UM BREVE RELATO DA CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM MATEMÁTICA AO LONGO DA HISTÓRIA Autor: Maurílio Antônio Valentim Instituição: Universidade Bandeirante de São Paulo E-mail: [email protected] Resumo: Utilizamos a linguagem tão naturalmente em nosso cotidiano para nossa comunicação que ela nos parece simples, mas a Linguística demonstra que isso não é tão s imples. As palavras utilizadas como base deste processo são carregadas de ideologias. Muito tem se discutido sobre linguagem no contexto escolar na disciplina de Matemática. Relatos de profissionais sobre as dificuldades no ensino e aprendizagem são muitas delas relacionadas com a linguagem materna e a simbólica utilizadas principalmente no conteúdo algébrico. Neste artigo procuro trazer um breve relato sobre a história da linguagem Matemática conjeturando ser importante conhecer como se deu as transformações ocorridas ao longo do tempo e dando subsídios para se conhecer possíveis barreiras epistemológicas que elas podem provocar. O texto é produto de pesquisas realizadas no curso de Doutorado sobre as contribuições de narrativas no processo de construções de significados em alunos do segundo ciclo do Ensino Fundamental. Palavras-chave: Linguagem; Matemática; História Texto completo A ferramenta Google, de vasta utilização em busca na internet, traz como resultado de pesquisa, realizada em 2 de outubro de 2012, a pergunta “Qual a origem da matemática?” aproximadamente 2.880.000 (dois milhões, oitocentos e oitenta mil) resultados em 0,15 segundos. Isto demonstra como esta questão é polêmica. Podemos definir que existem duas correntes que respondem a esta pergunta com perspectivas diferentes: uma afirma que a Matemática já existia antes do homem e a outra que ela foi idealizada por ele. Trabalharemos na perspectiva que ela foi criada pelo homem baseada na teoria de Jerome Bruner que afirma que a narrativa constrói a realidade e não representa a realidade, assim a Matemática seria uma criação humana. Boyer (1974) afirma que no início se pensava que a Matemática ocupava-se somente pela percepção do mundo pelos nossos sentidos e com a persistência da raça humana no principio lógico da sobrevivência do mais hábil e que assim houve o desenvolvimento dos conceitos Matemáticos. Segundo Boyer (1974) a Matemática atual tem origem nas idéias de número, de formas e grandezas e hoje, após procurar definir na realidade o que é a Matemática, há um consenso entre a maioria de pesquisadores que ela é uma ciência das regularidades, dos padrões. O conceito de número não surgiu de uma descoberta individual e em um determinado espaço-tempo, ele foi resultado de um processo longo e que foi motivado pela linguagem. Podemos citar, entre algumas línguas, a língua grega que mantinha uma gramática que distinguia um, dois e mais de dois o que difere da linguagem atual onde temos o singular e o plural. Temos ainda hoje grupos que contam até dois e quantidade acima de dois é simplesmente chamado de muitos e outros que fazem grupos de dois em dois, pois para eles não há necessidade de contagem de muitos objetos. A figura abaixo traz um cronograma com o surgimento da escrita na história em relação a alguns povos abordando um espaço de tempo entre 3.500 A/C e 1500 D/C. Esquema cronológico representando a extensão de algumas civilizações antigas e medievais. (Boyer, 1974, p.2) De acordo com o esquema proposto acima podemos verificar que a escrita aparece primeiro, mas nem Heródoto nem Aristóteles se arriscaram a determinar as origens da Matemática já que não havia registros que pudessem justificar. Só para registro em nosso trabalho, mas sem almejar uma definição histórica para a origem da Matemática vamos considerar, levando em conta os desenhos e figuras do homem neolítico como precursores da geometria, como ordem de surgimento a Geo metria, a Aritmética e a Álgebra. Não estamos estancando datas ou eras já que o surgimento e ou a criação de ideias são oriundas de manifestações anteriores, ou seja, elas coexistiram e se aprimoraram muitas das vezes se justificando e consolidando. Segundo a psicologia o que nos difere dos animais é a linguagem e para Boyer ela foi “essencial para que surgisse o pensamento matemático abstrato” (p.3). Ele exemplifica citando a relação entre medidas usadas hoje com o corpo humano. A tendência da linguagem de se desenvolver do concreto para o abstrato pode ser percebida em muitas das medidas de comprimento em uso atualmente. A altura de um cavalo é medida em “palmos” e as palavras “pé” e “ell” (ou elbow, cotovelo) também derivaram de partes do corpo. (BOYER, 1974, p.3) Mas estas relações podem não ser fáceis de serem compreendidas. As simbologias utilizadas podem não ter uma correspondência na língua atual o que impede sua compreensão. Podemos citar neste caso as dificuldades encontradas para entender as escr itas cuneiformes em documentos encontrados que datam 4.000 anos. No entanto Boyer afirma que houve uma demora para que palavras fossem representativas de idéias numéricas já que era mais fácil utilizar símbolos concretos (marcas em formas de cunha em tabletas de barro, por exemplo) e ressalta a importância da língua para a consolidação do sistema decimal. Se o problema da linguagem não fosse tão difícil talvez sistemas rivais do decimal tivessem feitos maiores progressos. A base cinco, por exemplo, foi uma das que deixaram a mais antiga evidência escrita palpável; mas quando a linguagem se tornou formalizada, o dez já predominava. As línguas modernas são construídas quase sem exceção em torno da base dez, de modo que o número treze, por exemplo, não é descrito como três e cinco/e cinco, mas como três e dez.(idem, 1974, p.3) O uso da escrita cuneiforme em tabletes de barro (como citado acima) que eram cozidas ao sol diferente dos papiros egípcios fez com que fosse possível encontrar milhares dela, mas mesmo assim a escrita egípcia foi decifrada antes. A iconização na escrita mesopotâmica gradativamente tornou-se menor e transformou-se em combinações de cunhas. No Egito, de acordo com Lima & Moises (2000), a palavra aha significa uma montão e foi criada para conceber uma quantidade sem especificar o valor exato, ou seja, a representação do que chamamos hoje de incógnita começou através de uma palavra dando início a um desenvolvimento da linguagem Matemática. Assim, a partir dela ... o pensamento matemático começa a desenvolver uma linguagem própria, diferente da linguagem usual das palavras. É, portanto, com a Matemática egípcia, que a linguagem Matemática começa a se separar da linguagem usual. Trata-se da linguagem Matemática através de palavras, que apesar de ser um pequeno passo, quase despercebido por ainda usar palavras, foi importante no sentido de criar um vocabulário próprio – a língua da Matemática. A linguagem Matemática através de palavras é o primeiro passo da criação da linguagem especificamente Matemática para o qual são escolhidas as palavras que mais direta e claramente expressam movimentos Matemáticos.(LIMA e MOISES, 2000, p. 27) Dentro das características simbólicas a álgebra é um dos conteúdos que mais faz uso dela sendo aplicada tanto dentro da aritmética quanto da geometria. Inexplicavelmente a origem da palavra "álgebra" não se sujeita a uma etimologia clara como, por exemplo, a palavra "aritmética", que deriva do grego arithmos que significa "número", ela é uma variante latina da palavra árabe al-jabr ou al-jebr, usada no título de um livro, Hisab al-jabr w'almuqabalah, escrito em Bagdá por volta do ano 825 pelo matemático árabe Mohammed ibnMusa al Khowarizmi. De acordo com Boyer a tradução mais correta seria “ciência das equações” sendo que hoje ela possui um significado muito mais amplo o que dificulta uma definição mais objetiva levando também em consideração o contexto na qual ela pode ser definida. Além disso, Oliveira (2002) destaca o não consenso sobre o significado de Álgebra entre os estudiosos e evidencia o frequente conceito encontrado onde a Álgebra é entendida como cálculo literal ou uma generalização da Aritmética. Se tomarmos a definição o contexto da Matemática Acadêmica consultando ao “Atlas des Mathématiques” e à enciclopédia de Matemática (Newman, 1964), ela é objeto de estudo das propriedades dos conjuntos munidos de uma estrutura algébrica, como por exemplo, os grupos, anéis, corpos, espaços vetoriais. Uma estrutura algébrica consiste em leis de composição internas e externas, possuindo propriedades particulares, tais como comutatividade, distributividade, associatividade, existência do elemento neutro, existência de um inverso. Para os “não- matemáticos” o Dicionário Aurélio Junior define álgebra como “parte da Matemática que estuda as operações e os cálculos em que aparecem letras no lugar de alguns números” e ainda em outro dicionário de língua portuguesa encontramos que a álgebra “como a parte da Matemática em se que estudam as leis e processos formais de operações com entidades abstratas.” (Holanda, 1999). Etimologicamente, em árabe, al-ga-bãra, referia-se à ciência da equiparação ou da comparação. Podemos notar que, nos dicionários de língua portuguesa, aritmética refere-se ao número, enquanto na designação do que significa álgebra focaliza-se a etimologia da palavra, fazendo referência à resolução de equações. De acordo com Baumgart (1994) a álgebra surgiu no Egito quase ao mesmo tempo em que na Babilônia. Para problemas de equações lineares, os egípcios usavam um método de resolução consistindo em uma estimativa inicial seguida de uma correção final - um método ao qual os europeus posteriormente deram o nome um tanto abstruso de "regra da falsa posição". Nesses problemas, o número procurado era sempre representado pela mesma palavra: montão. Um problema do tipo: Um montão, sua metade, seus dois terços, todos juntos são 26. Diga- me: Qual é a quantidade? Era resolvido de um modo muito engenhoso utilizando esta regra do falso. O sistema de numeração egípcio, relativamente primitivo em comparação com o dos babilônios, ajuda a explicar a falta de sofisticação da álgebra egípcia. Os matemáticos europeus do século XVI tiveram de estender a noção indo-arábico de número antes de poderem avançar significativamente além dos resultados babilônios de resolução de equações A álgebra que entrou na Europa (via Liber abaci de Fibonacci e traduções) havia regredido tanto em estilo como em conteúdo. O semi-simbolismo (sincopação) de Diofanto e Brahmagupta e suas realizações relativamente avançadas não estavam destinados a contribuir para uma eventual irrupção da álgebra. Com a divulgação da Geometria de Descartes, em 1637, via-se um sistema de escritura que apresentava mecanismos inteiramente novos, em detrimento das escrituras retóricas, anteriores à matemática grega e medieval. Tem-se, portanto, [...] a passagem histórica progressiva entre uma escritura “grega” das matemáticas, puramente retórica, quer dizer, inscrita na língua comum, onde tudo se diz e se calcula em palavras, a uma escritura simbólica onde o texto é quase reduzido a uma concatenação de signos (letras, números, ou signos figurados), que é preciso de início decifrá- los, depois interpretar segundo regras sintáxicas e semânticas prescritas. (SERFATI, 1997, p. 5). No entanto, segundo Serfati (1997), antes mesmo de Descartes, ou seja, com François Viéte, no fim do século XVI, já se via um primeiro sistema de signos, unicamente constituído de letras, que revolucionava os princípios anteriores de aquisição de conhecimento, at é então inatingíveis, da matemática e das ciências. Neste sistema, Vié te “... introduziu a prática de se usar vogais para representar incógnitas e consoantes para representar constantes.” (EVES, 1997, p.309). Assim sendo, a escritura e o cálculo se reorganizavam em torno de uma convenção universal de interpretação, o que antes era em torno da geometria unida à retórica. Temos em Viéte (1540-1603) o precursor do avanço simbólico da álgebra. Até então a simbologia dentro dela vinha tendo um avanço bem modesto quando ele elaborou a resolução "geral" das equações cúbicas e quárticas. Ifrah destaca a importância de tal feito ao comenta que ... a álgebra não teria conhecido um tal avanço se esta generalização do número não tivesse sido acompanhada por uma descoberta igualmente fundamental, realizada em 1591 por François Viète e aperfeiçoada em 1637 por René Descartes: a notação simbólica literal ,( 1998, p. 237) O desenvolvimento da linguagem algébrica passou por três estágios até se tornar razoavelmente estável no tempo de Isaac Newton mesmo admitindo que até os dias de hoje ainda tenhamos símbolos diferentes para uma mesma representação. Os estágios foram, a forma Retórica, aquela em se utiliza o sistema verbal e logicamente o escrito na forma como se lê, o que era utilizado no Egito e na Babilônia; o Sincopado, que se abreviava algumas palavras, o que podemos considerar como uma fase de transição entre elas; e a simbólica. Moura e Souza utiliza de Fraile ao considerar que a linguagem retórica da álgebra é a ferramenta inicial, a mais básica, a linguagem ordinária e É com essa linguagem, retórica, que, após uma depuração e precisão dos termos para que se evitem ambigüidades, fazem-se maravilhas: “reflete-se, constroem-se teorias”. Tomemos, como exemplo, a lógica aristotélica, que serve não apenas para se comunicar, mas também como ferramenta de pensamento.(2005, p.4) Em seu livro História da álgebra (uma visão geral) da coleção Tópicos de História da Matemática John Baumgart (1994) retrata um exemplo típico de problemas encontrados em escrita cuneiforme, em tábuas de argila que remontam ao tempo do rei Hammurabi. A explanação, naturalmente, é feita na língua materna; e usa-se a notação decimal indo-arábica em vez da notação sexagesimal cuneiforme. A coluna à direita fornece as passagens correspondentes em notação moderna. Eis o exemplo: 1º) Comprimento, largura. Multipliquei comprimento por largura, obtendo assim a área: 252. Somei comprimento e largura: 32. Pede-se: comprimento e largura. x+y=k 2º) (Dado) 32 soma; 252 área. xy=P } ... (A) 3º) (Resposta) 18 comprimento; 14 largura. 4º) Segue-se este método: Tome metade de 32 (que é 16). k/2 16 x 16 = 256 (k/2)2 256 - 252 = 4 (k/2)2 - P = t2 } ... (B) A raiz quadrada de 4 é 2. 16 + 2 = 18 comprimento. (k/2) + t = x. 16 - 2 = 14 largura (k/2) - t = y. 5º) (Prova) Multipliquei comprimento por 14 largura. 18 x 14 = 252 área 18 ((k/2)+t) ((k/2)-t) = (k2 /4) - t2 = P = xy. Nota-se que na etapa (1º) o problema é formulado, na (2º) os dados são apresentados, na (3º) a resposta é dada, na (4º) o método de solução é explicado com números e, finalmente, na (5º) a resposta é testada. De acordo com Baumgart (1994) a receita acima é usada em vários outros problemas semelhantes tendo significado histórico e interesse atual por várias razões. Primeiro não é desta maneira que se resolver na escola nos dias atuais a situação (A), pois resolvemos a primeira equação para “y” em termos de “x”, substituir na segunda equação e, então, resolver a equação quadrática resultante em “x”, ou seja, utilizamos o método de substituição. Os babilônios também sabiam resolver sistemas por substituição, mas frequentemente preferiam usar seu método paramétrico. Ou seja, usando-se notação moderna, eles concebiam “x” e “y“ em termos de uma nova incógnita (ou parâmetro) t fazendo x=(k/2)+t e y=(k/2)-t. Então o produto xy = ((k/2) + t) ((k/2) - t) = (k/2)2 - t 2 = P levava-os à relação (B): (k/2)2 - P = t 2 Em segundo lugar, a álgebra grega (geométrica) dos pitagóricos e de Euclides seguia o mesmo método de solução, entretanto, em termos de segmentos de retas e áreas e ilustrada por figuras geométricas. Mais tarde depois, outro grego, Diofanto, também usou a abordagem paramétrica em seu trabalho com equações "diofantinas" dando início ao simbolismo moderno introduzindo abreviações de palavras e evitando o estilo um tanto intrincado da álgebra geométrica. Em terceiro lugar, os matemáticos árabes (inclusive al-Khowarizmi) não usavam o método empregado no problema acima; preferiam eliminar uma das incógnitas por substituição e expressar tudo em termos de palavras e números Outro exemplo que podemos citar é como ficaria a resolução da equação do segundo através da fórmula de Bháskara. Na linguagem algébrica retórica temos: Multiplique ambos os membros da equação pelo número que vale quatro vezes o coeficiente do quadrado e some a eles um número igual ao quadrado do coeficiente original da incógnita. A solução desejada é a raiz quadrada disso. Na linguagem algébrica sincopada: A equação que nós escreveríamos como era representada por ele na forma: “B in A quadratum plus C plano in A aequalia D solido”. Na linguagem algébrica simbólica: Nos dias atuais a utilização simbólica na Matemática tem caráter primordial onde técnica precede o compreender, onde o manipular símbolos, na maioria vezes seguindo uma série de regras que não fazem sentidos que acaba por dificultar a resolução de problemas de forma significativa. Mesmo considerando antes uma ordem supostamente cronoló gica da Geometria, Aritmética e Álgebra deixamos clara a relação intrínseca entre elas que de acordo com Lins e Gimenez (1997, p.10, 162) o ensino da aritmética e da álgebra não deve ser só articulado de forma interdisciplinar a um só tempo, mas também no cotidiano do aluno auxiliando a produzir significado. Muitos autores vêm retratando a concepção estruturalista dada ao ensino da álgebra onde o sintático predomina sobre a semântica dentro da linguagem Matemática. Apesar da ênfase dada a Álgebra voltamos a salientar que a linguagem Matemática não é só constituída pela mesma e que apesar de ser considerada uma língua própria, e para alguns pesquisadores como uma língua universal, não se pode dissociá- la de nossa língua materna conforme Machado (1993). Outros autores como Powell e Bairral (2006), Machado (1993, 1947), Teberosky e Tolchinsky (2007), Smole (1993), entre outros salientam e relacionam a importância da linguagem nas aulas, seja a língua materna ou a Matemática. Referências bibliográficas: BAUMGART, J. K.; TRAD. Hygino H.D.- História da álgebra (uma visão geral) São Paulo: Atual, 1994. – (Tópicos de história das matemáticas para uso em sala de aula) BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Trad. Elza F. Gomide. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1974. BRUNER, Jerome S. A cultura da Educação; trad. Marcos A.G. Domingues. – Porto Alegre: Artmed Editora, 2001. ______ . Realidade Mental, Mundos possíveis. Trad. Marcos A.G. Domingues. – Porto Alegre: Artmed Editora, 1997. ______ . Toward a Theory of Instruction. Cambridge, Massachusetts and London, England: Havard University Press, 1975. ______ . The narrative construction of reality. Critical Inquiry, Chicago, v. 8, p.1-21, 1991. EVES, H. 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