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CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ACERCA DO CONCEITO DE BAIRRO RURAL E DE
COMUNIDADE RURAL.
Raphael Medina Ribeiro1
João Cleps Júnior2
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo empreender uma reflexão acerca do conceito de
bairro rural e/ou comunidade rural, partindo tanto de elementos teóricos associados aos campos da
Sociologia Rural e da Geografia Agrária. Nossos procedimentos metodológicos consistiram em
recorrer inicialmente, ao entendimento de bairro rural entre alguns autores e obras clássicas da
temática em questão, como são Maria Izaura Pereira de Queiroz e Antônio Candido da sociologia
rural e Lílian Fernandes da Geografia Agrária. Assim, observamos entre os autores estudados as
várias definições e entendimentos do que venha a ser um bairro rural, bem como identificamos
alguns princípios e lógicas sociais que operam no mundo rural, fazendo com que um determinado
espaço possa ser designado como um bairro rural/comunidade rural. Desse modo, a existência e a
manutenção dos vínculos sociais estabelecidos entre moradores, vizinhos e/ou parentes de uma
determinada área rural, expressos por meio de relações de vizinhança, de amizade, de solidariedade
e de cooperação; em diferentes esferas de vida dos sujeitos, como o trabalho, a produção e os
momentos festivos e religiosos, apontam para a identificação dos princípios e lógicas sociais que
caracterizam os bairros/comunidades rurais.
1. Introdução
Este trabalho tem como objetivo interpretar à luz do princípio da dádiva, as relações de vizinhança,
cooperação mútua e solidariedade, as quais se configuram como um traço cultural característico
entre grupos sociais e comunidades do mundo rural brasileiro, em tempos passados ou na
atualidade, especialmente entre categorias sociais designadas por camponeses, pequenos
produtores, sitiantes, roceiros, sertanejos e caipiras.
A partir de leituras sucintas de autores que pesquisaram núcleos e comunidades rurais,
especialmente Antônio Candido e Maria Izaura Pereira de Queiroz, localizaremos algumas
passagens e momentos em que percebemos alguma aproximação com o princípio da dádiva,
especialmente, quando eles tratam dos vínculos sociais criados entre os moradores rurais, por meio
das relações de vizinhança, de solidariedade e de cooperação. A prática do mutirão configura como
um exemplo importante da noção de dádiva inscrita no universo sócio-cultural dos caipiras, sitiantes
e demais camponeses, mas seguramente não seria o único.
1
Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, integrante do Laboratório de Geografia Agrária (LAGEA).
E-mail: [email protected].
2 Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, coordenador do Laboratório de Geografia Agrária
(LAGEA). E-mail: [email protected].
Tentaremos a partir da idéia de dádiva e alguns de seus princípios, como a noção maussiana – dar,
receber e retribuir, a criação e manutenção do vinculo social e o endividamento mútuo, fazer um
leitura dos traços culturais e valores característicos das sociedades rurais. Nesta tarefa, buscando
explicitar melhor o conceito de dádiva, recorreremos a dois autores, Allan Caillé e Leonardo de
Araújo Mota, que lançam luzes acerca da teoria da dádiva e a sua aplicação na análise de contextos
sociais.
2. Desenvolvimento.
2.1. As características principais dos bairros rurais e das comunidades rurais.
Neste breve exercício, em que tentaremos localizar o princípio da dádiva nas relações de
vizinhança, solidariedade e cooperação entre grupos sociais rurais, devemos inicialmente,
caracterizar a área ou espaço em que estamos interessados. Trata-se das unidades sociais e
espaciais designadas pelas categorias bairro rural e comunidade rural, que são discutidos pelos
mais diversos autores de diferentes campos do conhecimento, com destaque para as disciplinas de
sociologia rural, antropologia rural e geografia rural.
Para Fernandes (1978), o termo “bairro” é largamente difundido entre a população do mundo rural
paulista, sendo utilizado para indicar determinada porção de território, de limites nem sempre muito
precisos, geralmente definidos em função de um sentimento de localidade, não raro reforçado pela
presença de algum elemento social de coesão como escola, igreja e venda. A autora afirma ainda,
que os bairros rurais teriam surgido nas áreas de povoamento mais antigo, à medida que se ia
estabelecendo um habitat fixo e suficientemente denso para que se pudessem estabelecer contatos
entre os vizinhos. Na época de formação dos primeiros bairros, as relações de vizinhança
desempenhavam importante papel na vida do habitante rural, e estas se manifestavam tanto no
plano econômico, como no social e espiritual.
Nas afirmações da autora citada podemos notar o entendimento do bairro rural como uma unidade
espacial e social elementar, uma célula, um agrupamento humano ou grupo social, onde são
estabelecidos diversos tipos de relações e laços, que garantem certa coesão social, de forma
especial a partir das relações de vizinhança.
Para Maria Izaura Pereira de Queiroz, socióloga responsável por várias pesquisas acerca dos
bairros rurais paulistas, os bairros rurais
(...) se organizam como grupos de vizinhança, cujas relações interpessoais são
cimentadas pela grande necessidade de ajuda mútua, solucionada por práticas
formais e informais, tradicionais ou não; pela participação coletiva em atividades
lúdico-religiosas que constituem a expressão mais visível da solidariedade grupal (...)”
(QUEIROZ, 1973 p.195)
Consideramos a partir do exposto, a existência de uma rede social que se cria no interior do bairro
rural ou da comunidade rural, que se organiza como um agrupamento de produtores rurais e demais
categorias de atores socais, os quais habitam um domínio espacial em comum e estabelecem entre
si relações sociais. Neste espaço social se inter-relacionam diversos tipos de sujeitos, com papéis e
posições sociais distintas, operando de acordo com hierarquias sociais e diferentes condições sócioculturais.
Na comunidade rural, os vários atores sociais, como empregados, proprietários, agregados,
parentes e vizinhos estabelecem entre si relações interpessoais diretas, próximas, face a face.
Esta relação de proximidade e os vínculos construídos incidem sobre os vários círculos de vida,
trabalho, parentesco, religião e momentos festivos da comunidade rural, tecendo uma gama de
trocas, obrigações e vínculos entre os moradores rurais.
Assim sendo, em nosso entendimento, as sociedades camponesas se aproximam da noção de
sociedade de interconhecimento, atribuída ao mundo tradicional ou “primitivo”, principalmente devido
à proximidade das relações produzidas pelo universo simbólico camponês. Outro ponto que reforça
esta idéia é o caráter indissociado das dimensões de vida dos sujeitos rurais, como a estreita ligação
entre trabalho, terra e família ou entre o saber e o fazer, apenas para indicar alguns exemplos.
Queiroz (1976) ao tratar da dimensão do parentesco entre sitiantes tradicionais afirma que a
reciprocidade é um elemento fundamental nesse tipo de relação, sendo que entre os parentes a
ajuda mútua é encarada como um dever. A autora destaca também que o casamento, como uma
relação de aliança, também produz obrigações recíprocas.
Candido (1997) em seu livro Os parceiros do Rio bonito, ressalta que o surgimento do bairro rural
pode estar ligado à origem familiar, destacando a iniciativa de ocupantes - ligados entre si por laços
de parentesco – que deram início à exploração de determinada área e iniciaram o seu povoamento.
Este autor assinala que a base territorial do bairro rural associava-se ao vínculo da solidariedade de
parentesco, de modo a fortalecer a unidade do bairro e desenvolver a sua consciência própria. “(...)
E o aparecimento de novos bairros era, não raro, devido à subdivisão da propriedade, numa
paragem sobrecarregada de herdeiros (...) (CANDIDO 1997).
Com relação à presença do universo religioso no bairro rural, Candido (1997) ressalta que a vida
lúdico-religiosa era um elemento de definição da sociabilidade caipira, podendo contar com eventos
mais amplos e organizados, geralmente realizados em capela consagrada a um determinado santo;
ou por rituais religiosos menos formais de caráter doméstico - rezas, novenas e terços, realizados
por vezes para o cumprimento de promessas.
Nesta rápida caracterização do bairro rural e da comunidade rural tivemos o intuito, a partir dos
autores consultados, de esclarecer a unidade social e espacial de que estamos tratando, bem como
já perceber alguns sinais da dádiva perpassando a vida social nesses espaços.
2.2. Analisando a presença da dádiva no bairro rural e na comunidade rural.
Atentemos primeiro ao entendimento de alguns autores acerca dos princípios da dádiva ou do
“paradigma da dádiva”, para depois lançarmos alguns olhares sobre a presença de relações
dadivosas no espaço das comunidades rurais e dos bairros rurais.
Allan Caillé (2002) em seu livro Antropologia do dom, destaca duas definições para
compreendermos o que se entende por dádiva, uma sociológica e uma definição geral. A primeira
diz respeito “a qualquer prestação de bens ou serviços efetuada sem garantia de retorno, tendo em
vista a criação, manutenção ou regeneração do vínculo social”. A segunda trata-se de “toda ação ou
prestação efetuada sem expectativa, garantia ou certeza de retorno; por esse fato, comporta uma
dimensão de gratuidade” (Caillé 2002).
Em outro trecho deste mesmo livro, Allan Caillé considera que a dádiva “não é, de modo algum,
desinteressada; simplesmente, ela dá o privilegio aos interesses de amizade (de aliança, sentimento
de amor, solidariedade, etc) e de prazer e/ou criatividade sobre os interesses instrumentais e sobre
a obrigação e a compulsão”.
Mota (2004) ao elaborar uma etnografia dos grupos de alcoólicos anônimos emprega a lógica da
dádiva, e a entende “como uma relação de reciprocidade que visa à produção de um endividamento
mútuo e positivo entre doador e donatário, um ciclo de trocas que tem como principal objetivo a
otimização do vínculo social”. O autor assinala ainda que a dádiva “defende um retorno às práticas
de convivência alicerçadas em valores relacionais livres de condicionamentos utilitários,
privilegiando os aspectos não mensuráveis, e nem por isso menos relevantes, das relações sociais
(Mota 2004).
Nesta perspectiva, os princípios da dádiva parecem apontar referenciais de
interpretação e análise de um conjunto de relações sociais, estabelecidas entre sujeitos moradores
de comunidades rurais ou dos bairros rurais, que pesem sobre os vínculos e laços sociais criados
entre eles.
Assim, as ofertas e prestações de bens e serviços, as ações de desinteresse e interesse, bem como
um conjunto abrangente de trocas (materiais – simbólicas) desempenhadas no espaço da
comunidade rural, assinalam à criação e manutenção do vínculo social. Encontra-se aí lugar
privilegiado para o desenvolvimento de relações dadivosas, pensadas não pelo cálculo econômico e
utilitário, mas por meio de valores como a solidariedade, a generosidade, a afetividade, a
espontaneidade.
Desta forma, apontaremos de forma superficial algumas passagens de autores da sociologia rural Antônio Cândido e Maria Isaura Pereira de Queiroz, que apresentam de forma mais concreta os
vínculos e laços sociais estabelecidos entre os caipiras e sitiantes rurais, entrecruzando essas
descrições com alguns princípios associados à dádiva.
Antônio Candido (1997) em vários momentos de seu livro Parceiros do Rio Bonito, procede
explicações do que ele designa por bairro rural, que podem ser resumidas nos seguintes pontos:
-Agrupamento territorial mais ou menos denso, cujos limites são traçados pela participação dos
moradores em trabalhos de ajuda mútua;
-Agrupamento mais ou menos denso de vizinhos, cujos limites se definem pela participação dos
moradores nos festejos religiosos locais;
-O agrupamento básico, a unidade por excelência da sociabilidade caipira;
-O bairro caracteriza-se também pelo sentimento de localidade existente entre seus moradores, e
pelo intercâmbio e convivência entre as famílias e as pessoas;
Notamos a partir daí a importância dada às relações entre os moradores, encaradas também como
troca, laços, contatos, participação. Assim, temos uma aproximação sugestiva com os princípios da
dádiva. A participação dos moradores em atividades coletivas, nos vários círculos de sociabilidade trabalho, religião, festas; podem ser concebidos como a criação e manutenção de relações
dadivosas. Candido (1997) assinala que são membros de um bairro rural quem convoca e é
convocado para esse tipo de atividades.
Vários são os termos que registramos na obra de Candido (1997) que expressam os vínculos e
prestações sociais, nas mais diferentes situações e momentos da vida dos caipiras e sitiantes, tais
como: auxílio vicinal, cooperação vicinal, solidariedade vicinal, auxílio mútuo.
Caso alguns sitiantes se lancem a prestar ajuda em uma atividade coletiva, como no caso do
mutirão, por exemplo, eles vão estabelecer entre si um endividamento mútuo, ou endividamento
positivo. Os indivíduos que recebem a ajuda coletiva de vizinhos ou parentes estão agora em
“dívida” com estes, os quais esperam a retribuição (quando for necessário) do trabalho oferecido,
criando desta forma o vínculo social. Nesse caso, a tripla obrigação de dar, receber e retribuir se faz
presente. Na prática do mutirão a retribuição em dinheiro nunca acontece, e pode até ser encarada
como ofensa pelos sitiantes rurais.
Com relação a momentos do trabalho coletivo, podemos notar alguns valores que se associam à
noção da dádiva; como nas duas descrições de Candido (1997):
“(o mutirão) consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um
deles, a fim de ajudá-lo a efetuar determinado trabalho (...). Geralmente os vizinhos
são convocados e o beneficiário lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o
trabalho. Mas não há remuneração direta de espécie alguma, a não ser a obrigação
moral em que fica o beneficiário de corresponder aos chamados eventuais dos que o
auxiliaram.”(p.60)
“A troca de trabalho se dá quando um vizinho é requisitado para auxiliar outro, e fica
seu devedor de uma parcela de tempo igual à que recebeu, podendo-a requerer
quando julgar conveniente. (...) Durante todo ano agrícola há relações desta natureza,
ligando as várias casas e indivíduos num amplo sistema de solidariedade.” (p.127)
Os registros de obrigação e dívida sinalizam o lugar da dádiva nas relações estabelecidas pelo
trabalho coletivo em áreas do bairro rural, como a troca de dias de trabalho e o mutirão. Nesse tipo
de vínculo, os doadores e donatários auxiliam, cooperam e se solidarizam, fazendo circular
benefícios mútuos. Assim, tais prestações, serviços, gentilezas, empréstimos, gestos e ações se
fazem no sentido da criação e manutenção do vínculo social, tão necessário numa comunidade
rural, onde a vida social acontece a partir dos contatos e laços, entre vizinhos, parentes e demais
categorias sociais.
A prática do mutirão, anunciada por vários estudiosos do mundo rural como em vias de extinção, ou
resquícios do passado, tem lugar importante quando objetiva-se pensar a dádiva sob os domínios de
uma comunidade rural. Mais do que crer em sobrevivência cultural, devemos persistir na idéia da
recriação ou reinvenção de determinadas práticas culturais no tempo presente, como sugere Da
Matta (1981) a partir da idéia de tradição viva.
3. Considerações finais: a valorização das relações dadivosas no espaço da comunidade
rural e do bairro rural.
Apresentamos nas passagens anteriores um conjunto de relações sociais estabelecidas no espaço
da comunidade rural e do bairro rural, com ênfase às relações de vizinhança, laços e vínculos
estabelecidos entre os moradores rurais, em diferentes esferas da vida desses atores sociais.
Procuramos fazer uma leitura, a partir principalmente dos autores Antônio Candido e Maria Izaura
Pereira de Queiroz, das possibilidades de se pensar a dádiva sob os domínios do mundo rural, entre
caipiras, sitiantes e pequenos produtores.
Ao realizar este exercício estivemos ao mesmo tempo, de forma bastante sutil e preliminar,
pensando nas potencialidades aplicativas desses princípios ou valores junto a populações e grupos
sociais do meio rural. Naturalmente, esta seria uma temática para trabalhos posteriores.
De todo modo, uma gama de práticas e ações associativas já são desenvolvidas pelos próprios
sujeitos sociais nas comunidades rurais no tempo presente, a partir de princípios como a
cooperação, a solidariedade, a ajuda mútua; representando portanto, um registro concreto de que
“esta tradição não se perdeu”.
Gostaríamos apenas de sinalizar a aplicação das relações dadivosas, com valor às relações de
vizinhança e os laços construídos entre os moradores rurais, em programas de extensão rural e
intervenção social no campo, quem envolvam modelos como o cooperativismo, associativismo, rede
social, grupos de produção, e demais “termos do momento” que são inseridos por agentes externos,
no mundo vivido dos homens e mulheres do campo. Lembrando que as comunidades rurais e os
bairros rurais já possuíam esta prática, mas que eram realizadas a partir de suas próprias condições
sócio-culturais.
Assim sendo, não estamos propondo uma volta ao passado ou ao mundo tradicional do homem do
campo; a nossa preocupação passa mais pela adequação e respeito às formas sociais que são
encaradas como “estranhas” ao nosso modelo de sociedade, urbano-industrial, da acumulação e
subordinação, ao qual grupos sociais e modelos socioculturais do nosso país são submetidos, a
exemplo dos camponeses, quilombolas, etnias indígenas, pescadores, sertanejos, caboclos, etc.
A dávida ao deslocar o foco da ótica utilitária e da razão instrumental, do modelo civilizatório do
homo economicus, nos abre possibilidades de experimentar e dedicar aos valores da solidariedade,
generosidade, do afeto, da convivialidade, todos esses integrantes, de forma secular, ao universo
simbólico camponês ou caipira.
4. REFERÊNCIAS:
CAILLÉ, A. Antropologia do dom. Petrópolis: Vozes, 2002.
CANDIDO, A. Os parceiros do Rio Bonito. 8ª edição. São Paulo: Editora 34, 1997.
FERNANDES, L.L. Introdução a um estudo geográfico de bairros rurais em São Paulo. In:
Boletim Paulista de Geografia, nº55 (31-46). São Paulo, 1978.
MOTA, L. A. A dádiva da sobriedade. São Paulo: Paulus, 2004.
QUEIROZ. M. I. P. O campesinato brasileiro. Petrópolis, Vozes, 1973.
DA MATTA, R. Relativizando: uma introdução à Antropologia Social.
Petrópolis, Vozes, 1981.
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