Cenas Imaginárias: O processo de criação musical do tecnobrega paraense Sonia Chada* Luiz Moraes Filho** Resumo: O tecnobrega é uma modalidade de música eletrônica dançante, com texto, que prioriza o uso de tecnologias computacionais, geralmente associada à periferia urbana belenense. O grande impacto para a produção musical acontece com a facilidade de aquisição de computadores e a criação de estúdios caseiros. O uso do computador é fundamental nos processos de produção musical e, até na performance. Neste contexto, a produção de música acontece de várias formas, sendo altamente dependente da tecnologia disponível, da habilidade do criador em manipular essa tecnologia, além da sua imaginação, musicalidade e criatividade. Considerando as análises realizadas pode-se afirmar que o que não muda no processo da transmissão oral é a “batida base” e a utilização de tecnologias computacionais na manipulação de timbres, melodias e ritmos, consistindo em outra forma de se fazer música. Palavras-chave: Tecnobrega; Música Eletrônica; Produção Musical; Criação Musical. Revista Estudos Amazônicos • vol. X, nº 2 (2013), pp. 117-136 Abstract: Tecnobrega is a form of electronic dance music, with text, that prioritizes the use of computer technology, usually associated with belenense urban periphery. The major impact on music production happens with the ease of purchasing computers and setting up home studios. Computer use is essential in the process of music production and even in performance. In this context, the production of music happens in several ways, being highly dependent on the technology available, the ability of the designer to manipulate this technology beyond imagination, creativity and musicality. Considering the analyzes it can be stated that what does not change in the process of oral transmission is the "basic beat" and the use of computer technologies in the management of timbres, melodies and rhythms, consisting of another way of making music. Keywords: Tecnobrega; Electronic Music; Musical Production; Musical Creation. O tecnobrega, frequentemente associado ao público jovem e ao modo de vida das classes populares da periferia urbana belenense, é uma modalidade de música eletrônica concebida geralmente distante das grandes gravadoras e dos meios de comunicação de massa. Essa modalidade ganhou espaço no contexto paraense, originando, posteriormente, festas denominadas de tecnobrega. Pedrinho Callado, reconhecido compositor e cantor paraense, considera-o como “um gênero genuinamente do Pará”1. O grande impacto para a produção do tecnobrega acontece com a facilidade de aquisição de computadores e a criação de estúdios caseiros. 118 • Revista Estudos Amazônicos Assim, esta nova prática de produção musical abriu espaço para a atuação amadorística de “compositores não músicos”, tornando-se promissor para amadores em busca de prestígio junto a outros criadores e estrelas deste meio. O uso do computador e suas funcionalidades passaram a auxiliar e são fundamentais nos processos de produção musical desde a fase de composição até a masterização e a própria performance. Martins e Cunha apresentam essa etapa como algo positivo para a criação musical: Os aplicativos computacionais também possibilitam que o compositor tenha acesso, em um único ambiente, a outras ferramentas tais como instrumento acústico, gravador, sintetizador, mesa de mixagem de som (...). Estes recursos dão suporte à atividade composicional apresentando possibilidades mais potentes e diversificadas para o compositor expressar e trabalhar suas ideias 2. Nos estúdios da cidade de Belém, a tecnologia já usada por produtores e bandas locais começou a se disseminar através da internet e de suas facilidades em obter programas muitas vezes pirateados, em outras áreas da cidade, fomentando, em músicos, bandas e produtores musicais da periferia ideias, novos conceitos e uma nova metodologia de se produzir música mais intuitivo-pragmática do que técnica. Isso talvez seja oriundo d a “facilidade” em obter recursos que antes só se poderia obter através de toda uma gama de produção “humana”. Revista Estudos Amazônicos • 119 Em meio às mudanças comportamentais e mercadológicas, o músicoprodutor pôde acrescentar ao seu rol de criação as inúmeras ferramentas proporcionadas pelas novas tecnologias: Hoje, o músico ou o produtor possuem uma série de ferramentas que oferecem os mais diversos tipos de sonoridades e possibilidades para a produção musical. Gravadores, processadores de som, sintetizadores, samplers, softwares de síntese, sequenciadores, entre os vários recursos que são desenvolvidos a cada dia, estão todos disponíveis ao músico que esteja disposto a utilizá-los em seu trabalho3. Com o acréscimo de novas ferramentas, as possibilidades de criação também se ampliaram e, dessa maneira, os processos de criação musical cresceram em qualidade e diversidade. Vieira e Ray4 afirmam que a inserção de instrumentos e periféricos na criação e performances proporciona novos pontos de pesquisa ao músico e o leva a buscar uma constante atualização não somente em conhecimentos na área musical, mas também em áreas transversais como a área de Tecnologia da Informação, a fim de se manter constantemente atualizado acerca dos recursos disponíveis para a realização de seus trabalhos. Para Castro5, a apropriação das novas tecnologias da informação e comunicação foi a chave para o ciclo produtivo do tecnobrega. Afirma ainda que estúdios caseiros só foram possíveis graças ao acesso a equipamentos, computadores e programas. De acordo com a autora, as produções do tecnobrega inicialmente eram realizadas em estúdios 120 • Revista Estudos Amazônicos domésticos, os chamados Home Studios, sendo esses as principais fontes de desenvolvimento de produções musicais desse gênero. Neste contexto, a produção de música acontece de várias formas. Geralmente inicia com uma “ideia musical”, quase sempre relacionada ao cotidiano. Em seguida, esta “ideia musical” se transforma em tecnobrega com a ajuda de teclados eletrônicos, mesa de som e computador. As duas fases podem, também, ocorrer simultaneamente. Entretanto, o processo de criação musical do tecnobrega não se afasta das características universais da composição musical. O programa mais utilizado para a produção musical é o Fruity Loops6, algumas vezes associado a outros programas disponíveis. Com a utilização deste programa, o repertório musical do tecnobrega apresenta algumas características interessantes: 1. Quantização – o tempo da música cai exatamente no tempo certo. 2. Correção de quase 100% da afinação das vozes - quando isso ocorre, a passagem entre a altura de um som para outro é brusca, “robotizando” a voz. 3. Compressão das vozes – as vozes são “comprimidas” gerando uma dinâmica igual para todas as vozes – humanas e instrumentos. Esses efeitos produzem uma música mais “robotizada”, dificilmente alcançada pela interpretação humana. Podemos perceber que há uma interação entre o processo criativo e o processo de edição musical. Desta forma, o papel do compositor e o do produtor se tornam um só. Neste contexto, o criador musical, o compositor e/ou o arranjador e/ou o produtor musical lança mão de tecnologias digitais a partir das quais emergem formas inovadoras de propaganda, difusão e consumo musical7. O estúdio, como já mencionado, na maioria das vezes caseiro, a banda e a festa de aparelhagem são os três espaços de produção musical do tecnobrega. O cantor geralmente é o compositor envolvido no processo de produção musical. Existem, todavia, compositores não intérpretes que Revista Estudos Amazônicos • 121 compõem para bandas e artistas reconhecidos pelo público. O DJ atua nas festas de aparelhagem e também na produção musical. O produtor musical geralmente está relacionado ao estúdio. O repertório musical do tecnobrega é funcional. Sua função principal é a dança. A ênfase é percussiva, os elementos rítmicos guiando os movimentos corporais. Utiliza principalmente instrumentos eletrônicos, como a bateria, o baixo e o teclado (sons sintetizados), algumas vezes em conjunto com instrumentos acústicos, e voz feminina e/ou masculina, priorizando o uso de tecnologias computacionais na manipulação de timbres, melodias e ritmos. As músicas apresentam pulso rápido (cerca de 160 a 200 batidas por minuto)8 e compasso quaternário. É perceptível a apropriação de timbres e fragmentos sampleados de diversas músicas, a mistura de múltiplas sonoridades, a incorporação no repertório musical de diferentes gêneros, de lugares e épocas distintas, assim enriquecendo a produção musical. Considerando as músicas analisadas,9 pode-se afirmar que, grosso modo: os textos tratam de diferentes temas, dentre os quais o amor, a tristeza, a alegria, o ciúme, a traição, a cultura regional e homenagens a personagens e instituições integrantes desse contexto; as melodias são construídas em tonalidades maiores e menores; a harmonia é geralmente baseada em quatro acordes, podendo se apresentar em um contexto tonal com funções de tônica, subdominante e dominante ou em um contexto modal geralmente ligadas ao modo eólio ou dórico e, em relação à forma, apresentam as seguintes partes: Batida base, Introdução – na maioria das músicas, instrumental, Parte A – melodia com texto, algumas vezes um diálogo entre voz feminina e masculina; Parte B - melodia com texto, algumas vezes um diálogo entre voz feminina e masculina (essa parte algumas vezes é uma variação da Parte A); Refrão. A música é tocada duas vezes na sua forma completa ou, na repetição, são selecionadas algumas 122 • Revista Estudos Amazônicos partes. A Introdução, na repetição, funcionando como um Interlúdio instrumental onde são inseridas as vinhetas ou “assinaturas”. A música finaliza com uma Coda instrumental. É utilizada a mesma harmonia em cada uma dessas partes. O que muda são as “cenas”10 criadas em cada uma dessas partes, elaboradas com a adição, supressão e/ou combinação de elementos musicais variados. Na tentativa de demonstrar o processo de criação musical do tecnobrega paraense e de descrever como são criadas diversas cenas em um tecnobrega, tomou-se, como exemplo, a música “Amor a três”11, gravada pela Banda Batidão12. Este tecnobrega apresenta bpm Cada cena é estruturada em quatro ou oito compassos. É perceptível em toda a música que a marcação/batida da música cai exatamente no tempo certo (quantização). E que as vozes são “comprimidas” gerando uma dinâmica igual para todas as vozes e instrumentos, uma das características do tecnobrega, como mencionado. Este repertório musical mantem uma dinâmica única do começo ao fim da música gerando uma sensação “robotizada”. Cena 1: Batida base A música inicia com a externalização da “batida base”, tocada pelo bumbo e pela caixa da bateria eletrônica. O resultado sonoro são alturas distintas, visto que o bumbo e a caixa possuem timbres distintos. A marcação do bumbo é conhecida como “bumbo reto” ou “bumbo no chão”. O padrão rítmico é baseado em uma matriz ou ciclo duracional de 16 pulsações, ritmo duplo, pulso básico semínima (4). A caixa apresenta três batidas e o bumbo duas na matriz. A batida base é ouvida durante toda a música - com raríssimas exceções, em alguns poucos compassos a batida é supressa ou substituída pelas “viradas” executadas pelos tom-tons da bateria eletrônica, geralmente entre uma parte e outra da música. Todo tecnobrega inicia com essa batida base. Segundo Waldo Squash, para ser Revista Estudos Amazônicos • 123 tecnobrega, a música tem que ter essa batida. O DJ precisa dessa batida para sua orientação e performance “para botar no tempo futuros elementos a serem acrescentados” (Entrevista realizada em 30.05.2013): Segundo Nketia (1974, p. 131-2): (...) as tradições africanas externalizam o pulso básico. (...) pode ser demonstrado através de bater palmas ou através das batidas de um idiofone simples. (...) Uma vez que a time line é emitida como parte da música, é considerada como um ritmo de acompanhamento e um meio pelo qual o movimento rítmico é sustentado.13 Partindo da definição do autor, podemos considerar a batida base uma time line, uma vez que faz parte do tecnobrega, sendo um ritmo de acompanhamento, que estrutura a música. Como já mencionado, todo tecnobrega externaliza essa batida base. Cena 2: Introdução A introdução é constituída de duas vozes de instrumentos, pergunta e resposta, utilizando sons sintetizados: voz aguda, pergunta – piano digital, voz grave, resposta – acordeon. Na metade do compasso dez, em mínima e duas semibreves, é acrescentado um som mais eletrônico (synth) e a 124 • Revista Estudos Amazônicos levada do reggae pelo órgão e pela guitarra, resultando na acentuação do segundo e do quarto tempo da batida base do tecnobrega. A introdução é tocada duas vezes, na segunda vez a bateria eletrônica apresenta ritmos e timbres distintos: Cena 3: Parte A O tema é cantado por uma voz feminina, com a correção de quase 100% da afinação da voz, gerando um efeito “robotizado”, mantido em toda a música, acompanhado pela guitarra, teclado e bateria eletrônica. Essa parte apresenta efeitos mais rítmicos no acompanhamento da melodia, como sons sintetizados em colcheias e em decrescendo (delay): Texto: Passo noites em claro/A solidão ao meu lado/Vendo suas fotos/Como aguentar. Revista Estudos Amazônicos • 125 Cena 4: Parte A’ A parte A’ é cantada com as mesmas características da parte A. A melodia de A’ é uma variação da parte A. A harmonia é mantida. Nesta cena é acrescentado um som sintético mais melódico fazendo um contracanto com a voz e uma voz feminina fazendo respostas à voz principal nos compassos 26 e 28. Os elementos em colcheias, rítmicos, da cena anterior, são substituídos por elementos mais melódicos. Assim, é estabelecido um contraste entre as duas cenas. A cena três possui características de acompanhamento mais rítmicas e a cena quatro mais melódicas: Texto: Cai a noite/Eu fico vendo estrelas/Pensando em você/Que não está aqui. Cena 5: Parte A’’ A melodia cantada é uma variação de A, mais rítmica, fornecendo um movimento rítmico a esta cena. A melodia é acompanhada pelos elementos rítmicos da cena 3 e os elementos melódicos da cena 4, além do acréscimo de vários elementos sonoros. No compasso 36 há uma “virada” da bateria eletrônica como preparação para a cena seguinte: 126 • Revista Estudos Amazônicos Texto: Eu entendo/Não posso te amar/Por isso tento ocultar/O que me faz chorar e chorar. Cena 6: Parte B Nesta cena é retirada a levada do reggae até o compasso 40 e são acrescentados diversos efeitos sonoros eletrônicos. A melodia é estruturada em colcheias gerando um movimento ainda mais rítmico que o da cena anterior. Há uma mudança na harmonia, passa da tônica para a dominante e as mudanças dos acordes acontece a cada compasso e não mais de dois em dois compassos como nas cenas anteriores. É acrescentado um compasso ao final desta cena, para uma virada da bateria eletrônica como preparação para a cena seguinte e modificando a estrutura das cenas de quatro ou oito compassos, assim esta cena passa a ter nove compassos: Revista Estudos Amazônicos • 127 Texto: No meio da noite eu te ligo/Para saber como estais/Se ainda pensa em mim/Não deixou de me amar/Ninguém vai entender/Se eu contar esta história para alguém/Por isso sofro. Cena 7 – Refrão A melodia do refrão é construída em uma tessitura mais aguda que a das outras cenas, assim como os elementos eletrônicos utilizados no acompanhamento estão numa tessitura mais aguda do que os das cenas anteriores, produzindo resultados sonoros distintos. A harmonia volta para a tônica – La M, mais mantem a mudança de acordes a cada compasso como na cena anterior: Texto: Quero me arriscar/Sei que não é certo/Mais não quero te perder/Eu te amo. Cena 8 – Refrão’’ A melodia desta cena é uma variação da anterior, todavia em uma tessitura ainda mais aguda. Os elementos sonoros eletrônicos utilizados no acompanhamento também são mais agudos do que os da cena anterior: 128 • Revista Estudos Amazônicos Texto: Deixo ele aqui/E vou correndo encontrar você/Sei que é errado viver um amor a três/Sei que é errado viver um amor a três. Cena 9 – Repete a Introdução Na repetição da Introdução é acrescentada a vinheta “Banda Batidão”, a “assinatura” da banda, para identificá-la. O fato é explicado pela pouca ou nenhuma preocupação com o registro dos nomes dos cantores e compositores, tanto nas coletâneas produzidas pelos DJs ou por selos locais quanto nas cópias “piratas” reproduzidas para o comércio informal. Com isso, os cantores, as bandas e os DJs, para garantir a divulgação de seus nomes, utilizam-se de vinhetas, executadas no meio das músicas. Cena 10 – Repetição da parte B com as mesmas características apresentadas anteriormente, mantem a mesma melodia e muda o texto: Texto: No meio da noite eu te ligo/Para saber como estás/Se ainda pensa em mim/Não deixou de me amar/Ninguém vai entender/Se eu contar esta história para alguém/Por isso sofro. Cena 11 – Repetição do Refrão com as mesmas características já apresentadas, mantem a mesma melodia e muda o texto: Texto: Quero me arriscar/Sei que não é certo/Mais não quero te perder/Eu te amo. Revista Estudos Amazônicos • 129 Cena 12 - Repetição do Refrão’ com as mesmas características, sendo que a última frase, “Sei que é errado viver um amor a três” é repetida quatro vezes, compassos 62, com anacruse, a 64: Texto: Deixo ele aqui/E vou correndo encontrar você/Sei que é errado viver um amor a três/Sei que é errado viver um amor a três Cena 13 – Batida base A batida base é apresentada como no início da música para concluí-la. Cada acréscimo, supressão, combinação ou mudança de elementos sonoros produz um resultado distinto em cada cena imaginada pelo criador. A criação musical nesse contexto é altamente dependente da tecnologia disponível, da habilidade do criador em manipular essa tecnologia, além da sua imaginação, musicalidade e criatividade. Para a elaboração dos arranjos não é necessário uma sala contendo acústica adequada para gravações, pois os samples, sons e efeitos analógicos e digitais que constituem o arranjo podem ser manipulados inteiramente em um meio virtual, a exemplo do software Fruit Loop. Considerando as análises realizadas, pode-se afirmar que o que não muda no processo da transmissão oral, aquilo que mantém a integridade de uma unidade do pensamento musical e que inclusive a define no contexto do tecnobrega são a batida base e a utilização de tecnologias computacionais na manipulação de timbres, melodias e ritmos. Uma música, para ser tecnobrega, tem que ser estruturada nessa batida, que é 130 • Revista Estudos Amazônicos externalizada e serve de guia, base estrutural e acompanhamento rítmico para a música, e utilizar tecnologias computacionais para a manipulação de timbres, melodias e ritmos, perceptíveis em toda a produção dessa vertente musical do brega paraense. As músicas produzidas são utilizadas em estúdios, em shows de bandas, em “festas de aparelhagem” e na confecção de CDs para o comércio informal. Os produtores e DJs as disponibilizam na internet, na maioria das vezes no sítio 4Shared. É a partir desse sítio que o público e os camelôs produzem os CDs, sendo possível comprá-los em várias esquinas da capital paraense. O circuito bregueiro, segundo Costa14, é composto pelas casas de shows onde as festas acontecem, por equipamentos que constituem as “aparelhagens”, pelos fãs-clubes e públicos frequentadores dos eventos festivos, por bandas, cantores, gravadoras, produtoras, pela venda de CDs, pela difusão musical radiofônica e por táticas de publicidade com vistas a informar aonde e quando as festas vão acontecer. O tecnobrega espelha ainda os novos modelos de produção cultural que emergem das periferias globais. Entre as principais características desse modelo estão a sustentabilidade econômica; a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual; a horizontalização da produção, em geral, feita em rede; a ampliação do acesso à cultura; a contribuição da tecnologia para a ampliação desse acesso e, a redução de intermediários entre o artista e o público15. As dinâmicas de produção e circulação dão a tônica da ascensão atual do tecnobrega, pautada em sua relativa autonomia frente à mídia convencional16. O barateamento de custos de produção e a pirataria na comercialização de CDs são óbvias explicações para o crescimento deste modelo de produção musical. Mas ele não está descolado do sucesso do ritmo nas festas dançantes de aparelhagem e da divulgação por meios mais convencionais como o rádio e a televisão. A principal fonte de renda das Revista Estudos Amazônicos • 131 bandas e artistas do tecnobrega não é a venda dos CDs, que tem como função a divulgação e a popularização das músicas tocadas nos shows. Estes são a principal fonte de faturamento. A indústria fonográfica tradicional perdeu espaço em virtude da pirataria. À parte aos aspectos negativos agregados à sua prática, a pirataria tornou-se um processo de disseminação musical, especialmente nas periferias, como define Freitas (2008, p. 12): (...) a pirataria como resultado da facilitação de acesso ao aparato tecnológico e como forma de “divulgar” uma produção cultural que nasce no seio das massas e muito rapidamente se dissemina entre outras camadas da sociedade17. O avanço do uso do chamado ciberespaço também foi determinante para a perda de espaço da indústria fonográfica tradicional e para a reorganização do mercado de produção e consumo musical. Di Fátima18 utiliza como exemplo algumas plataformas que ajudaram a forjar essa “nova ordem” de produção e consumo de conteúdo musical: os blogs, o Grooveshark, o Twitter, o Face book, o Share the Music, o Blip.fm, o My space e os chats especializados em debates e trocas de ideias temáticas. Cardoso traz uma visão complementar ao uso das novas tecnologias no âmbito da produção musical: “estas tecnologias não permitem, na sua essência, fazer coisas novas (...) elas permitem novas formas de organização da produção, novas formas de funcionamento da economia e, consequentemente, novas formas de cultura.” 19 O desenvolvimento e o sucesso do tecnobrega têm relação não somente com a acessibilidade crescente às novas tecnologias pelos “jovens atores das periferias urbanas” 20, mas também com o exercício de práticas 132 • Revista Estudos Amazônicos culturais preexistentes (como a festa de aparelhagem, o lazer e o trabalho acompanhado pela música, as contínuas reinvenções da dança etc.), que dão legitimidade às reformulações de bens simbólicos. A desqualificação estética é apontada por alguns autores como manifestação de parte da “elite local”, que não reconhece este ritmo como produto de qualidade ou representativo das tradições musicais da região21. Todavia, como afirma Burnett: “O grande mérito do Tecnobrega não diz respeito à qualidade da música - quem os celebra não entra nesse mérito , mas à capacidade de ter nascido avesso às gravadoras”.22 Nossa hipótese é a de que a produção musical, nesse contexto, toma como foco o mercado musical, o que as pessoas querem ouvir, cantar e dançar, mostrando sua funcionalidade e seu caráter interativo, assim como as possibilidades de trabalho e a valorização do produtor, o reconhecimento das composições na esfera do consumo e as técnicas e tecnologias empregadas na produção da música propriamente dita. Tecnobrega parece ser muito mais do que a música. É, também, outra forma de se fazer música. Podemos até não gostar dele, mas não podemos negar a sua existência. O tecnobrega faz parte de uma radical transformação ocorrida no mercado fonográfico brasileiro, experiência bem sucedida de público e de venda, “apresentando como trunfo estar associado a uma ‘novidade’ que reúne tecnologias, mercado informal e periferia cultural” 23. Mais do que uma vertente musical do brega é um mercado que criou novas formas de produção e distribuição de música. Artigo recebido em janeiro de 2014 Aprovado em março de 2014 Revista Estudos Amazônicos • 133 NOTAS * Doutora em Etnomusicologia, instrumentista e professora do Programa de PósGraduação em Artes (PPGArtes) da UFPA. ** Doutor em Etnomusicologia, músico multi-instrumentista, compositor e arranjador. Professor da Escola de Música da Universidade Federal do Pará (EMUFPA). 1 CALLADO, “Música de qualidade (MDQ)? O que é isso?” Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/pedrinhocallado/m%C3%BAsica-de-qualidade-mdq-o-que-%C3%A9-isso/194992713856739 2 MARTINS, M. C.; CUNHA, G. P. Tecnologia, Produção e Educação Musical: Descompassos e desafios. In: Congresso Ibero-Americano de Informática na Educação - RIBIE'98, 4, Brasília, DF. Anais (on-line). Brasília: RIBIE, 1998, p. 05 Disponível em <http://www.ufrgs.br/niee/eventos/RIBIE/1998/pdf/com_pos_dem/235.pd f>. Acesso em: 5 set. 2013. 3 MACEDO, Frederico. Algumas consequências das novas tecnologias de produção e reprodução sonora sobre a música: a dissociação entre performance e experiência musical, a autenticidade e a autoria. In: Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música – ANPPOM, Brasília, DF. Anais (on-line). Brasília: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música, 2006, p. 59. Disponível em: <http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2006/CDROM /COM/04_Com_Musicologia/sessao01/04COM_MusHist_0101-244.pdf>. Acesso em: 21 nov 2013. 4 VIEIRA, Gabriel da Silva; RAY, Sônia. Desafios e Contribuições das Novas Tecnologias à Performance Musical. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM MÚSICA, 9., 2009, Goiânia. Anais (on-line). Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2009. p. 4. Disponível em: <http://www.musica.ufg.br/mestrado/anaissempem.html>. Acesso em: 23 nov. 2013. 5 CASTRO, Oona. O circuito do Tecnobrega em Belém do Pará e a criação de uma indústria cultural inovadora e aberta. 2010. Disponível em: <http://blogs.cultura.gov.br/culturaepensamento/files/2010/02/constcomum_Oona-CASTRO.pdf>. Acesso em: 12 set. 2013. 6FL Studio, conhecido como Fruity Loops, é uma estação de trabalho de áudio digital. Possui uma interface gráfica baseada em padrões de sequenciador de música. Já está em sua décima atualização, desde a sua criação em 1997. Cada padrão pode ser composto por um número ilimitado de instrumentos - amostras, acústicos ou VST instrumentos. Vem com uma variedade de plug-ins e geradores 134 • Revista Estudos Amazônicos e uma variedade de efeitos de processamento de som, incluindo os efeitos de áudio comuns, como chorus, compressor, delay, flange, phaser, reverber, equalizer, pitch, dynamics, vocoding e limiter. Grava midi e áudio. Todos os teclados se comunicam através do sistema midi. 7 GUERREIRO DO AMARAL, Paulo Murilo. Estigma e Cosmopolitismo na Constituição de uma Música Popular Urbana de Periferia: etnografia da produção do tecnobrega em Belém do Pará. 2009. 245 f. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. 8 Geralmente o pulso é ainda mais acelerado quando as músicas são tocadas nas aparelhagens. 9Os dez tecnobregas mais tocados, no mês de fevereiro de 2013, na Rádio Rauland – FM 95.1, segundo o Programador Musical Luiz Cláudio – Coyote e os dez tecnobregas mais tocados na Rádio Liberal – FM 97.5, segundo o produtor do programa Super Pop, Walmir Nascimento da Cruz. O cruzamento dessas informações gerou uma lista com 15 músicas que foram transcritas e analisadas. 10 Termo utilizado por Waldo Squash, DJ, compositor, instrumentista e produtor da banda Gang do Eletro. 11Tecnobrega mais tocado na Rádio Rauland, em fevereiro de 2013, e que também consta na relação dos dez tecnobregas mais tocados na Rádio Liberal, no mesmo período. 12 “A BANDA BATIDÃO foi fundada em Janeiro de 2009 na cidade de Belém (PA). A idéia de formar a banda surgiu dos vocalistas Manú e Flávio que tinham acabado de sair de um trabalho em Recife (PE), e sentiam a necessidade de lançar um produto novo no mercado que agregasse ritmos paraenses como o “melody” no intuito de inovar e conquistar o público. A BANDA BATIDÃO realiza um trabalho cem por cento independente. O seu primeiro CD foi lançado no ano de 2009, com 13 faixas. Quatro meses após o lançamento, cerca de 6 músicas já haviam se tornado verdadeiros sucessos, executados em toda região Norte, a partir daí a BANDA BATIDÃO se fixou no mercado e ocupou o posto de uma das maiores bandas de tecnomelody do país. Hoje a BANDA BATIDÃO possui estrutura própria e leva o seu ritmo forte e inconfundível para todo o Brasil, além do repertório repleto de sucessos autorais a banda faz uma fusão do ritmo com as tendências do momento na música mundial. O Show da BANDA BATIDÃO é recheado de surpresas que se encaixam em qualquer evento, sempre visando à satisfação do público e dos contratantes. A atual formação da BANDA BATIDÃO é configurada por 2 vocalistas, 4 músicos, 6 bailarinos, 4 técnicos e um escritório, que faz a produção executiva da banda e fica localizado em Belém” (Disponível em: <http://www.bandabatidao.com.br/>. Acessado em: 03.01.2014). 13 NKETIA, Kwabena. The Music of Africa. New York: W. W. Norton & Company, 1974, P. 131-132. “African traditions by externalizing the basic pulse. (…) this may be shown through hand clapping or through the beats of a simple idiophone. (...) Because the time line is sounded as part of the music, it is regarded as an accompanying rhythm and a means by which rhythmic motion is sustained.” (Tradução Livre). Revista Estudos Amazônicos • 135 COSTA, Antonio Maurício. Festa na Cidade: o circuito bregueiro de Belém do Pará. Belém: EDUEPA, 2009. 15 LEMOS, Ronaldo & CASTRO, Oona (Orgs.) Tecnobrega: o Pará reinventando o negócio da música. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008, p. 21. 16 BARROS, Lydia. Tecnobrega, entre o apagamento e o culto. Contemporânea, Rio de Janeiro, n. 12, vol. 1, 2009, p. 63. 17 FREITAS, Dayse Kelly G. de. Redimensionamento da Indústria Cultural e Pirataria: Estudo de caso do Tecnobrega em Belém do Pará. In: Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – ENECULT, 4, 2008, Salvador, BA. Anais (on-line). Salvador: Faculdade de Comunicação/UFBa, 2008, p. 12. Disponível em: <http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14151.pdf>. Acesso em: 5 nov. 2013. 18 DI FÁTIMA, Branco. A invenção dos anônimos: Do home studio às redes sociais. Sessões do Imaginário, Porto Alegre, v. 1, n. 27, p.1-5, jan. 2012. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/issue/view/613>. Acesso em: 21 nov. 2013. 19 Idem. 20 BARROS, Lydia. Op. Cit., p. 65. 21 LEMOS, Ronaldo & CASTRO, Oona. Op. Cit., p. 30. 22 BURNETT, Henry. “Viva o Tecnobrega!”. Disponível em: <http://www.bregapop.com/servicos/historia/329-henryburnett/4944-viva-o-tecnobrega-henry-burnett.>). 23 MAIA, Mauro Celso. Música na Periferia: as rotinas produtivas do tecnobrega de Belém do Pará. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Anais Intercom (on-line), 32, 2008, p. 16. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/>. Acesso em: 28 mai. 2013. 14 136 • Revista Estudos Amazônicos