Ideologia Alemã

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Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina
“Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro”
ISSN 2177-9503
10 a 13/09/2013
GT 10. Teoria política marxista
Concepção materialista e
dialética da história desde A
Ideologia Alemã
Marlon Garcia da Silva
Resumo: O presente artigo se concentra na análise da obra A Ideologia Alemã, de K. Marx
e F. Engels. Busca-se demonstrar como os autores refutam os fundamentos do idealismo
alemão, especialmente conforme expressos nos epígonos de Hegel, lançando ao mesmo
tempo as bases de uma concepção original materialista e dialética da história humana.
Para tanto, resgata-se num primeiro momento o objeto e o contexto das elaborações e
das principais disputas em questão, destacando-se em seguida certos pressupostos
razoáveis da vida social, notadamente os complexos da produção, da socialidade e da
consciência, a partir dos quais se orientam a pesquisa do humano-genérico em seus
movimentos históricos particulares e gerais. Defende-se a pertinência e a atualidade de
tais conteúdos e debates a favor da crítica da sociedade burguesa e suas expressões
ideológicas.
Palavras-chave: Materialismo; história; produção social; ideologia.
Objeto e contexto
A Ideologia Alemã, primeira parceria de Marx e Engels na produção de um texto
comum, de acordo com o testemunho dos próprios autores, foi escrita em fins de 1845/
princípios de 1846, tendo por objetivo mais direto um balanço crítico e “acerto de contas”
com a filosofia idealista alemã que se estendia desde a tradição vinda de Hegel. Embora o
texto se voltasse, em primeiro plano, à contestação do conjunto dos filósofos neohegelianos,
as teses originais ali defendidas e a argumentação desenvolvida confrontam visceralmente não
apenas os epígonos de Hegel, mas as próprias posições do filósofo clássico alemão. Como
sabido, as condições políticas adversas à época impossibilitaram a publicação do texto, que

Docente do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em filosofia pela
Universidade Federal de Ouro Preto, mestre e doutorando em Serviço Social pela UFSC. Integrante do Grupo
Futuro Presente/ CNPq.
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infelizmente para a tradição marxista, só veio a público em 1926 (o excerto sobre Feuerbach),
a partir dos trabalhos desenvolvidos no Instituto Marx-Engels de Moscou. Os manuscritos,
conforme palavras de Marx anos mais tarde, acabaram, no plano imediato, relegados à “crítica
roedora dos ratos”.
Os jovens Marx e Engels – que não alcançavam ainda a idade de trinta anos – haviam
percorrido já experiências e estudos que os ligavam aos problemas centrais do seu tempo, ao
contato inicial com contradições fundamentais da sociedade burguesa, suas potências e
misérias intrínsecas.
Basta mencionar as experiências de Engels desde a realidade das indústrias inglesas da
primeira metade do século XIX, que renderam argutas reflexões críticas sobre a “situação da
classe trabalhadora” explorada na Inglaterra, e sobre contradições evidentes que despontavam
no capitalismo. Marx, por um itinerário peculiar, também avançava numa crítica que se
afinava com a de Engels. Desde seus trabalhos e inserção teórica e política na Gazeta Renana,
periódico de orientação burguesa liberal e progressista nos quadros prussianos, Marx se vê
crescentemente desafiado por questões candentes do seu tempo, da realidade alemã e
europeia, contradições das relações da moderna propriedade privada, das relações da
produção capitalista, passando pelos debates acerca da natureza e função de classe do Estado
político moderno, às expressões ideais de tais relações, às representações filosóficas,
científicas, religiosas.
De sua identificação inicial com o cerne do pensamento hegeliano, Marx passa a
buscar na própria realidade sócio-material a orientação do pensamento. Neste caminho que
vai do distanciamento crescente à ruptura com o idealismo, as ideias materialistas defendidas
por Feuerbach em fins da década de 1830 e inícios de 1840 desempenham um papel
importante para identificação do ser à objetividade, e à decorrente reivindicação do “homem
como ser soberano para si”. Num movimento original, Marx muito rapidamente estende os
enunciados materialistas feuerbachianos para o campo da vida social: a materialidade do
mundo e das relações humanas é produto dos próprios homens: “a raiz para o homem é
próprio homem”. O produto, o mundo e as relações sociais podem ser conhecidos pela
investigação dos seus processos de entificação em sua materialidade presente e pretérita, em
seu devir e movimentos próprios.
Pode-se afirmar que nos Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844 prevalecem os
estudos iniciais da sociedade civil burguesa de então, a busca de sua anatomia, formas e
estruturas, seu metabolismo, explicitados desde as relações da propriedade burguesa,
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capitalista. A propriedade privada é decifrada como relação social onde a burguesia explora e
expropria as forças sociais dos produtores, da classe trabalhadora. O trabalho assalariado,
alienado e estranhado, nas relações de produção capitalistas, constitui o processo de
transferência e perda de si dos produtores para os produtos do trabalho, para o capital,
materializando a inversão pela qual o produto domina o produtor, as forças do capital se
sobrepõem, dominam e subjugam as forças sociais e a vida humana. Nestas formulações e nos
seus desdobramentos, Marx avança nas polêmicas contra a economia política clássica, que
reconhece no trabalho “a essência subjetiva da riqueza”, ignorando as relações da exploração
do trabalho assalariado, da propriedade privada da riqueza produzida socialmente.
Estas elaborações iniciais de Marx ajudam a esclarecer os contornos da nova teoria
social em formação. O campo da economia, das relações sócio-materiais de produção é
tomado como raiz para a compreensão não apenas da dinâmica da produção da riqueza
material, mas também para a compreensão da inteira vida social. As relações da propriedade
privada desbordam para o conjunto das relações dos indivíduos e das classes sociais.
A inversão real pela qual, no capitalismo, o produto, o capital, domina e subjuga, em
geral, o produtor, se expressa subjetiva e teoricamente como estranhamento, como nãoreconhecimento e não-efetividade do protagonismo humano nestas relações.
Este tipo de elaboração evidencia como Marx se distancia dos seus mestres e
interlocutores precedentes. Tanto o idealismo objetivo de Hegel como o materialismo
sensualista de Feuerbach se erigiam e integravam como expressões ideais do mundo burguês.
Uma ilustração importante de tal situação está na abordagem da religião em suas elaborações.
Enquanto Hegel integrava a religião no seu complexo sistema filosófico, Feuerbach, não
obstante sua argumentação materialista a respeito da natureza material-objetiva do ser, a
criticava sem ultrapassar o campo estritamente filosófico, ou seja, mantinha o combate e
pretendia a refutação restrita ao campo ideológico. Marx, de um modo original, integra a
religião no conjunto dos problemas do ser social, mais especificamente, como expressão
“espiritual”, subjetiva, de circunstâncias e situações reais, objetivas, nas quais os produtores
encontram-se subordinados a forças e relações que o dominam materialmente. Neste sentido,
somente a subversão e a reversão prática dos pressupostos reais, das bases sócio-materiais de
sustentação da religião podem efetivamente superar tal forma estranhada de representação
social.
Na Ideologia Alemã, os autores abordam com originalidade este conjunto de
problemas. Eles denunciam que “a crítica alemã, até em seus mais recentes esforços, não
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abandonou o terreno da filosofia” (Marx; Engels, 2007, 83). Além disso, “toda a crítica
filosófica alemã, de Strauss a Stirner limita-se à crítica das representações religiosas” (Ibid., p.
83). Aos neohegelianos em geral, conservadores ou críticos, inclusive Feuerbach, jamais
“ocorreu a ideia de perguntar sobre a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã,
sobre a conexão de sua crítica com seu próprio meio material” (Ibid., p. 83).
Conforme indicado, Marx e Engels se atentam para os pressupostos sócio-materiais
que estão na base da formação do idealismo religioso e do idealismo em geral. Tanto na
sociedade burguesa como ao longo de toda a “pré-história da humanidade”, o produto domina
o produtor. Por isso, encontram-se nesta obra afirmações fortes, tais como: “até o momento,
os homens sempre fizeram representações falsas de si mesmos, daquilo que eles são ou devem
ser” (Ibid., p. 523). A falsa consciência não tem aqui o sentido de engodo deliberado, mas o
sentido forte de expressões ideais de inversões reais, prático-sensíveis, do mundo dos homens.
“Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa
câmara escura, este fenômeno resulta de seu processo histórico de vida, da mesma forma
como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico”
(Ibid., p. 94).
De acordo com as teses desenvolvidas na Ideologia Alemã, ao longo da sua “préhistória”, os homens estiveram submetidos e subjugados por forças e poderes objetivos da
natureza e da sociedade, os quais não eram capazes de dominar. A era burguesa instaura e
desenvolve contradições sociais superiores, nas quais a humanidade permanece subjugada a
poderes estranhos velhos e novos: o dinheiro, a mercadoria, o capital, o mercado mundial, a
divisão social do trabalho, a divisão entre trabalho manual e trabalho “espiritual”, a divisão
entre cidade e campo, as relações da propriedade privada. Contudo, estas mesmas relações
engendram a realidade potencial e as possibilidades de sua própria negação – o que será
abordado mais ao final do presente artigo.
Um dos desenvolvimentos originais e mais fecundos que A Ideologia Alemã apresenta
está na abordagem materialista e dialética da história. A abordagem, desenvolvida com o
interesse mais direto de estabelecer os fundamentos da crítica ao idealismo filosófico alemão,
apresenta o devir material, histórico, humano-genérico. O próximo tópico do presente artigo é
dedicado à abordagem inicial da matéria.
Pressupostos gerais
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A “viagem” empreendida por Marx e Engels pela história humano-genérica tem
alguns pressupostos e finalidades principais.
Como referido, a finalidade mais direta é a refutação do idealismo hegeliano conforme
as vulgarizações dos epígonos de Hegel. A crítica, contudo, se volta contra os fundamentos do
idealismo em geral, denunciando suas raízes sócio-materiais nas relações da sociedade
burguesa, bem como sua vigência ao longo da “pré-história” da humanidade.
Os autores desenvolvem ao mesmo tempo as bases de uma nova concepção
materialista do ser social e da história. A decifração radical do mundo dos homens em sua
atualidade é potencializada pela compreensão dos processos pretéritos de entificação do
humano, pela consideração das particularidades da produção e das conexões materialistas da
história humano-genérica. Ilumina-se, assim, a compreensão do “de onde para onde” do
gênero humano, o passado do presente, e as virtualidades reais do futuro presente. A história
não pode ser uma “coleção de fatos mortos”, tampouco pode ser tomada pela preponderância
das ideias, tal como nas concepções do idealismo e do materialismo abstratos.
As referidas aquisições dos jovens Marx e Engels desde os primeiros esforços de
compreensão da “anatomia” e do metabolismo da sociedade civil burguesa esclarecem os
pressupostos a partir dos quais se avança na compreensão materialista da realidade e da
história em devir. Desde as publicações de ambos nos Anais Franco-alemães, se adensa a
compreensão de que as relações econômicas, as relações sociais de produção e reprodução da
vida material são “matrizadoras” das formas de ser, sentir, se relacionar, pensar, dos
indivíduos na sociedade burguesa. Na Ideologia Alemã, esta constatação é elevada a
enunciado geral, a pressuposto geral orientador da investigação das formações sóciohistóricas particulares, dos seus processos e conexões materialistas no espaço e no tempo.
Trata-se de pressuposto geral e razoável porque extraído das evidências prático-sensíveis e
sócio-históricas das formas e modos de ser e existir dos homens, constatáveis por vias
empíricas. O mundo dos homens não pode ser explicado a partir das ideias, e também não
servem para tanto quaisquer pontos de partida ou bases de sustentação.
Tais enunciados aparecem por diversas vezes e formulações, e são declarados pelos
autores como “os pressupostos de que partimos”, “os indivíduos reais, sua ação e suas
condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua
própria ação” (Ibid., p. 93). A história humano-genérica faculta e autoriza a afirmação geral
de que “tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide,
pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como
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produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua
produção” (Ibid., p. 86).
Sobre tais bases sócio-materiais, em diferentes tempos e lugares, se erigem e
esclarecem determinadas estruturas e complexos sociais, políticos e ideológicos. Nas palavras
dos autores: “indivíduos determinados, que são ativos na produção de determinada maneira,
contraem entre si estas relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica tem
de provar, em cada caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou
especulação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção” (Ibid., p. 95).
O último enunciado desta passagem introduz a ideia fundamental de que somente a
consideração concreta da própria materialidade sócio-histórica particular avança na produção
do conhecimento real ou científico de determinada realidade. Ou seja, os pressupostos
orientadores mais gerais adquirem concreção via análise empírica da própria realidade
específica. Portanto, somente “ali onde termina a especulação, na vida real, começa também,
portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de
desenvolvimento dos homens” (Ibid., p. 95).
Por tal caminho, as abstrações arbitrárias da filosofia idealista e as formulações
também abstratas do materialismo sensualista feuerbachiano são substituídas por pressupostos
reais, gerais, materialistas, sem os quais não se pode falar de consciência, ideia, pensamento,
tampouco de história humana. No tópico seguinte, acompanhando Marx e Engels, seguem
destacados “alguns destes pressupostos gerais” que esclarecem e orientam a abordagem
materialista da história, da consciência, dos estranhamentos, das contradições e
potencialidades do humano em seu devir.
Produção, socialidade e consciência
A consideração materialista da história faculta, pois, a identificação de pressupostos
gerais fundantes do humano, dos processos e categorias moventes e movidos pelos homens,
como a produção, a socialidade e a consciência.
Contrapondo-se às formulações filosóficas idealistas, Marx e Engels destacam
“o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a
história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver
para poder ‘fazer história’. Mas, para viver, precisa-se antes de tudo, de comida,
bebida, moradia, vestimenta e alguma coisa mais. O primeiro ato histórico é, pois, a
produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria
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vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de
toda a história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida
diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos /.../” (Ibid., p.
33).
A gênese e os fundamentos do humano são identificados a partir das forças e potências
surgidas num ser que se destaca e eleva da natureza, de um ser que se autoproduz e
desenvolve desde a natureza e as necessidades materiais, produzindo em contextos concretos
e a cada passo de sua autoconstrução um mundo de instrumentos, meios e objetos inéditos. A
explicação da história humana pretérita e presente, bem como da natureza e do lugar das
categorias que vão surgindo e se explicitando na especificidade ser social, dentre as quais, a
consciência, não pode desconsiderar tal pressuposto fundamental.
Prosseguindo suas elaborações, os autores sustentam que “o segundo ponto é que a
satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já
adquirido conduzem a novas necessidades” (Ibid., p. 33). O homem se autoproduz como um
ser aberto, que cria em contextos concretos um mundo de instrumentos, objetos, relações e
movimentos propriamente humanos, sociais, transformando crescentemente a natureza e a si
mesmo, ao seu próprio ser social.
Os movimentos de autoprodução de si dos homens se fazem no sentido do “recuo das
barreiras naturais” e do avanço na direção da crescente socialidade do ser. Uma evidência
desta tendência geral é destacada pelos autores na consideração de um “terceiro pressuposto”
fundamental da existência e da história dos homens, a constatação de que “os homens, que
renovam diariamente sua própria vida, começam a criar outros homens, a procriar” (Ibid., p.
33), numa dinâmica social e histórica pela qual a simples relação natural se eleva à
socialidade rudimentar nas relações da família. Tais relações evidenciam a direção do
movimento de autoprodução do humano que propende à crescente socialidade, em
consonância com o desenvolvimento das relações contraditórias de produção e troca. A
sociedade civil se torna o palco real das contradições e lutas das classes sociais ao longo da
“pré-história” da humanidade, inclusa a sociedade burguesa.
Estes aspectos e pressupostos gerais, de acordo com Marx e Engels, só podem ser
compreendidos como aspectos ou “momentos” coexistentes, simultâneos, integrados,
articulados no interior das formações sócio-históricas concretas e suas relações.
Percorrido este itinerário, os autores afirmam, confrontando o idealismo neohegeliano,
que “somente agora descobrimos que o homem tem também ‘consciência’” (Ibid., p. 34). A
consciência é um produto material e social que os homens forjam e desenvolvem “no interior
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do desenvolvimento histórico real”. Ela não pode existir autônoma e independentemente de
bases sócio-materiais que a constituem, “não pode jamais ser outra coisa que o ser consciente,
e o ser dos homens é o seu processo de vida real” (Ibid., p. 94).
Sobre tais fundamentos materialistas, podem-se apreender as forças motrizes da
gênese e das metamorfoses das formas de consciência na história. A consciência, que é “antes
de tudo a mera consciência do meio sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado
com outras pessoas e coisas exteriores é, ao mesmo tempo, consciência da natureza que,
inicialmente, se apresenta aos homens como um poder totalmente estranho, onipotente e
inabalável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal” (Ibid., p.
35). Ela “obtém seu desenvolvimento e seu aperfeiçoamento ulteriores por meio da
produtividade aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da população” (Ibid.,
p. 35).
Com o desenvolvimento das forças produtivas, do intercâmbio entre os homens,
“desenvolve-se a divisão do trabalho, e em consequência, surge uma divisão entre trabalho
material e [trabalho] espiritual” (Ibid., p. 36), quando, nos termos de Marx e Engels, “a
consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis
existente, representar algo realmente sem representar algo real” (Ibid., p. 36). As ideologias
em geral se assentam sobre tais bases e relações sócio-materiais.
Dimensão genérica da história do desenvolvimento humano
Este tipo de elaboração teórica se eleva, pois, das formações sócio-históricas
concretas, particulares, para uma tematização sobre o gênero humano em sua universalidade.
Conjugando o que é comum e o que é específico nos processos de constituição do gênero
humano, a reflexão se move num nível de generalidade que apanha certos pressupostos,
fundamentos, leis e tendências da história humana em processo.
É o caso da constatação das formas particulares assumidas pela luta de classes desde
as sociedades contraditórias, nas relações de produção e na luta pela apropriação do excedente
econômico socialmente produzido, formas particulares que atravessam e se conectam na “préhistória” da humanidade.
Marx e Engels buscam demonstrar os movimentos pelos quais o mundo humano, as
categorias e relações sociais, surgem e se desenvolvem contraditoriamente, propendendo à
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universalidade crescente. A investigação dos movimentos e relações da autoprodução de si
dos homens permite extrair das evidências certos denominadores comuns:
- como já mencionado, a história humano-genérica demonstra um desenvolvimento de
forças produtivas (forças humanas de produção dos indivíduos sociais), imbricado a um
crescente domínio da natureza (não importa aqui o quanto contraditórias sejam suas formas
concretas), materializando, nos termos de Marx, “um recuo das barreiras naturais”;
- outro sentido deste mesmo movimento mostra-se na autoprodução do humano na
direção da crescente socialidade do seu ser;
-tais movimentos apontam uma “conexão materialista dos homens entre si” (“sem que
existam quaisquer absurdos religiosos ou políticos que mantenham os homens unidos”),
conexão que demonstra o suceder-se de gerações, no rico movimento de continuidades e
rupturas onde, de qualquer modo, há uma herança e um legado, uma cultura humano-genérica
em gestação como afirmação e como crítica. Na afirmação de Marx em O Dezoito Brumário
de Luis Bonaparte, os “homens fazem a sua própria história; contudo /…/ não são eles quem
escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita” (Id., 2011, p. 25).
- tais movimentos de ampliação, complexificação e intensificação do mundo e das
relações humanas, de constituição e adensamento da cultura humana, se materializam e
expressam na polaridade constitutiva do ser social, quer dizer, no singular e no plural, no
indivíduo e no gênero.
As categorias e relações humanas são, pois, consideradas tanto em suas configurações
particulares como em suas conexões no interior do desenvolvimento histórico humano. Neste
sentido, são diversos, vastos, os caminhos das investigações concretas e os resultados
particulares e gerais expostos por Marx e Engels na Ideologia Alemã.
Assim, são tematizados formas e modos particulares de produção, de desenvolvimento
de forças produtivas e intercâmbio entre os homens, traços particulares, concretos, das
configurações da divisão social do trabalho e da propriedade privada, da divisão entre
trabalho manual e trabalho intelectual (importante para os fundamentos do debate sobre a
ideologia, pois desde então “a consciência pode realmente representar algo, sem representar
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algo real”), divisão entre cidade e campo, a gênese, as funções e formas particulares de
configurações do Estado e das ideologias.
A título de ilustração, pode-se considerar que o feudalismo tanto sintetiza uma cultura
humana precedente (não importa a dureza e o ônus do beco-sem-saída humano-genérico a que
chegaram as chamadas civilizações clássicas antigas), como a movimenta em sentidos
inéditos, inclusive na direção da superação das suas próprias bases sócio-materiais, “rurais”,
de sustentação e existência. O desenvolvimento das forças produtivas, dos instrumentos,
técnicas e meios de produção nos feudos está na base do denominado “renascimento
comercial e urbano”, da moderna divisão social do trabalho e da moderna propriedade
privada, ou seja, na própria base do processo de dissolução do feudalismo. Marx e Engels
identificam nestes movimentos a crescente contradição entre as forças produtivas – que se
complexificam do artesanato para os mecanismos das manufaturas, bases da grande indústria
capitalista – e as relações sociais predominantes no modo de produção feudal.
Desaparecem, pois, as bases de sustentação das relações servis, fixas, restritas, locais,
nas unidades feudais, com a vitalização das trocas, do comércio, dos burgos, das manufaturas,
das bases sócio-materiais das modernas cidades e do capitalismo, num movimento que
percorre uma dinâmica cada vez mais mundial e universal. Os homens vão desenvolvendo,
neste sentido, um conjunto de forças sociais às quais acabam subsumidos, tais como a
mercadoria, o dinheiro, o mercado mundial, o capital e a indústria capitalista.
Marx e Engels podem assim indicar em suas formulações as determinações genéticas,
sócio-históricas, da sociedade burguesa, do capitalismo, o seu “de onde”, suas
particularidades, sua posição no evolver da autoprodução humano-genérica, identificando
suas relações e forças progressistas na história, como também suas contradições, limites e os
sinais de seu esgotamento histórico e becos-sem-saída.
Neste sentido, na sociedade burguesa, no capitalismo, os autores identificam um
conjunto de forças produtivas que entram em contradição com as relações da propriedade
privada, se tornando na realidade social forças destrutivas. A indústria capitalista é movida
pelas forças da propriedade privada e do capital, a produção social regida e voltada aos
interesses e lógica da apropriação privada. Trata-se de um conjunto de relações de poder e
dominação material, de classe, que engendram e expressam, por outro lado, suas forças
sociais antípodas, as forças da classe trabalhadora, da potência radical de produção da riqueza
na sociedade burguesa, classe e potência agrilhoada pelos poderes da burguesia e do capital.
Se é certo que esta ideia não pode ser reproduzida no sentido original dos autores da Ideologia
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Alemã se formulada de maneira maniqueísta ou simplista, é igualmente certo, a nosso ver, que
traz consigo uma força e verdade afiançadas tanto pela consideração dos movimentos
históricos mais amplos da sociedade burguesa e suas contradições, como pela análise de suas
configurações na atualidade.
Referências
FEUERBACH, L. Aportes Para La Critica de Hegel. Buenos Aires: Pleyade, 1974.
__________. Princípios da filosofia do futuro. Lisboa: Edições 70, 1988.
HEGEL, G. F. Fenomenologia do Espírito. Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
LUKÁCS, G. Per l’ontologia dell’essere sociale. Roma: Riuniti, 1981. 3 v.
__________. Conversando com Lukács. São Paulo: Paz e Terra, 1969.
MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Grijalbo, 1977.
__________. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
__________. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
__________. Ökonomisch-philosophische Manuskripte aus dem jahre 1844. Berlin: Dietz
Verlag, 1985.
__________. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
__________. Glosas Críticas Marginais ao Artigo "O Rei da Prússia e a Reforma Social". De
um prussiano. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
__________. A Miséria da Filosofia. São Paulo: Global, 1985.
__________. A Questão Judaica. São Paulo: Centauro, 2002.
__________. O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
__________. Grundrisse. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011.
__________. O Capital. Crítica da Economia Política. Livros I e II. São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
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