contra os músicos

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A REFUTAÇÃO À TEORIA MUSICAL NO CONTRA OS MÚSICOS
DE SEXTO EMPÍRICO
Sarah Roeder
[email protected]
Graduada em Filosofia
Mestranda em Música pela UFPR.
Palavras-chave: Música grega antiga. Ceticismo. Ethos. Harmonike.
No Contra os Músicos, Sexto Empírico refuta a teoria musical da
antiguidade tanto sob sua perspectiva ética – questionando sua utilidade –
quanto sob a perspectiva técnica da ciência da música – apresentando
argumentos contra os conceitos de melodia e de ritmo. Além de ser importante
fonte sobre o papel da música na antiguidade, a refutação da música compartilha
de um objetivo mais amplo da filosofia cética, a saber, o combate ao dogmatismo
na filosofia e nos Estudos Cíclicos1. Este trabalho tem como objetivo apresentar o
escopo do conceito de música refutado por Sexto Empírico e sua relação com a
finalidade do ceticismo pirrônico.
Os tratados sobre a música grega que chegaram até nós indicam que havia
uma divisão fundamental entre teoria e prática musical. A prática restringia-se à
execução do instrumento e era considerada desprovida de reflexão. Já a teoria
musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmológico da
ciência musical quanto seu sentido técnico relacionado ao estudo da harmonike,
da rítmica e da métrica. Além disso, os estudiosos da ciência musical estavam
preocupados com o papel ético da música no que diz respeito às suas
características terapêuticas e ao seu poder de formar e determinar o caráter e o
comportamento do indivíduo. Esse papel ético da música está estritamente ligado
à paideia2 grega. Tais ideias permaneceram amplamente aceitas ao longo da
Antiguidade, tendo reflexos importantes no pensamento musical ocidental até o
século XVII3. Todavia, já na Antiguidade, houve quem questionasse seu status.
O primeiro registro que questiona a teoria musical a que temos acesso é o
Papiro de Hibeh, possivelmente contra as ideias de Platão e de Aristóteles,
rejeitando a associação de um ethos4 à música. No período greco-romano,
deparamo-nos com as obras do cético Sexto Empírico e do epicurista Filodemo de
1Estudos Cíclicos ou Artes Liberais é como era chamado o conjunto de ensinamentos que faziam
parte da educação na Antiguidade.
2O termo paideia “designa a experiência cultural e ética grega; ele não é de nenhum modo
limitado à educação em seu sentido formal.” (Anderson, 1966, p. 2).
3Ver Tomás (2002, p. 13-26).
4A palavra grega θοσ é traduzida por “caráter” ou “disposição”. Não deve ser confundida com θοσ
que significa “hábito” ou “costume”.
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Gádara. Ambos, sob perspectivas diferentes, refutam a música enquanto uma das
artes que integravam os Estudos Cíclicos que constituíam o curriculum básico da
paideia grega.
No Contra os Músicos, Sexto Empírico5, filósofo cético do século II d.C.,
dirige sua crítica à teoria musical que era considerada por muitos mais completa
que a prática musical. O autor parte de diversas fontes6 para refutar a teoria
musical grega sob duas perspectivas: questiona a utilidade da música no que diz
respeito à teoria do ethos na paideia grega e argumenta contra os princípios
técnicos da ciência musical.
De acordo com Sexto Empírico, o ceticismo pirrônico tem por objetivo o
combate à precipitação dogmática de se sustentar firmemente crenças a respeito
daquilo que existe na realidade, externamente às nossas representações. O cético
observa que as várias teorias desenvolvidas pelos filósofos a respeito da realidade
das coisas entram em aporia e que não há um critério que nos permita distinguir
qual delas é verdadeira. Em função disso, para cada afirmação dogmática ele
apresenta uma afirmação oposta e o igual peso das teorias colocadas em oposição
leva-o a um estado de suspensão do juízo. A obra de Sexto Empírico foi dedicada
ao combate ao dogmatismo em cada uma das partes da filosofia. Visto que entre
aqueles que ensinavam os chamados Estudos Cíclicos os céticos também se
depararam com uma postura dogmática, Sexto Empírico propõe um ataque às
bases de cada uma das disciplinas ensinadas pelos especialistas. 7 Entre essas se
encontra a música.
O texto de Sexto Empírico apresenta as definições difundidas sobre a
música e, em seguida, argumenta que elas não são necessariamente válidas. Na
primeira parte ele ataca o valor da música argumentando que, se a música é
compreendida em termos de sua utilidade no que concerne à sua capacidade de
mover a alma alterando o caráter do ouvinte, essa capacidade não pode ser
provada. Com isso, a música mostra-se muitas vezes inútil para aquilo que
propõe. Na segunda parte do texto ele promove uma discussão acerca de questões
técnicas da ciência musical. Sexto Empírico foca-se nos conceitos básicos da
ciência harmônica e mostra como estes dependem dos conceitos de som e de
ritmo. Em função disso, ele busca mostrar a inexistência destes conceitos,
5A obra de Sexto Empírico é ainda pouco estudada em relação às suas contribuições ao
pensamento filosófico - sobretudo sua influência na filosofia moderna. Dentre os textos que
chegaram até nós estão as Hipotiposes Pirronianas, o Contra os Dogmáticos e o Contra os
Professores. Nos dois primeiros, o autor apresenta o método cético e ataca cada uma das partes da
filosofia mostrando o conflito de opiniões dos filósofos.
6 Segundo os comentadores, os argumentos acerca do valor da música refutados por Sexto são
parecidos com os de Quintiliano e de Plutarco. A refutação contra o valor ético e filosófico da
música, por sua vez, está muito próxima da que é encontrada na obra de Filodemo de Gadara
(século I a.C.). A principal fonte da teoria musical apresentada por Sexto é a obra de Aristóxeno,
havendo também paralelos com a obra de Aristóteles. Cf. Greaves (1986, p. 24-36).
7O Contra os Professores divide-se em seis livros: Contra os Gramáticos, Contra os Retores,
Contra os Geômetras, Contra os Aritméticos, Contra os Astrólogos e Contra os Músicos.
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destruindo os conceitos básicos da ciência musical, toda a sua estrutura fica
comprometida.
O Contra os Músicos inicia com a distinção dos sentidos em que o termo
“música” é utilizado: teórico - enquanto “uma ciência (episteme) que lida com
melodias notas e composição rítmica e coisas semelhantes” (M 6.1)8 9; prático - em
relação à habilidade na execução de instrumentos (organiken empeiria) tal como
quando chamamos instrumentistas de “músicos”; e, por fim, o sentido metafórico quando algo é considerado “musical”. Esse último é derivado de um sentido amplo
de “mousike” que inclui todas as artes e ciências presididas pelas Musas
(GREAVES, 1986, p. 125, n. 8). Por isso, “musical” (mousikos) pode ser atribuído
àquele que é “dotado pelas Musas, culto, refinado, elegante” (TOMÁS. 2002, p.
40-1).
Na primeira definição Sexto Empírico toma Aristóxeno10 como exemplo de
músico e é apenas nesse sentido que ele pretende refutar a música “por ter sido
estabelecido como o mais completo” (M 6.3). Objetiva-se mostrar que tal recorte
está de acordo com a cisão entre teoria e prática musical na Antiguidade e
esclarecer que Sexto está preocupado em refutar a música enquanto ciência
especializada e não como uma arte prática. REYES (2004, p. 100) aponta que “na
época de Sexto, o oposto à harmonike é já claramente a organike (…). Os
organikoi, isto é, a organike de Sexto, nem sequer participa da discussão dos
kriteria em música, tão relevante nessa época”.
Em relação aos objetivos da filosofia cética, Sexto Empírico parte de uma
oposição entre teoria e prática musical com a finalidade de refutar as teorias a
respeito das artes, isso acontece não só porque elas partem de premissas nãoevidentes, mas também porque a determinação da natureza de certos aspectos de
uma arte é algo completamente inútil para a sua execução.
No caso da música, quando o cético distingue os sentidos de “música” ele
não ataca aqueles que executam peças musicais, mas apenas os que teorizam
acerca dela. Se consideramos que a suspensão de juízo se dá em função da
8M 6 refere-se ao Contra os Músicos.
9Esta definição privilegia o aspecto técnico da teoria musical. Segundo REYES (2004, p. 99), o
conteúdo apresentado na definição da música teórica se confunde com a definição de uma das
partes da ciência musical, a harmonike. Todavia, o ponto principal a ser observado é a oposição
entre ciência e experiência.
10Aristóxeno foi um filósofo e músico no séc. IV a.C., discípulo de Aristóteles. No Contra os
Músicos ele é tomado como exemplo de músico na medida em que trata da música sob uma
perspectiva teórica, mas não como único paradigma do que seja música, pois, como veremos, na
primeira parte da obra de Sexto são abordadas algumas definições de música associadas aos
pitagóricos. Na parte que trata de refutar a música em seus aspectos técnicos, em contrapartida,
notamos que algumas definições são tomadas diretamente da obra de Aristóxeno. Diferentemente
da corrente pitagórica onde a teoria musical dependia de razões matemáticas, para ele a música
adquire um caráter empírico e os conceitos são estabelecidos a partir da percepção sonora. Tal
perspectiva, todavia, não altera a relevância da doutrina do ethos musical no período. Cf.
BARKER (1989, p. 119-125).
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pretensão de verdade do discurso dogmático, é a teoria musical, sob seus aspectos
técnicos e éticos que será questionada, visto que ela afirma algo a respeito da
natureza da música, a “experiência em instrumentos”, por sua vez, não será
refutada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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Bury, R.G. Reimpr.1993. Harvard: Loeb Classical Edition, 1933 .
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REYES, Pedro Redondo. Sexto Empírico y la mousiké. EMERITA - Revista de
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TOMÁS, Lia. Ouvir o lógos: música e filosofia. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
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