602 A REFUTAÇÃO À TEORIA MUSICAL NO CONTRA OS MÚSICOS DE SEXTO EMPÍRICO Sarah Roeder [email protected] Graduada em Filosofia Mestranda em Música pela UFPR. Palavras-chave: Música grega antiga. Ceticismo. Ethos. Harmonike. No Contra os Músicos, Sexto Empírico refuta a teoria musical da antiguidade tanto sob sua perspectiva ética – questionando sua utilidade – quanto sob a perspectiva técnica da ciência da música – apresentando argumentos contra os conceitos de melodia e de ritmo. Além de ser importante fonte sobre o papel da música na antiguidade, a refutação da música compartilha de um objetivo mais amplo da filosofia cética, a saber, o combate ao dogmatismo na filosofia e nos Estudos Cíclicos1. Este trabalho tem como objetivo apresentar o escopo do conceito de música refutado por Sexto Empírico e sua relação com a finalidade do ceticismo pirrônico. Os tratados sobre a música grega que chegaram até nós indicam que havia uma divisão fundamental entre teoria e prática musical. A prática restringia-se à execução do instrumento e era considerada desprovida de reflexão. Já a teoria musical era considerada mais elevada e abrangia tanto o sentido cosmológico da ciência musical quanto seu sentido técnico relacionado ao estudo da harmonike, da rítmica e da métrica. Além disso, os estudiosos da ciência musical estavam preocupados com o papel ético da música no que diz respeito às suas características terapêuticas e ao seu poder de formar e determinar o caráter e o comportamento do indivíduo. Esse papel ético da música está estritamente ligado à paideia2 grega. Tais ideias permaneceram amplamente aceitas ao longo da Antiguidade, tendo reflexos importantes no pensamento musical ocidental até o século XVII3. Todavia, já na Antiguidade, houve quem questionasse seu status. O primeiro registro que questiona a teoria musical a que temos acesso é o Papiro de Hibeh, possivelmente contra as ideias de Platão e de Aristóteles, rejeitando a associação de um ethos4 à música. No período greco-romano, deparamo-nos com as obras do cético Sexto Empírico e do epicurista Filodemo de 1Estudos Cíclicos ou Artes Liberais é como era chamado o conjunto de ensinamentos que faziam parte da educação na Antiguidade. 2O termo paideia “designa a experiência cultural e ética grega; ele não é de nenhum modo limitado à educação em seu sentido formal.” (Anderson, 1966, p. 2). 3Ver Tomás (2002, p. 13-26). 4A palavra grega θοσ é traduzida por “caráter” ou “disposição”. Não deve ser confundida com θοσ que significa “hábito” ou “costume”. 603 Gádara. Ambos, sob perspectivas diferentes, refutam a música enquanto uma das artes que integravam os Estudos Cíclicos que constituíam o curriculum básico da paideia grega. No Contra os Músicos, Sexto Empírico5, filósofo cético do século II d.C., dirige sua crítica à teoria musical que era considerada por muitos mais completa que a prática musical. O autor parte de diversas fontes6 para refutar a teoria musical grega sob duas perspectivas: questiona a utilidade da música no que diz respeito à teoria do ethos na paideia grega e argumenta contra os princípios técnicos da ciência musical. De acordo com Sexto Empírico, o ceticismo pirrônico tem por objetivo o combate à precipitação dogmática de se sustentar firmemente crenças a respeito daquilo que existe na realidade, externamente às nossas representações. O cético observa que as várias teorias desenvolvidas pelos filósofos a respeito da realidade das coisas entram em aporia e que não há um critério que nos permita distinguir qual delas é verdadeira. Em função disso, para cada afirmação dogmática ele apresenta uma afirmação oposta e o igual peso das teorias colocadas em oposição leva-o a um estado de suspensão do juízo. A obra de Sexto Empírico foi dedicada ao combate ao dogmatismo em cada uma das partes da filosofia. Visto que entre aqueles que ensinavam os chamados Estudos Cíclicos os céticos também se depararam com uma postura dogmática, Sexto Empírico propõe um ataque às bases de cada uma das disciplinas ensinadas pelos especialistas. 7 Entre essas se encontra a música. O texto de Sexto Empírico apresenta as definições difundidas sobre a música e, em seguida, argumenta que elas não são necessariamente válidas. Na primeira parte ele ataca o valor da música argumentando que, se a música é compreendida em termos de sua utilidade no que concerne à sua capacidade de mover a alma alterando o caráter do ouvinte, essa capacidade não pode ser provada. Com isso, a música mostra-se muitas vezes inútil para aquilo que propõe. Na segunda parte do texto ele promove uma discussão acerca de questões técnicas da ciência musical. Sexto Empírico foca-se nos conceitos básicos da ciência harmônica e mostra como estes dependem dos conceitos de som e de ritmo. Em função disso, ele busca mostrar a inexistência destes conceitos, 5A obra de Sexto Empírico é ainda pouco estudada em relação às suas contribuições ao pensamento filosófico - sobretudo sua influência na filosofia moderna. Dentre os textos que chegaram até nós estão as Hipotiposes Pirronianas, o Contra os Dogmáticos e o Contra os Professores. Nos dois primeiros, o autor apresenta o método cético e ataca cada uma das partes da filosofia mostrando o conflito de opiniões dos filósofos. 6 Segundo os comentadores, os argumentos acerca do valor da música refutados por Sexto são parecidos com os de Quintiliano e de Plutarco. A refutação contra o valor ético e filosófico da música, por sua vez, está muito próxima da que é encontrada na obra de Filodemo de Gadara (século I a.C.). A principal fonte da teoria musical apresentada por Sexto é a obra de Aristóxeno, havendo também paralelos com a obra de Aristóteles. Cf. Greaves (1986, p. 24-36). 7O Contra os Professores divide-se em seis livros: Contra os Gramáticos, Contra os Retores, Contra os Geômetras, Contra os Aritméticos, Contra os Astrólogos e Contra os Músicos. 604 destruindo os conceitos básicos da ciência musical, toda a sua estrutura fica comprometida. O Contra os Músicos inicia com a distinção dos sentidos em que o termo “música” é utilizado: teórico - enquanto “uma ciência (episteme) que lida com melodias notas e composição rítmica e coisas semelhantes” (M 6.1)8 9; prático - em relação à habilidade na execução de instrumentos (organiken empeiria) tal como quando chamamos instrumentistas de “músicos”; e, por fim, o sentido metafórico quando algo é considerado “musical”. Esse último é derivado de um sentido amplo de “mousike” que inclui todas as artes e ciências presididas pelas Musas (GREAVES, 1986, p. 125, n. 8). Por isso, “musical” (mousikos) pode ser atribuído àquele que é “dotado pelas Musas, culto, refinado, elegante” (TOMÁS. 2002, p. 40-1). Na primeira definição Sexto Empírico toma Aristóxeno10 como exemplo de músico e é apenas nesse sentido que ele pretende refutar a música “por ter sido estabelecido como o mais completo” (M 6.3). Objetiva-se mostrar que tal recorte está de acordo com a cisão entre teoria e prática musical na Antiguidade e esclarecer que Sexto está preocupado em refutar a música enquanto ciência especializada e não como uma arte prática. REYES (2004, p. 100) aponta que “na época de Sexto, o oposto à harmonike é já claramente a organike (…). Os organikoi, isto é, a organike de Sexto, nem sequer participa da discussão dos kriteria em música, tão relevante nessa época”. Em relação aos objetivos da filosofia cética, Sexto Empírico parte de uma oposição entre teoria e prática musical com a finalidade de refutar as teorias a respeito das artes, isso acontece não só porque elas partem de premissas nãoevidentes, mas também porque a determinação da natureza de certos aspectos de uma arte é algo completamente inútil para a sua execução. No caso da música, quando o cético distingue os sentidos de “música” ele não ataca aqueles que executam peças musicais, mas apenas os que teorizam acerca dela. Se consideramos que a suspensão de juízo se dá em função da 8M 6 refere-se ao Contra os Músicos. 9Esta definição privilegia o aspecto técnico da teoria musical. Segundo REYES (2004, p. 99), o conteúdo apresentado na definição da música teórica se confunde com a definição de uma das partes da ciência musical, a harmonike. Todavia, o ponto principal a ser observado é a oposição entre ciência e experiência. 10Aristóxeno foi um filósofo e músico no séc. IV a.C., discípulo de Aristóteles. No Contra os Músicos ele é tomado como exemplo de músico na medida em que trata da música sob uma perspectiva teórica, mas não como único paradigma do que seja música, pois, como veremos, na primeira parte da obra de Sexto são abordadas algumas definições de música associadas aos pitagóricos. Na parte que trata de refutar a música em seus aspectos técnicos, em contrapartida, notamos que algumas definições são tomadas diretamente da obra de Aristóxeno. Diferentemente da corrente pitagórica onde a teoria musical dependia de razões matemáticas, para ele a música adquire um caráter empírico e os conceitos são estabelecidos a partir da percepção sonora. Tal perspectiva, todavia, não altera a relevância da doutrina do ethos musical no período. Cf. BARKER (1989, p. 119-125). 605 pretensão de verdade do discurso dogmático, é a teoria musical, sob seus aspectos técnicos e éticos que será questionada, visto que ela afirma algo a respeito da natureza da música, a “experiência em instrumentos”, por sua vez, não será refutada. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ANDERSON, W. D. Ethos and Education in Greek Music. Harvard, 1966. EMPIRICUS, Sextus. Against the Professors: Prous Mathematikous. Ed. e trad. Bury, R.G. Reimpr.1993. Harvard: Loeb Classical Edition, 1933 . _________________. Contra los Profesores. Ed. e trad. Jorge Bergua Cavero. Biblioteca Clásica Madrid: Gredos Editorial Gredos, 1997. _________________. Against the Logicians. Ed. e trad. Richard Bett. New York: Cambridge University Press, 2005. GREAVES, D. D. Sextus Empiricus ΠΡΟΣ ΜΟΥΣΙΚΟΥΣ: Against the musicians. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1986. HADOT, Pierre. O que é filosofia Antiga?. 3ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. LIPPMAN, E. 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