Individualizando o tratamento do câncer

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oncologia clínica
Individualizando
o tratamento do câncer
Divulgação
E
André Augusto J. G. de Moraes
* Oncologista clínico –
Centro de Oncologia Campinas
Contato: [email protected]
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fevereiro/março 2011 Onco&
M 1970, O ENTÃO PRESIDENTE AMERICANO
RICHARD NIXON DECLAROU “GUERRA” CONTRA O
CÂNCER. EM 2009, O ATUAL PRESIDENTE AMERIcano, Barack Obama, declarou que encontraremos
a cura para o câncer no presente período de nossas
vidas. A despeito dessas intenções expressas, o
câncer será a principal causa de mortes até 2050.
A The New York Times Magazine, em sua edição
de 26 de abril de 2009, publicou em matéria de
capa: “Progress Against Cancer Marginal”, revelando que, nos últimos 40 anos, observamos melhora de apenas 5% na evolução dos tumores mais
comuns, sem qualquer modificação na evolução das
doenças metastáticas nos casos de câncer de cólon,
mama, próstata ou pulmão, que representam mais
da metade de todos os casos a serem diagnosticados
no mundo. Essa dura realidade suscita a necessidade de novos paradigmas para a oncologia.
Temos hoje fortes razões para crer que estamos
realmente modificando nossos paradigmas terapêuticos. Isso ocorre pois, recentemente, desenvolvemos uma gama sem precedentes de habilidades
técnicas, que nos permitem perfilar as anormalidades genéticas e epigenéticas dos tumores, assim
como reduzir os custos para tais sequenciamentos.
Há, em contrapartida, centenas, ou milhares, de
anormalidades genéticas e epigenéticas associadas a
esses tumores. Portanto, apesar da possibilidade de
realizar os testes e perfilar todas as anormalidades
existentes, continuamos um passo atrás de compreender tais aberrações e suas consequências, já
que na absoluta maioria desses tumores o fenótipo
câncer se deve a múltiplas alterações ocorrendo sequencialmente, e não a apenas uma mutação.
A infinidade de informações que somos capazes
de obter ainda não está compreeendida em definitivo. Além disso, as alterações expressas nos tumores diferem enormemente entre indivíduos
portadores de tumores “semelhantes”.
Tudo isso significa que, por mais que tentemos
desenvolver métodos de tratamento que modifiquem
o curso clínico dessas doenças e sejam de larga utilidade em grandes populações de pacientes, cada
tumor pode expressar diferentes características em
seus “pilares moleculares”. Ou seja: nos passos genéticos e epigenéticos que proporcionaram e mantêm o
comportamento biológico aberrante dessas doenças,
sempre poderemos individualizar as abordagens, particularizando cada caso segundo as características de
cada tumor em seus respectivos hospedeiros. Significa, em última análise, aplicarmos a droga certa,
para o paciente certo, no momento certo.
Essa nova era representa para todos os médicos,
não somente os oncologistas, uma mudança radical
de paradigmas e acende uma forte expectativa de
que em breve veremos os padrões de sobrevivência
dos pacientes com câncer modificados.
Aprendendo com os sucessos
I – Leucemia mieloide crônica
Há 40 anos, portadores de leucemia mieloide
crônica (LMC) sobreviviam cerca de três anos.
Mesmo aqueles beneficiados por transplantes de
medula óssea podiam alcançar apenas cerca de
cinco anos de sobrevida mediana. Nos dias atuais,
entretanto, as taxas de remissão citogenética na
medula óssea (negativação da expressão do cromossomo Philadelphia) ou no sangue são elevadas, e os
pacientes experimentam sobrevidas medianas de
mais de 15 anos.
Isso se deveu, principalmente, ao entendimento
da alteração molecular e sua importância no
processo da doença (bcr-abl), e ao desenvolvimento
de moléculas capazes de “desligar” o processo oncogênico por meio do bloqueio da ação desse
substrato molecular.
A primeira droga desenvolvida a demonstrar
essa ação foi o imatinibe (Gleevec). Uma pequena molécula com ação específica sobre o sítio
de ligação da tirosinaquinase, que, em condições
normais, adiciona energia (fosforila o resíduo de
tirosina) à cadeia de eventos moleculares, que
resulta em potente estímulo proliferativo e inibe
intensamente a atividade apoptótica celular, no
qual essa droga é capaz de produzir efeito inibitório exuberante.
Atualmente, com a experiência acumulada no tratamento de pacientes com LMC e o desenvolvimento de resistência ao imatinibe, estão
disponíveis novos compostos (dasatinibe e nilotinibe) mais potentes e
com perfil de toxicidade melhorado, resultando em novas opções terapêuticas que se alinham além da molécula original. Sequenciamentos
terapêuticos e abordagens mais individualizadas serão certamente desenvolvidos, aumentando assim o sucesso terapêutico dessa moléstia.
Trastuzumabe
Lapatinibe
Mecanismos de ação para o bloqueio da atividade de HER-2
II – Câncer de mama HER-2 amplificado
Olhando novamente para os anos 1970, as pacientes de câncer de
mama que hiperexpressassem a proteína HER-2, um dos componentes da família de receptores de fator de crescimento epitelial
(EGFR), tinham prognóstico sombrio. Para aquelas tratadas com intenção curativa, em caráter adjuvante, apenas 40% alcançavam a cura
após a cirurgia.
Mais uma vez, o entendimento da biologia dessa proteína e suas
interações, suas características físicas e ações na ativação e potencialização do sinal estimulatório proliferativo conduziram à elaboração,
primeiramente, de um anticorpo monoclonal dirigido à porção extracelular desse receptor, o trastuzumabe (Herceptin), e, mais recentemente, de uma pequena molécula inibidora de tirosinoquinase, a
exemplo do imatinibe, o lapatinibe (Tykerb). O que se observou clinicamente no grupo de pacientes com doença metastática foi uma redução do risco de mortalidade por câncer de mama no grupo tratado
de 40%, com duas vezes mais pacientes vivas em três anos em comparação ao grupo que recebeu quimioterapia somente.
Atualmente, na esfera adjuvante, 70% dessas pacientes tratadas alcançaram a cura após a cirurgia. Observamos então que o reconhecimento dessa característica biológica especial, presente em cerca de 25%
a 30% de todos os casos, é capaz de selecionar o tratamento para esse
grupo, eliminar o impacto negativo dessa característica e assim resgatar
as pacientes desse grupo desfavorável de risco.
III – Câncer de pulmão
Na doença avançada, causa líder de mortes por câncer hoje – a sobrevida mediana esperada para os pacientes não fumantes diagnosticados
nos anos 1970 era de oito meses. O progresso no câncer de pulmão
tem sido obtido mais lentamente em termos de sobrevida se comparado
a outras neoplasias comuns.
Ainda assim, certas subpopulações de pacientes com câncer de pulmão avançado são beneficiadas pela investigação biológica, com o diagnóstico de mutações específicas nos receptores de fator de crescimento
epitelial (EGFR), mutações presentes ou ausentes no KRAS e a presença
da translocação EML4-ALK, de forma a individualizar a abordagem terapêutica nesses indivíduos. Por exemplo, a presença de mutação do EGFR
coloca a indicação de gefitinibe (Iressa) em primeira linha de tratamento, alcançando 55% de taxa de resposta versus aproximadamente
40% de taxa de resposta com quimioterapia “convencional”, com sobrevidas livres de progressão da ordem de 11,4 meses e sobrevida global
da ordem de 20,8 meses. Esses resultados somente são possíveis quando
aplicamos adequadamente a seleção desses subgrupos de pacientes. Com
relação à translocação EML4-ALK, resultados muito impressionantes
com crizotinibe foram observados. Considerando que tal translocação
pode estar presente em até 20% da população de pacientes não fumantes
e que não apresentam mutação no EGFR, uma parcela considerável será
beneficiada com a droga.
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IV – Câncer de cólon
Quarta neoplasia mais frequente em homens e terceira em mulheres,
no Brasil, o câncer de cólon representa no mundo uma patologia de
grande impacto em saúde pública. Nos últimos anos, vimos uma
grande mudança tanto na oferta de opções terapêuticas como nos resultados de sobrevida na doença avançada. Enquanto há cerca de dez
anos o diagnóstico de doença metastática selava sobrevidas medianas
da ordem de seis a oito meses, com o advento de novos agentes
quimioterápicos eficazes a sobrevida mediana alcançada nessa população nos tempos atuais alcança medianas de 24 a 30 meses.
Os primeiros agentes de alvo específico com eficácia comprovada
quando somados à quimioterapia padrão foram os anticorpos monoclonais anti-VEGF, que demonstraram reversão de resistência a drogas
como o irinotecano e aumento das taxas de resposta, além de algum
reflexo na sobrevivência livre de progressão.
Mais recentemente, o conhecimento da importância do produto
de KRAS na transdução do sinal proliferativo no câncer de cólon
trouxe à cena o cetuximabe, um anticorpo monoclonal anti-EGFR, inicialmente testado em câncer de cabeça e pescoço em combinação à
radioterapia. Nos casos de câncer de cólon avançado em estudos
prospectivos que observaram populações distintas – uma portadora
de KRAS original e outra apresentando KRAS mutado –, o resultado
da adição de cetuximabe (Erbitux) à quimioterapia resultou impacto
positivo, com diferença de sobrevida global em favor dos pacientes
com KRAS original quando eles receberam a combinação. Por outro
lado, essa identificação pré-tratamento evita a aplicação dessa droga
nos pacientes que não renderiam benefícios de sua utilização, interferindo assim na sua qualidade de vida durante o tratamento.
KRAS é um importante componente na transdução do sinal proliferativo
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V – Carcinoma de células renais
A história da terapia do câncer renal conta que, até 2005, os pacientes
portadores dessa afecção recebiam tratamentos com Interferon α, isoladamente ou em combinação com interleucina-2 (IL-2), com taxas
de respostas e sobrevivência marginais, resultando em benefício a uma
parcela muito pequena de pacientes. A IL-2, capaz de resultar em remissões duradouras, beneficia cerca de 8% dos pacientes tratados às
custas de toxicidade sistêmica intensa, o que limita muito sua aplicabilidade e utilização em larga escala.
Foi através da observação da íntima relação entre a inativação do
gene VHL-1 e o carcinoma de células renais do tipo células claras (que
representa de 75% a 80% de todos os diagnósticos), e da consequente
produção ininterrupta de Fator Induzido por Hipóxia (HIF), que se
desenvolveram abordagens para bloquear a atividade angiogênica
nesses tumores. A síntese de sunitinibe, uma pequena molécula inibidora de tirosinoquinase dirigida ao substrato tirosina do receptor de
fator de crescimento endotelial vascular (VEGF-R), trouxe ao cenário
terapêutico dessa patologia uma nova abordagem, que alcançou incríveis 39% de taxas de respostas e sobrevidas livre de progressão que
deixavam a casa dos 4 meses para 10-11 meses. A sobrevida global
também aumentou em cerca de 14 meses em relação ao grupo tratado
com Interferon α.
Uma série de outras drogas, com alvos na ativação do VEGFR/
PDGFR (bevacizumabe, sorafenibe, pazopanibe) ou de passos importantes na transdução do sinal proliferativo, como RAF/m-TOR, vieram
em seguida, demonstrando eficiência no tratamento do carcinoma renal
de células claras e apresentando indicações específicas nos diferentes subgrupos prognósticos. Atualmente, tais drogas são exploradas em estudos
clínicos no desenvolvimento de sequenciamento adequado e de combinações, entre outros. Além disso, os esforços estão voltados à determinação de marcadores clínicos e laboratoriais de prognóstico que possam
definir, na avaliação inicial dos pacientes, quais os melhores candidatos
a cada uma das diversas drogas hoje aprovadas para tratamento.
A caminho da particularização do tratamento
Embora soe um tanto pretensioso, é tempo de pensarmos no tratamento
personalizado para pacientes com câncer. Sabemos que há centenas –
talvez mais – de “pilares moleculares”, produtos de mutações, interações
gênicas e epigenéticas que conduzem ao fenótipo câncer, além das
características herdadas em cada indivíduo que tornam esse emaranhado de informações ainda mais complexo e difícil de desvendar.
Mas com novos paradigmas na definição de alvos moleculares e suas
interações e, principalmente, com uma farmacologia moderna que busca
no conhecimento biomolecular os alvos adequados ao desenvolvimento
de drogas cada vez mais eficientes, que equilibrem efeito terapêutico e
toxicidades, é possível atingir os índices terapêuticos desejados.
Hoje, em pleno desenvolvimento dessas estratégias, a melhor oportunidade de tratamento para pacientes com câncer avançado é, sem
dúvida, a participação como sujeitos de projetos de pesquisa clínica aplicada. Nesse âmbito, todos ganham. Os pacientes, que terão acesso a tecnologias inacessíveis fora de protocolos e com a segurança exigida; os
médicos e pesquisadores, que poderão desenvolver conhecimentos fomentadores de novos avanços; e, por fim, o sistema de saúde, que verá
reverter seus esforços em resultados e otimização dos custos, tão impor-
tantes na manutenção da atenção à saúde da população.
Atualmente se desenvolve em todo o mundo – e o Brasil participa
dessa tendência – o estabelecimento de biobancos. São depositários
de material biológico preservado, fresco ou fixado, em caráter prospectivo, cuja finalidade é fornecer material biológico para o perfilamento
das características biológicas dos diversos tipos de tumores. Tratados
em protocolos clínicos prospectivos e com a observação de suas
evoluções, servirão para identificar os que mais se beneficiam de determinado tratamento, além de serem novas ferramentas geradoras de
hipóteses na busca de novos avanços – afinal, estabelecemos inovações
graças à observação clínica em protocolos de estudo desenhados para
esse detalhamento. Todos podem contribuir nessa busca. Os cirurgiões
oncologistas, no encaminhamento dos espécimes; os clínicos, na apresentação ao paciente da possibilidade de se tornar sujeito de pesquisa
clínica; e as instituições, em estabelecer os vínculos necessários à condução dessas ações.
Estamos no início de uma nova e promissora era no desenvolvimento terapêutico da oncologia. Uma era estimulante para a ciência,
de muita expectativa para os médicos e, quiçá, de novas esperanças
para nossos pacientes.
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