A Sociologia Brasileira: desigualdade e violência

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A sociologia brasileira e a problematização da desigualdade e da violência:
subsídios para professores e alunos do ensino médio 1
Maria José de Rezende
Membro do Laboratório de Ensino de Sociologia/ Depto. Ciências Sociais/UEL 2
Resumo: O Laboratório de Ensino de Sociologia tem como um de seus objetivos a elaboração de reflexões que
venham assessorar os professores e alunos da escola pública do 4º Núcleo (Londrina e região).Dentro da atividade de
produção de textos foi produzida esta breve discussão acerca das desigualdades e da violência presentes na
organização social brasileira. Procurou-se demonstrar, neste texto, que estas questões têm sido problematizadas de
diversas formas e em diversos momentos pela Sociologia. Selecionou-se, assim, alguns pensadores sociais que
contribuíram, sob inúmeros aspectos, na empreitada de explicar a vida social e política no país.
Palavras-chaves: Organização social, desigualdade, violência, política, cultura, exclusão.
Introdução
O Laboratório de Ensino de Sociologia, dentre outras atividades, vem
desenvolvendo junto aos professores e alunos de nível médio reflexões acerca das
condições de desigualdade social e de violência no Brasil. Para tornar tais discussões
mais proveitosas e interessantes no processo de ensino e aprendizagem, apresentarse-á a seguir
algumas das principais indagações constituidoras da sociologia
brasileira acerca da prevalência, no país, de relações sociais marcadas pela
desigualdade e pela violência.
Diversos pensadores, desde o século XIX, têm trazido à tona elementos
esclarecedores do enraizamento da exclusão e da violência que marcou a sociedade
brasileira desde a colonização. Pretende-se, neste texto, demonstrar que a formação
da sociologia no país alinhavou estes temas como o norte de suas indagações sobre o
povo, a nação, a forma de governar, as dificuldades sociais e políticas, dentre outros.
Apresentar-se-ão as reflexões de Sílvio Romero (1851-1914), Euclides da
Cunha (1866-1909), Manoel Bomfim (1868-1932) e Sérgio Buarque de Holanda (19021982) acerca das condições de desigualdades e de violência prevalecentes no Brasil.
As análises que serão priorizadas nesta exposição foram elaboradas a partir das
últimas décadas do século XIX até meados do século XX.
Observe-se, então, que, desde o seu início, a sociologia brasileira esteve
voltada para o desvendamento das relações que potencializam a exclusão social.
Buscar os elementos constituidores desta sociedade sem se ater às condições de
desigualdades e de violência, por exemplo, é algo impossível, já que as mesmas são
as bases sobre as quais se ergueram a nação, a política, a economia, as relações
públicas e privadas, as instituições (família, Estado, escola, etc.) e a cultura.
1
Este artigo foi publicado originalmente no Boletim: Revista da área de Humanas,
n.44,Londrina,CCH/UEL, jan.jun.2003.
2
Este artigo foi produzido dentro da atividade produção de textos do Laboratório de Ensino de
Sociologia. Projeto de Extensão do Departamento de Ciências Sociais/UEL.
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1- Sílvio Romero: desigualdade, política e violência
Em História da literatura brasileira, publicada pela primeira vez em 1888, Sílvio
Romero elaborou uma abordagem da vida social em que ficavam evidenciadas tanto
as condições de desigualdade quanto as de violência no país. Segundo ele, a maioria
da população brasileira vivia em condições peníveis e possuíam uma existência
voltada quase que exclusivamente para a “obrigação (...) de conquistar o pão
cotidiano” (ROMERO, 1943, p.121).
Segundo ele, as relações econômicas políticas e sociais estabelecidas desde a
colônia teriam, em todos os momentos, potencializado as condições de desigualdade
social e de violência política que se cristalizaram na sociedade brasileira. O desnível
entre a não-instrução que se detectava na maior parte da população e a instrução
razoável de alguns grupos (classes acadêmicas e funcionários públicos) revelava, por
exemplo, distanciamentos sociais que tomaram corpo no país tanto no Império quanto
na República.
“A grande massa da população, espoliada por dous lados, arredada do
comércio e da lavoura, neste país essencialmente agrícola, moureja por aí abatida e
faminta, não tendo indústria em que trabalhe; pois até os palitos e paus de vassoura
mandam-se vir do estrangeiro. Não é este o lugar mais próprio para descobrir os
andrajos da nação e mostrar os corpos enfraquecidos, que sem trabalho nem pão, são
a grande fonte onde o fazendeiro vai buscar os servos, que chama agregados, e o
governo os seus capangas, os seus votantes e os seus soldados” (ROMERO, 1943,
p.121-2).
As análises de Sílvio Romero são tidas como representantes da primeira fase
de desenvolvimento da sociologia no Brasil justamente por trazer à tona elementos
constituintes da vida social. Suas indagações revelam não só os fundamentos de uma
economia que não gerava meios de sobrevivência para uma maioria como também os
desdobramentos sociais e políticos oriundos de uma situação em que as condições de
pobreza, de miserabilidade e de analfabetismo convertiam-se em benesses para os
latifundiários e para o governo.
Enredada entre a fome e a política violenta vivia, então, a maioria da população
brasileira. Para ele, no entanto, mesmo os instruídos e alimentados se beneficiavam
desse modo de organização social, tanto que não criticavam nem procuravam vencer
a indiferença que assolava a todos indistintamente. “Desde o mais alto magnata,
enfatuado e nulo, até o proletário, o cafajeste e capadócio das tavernas, passando
pelo burguês boçal, todos encaram os negócios públicos, não como uma coisa em que
devam tomar parte e interesse, mas como um assunto, um mero assunto de desfastio
e conversações picantes” (ROMERO, 1977, p.271).
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Ele estava convicto de que a Colônia e o Império tinham arruinado
completamente o país, já que as condições de violência política haviam tomado
formas alarmantes e sedimentado uma mentalidade que a naturalizava. As tiranias e
atrocidades do passado colonial e imperial precisavam ser publicizadas para que se
desfizessem tanto a apatia da população em geral em torno dos males que a
acometiam quanto a submissão que assolava a sociedade como um todo (REZENDE,
1998, p.100).
Observe-se, no entanto, que Sílvio Romero revelava os aspectos
fundamentais da sociedade brasileira, mas o fazia de modo que reafirmava o
processo de exclusão, já que as soluções advogadas por ele para vencer a violência
política, os desatinos administrativos, o desrespeito às leis, as tiranias contra alguns
grupos sociais e as outras formas de opressão de modo geral não abriam qualquer
possibilidade de inclusão dos setores não-preponderantes. Ao invés de defender
modos de inserção da população no processo social e político, ele preconizava que
somente uma elite culta e letrada teria condições de mudar o país já que, “como tipo
sociológico, o povo brasileiro é apático, sem iniciativa, desanimado”( ROMERO, 1943,
p.129).
“A leitura crítica que Romero fazia da sociedade esbarrava, assim, na
imprecisão do que era, de fato, responsável pela não-atuação da população no
processo político. O presidencialismo, por exemplo, era condenado, entre outros
motivos, por ser divorciado ‘da massa de nosso povo’, pois não tinha meios nem
interesses em atrair todos os brasileiros para exercerem os seus deveres políticos. O
parlamentarismo tinha como objetivo resolver essa dissociação, afirmava ele. No
entanto, não era esclarecido de que modo isso ocorreria, uma vez que, para ele, a
apatia política era um traço impregnado culturalmente nos indivíduos” (REZENDE,
1998, p.103).
As reflexões de Sílvio Romero constituíram-se pilares do pensamento
conservador no processo de formação da sociologia brasileira por ele tanto criticar as
condições de miserabilidade da população e a truculência dos governantes quanto
propor uma redefinição da organização social em que indivíduos e instituições não
subvertessem a ordem política que deveria ser fixada pela República parlamentar. A
criação de mecanismos de controle de toda e qualquer forma de reversão da pobreza
e da violência era, para ele, tão importante quanto o próprio processo social que
engendraria tais modificações.
Em síntese, pode-se dizer que as obras de Sílvio Romero contêm avanços e
recuos que acompanharão as diversas reflexões fundadoras da sociologia no Brasil.
Ou seja, ele revelava a organização social brasileira e trazia à tona as condições de
exclusão social e de violência, mas, ao mesmo tempo, ocupava-se de encontrar
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fórmulas para garantir que o esclarecimento de tais condições não incitasse a
população às desordens.
Na medida em que o controle das modificações que se faziam necessárias
ganha supremacia absoluta sobre a constituição de ações questionadoras do quadro
social vigente tem-se a definição de uma perspectiva conservadora na sociologia de
Sílvio Romero.
2- Euclydes da Cunha:
as desigualdades e as violências formadoras da
paisagem social brasileira
Euclydes da Cunha realizou uma das mais férteis interpretações do Brasil. A
substancialidade de suas reflexões está no modo de ele apreender a complexidade
das condições de formação, de sedimentação e de potencialização das desigualdades
sociais e da violência no país.
O autor de Os sertões, obra publicada em 1902 e que se constituiu um marco
do processo de desenvolvimento da sociologia no Brasil, traça um painel sobre os
efeitos da miserabilidade e da violência na constituição do homem brasileiro (CUNHA,
1995). Segundo Euclydes da Cunha a simbiose da escravidão com o ouro, por
exemplo, durante o ciclo da mineração (1695-1800),
teria feito penetrar na
organização social brasileira a mais extrema violência que teve como resultado o
processo de potencialização da exclusão e da desigualdade (Cunha, 1966, p.124).
E de que modo isto teria ocorrido? A extração do ouro era comandada pelo
Estado colonial que concentrava todos os poderes para destruir os colonizados que
não se submetessem às ordens da Coroa portuguesa. A exploração, o chicote e a
matança tornam-se os pilares de uma colonização destruidora da economia, da
política e da sociedade como um todo.
"Parecia não haver intermediários àquela simbiose da escravidão com o ouro,
porque não havia encontrá-los mesmo no agrupamento incaracterístico, e mais
separador que unificador, dos solertes capitães-do-mato, dos meirinhos odientos, dos
bravateadores oficiais de dragões, dos guarda-mares, dos escrivães, dos pedestres e
dos exatores, açulados pelas ruas, farejando estradas e as picadas, perquerindo os
córregos e os desmontes; em busca do escravo; filiando-se às pernas ágeis dos
contrabandistas; colados no rastro dos contraventores; e espavorindo os faiscadores
pobres, inquirindo, indagando, prendendo, intimando e, quase sempre, matando"
(CUNHA, 1966, p.124).
A sociedade brasileira ter-se-ia formado, então, tendo a exclusão e a violência
como seus elementos centrais. A colonização brasileira que se pautava na
monocultura da cana-de-açucar e no trabalho escravo implementava um modo de
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organização social brutalizada por uma vivência marcada por ataques ferozes à terra e
ao homem. O ciclo econômico subseqüente, ou seja, a mineração, interiorizou e
potencializou relações sociais e políticas substancialmente violentas e excludentes.
A violência da Coroa portuguesa torna-se a base de ação do Estado que
mesmo com a Independência e, depois, com a República, não apresentou qualquer
empenho para que seus modos de operar fossem minimamente democráticos. Para
Euclydes da Cunha ocorreram, em diversos momentos, movimentos que tentavam
reverter as condições de exclusão e de violência, mas eles foram massacrados
intermitentemente.
Tendo escrito suas obras no início do século XX, Euclides da Cunha chamava
a atenção para o fato de que o país tinha uma dívida de 400 anos com a população, já
que durante todos estes séculos não teria havido qualquer empenho dos setores
preponderantes em reverter as condições de desigualdade, de exclusão
e de
violência.
A violência era, então, segundo ele, de caráter social (a vivência dos indivíduos
estava marcada por relações pautadas no extremo desprezo pela vida humana), de
caráter político ( as instituições políticas estavam fundadas na opressão) e de caráter
econômico (a sedimentação de situações potencializadoras da desigualdade e da
exploração através do chicote e da matança conforme ocorreu nas minas na extração
do ouro).
As condições de riqueza e de miséria sustentadas pela violência dos
colonizadores era visível, segundo ele, nas situações que iam “(...) dos congos3
tatuados que moirejavam nas lavras, com a rija envergadura mal velada pelas tangas
estreitas (...) aos contratados (pela Coroa) ávidos e opulentos, passando por ali como
se andassem nas cidades do reino, entrajando as casacas de veludo (...) abertas para
que se visse o colete bordado de lantejoulas, descidas sobre os calções de seda de
Macau atadas com fivelas de ouro. (...) A alpercata de couro cru estalava rudemente
junto do sapato fino, pontiagudo, cravejado de pérolas. (...) O cacete de guarda-costas
vibrava próximo do bastão de biqueira de ouro”(CUNHA, 1966, p.124).
A desigualdade e a violência davam, então, a tônica do modo de organização
social
que se instalara no país desde 1500. O grande desafio para o país seria
encontrar formas de rompimento com os vícios sociais e políticos oriundos dessas
condições. No início do século XX, Euclides da Cunha se ocupava em buscar as
raízes das atitudes (dos dirigentes e da população em geral) impossibilitadoras de
constituição de um processo de reversão da exclusão social.
No que concerne aos setores dirigentes visualizava-se a cristalização de
comportamentos marcados pelo autoritarismo e pela conciliação. Quanto à população
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Ele se referia aos escravos.
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em geral verificava-se uma fragilidade formada pelos reveses de uma existência
pautada na miserabilidade e na violência que bloqueavam as possibilidades de ela se
constituir em forças sociais capazes de impulsionar mudanças substanciais.
Ocorreram rebeliões desta população paupérrima e abandonada à própria
sorte. O movimento de Canudos (1896-1897) teria sido um desses movimentos que
trazia à tona o abandono em que vivia uma parte significativa da população brasileira.
A vigência de uma ordem desigual e excludente era posta às claras. A reação dos
governantes e dos habitantes das maiores cidades , de modo geral, foi de uma ira
incomensurável no sentido de exigir a exterminação total e absoluta da luta
desencadeada por Antônio Conselheiro e de seus seguidores nos sertões da Bahia.
Note-se, porém, que, dentre os fundadores da sociologia brasileira, Euclydes
da Cunha se destacava pela sua confiança nas possibilidades de modificações sociais
que revertessem o quadro de desigualdade e violência. Segundo ele, as
singularidades da formação brasileira teria constituido uma espécie de brasileiro (os
sertanejos) forte que seria capaz de resistir a todas as adversidades, pobrezas e
opressões. Esta resistência o impulsionaria às lutas para subverter as condições de
desigualdade e de violência.
Mencionando a experiência de Canudos, ele afirmava que, diante de todos os
reveses da guerra e do massacre, os sertanejos “permaneciam mudos, estóicos,
inquebráveis. Pareciam ressurgir das cinzas. Canudos não se rendeu. Exemplo único
na história brasileira. Resistiu até o esgotamento. Os sertanejos invertiam toda a
psicologia da guerra: enrijavam-nos os reveses, robustecia-os a fome, empedernia-os
a derrota. Ademais entalhava o cerne de uma nacionalidade. Atacava-se fundo a
rocha viva da nossa raça. Vinha de molde a dinamite (...). Era a consagração”
(CUNHA, 1995, p.629) de uma resistência ímpar fundada na singularidade de um tipo
de existência social.
3- Manoel Bomfim: o parasitismo social como fundamento da exploração e da
violência
No início do século XX, mais precisamente no ano de 1905, foi publicado um
livro intitulado A América Latina: males de origem que continha inúmeros elementos
que seriam largamente discutidos por vários cientistas sociais no transcorrer das
décadas seguintes. Manoel Bomfim buscava, nesta obra, as raízes da desigualdade
social, da exploração e da violência no continente latino-americano.
Com este estudo elaborado com base nas teorias evolucionistas que
ganhavam corpo na Sociologia como ciência naquele momento ele procurava as
causas primordiais das dificuldades sociais arraigadas nestes países. A sua idéia era
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a de que vigia, desde a colonização, um processo de parasitismo
social que se
instalara nas instituições políticas. Seguindo os princípios da biologia ele afirmava que
o parasita e o parasitado estão sempre condenados à decadência e à estagnação de
suas potencialidades de desenvolvimento social(BOMFIM, 1993).
A desigualdade, a exclusão, a exploração e a violência que se instauraram na
América Latina tinham a ver com os vícios sedimentados a partir do modo de Portugal
e Espanha lidarem com as sua colônias. No âmbito econômico, por exemplo, foram
estabelecidos regimes de saques de riquezas nativas com a utilização do trabalho
escravo. Isso culminou num processo de internalização de uma concepção
absolutamente predadora sobre a terra, os recursos naturais e o próprio trabalho. A
naturalização da exploração de produtos e de pessoas adentra os diversos séculos
impossibilitando o desenvolvimento de mentalidades voltadas para o progresso social.
Segundo ele, isso atinge a todos indistintamente.
No âmbito político, os vícios implodiram também, desde os primórdios da
colonização, qualquer viabilidade de criação de classes dirigentes capazes de ações
acertadas no sentido de rompimento com políticas que levassem continuamente ao
aumento da desigualdade, da exploração e da violência.
As ações dos setores
preponderantes nestes termos predadores se converteram em tradição (RIBEIRO,
1984). Esta última, por sua vez, “plasma o presente como herança funesta, porque
implanta automatismos, hábitos, modos de ser dos quais não temos consciência, mas
segundo agimos. Nesta herança colonial, o traço mais funesto é ‘um conservantismo,
não se pode dizer obstinado, por ser, em grande parte, inconsciente, mas que se pode
chamar propriamente – um conservantismo essencial’ (BOMFIM, 1905, p.195), mas
afetivo que intelectual” (CÂNDIDO, 1990, p.11).
Os responsáveis pela permanência de condições de exclusão e de violência
eram, segundo Manoel Bomfim, indubitavelmente, os setores dirigentes que não se
empenhavam em criar meios, recursos e habilidades para que a grande massa da
população enfrentasse uma luta intermitente pelo progresso da nação. E como isto
poderia ser feito? Para ele, que dedicou a vida à causa da educação fundamental
através da produção de cartilhas e livros didáticos que fossem capazes de despertar o
interesse por um tipo de conhecimento voltado para o progresso industrial, para a
especialização no trabalho e para o avanço de uma conscientização política em
entidades sindicais e reivindicativas, isto se daria através de um vasto investimento na
educação geral.
O analfabetismo era, no Brasil, o grande alavancador da exploração, das
desigualdades sociais e da violência. Era, também, o potencializador das
impossibilidades de desenvolvimento de uma organização social pautada em lutas
capacitadoras de conquistas de espaços políticos democráticos.
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Somente através de uma instrução desvendadora do passado colonial que
imobilizou o continente latino-americano seria possível lutar contra a recusa
dos
setores dirigentes em se desvencilhar dos vícios que soterravam as possibilidades de
mudanças nos âmbitos político, econômico e cultural. A educação acessível a todos
indistintamente criaria, em sua concepção, uma massa de indivíduos que se
dedicariam, geração após geração, à causa de um desenvolvimento voltado para
vencer a pobreza, a desigualdade e a violência.
A desmistificação da idéia de que o europeu era superior aos latino-americanos
era parte deste processo de conhecimento. A educação deveria estar voltada para
desmascarar a tese de inferioridade dos povos colonizados. Se não havia aqui
indústrias, trabalhadores hábeis para tal atividade econômica, educação acessível a
todos, por exemplo, isto se devia aos interesses dos setores dirigentes (em conluio
com os colonizadores) de nos condenar a uma situação de inferioridade.
Ele insistia em que o processo condenatório fundado na tese da inferioridade
racial tinha efeitos extremamente perversos sobre a população como um todo. Aquele
não ficava somente em retóricas, já que havia investidas recorrentes tanto visando
impossibilitar o desenvolvimento da América Latina, quanto alardear pelo mundo todo
que neste continente só viviam pessoas incapazes, inábeis e sem qualquer disciplina
para o trabalho.
“As classes dirigentes precisam tentar um longo esforço sobre si mesmas,
para vencer essa influência do passado que nelas revivem adotando um programa
inteiramente oposto a esse que, consciente ou inconsciente, vêm seguindo hoje
(1905). Seria preciso que buscassem conhecer, na sua realidade, cada uma das
causas de atraso social, e procurassem afastá-las, (...) atendendo às necessidades
efetivas das sociedades” (BOMFIM, 1993, p.281).
Observe-se que Manoel Bomfim estava levantando, no início do século
passado, muitos elementos que estão presentes na sociedade brasileira, por exemplo,
no limiar do século XXI. Tanto a compreensão das causas da concentração de renda,
da exclusão social e política, do não-investimento em políticas educacionais
efetivamente duradouras e formadoras de perspectivas críticas
quanto à não-
implementação de ações voltadas para o combate das desigualdades continuam
sendo o grande desafio dos países latino-americanos na atualidade.
4- Sérgio Buarque de Holanda: exclusão social e violência no Brasil
Dentre os diversos intérpretes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda se
destaca pela precisão de suas reflexões sobre as condições de desigualdade e de
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violência vigentes no país desde a nossa formação colonial. A sua obra mais
conhecida intitulada Raízes do Brasil (HOLANDA, 1987)
traça o retrato de uma
sociedade (CÂNDIDO, 1989, p.125) que tinha na exclusão os fundamentos de suas
dificuldades sociais, econômicas e políticas.
Os empecilhos de modernização do país assentavam-se, principalmente, na
persistência, no decorrer dos séculos, de mecanismos reforçadores da exclusão social
e política tanto nas relações de caráter privado (no familismo, no personalismo, no
clientelismo, etc.) quanto nas de natureza pública (Estado, governo, partidos,
associações de modo geral, etc.).
A estrutura social e política vigente se constituiu tendo como pano de fundo
uma mentalidade excludente que impregnou “os valores, os costumes, as atitudes e as
instituições” (REZENDE, 1996, p.33), de modo geral. A violência social e política que
se instaurava em vista destas condições era visível em todas as formas (públicas e
privadas) de autoritarismos que permeavam a sociedade brasileira.
O desprezo pelas camadas populares impregnou-se de tal forma no modo de
os setores dominantes e médios conceberem a vida social que a contínua violência
praticada através de suas atitudes e ações (tanto na política quanto fora dela) estava
sedimentada nas instituições, nos costumes, nas relações formais e nas informais
(DIAS, 1985, p.15).
Segundo Sérgio Buarque de Holanda há, no país, uma mentalidade
potencializadora das condições de violência e de desigualdade. Os valores, os
costumes, as instituições sociais e políticas estariam, assim, impregnados pela
concepção de que a vida dos setores pobres tem pouca ou nenhuma importância. Se
suas vivências estão marcadas pela miserabilidade, por exemplo, isso não é
compreendido como algo que pode ser revertido em favor da sociedade como um
todo. Em termos gerais, a pobreza é tida pelos setores preponderantes como
problema do pobre, exclusivamente. A violência é também tida por eles como
provocada indistintamente por aqueles que a sofrem cotidianamente e não com o
modo de processamento da vida social.
O resultado desse tipo de mentalidade torna-se visível na recusa sedimentada
na sociedade brasileira de estabelecer ações políticas voltadas para a reversão da
exclusão social. O problema maior, no entanto, é que também os setores sociais que
são mais atingidos pelas condições de desigualdade e de violência internalizaram,
significativamente, esta concepção de que as suas situações são irreversíveis e
irremediáveis.
“Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade de casa-grande
invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais
humildes” (HOLANDA, 1987, p.55). Uma sociabilidade construída sobre valores
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naturalizadores da extrema desigualdade e da violência seria a razão principal da
dificuldade de desenvolver no país uma esfera pública que seja capaz de expressar o
embate entre as diversas forças sociais.
Em 1936, S.B. de Holanda afirmava que a modernização econômica era mais
fácil de alcançar no país do que a modernização política. Ou seja, corria-se o risco de
se obter um grau significativo de desenvolvimento industrial sem que ocorressem
expressivas mudanças no modo de operar a vida política. Isso para ele era o grande
dilema da sociedade brasileira, tese esta que ele vai reafirmar 40 anos mais tarde em
uma entrevista publicada na revista Veja em 1976 (HOLANDA, 1976).
A permanência de uma estrutura social autoritária tinha que ser buscada nas
relações que produzem o que Sérgio Buarque de Holanda denomina de homem
cordial. “No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira
libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si
próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com
os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no
brasileiro (...) tende a ser a que mais importa” (HOLANDA, 1987, p.108).
De que modo as relações que engendram o homem cordial está na base de
uma sociedade desigual e violenta? Na medida em que a forma de convívio social
entre os diversos setores define-se num processo de recusa de todo e qualquer tipo
de enfrentamento e de publicização de interesses diversos. Não há outra maneira de
reversão das condições de pobreza e miserabilidade senão através da constituição de
atores socais capazes de balizar as ações dos setores econômico e politicamente
preponderantes, por exemplo. Relações sociais calcadas na cordialidade impede,
assim, o surgimento, de tais atores.
“Violência e cordialidade eram faces diferentes de um sistema de controle
social e político que tolerava manifestações
de descontentamento, de fúria e de
rebeldia, mas que sabia contê-las dentro dos limites que achava convenientes” (DIAS,
1985, p.52).
O ethos personalista fundado em extremo apego às soluções personalistas,
pessoais, domésticas torna-se o fermento do autoritarismo reinante nas diversas
dimensões da vida social. A violência arraigada na vida política brasileira deriva de um
padrão de domínio que esvazia continuamente a possibilidade de florescimento de
ações não-clientelistas e não-paternalistas.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda, tem permanecido na sociedade
brasileira “o costume de absorver desentendimentos e conflitos numa urdidura cerrada
de conchavos e de compromissos intra-muros, que impediam facções e conflitos de
tomarem proporções políticas ameaçadoras. É o seu modo de reexplicitar o sentido da
cordialidade nos costumes políticos brasileiros, oligárquicos, pessoais, fechados e
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capazes de transcenderem a violência quotidiana sob uma aparência de harmonia,
que confirmava o peso do controle social e político exercido por minorias
extremamente reduzidas” (DIAS, 1985, p.52-3).
5- Subsídios dos intérpretes do Brasil na reconstrução das percepções dos
alunos do ensino médio acerca da violência e da desigualdade
(Colaboradora neste subítem: Gisele Aparecida Cavalcanti Marcolino)
Um levantamento realizado pela professora de Sociologia no ensino médio,
Gisele Aparecida Cavalcanti Marcolino, no Colégio Estadual Maria do Rosário
Castaldi, em turmas do primeiro e do segundo ano, em 2000, revelou a necessidade
de encontrar meios e formas de problematizar historicamente as questões atinentes à
violência e à desigualdade.
O Laboratório de Ensino de Sociologia (LES) da UEL produziu um jornal com o
objetivo de, didaticamente, propiciar uma reflexão acerca de temas relacionados à
exclusão social e à violência no Brasil atual. Este informativo foi distribuído para os
alunos do ensino médio nas escolas públicas de Londrina.
A professora acima citada ao trabalhar com temas que expressavam a vivência
cotidiana dos alunos, solicitou-lhes que escrevessem livremente sobre como viam o
modo de o jornal retratar a violência e a desigualdade. Tais respostas foram por ela
sistematizadas de modo que ficou revelado muito mais que a percepção dos alunos
sobre o material do LES. As falas dos estudantes revelam uma compreensão do
fenômeno da desigualdade e da violência como algo de suas vidas presentes e,
particularmente, sem nenhuma conexão com o modo de constituição da vida social.
Na maioria da vezes, os jovens acreditam que os problemas vivenciados pela
sociedade de seu tempo são originários do momento histórico em que eles estão
inseridos. A desigualdade, a violência, a pobreza, por exemplo, são pensadas como
circunscritas as suas vivências. Através das análises feitas por diversos pensadores
em períodos mais longíquos é possível ajudá-los a visualizar melhor o processo social
constituidor das condições de desigualdades e de violência.
Rompe-se, assim, com a perspectiva de que estas não têm relação com o
modo de constituição da organização social brasileira. Fica evidenciado que a
desigualdade, a pobreza e a violência não são novas, todavia elas se redefinem em
vista de um dado processo social.
O dado primeiro e significativamente revelador disto é que, apesar de haver
uma avalanche de informações sobre a violência nos meios de comunicação de
massa, os alunos, entre 14 e 18 anos, dizem que antes de entrar em contato com uma
problematização sociológica sobre a violência não tinham, sobre ela, nenhum
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discernimento a respeito de seus elementos constitutivos. Observem-se, por exemplo
os depoimentos de alguns estudantes:
“O jornal do LES trata de assuntos (...) que acontecem no (...) dia-a-dia e que
muitas vezes estão presentes em nossas vidas e passam por nós sem que a gente
perceba. (...) Os textos4 tratam de assuntos muito interessantes que nos levam a
refletir e a chegar a diversos tipos de conclusões. (...) A Sociologia vem nos deixando
mais atentos para as realidades do mundo” (Vânia Aparecida, 2º ano).
Outros diziam que os textos apresentados pelo LES eram um alerta sobre “as
coisas que estão acontecendo e que passam despercebidas” (Ana Claúdia, 2º ano) e,
portanto, eram uma maneira “de conhecer os problemas do país, (...) os nossos
governantes, etc.”(Rodrigo, 2º ano) e obter “um pouco mais de consciência sobre o
que ocorre no mundo hoje”(Vanessa Priscila, 1º ano) e “no nosso dia-a dia” (Juliana,
1º ano).
Compreender, portanto, a constituição das condições de exclusão e de
violência permite a eles um redimensionamento das visões que lhes são passadas
através da mídia, por exemplo. Isso permite uma desmistificação das condições nas
quais os próprios jovens estão inseridos, ou seja, eles passam a visualizar que não há
uma condenação natural das pessoas à desigualdade e às condições de violência, já
que estas podem ser revertidas através de ações políticas que envolvem a sociedade
como um todo.
Os jovens deixam evidenciado nestas e noutras dezenas de falas (foram 63 ao
todo) que as linguagens utilizadas pela indústria cultural, por exemplo, anuviam
inteiramente suas visões acerca do fenômeno da violência. Somente a partir dos
debates, das leituras em ciências sociais é que eles começam a perceber que “a
importância que o fenômeno da violência tem na dinâmica cultural contemporânea se
reflete nas artes – literatura, cinema e assim por diante – na mídia e no cotidiano mais
amplo dos agentes sociais onde sua presença é freqüente e bastante expressiva.
Longe de aparecer apenas como evidência de dissidência ou da iminência de uma
situação de ‘caos’ social, ela adquire, cada vez mais claramente, um papel
constitutivo, estruturador ou fundador de novas expressões do social e se apresenta
cada vez menos passível de avaliações apenas reguladoras e/ou moralizantes”
(PEREIRA et al, 2000, p.15-6).
Um recurso que pode ser utilizado para introduzir os alunos do ensino médio
nos estudos sobre essa temática é, então, o resgate das condições sociais e históricas
retratadas por diversos intérpretes do Brasil. A partir daí vai-se formando um caminho
4
Dentre os textos apresentados no jornal do LES estavam trechos dos seguintes livros:
MORAIS, Regis de. O que é violência urbana. São Paulo, Brasiliense, 1985.
SROUR, Robert H. Classes, regimes, ideologias. São Paulo, Ática, 1987.
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por onde se pode trilhar no sentido de construir uma compreensão crítica da realidade
social produtora de condições de violência.
Todos os intérpretes do Brasil que foram apresentados anteriormente
demonstraram que as condições de desigualdade e de violência foram produzidas
socialmente. De modos distintos eles vislumbravam modos de subverter tais
situações. Com exceção de Sílvio Romero que descria da ação impulsionadora de
mudanças por parte dos setores populares, os demais intérpretes demonstraram que
foram cristalizados no país inúmeros mecanismos que visavam destituir a população
de qualquer possibilidade de luta em favor da reversão da miserabilidade e da
violência que recaía sobre as populações mais pobres.
Empurrados para fora da cena política, ora por serem considerados inferiores
racialmente (dizia Manoel Bomfim), ora
como figurantes mudos (segundo Sérgio
Buarque de Holanda) e ora como bárbaros e fanáticos (na afirmação de Euclides da
Cunha) tinha-se a contínua negação, por parte dos setores preponderantes, de que a
maioria da população pudesse contribuir com o processo de redefinição das condições
sociais em vigor.
O controle exacerbado sobre toda e qualquer ação desencadeada fora da
política dos setores dirigentes foi visto pelos três pensadores citados no parágrafo
anterior
como o modo de barrar o processo de florescimento de atores sociais
capazes de atuar contra as condições de extrema desigualdade e de acentuada
violência na sociedade brasileira.
Reflexões desta natureza vão ao encontro das preocupações expressas pelos
alunos. Veja a fala de uma estudante do 1º ano do ensino médio: “(...) Creio que a
exclusão é um fator que contribui para aumentar a violência, a começar podemos
pegar o exemplo dos menores de rua que já crescem se sentindo excluídos, muita
gente parte para a criminalidade porque acha que não tem nada a perder (...). A
pergunta é: quem quer fazer a ordem e quem quer causar a desordem? A resposta é
simples o próprio sistema que visa fazer a ordem acaba causando a desordem. O
descaso político também é um fator influente. Eu acabo concluindo que o cidadão
deve sempre reivindicar os seus direitos (...)” (Vanessa, 1º ano).
As falas dos jovens estudantes do ensino médio revelam suas crenças nos
benefícios que o conhecimento das condições de desigualdade e de violência trazem,
já que ele possibilita algum tipo de intervenção no processo social. A maioria dos
depoimentos afirmam isso de modo explícito e/ou implícito. No entanto, é comum em
suas falas um certo distanciamento pessoal dos sofrimentos impostos pela violência,
por exemplo. Eles afirmam que o mundo está sofrendo, a sociedade está sofrendo, as
cidades estão sofrendo, etc. e não eles próprios.
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Este distanciamento não significa, porém, que eles não dão importância para
as ações que brotam da tomada de consciência dos problemas que os rodeiam
(Clodoaldo, 2º ano; Vanessa, 1º ano; Denise, 1º ano). Eles expressam uma
necessidade de conhecer melhor os fundamentos das relações sociais formadoras de
seu cotidiano. Ou seja, eles intuem que há algo muito maior do que eles conseguem
perceber através do exame superficial de suas vivências. Ensiná-los a buscar os
fundamentos
sociais,
políticos,
culturais
e
históricos
destes
acontecimentos
possibilitará a transformação daquela intuição em uma atitude de reflexão e de
interpretação.
Referências bibliográficas
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RIBEIRO, D. Manoel Bomfim: antropólogo. Revista do Brasil. Rio de Janeiro, Secretaria da Ciência e Cultura do
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ROMERO, S. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1943.
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