Experiência na disciplina Reflexões sobre a Prática Médica – Literatura e Medicina Ambulatório à tarde, um dos últimos pacientes de um dia exaustivo veio receber o resultado de uma biópsia de próstata – resultado maligno. O paciente, homem humilde de meia idade, indaga o médico: “mas esse negócio de tumor não é nada de câncer não, né doutor?” O médico responde que é câncer sim, em seguida procura explicar que não é dos piores, que existe tratamento curativo, mas o paciente já não ouve uma palavra. Diz que no momento não consegue entender nada e pede para que as explicações sejam dadas na presença da esposa dele. Vejo que ele está a ponto de chorar, mas se envergonha disso (afinal há mais outro médico e eu assistindo a consulta). Agita-se então, diz estar passando mal, “sufocando”, pede algo para beber ou algum remédio, qualquer ajuda. O médico diz que não tem remédio nenhum no ambulatório (fato verdadeiro) e que se ele está passando mal, terá de mandá-lo para a emergência para ser atendido. Situações como essa são diariamente presenciadas por estudantes de Medicina, provocando em alguns revolta, em outros compaixão, um leve inquietamento que em muitos médicos vai se dissolvendo ao longo do curso, sendo abafado pela prática. Na Faculdade não são legítimos os questionamentos dos “por quês” ou discussões de condutas alternativas, cada um age no que é, a seu ver, “o melhor para o paciente” e contra isso não há argumento que resista, quem ousará discordar das melhores intenções do doutor? Aprendemos no curso de Psicologia Médica, única disciplina reflexiva do curso médico, as diferenças entre o modelo paternalista (o médico decide), a reação a ele com o modelo informativo americano (o médico só informa) e a síntese dos dois, o modelo de decisão compartilhada. Isso permanece, no entanto, largamente aplicado aleatoriamente, sem nenhuma consciência do que está implícito em cada modelo. A disciplina eletiva “Reflexões sobre a Prática Médica – Literatura e Medicina” é uma continuação de reflexões e espaço para discussão introduzindo a visão da Literatura. Pensar as histórias clínicas como narrativas, essencialmente, me ajudou a compreender o caráter híbrido dessas histórias, meio científicas, meio pessoais. A pretensão científica se expressa nos termos médicos e na mensuração, tão necessária e ao mesmo tempo tão alienante se reducionista. Qualquer elaboração, por mais impessoal que pareça, é feita por uma pessoa, é uma visão, não uma verdade. Boa parte da inquietação sentida por mim ou por muitos outros ao examinar um paciente (5 estudantes, 5 descrições diferentes de um exame cardíaco e a frustração de não conseguirmos atingir o padrão perfeito, o “padrão ouro” do professor) se dissiparia se soubéssemos naquela época que as observações feitas por pessoas diferentes ou pela mesma pessoa em diferentes momentos são inconsistentes por natureza e que pontos de vista que muitas vezes não se excluem enriquecem um ao outro. Esse saber reconhecer diferentes pontos de vista, tão intuitivo no campo literário quando diversos atores narram a mesma cena de formas tão diferentes, perde-se facilmente em meio à racionalidade médica. 1 A própria existência de recursos terapêuticos além dos medicamentos ainda assombra alguns médicos. A Literatura nos fala de “milagres”, há espaço para o fantástico, para o imprevisto, para o desdobramento de significados com um nexo não científico. No modelo estrito da medicina baseada em evidência, as situações peculiares são desvios de uma curva normal, o insólito vira uma possibilidade estatística. Como responder com estatística a pacientes singulares que não querem saber se seu câncer tem 75% de sobrevida em 5 anos, mas se eles próprios estarão vivos?A resposta “não há resposta pronta” pode ser um pouco frustrante no começo da clínica, mas é mais honesta do que a resposta pronta estatística, nos convoca a construir uma abordagem junto com o paciente para aquele problema. Lendo textos em conjunto podemos avaliar diferentes posturas, criar e revisitar situações vividas, refinando e refletindo sobre nossa atuação médica. Voltando à situação inicial e a minha resposta a ela. Como estudante de medicina, não desejo criticar o médico abertamente, que considero um profissional razoavelmente preocupado com seus pacientes, começar uma discussão sobre impacto do diagnóstico de câncer, filosofar sobre o significado para um homem do câncer de próstata tampouco irá gerar frutos na situação, levar o paciente para a emergência lotada para ele ser rapidamente avaliado e dispensado me parece uma opção pior ainda. Enquanto o médico faz suas anotações no prontuário, digo ao paciente “sufocado” que conseguirei algo para ele, vou correndo na sala de procedimentos e peço para a enfermeira um copo de água, que levo para o paciente no ambulatório. Espero o paciente se recompor, pergunto se ele quer perguntar algo ou conversar, ele diz estar melhor e deixa o ambulatório abatido, mas um pouco mais calmo. Moral da história? A água possui propriedades terapêuticas? Efeito placebo? “Tudo passa no devido tempo?” No início da faculdade eu ficava eternamente entre a cruz e a espada em situações como essa, sem querer deixar de me identificar com minha classe – a classe médica, ao mesmo tempo deplorando o abismo quase intransponível criado entre ela e os pacientes, abismo que não se constituía completamente com os estudantes, desprovidos de autoridade médica. Minha atuação não mudou muito essencialmente, mas depois de tantas reflexões elaborei algumas respostas. À permanente pergunta de “será que eu agi certo?” contraponho as diferentes abordagens que consigo imaginar e o desfecho provável em cada uma delas. “Certo” do ponto de vista de quem? Oferecer água não é nenhuma conduta propriamente médica, meramente uma forma de oferecer amparo a uma situação em que o paciente encontra-se completamente desamparado. Embora eu não faça parte do planejamento terapêutico, é fundamental garantir não só a adesão ao tratamento por parte do paciente, mas o comprometimento de ambas as partes, um pacto de trabalho conjunto entre médico e paciente. Paciente moralmente aniquilado e médico irritado por sua incapacidade de resolver a situação são uma combinação explosiva de insucessos terapêuticos. Garantir o pacto é impossível, posso dizer que pude ao menos evitar que a situação se encaminhasse para um conflito aberto, prejudicial para os dois lados. E, diante dos possíveis finais literários que posso imaginar para a pequena situação, alguns bem trágicos, acho que escolhi o final mais próximo possível de um final feliz. Lígia Lorandi Ferreira Carneiro 2