação da anterior, todavia em uma
tessitura ainda mais aguda. Os elementos sonoros eletrônicos utilizados
no acompanhamento também são mais agudos do que os da cena anterior:
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Texto: Deixo ele aqui/E vou correndo encontrar você/Sei que é
errado viver um amor a três/Sei que é errado viver um amor a três.
Cena 9 – Repete a Introdução
Na repetição da Introdução é acrescentada a vinheta “Banda Batidão”,
a “assinatura” da banda, para identificá-la. O fato é explicado pela pouca
ou nenhuma preocupação com o registro dos nomes dos cantores e
compositores, tanto nas coletâneas produzidas pelos DJs ou por selos
locais quanto nas cópias “piratas” reproduzidas para o comércio informal.
Com isso, os cantores, as bandas e os DJs, para garantir a divulgação de
seus nomes, utilizam-se de vinhetas, executadas no meio das músicas.
Cena 10 – Repetição da parte B com as mesmas características
apresentadas anteriormente, mantem a mesma melodia e muda o texto:
Texto: No meio da noite eu te ligo/Para saber como estás/Se ainda
pensa em mim/Não deixou de me amar/Ninguém vai entender/Se eu
contar esta história para alguém/Por isso sofro.
Cena 11 – Repetição do Refrão com as mesmas características já
apresentadas, mantem a mesma melodia e muda o texto:
Texto: Quero me arriscar/Sei que não é certo/Mais não quero te
perder/Eu te amo.
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Cena 12 - Repetição do Refrão’ com as mesmas características, sendo
que a última frase, “Sei que é errado viver um amor a três” é repetida
quatro vezes, compassos 62, com anacruse, a 64:
Texto: Deixo ele aqui/E vou correndo encontrar você/Sei que é
errado viver um amor a três/Sei que é errado viver um amor a três
Cena 13 – Batida base
A batida base é apresentada como no início da música para concluí-la.
Cada acréscimo, supressão, combinação ou mudança de elementos
sonoros produz um resultado distinto em cada cena imaginada pelo
criador. A criação musical nesse contexto é altamente dependente da
tecnologia disponível, da habilidade do criador em manipular essa
tecnologia, além da sua imaginação, musicalidade e criatividade. Para a
elaboração dos arranjos não é necessário uma sala contendo acústica
adequada para gravações, pois os samples, sons e efeitos analógicos e
digitais que constituem o arranjo podem ser manipulados inteiramente em
um meio virtual, a exemplo do software Fruit Loop.
Considerando as análises realizadas, pode-se afirmar que o que não
muda no processo da transmissão oral, aquilo que mantém a integridade
de uma unidade do pensamento musical e que inclusive a define no
contexto do tecnobrega são a batida base e a utilização de tecnologias
computacionais na manipulação de timbres, melodias e ritmos. Uma
música, para ser tecnobrega, tem que ser estruturada nessa batida, que é
130 • Revista Estudos Amazônicos
externalizada e serve de guia, base estrutural e acompanhamento rítmico
para a música, e utilizar tecnologias computacionais para a manipulação
de timbres, melodias e ritmos, perceptíveis em toda a produção dessa
vertente musical do brega paraense.
As músicas produzidas são utilizadas em estúdios, em shows de
bandas, em “festas de aparelhagem” e na confecção de CDs para o
comércio informal. Os produtores e DJs as disponibilizam na internet, na
maioria das vezes no sítio 4Shared. É a partir desse sítio que o público e os
camelôs produzem os CDs, sendo possível comprá-los em várias esquinas
da capital paraense.
O circuito bregueiro, segundo Costa14, é composto pelas casas de shows
onde as festas acontecem, por equipamentos que constituem as
“aparelhagens”, pelos fãs-clubes e públicos frequentadores dos eventos
festivos, por bandas, cantores, gravadoras, produtoras, pela venda de CDs,
pela difusão musical radiofônica e por táticas de publicidade com vistas a
informar aonde e quando as festas vão acontecer. O tecnobrega espelha
ainda os novos modelos de produção cultural que emergem das periferias
globais. Entre as principais características desse modelo estão a
sustentabilidade econômica; a flexibilização dos direitos de propriedade
intelectual; a horizontalização da produção, em geral, feita em rede; a
ampliação do acesso à cultura; a contribuição da tecnologia para a
ampliação desse acesso e, a redução de intermediários entre o artista e o
público15.
As dinâmicas de produção e circulação dão a tônica da ascensão atual
do tecnobrega, pautada em sua relativa autonomia frente à mídia
convencional16. O barateamento de custos de produção e a pirataria na
comercialização de CDs são óbvias explicações para o crescimento deste
modelo de produção musical. Mas ele não está descolado do sucesso do
ritmo nas festas dançantes de aparelhagem e da divulgação por meios mais
convencionais como o rádio e a televisão. A principal fonte de renda das
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bandas e artistas do tecnobrega não é a venda dos CDs, que tem como
função a divulgação e a popularização das músicas tocadas nos shows.
Estes são a principal fonte de faturamento.
A indústria fonográfica tradicional perdeu espaço em virtude da
pirataria. À parte aos aspectos negativos agregados à sua prática, a pirataria
tornou-se um processo de disseminação musical, especialmente nas
periferias, como define Freitas (2008, p. 12):
(...) a pirataria como resultado da facilitação de
acesso ao aparato tecnológico e como forma de
“divulgar” uma produção cultural que nasce no seio
das massas e muito rapidamente se dissemina entre
outras camadas da sociedade17.
O avanço do uso do chamado ciberespaço também foi determinante
para a perda de espaço da indústria fonográfica tradicional e para a
reorganização do mercado de produção e consumo musical. Di Fátima18
utiliza como exemplo algumas plataformas que ajudaram a forjar essa
“nova ordem” de produção e consumo de conteúdo musical: os blogs, o
Grooveshark, o Twitter, o Face book, o Share the Music, o Blip.fm, o My space e
os chats especializados em debates e trocas de ideias temáticas. Cardoso
traz uma visão complementar ao uso das novas tecnologias no âmbito da
produção musical: “estas tecnologias não permitem, na sua essência, fazer
coisas novas (...) elas permitem novas formas de organização da produção,
novas formas de funcionamento da economia e, consequentemente, novas
formas de cultura.” 19
O desenvolvimento e o sucesso do tecnobrega têm relação não
somente com a acessibilidade crescente às novas tecnologias pelos “jovens
atores das periferias urbanas” 20, mas também com o exercício de práticas
132 • Revista Estudos Amazônicos
culturais preexistentes (como a festa de aparelhagem, o lazer e o trabalho
acompanhado pela música, as contínuas reinvenções da dança etc.), que
dão legitimidade às reformulações de bens simbólicos.
A desqualificação estética é apontada por alguns autores como
manifestação de parte da “elite local”, que não reconhece este ritmo como
produto de qualidade ou representativo das tradições musicais da região21.
Todavia, como afirma Burnett: “O grande mérito do Tecnobrega não diz
respeito à qualidade da música - quem os celebra não entra nesse mérito , mas à capacidade de ter nascido avesso às gravadoras”.22
Nossa hipótese é a de que a produção musical, nesse contexto, toma
como foco o mercado musical, o que as pessoas querem ouvir, cantar e
dançar, mostrando sua funcionalidade e seu caráter interativo, assim como
as possibilidades de trabalho e a valorização do produtor, o
reconhecimento das composições na esfera do consumo e as técnicas e
tecnologias empregadas na produção da música propriamente dita.
Tecnobrega parece ser muito mais do que a música. É, também, outra
forma de se fazer música. Podemos até não gostar dele, mas não podemos
negar a sua existência.
O tecnobrega faz parte de uma radical transformação ocorrida no
mercado fonográfico brasileiro, experiência bem sucedida de público e de
venda, “apresentando como trunfo estar associado a uma ‘novidade’ que
reúne tecnologias, mercado informal e periferia cultural” 23. Mais do que
uma vertente musical do brega é um mercado que criou novas formas de
produção e distribuição de música.
Artigo recebido em janeiro de 2014
Aprovado em março de 2014
Revista Estudos Amazônicos • 133
NOTAS
*
Doutora em Etnomusicologia, instrumentista e professora do Programa de PósGraduação em Artes (PPGArtes) da UFPA.
** Doutor em Etnomusicologia, músico multi-instrumentista, compositor e
arranjador. Professor da Escola de Música da Universidade Federal do Pará
(EMUFPA).
1 CALLADO, “Música de qualidade (MDQ)? O que é isso?”
Disponível
em:
<https://www.facebook.com/notes/pedrinhocallado/m%C3%BAsica-de-qualidade-mdq-o-que-%C3%A9-isso/194992713856739
2 MARTINS, M. C.; CUNHA, G. P. Tecnologia, Produção e Educação Musical:
Descompassos e desafios. In: Congresso Ibero-Americano de Informática na
Educação - RIBIE'98, 4, Brasília, DF. Anais (on-line). Brasília: RIBIE, 1998, p.
05
Disponível
em
<http://www.ufrgs.br/niee/eventos/RIBIE/1998/pdf/com_pos_dem/235.pd
f>. Acesso em: 5 set. 2013.
3 MACEDO, Frederico. Algumas consequências das novas tecnologias de
produção e reprodução sonora sobre a música: a dissociação entre performance
e experiência musical, a autenticidade e a autoria. In: Congresso da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música – ANPPOM, Brasília, DF.
Anais (on-line). Brasília: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Música, 2006, p. 59.
Disponível
em:
<http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2006/CDROM
/COM/04_Com_Musicologia/sessao01/04COM_MusHist_0101-244.pdf>.
Acesso em: 21 nov 2013.
4 VIEIRA, Gabriel da Silva; RAY, Sônia. Desafios e Contribuições das Novas
Tecnologias à Performance Musical. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE
PESQUISA EM MÚSICA, 9., 2009, Goiânia. Anais (on-line). Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 2009. p. 4. Disponível em:
<http://www.musica.ufg.br/mestrado/anaissempem.html>. Acesso em: 23 nov.
2013.
5 CASTRO, Oona. O circuito do Tecnobrega em Belém do Pará e a criação de
uma indústria cultural inovadora e aberta. 2010.
Disponível
em:
<http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/files/2010/02/constcomum_Oona-CASTRO.pdf>. Acesso em: 12 set. 2013.
6FL Studio, conhecido como Fruity Loops, é uma estação de trabalho de áudio
digital. Possui uma interface gráfica baseada em padrões de sequenciador de
música. Já está em sua décima atualização, desde a sua criação em 1997. Cada
padrão pode ser composto por um número ilimitado de instrumentos - amostras,
acústicos ou VST instrumentos. Vem com uma variedade de plug-ins e geradores
134 • Revista Estudos Amazônicos
e uma variedade de efeitos de processamento de som, incluindo os efeitos de
áudio comuns, como chorus, compressor, delay, flange, phaser, reverber, equalizer, pitch,
dynamics, vocoding e limiter. Grava midi e áudio. Todos os teclados se comunicam
através do sistema midi.
7 GUERREIRO DO AMARAL, Paulo Murilo. Estigma e Cosmopolitismo na
Constituição de uma Música Popular Urbana de Periferia: etnografia da produção do
tecnobrega em Belém do Pará. 2009. 245 f. Tese (Doutorado em Música) –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
8 Geralmente o pulso é ainda mais acelerado quando as músicas são tocadas nas
aparelhagens.
9Os dez tecnobregas mais tocados, no mês de fevereiro de 2013, na Rádio Rauland
– FM 95.1, segundo o Programador Musical Luiz Cláudio – Coyote e os dez
tecnobregas mais tocados na Rádio Liberal – FM 97.5, segundo o produtor do
programa Super Pop, Walmir Nascimento da Cruz. O cruzamento dessas
informações gerou uma lista com 15 músicas que foram transcritas e analisadas.
10 Termo utilizado por Waldo Squash, DJ, compositor, instrumentista e produtor da
banda Gang do Eletro.
11Tecnobrega mais tocado na Rádio Rauland, em fevereiro de 2013, e que também
consta na relação dos dez tecnobregas mais tocados na Rádio Liberal, no mesmo
período.
12 “A BANDA BATIDÃO foi fundada em Janeiro de 2009 na cidade de Belém
(PA). A idéia de formar a banda surgiu dos vocalistas Manú e Flávio que tinham
acabado de sair de um trabalho em Recife (PE), e sentiam a necessidade de lançar
um produto novo no mercado que agregasse ritmos paraenses como o “melody”
no intuito de inovar e conquistar o público. A BANDA BATIDÃO realiza um
trabalho cem por cento independente. O seu primeiro CD foi lançado no ano de
2009, com 13 faixas. Quatro meses após o lançamento, cerca de 6 músicas já
haviam se tornado verdadeiros sucessos, executados em toda região Norte, a
partir daí a BANDA BATIDÃO se fixou no mercado e ocupou o posto de uma
das maiores bandas de tecnomelody do país. Hoje a BANDA BATIDÃO possui
estrutura própria e leva o seu ritmo forte e inconfundível para todo o Brasil, além
do repertório repleto de sucessos autorais a banda faz uma fusão do ritmo com
as tendências do momento na música mundial. O Show da BANDA BATIDÃO
é recheado de surpresas que se encaixam em qualquer evento, sempre visando à
satisfação do público e dos contratantes. A atual formação da BANDA
BATIDÃO é configurada por 2 vocalistas, 4 músicos, 6 bailarinos, 4 técnicos e
um escritório, que faz a produção executiva da banda e fica localizado em Belém”
(Disponível em: <http://www.bandabatidao.com.br/>. Acessado em:
03.01.2014).
13 NKETIA, Kwabena. The Music of Africa. New York: W. W. Norton &
Company, 1974, P. 131-132. “African traditions by externalizing the basic pulse.
(…) this may be shown through hand clapping or through the beats of a simple
idiophone. (...) Because the time line is sounded as part of the music, it is regarded
as an accompanying rhythm and a means by which rhythmic motion is sustained.”
(Tradução Livre).
Revista Estudos Amazônicos • 135
COSTA, Antonio Maurício. Festa na Cidade: o circuito bregueiro de Belém do
Pará. Belém: EDUEPA, 2009.
15 LEMOS, Ronaldo & CASTRO, Oona (Orgs.) Tecnobrega: o Pará reinventando
o negócio da música. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008, p. 21.
16 BARROS, Lydia. Tecnobrega, entre o apagamento e o culto. Contemporânea, Rio
de Janeiro, n. 12, vol. 1, 2009, p. 63.
17 FREITAS, Dayse Kelly G. de. Redimensionamento da Indústria Cultural e
Pirataria: Estudo de caso do Tecnobrega em Belém do Pará. In: Encontro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura – ENECULT, 4, 2008, Salvador, BA.
Anais (on-line). Salvador: Faculdade de Comunicação/UFBa, 2008, p. 12.
Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14151.pdf>. Acesso em:
5 nov. 2013.
18 DI FÁTIMA, Branco. A invenção dos anônimos: Do home studio às redes
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em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/issue/view/613>.
Acesso em: 21 nov. 2013.
19 Idem.
20 BARROS, Lydia. Op. Cit., p. 65.
21 LEMOS, Ronaldo & CASTRO, Oona. Op. Cit., p. 30.
22 BURNETT, Henry. “Viva o Tecnobrega!”.
Disponível
em:
<http://www.bregapop.com/servicos/historia/329-henryburnett/4944-viva-o-tecnobrega-henry-burnett.>).
23 MAIA, Mauro Celso. Música na Periferia: as rotinas produtivas do tecnobrega
de Belém do Pará. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Anais
Intercom
(on-line),
32,
2008,
p.
16.
Disponível
em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/>. Acesso em: 28 mai.
2013.
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