Revisão: Recentes avanços em litíase urinária Recent advances in

Propaganda
166
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
Revisão: Recentes avanços em litíase urinária
Recent advances in urolithiasis
Vera Tostes e Lucio Ronaldo Cardoso
Resumo
A presente pesquisa é uma revisão não sistemática do estudo atual da
patogênese da urolitíase, nos últimos cinco anos, sobre os fatores mais
importantes envolvidos na litogênese, com ênfase nos cálculos de oxalato de
cálcio e os distúrbios clínico-metabólicos associados à urolitíase.
Vários fatores têm sido identificados na patogênese da urolitíase. Estudos
recentes sugerem que os cristais de oxalato de cálcio monoidratados se
ligam à superfície apical da célula epitelial renal, podendo ser internalizados.
A adesão dos cristais à célula renal epitelial é inibida por ânions específicos,
como glicosaminoglicanos, uropontina, nefrocalcina e citrato, que se ligam
à superfície do cristal.
Estudos sobre a identificação de moléculas no líquido tubular e na superfície
celular, que modulam a interação cristal-célula, assim como seu mecanismo
de ação, são fundamentais para uma melhor compreensão da patogênese
da urolitíase.
Abstract
This is an update study on the pathogenesis of urolithiasis. A non-systematic
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Hospital Universitário Clementino Fraga
Filho, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Endereço para correspondência:
Lucio Ronaldo Cardoso
Av Brigadeiro Trompowski, s/n. Subsolo
21941-590 Rio de Janeiro, RJ
Tel: (0xx21) 2562-2669
E-mail: [email protected]
Cálculo urinário. Urolitíase. Cristal
monoidratado de oxalato de cálcio.
Urinary stone. Urolithiasis. Calcium oxalate monohydrate crystal.
3-1377litiase.p65
166
literature review of the last five years-literature was performed, looking for the
most important factors involved in the disease, focusing on calcium oxalate stones
and clinical and metabolic diseases associated with urolithiasis.
Several factors have been identified in the pathogenesis of urolithiasis. Recent
studies suggest that calcium oxalate monohydrate (COM) crystals bind to the
apical surface of kidney epithelial cells and can be internalized. The adherence of
crystals to renal epithelial cells is inhibited by specific urinary anions, such as
glycosaminoglycans, uropontin, nephrocalcin and citrate, each of which binds to
the crystalline surface.
08/10/01, 15:58
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
167
Tostes V & Cardoso LR – Litíase urinária
Studies on the identification of molecules in tubular fluid and on the cell
surface that modulate crystal-cell interaction, as well as their mechanism
of actio, are paramount for a better understanding of the pathogenesis of
nephrolitiasis.
Introdução
Incidência
A litíase de trato urinário é uma doença conhecida
há vários séculos. O registro mais antigo de cálculo
urinário é de 4000 a 5000 anos AC, encontrado no túmulo de um jovem de 16 anos do sexo masculino em
El Amrah, no Egito.1
Nos países industrializados, a urolitíase é uma das
doenças mais comuns de trato urinário. Embora a taxa
de mortalidade seja baixa, está normalmente associada a um quadro clínico muito doloroso.1 A urolitíase é
a terceira maior afecção de trato urinário após as infecções e doenças da próstata, atingindo indivíduos
jovens e caracterizada por recorrência em 50% dos casos.2-4 A ocorrência da urolitíase aumentou consideravelmente desde a 2ª Guerra Mundial, atingindo 10%
da população masculina e 4%, da feminina, numa proporção aproximada de 2:1.1,2,4,5 A maior incidência ocorre entre a terceira e a quinta décadas, com idade média de 45 anos, embora 3,4 % dos pacientes relatem
início da doença da primeira até a segunda décadas
de vida.2,4
Do trato urinário, o rim é o local mais afetado em
57,8% dos casos. Os cálculos radiopacos são encontrados em 86,4%, e os radiotransparentes, em 12,2%.4
Aproximadamente 65% dos cálculos são espontaneamente eliminados.1 Dados clínicos estatísticos comprovam que, nos últimos anos, a nefrolitíase tem mostrado um índice de morbidade crescente, tornando-se um
problema social.6,7 Por esse motivo, esforços devem ser
direcionados no sentido de minorar a formação e o
crescimento dos cálculos urinários na população.
Epidemiologia
Vários fatores estão envolvidos na predisposição
de doença renal calculosa: idade; sexo; raça; clima;
geografia; profissão; classe social; alimentação; e outras particularidades genéticas.8,9 Quando os mecanismos de inibição estão reduzidos ou ausentes, fatores
físico-químicos que governam a litogênese transformam
3-1377litiase.p65
167
a urina de saturada em supersaturada, levando à nucleação, à cristalização e ao crescimento do cristal.8 A
ingestão hídrica é um fator determinante da saturação
urinária, influenciando sobremaneira a agregação dos
cristais.
O aumento do consumo de carne e a redução da
ingestão de vegetais elevaram a prevalência de doença renal em 45% entre 1958 e 1977. A nutrição, segundo diversos autores, é um fator decisivo na formação
de cálculos renais.3,10
Patogênese
A formação de cálculos no trato urinário é um processo multifatorial que pode envolver um balanço entre os promotores da formação de cálculo e uma redução absoluta ou relativa de seus inibidores. 11 Três
mecanismos principais estão envolvidos na formação
de cálculos urinários:12
1. relação entre a concentração urinária de substâncias
precipitadoras e a solubilidade;
2. presença de substâncias urinárias promotoras da
cristalização e da agregação;
3. presença dos inibidores urinários na formação e
agregação de cristais.
Embora a maneira exata de como o cálculo se forma ainda seja desconhecida, vários eventos são importantes nesse processo de formação. A supersaturação é um pré-requisito necessário, embora não
suficiente. Os cristais podem nuclear com baixos níveis de supersaturação na presença de locais de nucleação, processo conhecido como nucleação heterogênea. A nucleação de cristais não levará à formação
de cálculos, a menos que os cristais sejam retidos no
rim. O agregado retido pode, então, formar o núcleo
do cálculo.13
Saturação urinária
A urina dos indivíduos normais é supersaturada
em relação ao oxalato de cálcio, ao fosfato, à hidroxiapatita e à bruchita. O grau de supersaturação é, usualmente, maior em pacientes com cálculos e pode variar
em graus. A saturação pode ocorrer na área de metas-
08/10/01, 15:58
168
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
Tostes V & Cardoso LR – Litíase urinária
Figura – Seqüência de eventos entre a interação dos COMcr e as células epiteliais (modificado de Lieske et al23).
A figura demonstra que a adesão dos cristais à célula epitelial é inibida por ânions solúveis específicos como o citrato, os GAGs e as
glicoproteínas, que atuam de forma competitiva, ligando-se aos cristais e impedindo sua internalização. Havendo falha desse sistema, o cristal
é englobado pela célula epitelial, favorecido pelo ADP e pelos fatores de crescimento epidérmico (EGF, além de ser transformador do crescimento
(TGFβ). A proteína de Tamm-Horsfall (THP) atua na tentativa de inibir a adesão dos cristais à célula epitelial. Uma vez dentro da célula,
ocorrerá uma resposta celular com alteração do citoesqueleto, da expressão gênica e proliferação de fibroblastos. Pode ocorrer, nesse momento,
a apoptose celular, a destruição do cristal ou a expulsão do mesmo por mecanismos ainda não elucidados.
tação, em que a precipitação acontece somente quando induzida pela epitaxia (crescimento orientado de
um cristal sobre a superfície do outro) ou pela nucleação heterogênea, ou na região instável em que ocorre
a precipitação espontânea. O limite entre as duas áreas pode ser chamado de produto de formação espontâneo e, não sendo um número fixo, dependerá da
duração da incubação.12
Crescimento do cristal e agregação
O termo agregação descreve o processo de ligação dos cristais, resultando na formação de um aglomerado. A agregação do oxalato de cálcio e do fosfato de cálcio in vitro ocorre prontamente quando a
solução está supersaturada.14,15
Vários trabalhos têm sido realizados procurando identificar moléculas extracelulares que possam
alterar a adesão de cristais monoidratados de oxalato de cálcio (calcium oxalate monohydrate crystals
– COMcr) à superfície das células renais epiteliais
na luz do néfron.16-18 Vários GAGs sulfatados e nãosulfatados encontrados na urina podem bloquear a
aderência dos COMcr. O condrotin sulfato A e B, o
heparan sulfato, a heparina e o ácido hialurônico
inibem ou diminuem essa aderência.16
A interação entre um COMcr e uma célula epitelial renal parece ser regulada, pelo menos em parte,
3-1377litiase.p65
168
pela carga elétrica presente na superfície de cada
uma delas. Outros ânions extracelulares também reduziram a aderência dos COMcr na superfície celular. O citrato, também um poliânion, bloqueia a aderência, quando presente em concentração superior
a 250 µmol/l. Os ácidos poliaspártico ou poliglutâmico, potentes inibidores do crescimento dos COMcr,
bloqueiam sua adesão às células em concentração
maior que 0,007 µmol/l e 0,02 µmol/l, respectivamente.16,19 O polivinil sulfato e o dextran sulfato, que
não são encontrados na urina, também bloqueiam a
ligação do cristal, enquanto o sulfato de sódio é ineficaz.17 A interação célula e cristal é modificada pelos poliânions em sistemas experimentais.20
O cristal se comporta como se tivesse uma carga
positiva, por meio da qual se liga às moléculas eletricamente negativas que emergem da superfície apical da célula tubular. A observação de que a adesão
dos COMcr às células é inibida por ânions solúveis
específicos, como o citrato, os GAGs e as glicoproteínas (ligam-se ao cristal como a certos cátions e lectinas que aderem à superfície apical), são consistentes16,17 (Figura).
A agregação pode ser o mecanismo que distingue uma simples cristalúria, que ocorre na maioria
dos indivíduos normais, daquela dos formadores de
cálculo. 12,21
08/10/01, 15:58
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
169
Tostes V & Cardoso LR – Litíase urinária
Inibidores da cristalização
A urina é usualmente supersaturada, em relação a
vários sais formadores de cálculo, e contém cristais. Com
isso, as condições para a formação de cristais, a agregação e a formação de cálculos estão naturalmente prontas. Assim, a principal pergunta não é por que os cálculos se formam, mas sim por que não se formam mais
freqüentemente. A cristalização consiste de três ações
separadas, mas relacionadas: nucleação, crescimento e
agregação. Vários íons, moléculas e macromoléculas têm
sido estudados e podem agir como inibidores ou promotores da cristalização. Uma explicação pode ser a presença de vários inibidores na urina para ambos os processos de formação e agregação. Uma molécula pode ser
chamada de inibidora quando interfere num desses processos – nucleação, agregação e crescimento –, diminuindo a possibilidade de um cristal iniciar a cadeia de eventos que, eventualmente, resultará em cálculo.12 Inibidor
é qualquer substância capaz de parar, desativar ou reduzir um ou mais estágios da cristalização de um determinado tipo de mineral.22 Os inibidores pertencem a vários
grupos moleculares: íons (Mg++, Al+++); moléculas pequenas (citrato, pirofosfato); macromoléculas; glicosaminoglicanos (GAGs) – condroitin sulfato, dermatan sulfato,
queratan sulfato, heparan sulfato, heparina; ácido hialurônico; glicoproteínas; nefrocalcina; uropontina; bikunina; proteína de Tamm-Horsfall; entre outros.
Experimentos utilizando solução salina específica
de laboratório e urina de indivíduos normais mostraram que as concentrações de cálcio e oxalato, nas quais
os cristais começam a se formar, são, significativamente, maiores na urina de indivíduos normais do que na
solução salina, evidenciando que a urina contém substâncias que retardam a nucleação do cristal.13,23 Estudos realizados por Robertson et al24 concluíram que a
deficiência na atividade inibitória urinária pode predispor os indivíduos à cristalização, principalmente se
combinada com a supersaturação.
Promotores da cristalização
Há alguns anos, dava-se ênfase ao suposto papel
dos compostos orgânicos urinários que atuariam como
ativadores da formação de cálculos. Isto foi baseado
no achado de que proteínas urinárias se ligavam ao
cálcio e poderiam induzir, sob certas condições, à calcificação in vitro.12 Dentre as substâncias promotoras,
destacam-se o cálcio, o ácido úrico, o fosfato, o oxalato e alguns GAGs como, por exemplo, o condroitin
sulfato, que parece ter ação promotora.25
3-1377litiase.p65
169
Tipos de cálculos
Os cálculos renais podem ser classificados em quatro categorias principais pela sua composição química. Aproximadamente, 80% a 90% dos cálculos são
compostos de oxalato de cálcio,26 fosfato de cálcio ou
mistura dessas substâncias.27 O cristal de oxalato de
cálcio é o mais comumente encontrado. Ele pode se
precipitar sob a forma de oxalato de cálcio monoidratado ou didratado, não estando claro como a composição da urina facilita a cristalização de cada um
desses cristais. Os de cálcio didratado são mais freqüentes e mais solúveis que os monoidratados. A cristalização do oxalato de cálcio é influenciada pela concentração do cálcio e do oxalato, bem como pela
nucleação, seja ela homogênea ou heterogênea.28 O
oxalato de cálcio é insolúvel entre pH urinário 4,5 e
8. Assim, a cristalização pode ocorrer tanto em urina
ácida quanto alcalina. Manobras modificando o pH
urinário não alteraram a precipitação do oxalato de
cálcio de modo significativo.29 Pode-se concluir, então, que o controle da cristalização do oxalato de cálcio deve ser dirigido à redução dos íons livres de
oxalato e de cálcio, além da elevação da concentração dos inibidores da cristalização.26
Aproximadamente 2/3 do ácido úrico, formado diariamente como produto final do metabolismo das
purinas, são excretados pelos rins. O ácido úrico é
pouco solúvel nos líquidos biológicos e se precipita
em condições de redução de fluxo urinário, pH ácido
e supersaturação urinária de urato.27 Representa 10%
dos cálculos urinários.30
O cálculo de estruvita ou fosfato triplo amoníaco
magnesiano tem uma prevalência em torno de 5-10%.30
Sua precipitação ocorre em urina alcalina e em conseqüência da ação de bactérias produtoras de urease.20
A cistina é encontrada em cerca de 1% a 2 % dos
cálculos urinários, e a precipitação é influenciada por
sua concentração e pelo pH urinário. O pH alcalino,
em torno de 7,8 a 8, mantém sua solubilidade.26,30
Existem ainda vários tipos de cálculos, todos raros
como os de xantina, ácido orótico, oxipurinol, silicato, com uma prevalência global em torno de 1%.27
Distúrbios clínico: metabólicos associados à urolitíase
Hipercalciúria
A hipercalciúria idiopática é um distúrbio metabólico freqüentemente encontrado, acometendo 50%
dos pacientes portadores de cálculo renal. Ela é de-
08/10/01, 15:58
170
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
Tostes V & Cardoso LR – Litíase urinária
finida como a elevada excreção urinária de cálcio
na vigência de normocalcemia. De um modo geral,
pode ser atribuída, pelo menos, a um dos seguintes
mecanismos: 31
1. aumento primário da absorção intestinal de cálcio
(hipercalciúria absortiva);
2. redução da reabsorção tubular renal de cálcio (hipercalciúria renal);
3. perda renal primária de fosfato;
4. aumento primário na síntese de vitamina D;
5. distúrbios tubulares renais combinados;
6. aumento primário na reabsorção óssea.
A litíase cálcica é responsável por 80% das nefrolitíases, e a hipercalciúria é responsável pelo defeito
metabólico mais freqüente, atingindo 50% a 70% dos
pacientes. As hipercalciúrias podem ser classificadas,
segundo suas causas em:30 secundária à hipercalcemia e secundária à causa conhecida, como acidose;
expansão de volume; diuréticos de alça; depleção de
fósforo; corticosteróide; imobilização prolongada; e
hipertiroidismo.
Hipercalciúria idiopática
Quando a elevada absorção não depende da ingestão de cálcio, denomina-se hipercalciúria absortiva
intestinal tipo I, e quando só ocorre em vigência de
ingestão excessiva de cálcio, chama-se hipercalciúria
absortiva intestinal tipo II. Quando existe um defeito
intrínseco na reabsorção tubular de cálcio, a perda de
cálcio denomina-se hiperalciúria renal.31
Devido à perda crônica de cálcio na urina, há
uma redução transitória no nível de cálcio circulante, estimulando a secreção de PTH. O PTH estimula
a hidroxilação renal da vitamina D com conseqüente liberação de seu metabólito ativo 1,25(OH)2D3,
que, por sua vez, leva a um aumento secundário na
absorção intestinal de cálcio. Por ação do PTH, há
uma mobilização do cálcio ósseo. O monofosfato
cíclico de adenosina 3’5’(AMPc) é um mediador do
PTH, mas sua alteração não se mostrou específica
na hipercalciúria renal.31
Na prevenção de litíase cálcica, o fator primordial
é o aumento da ingestão hídrica de modo a obter um
volume urinário superior a 2 l/dia. Em caso de hipocitratúria associada, pode-se prescrever citrato de potássio. Devem-se evitar dietas muito pobres em cálcio,
pois podem ter efeito deletério sobre a mineralização
e sobre a litogênese, devido ao aumento de absorção
intestinal de oxalato.30
3-1377litiase.p65
170
Hiperoxalúria
O oxalato é o produto final do metabolismo do
ácido glioxílico e do ácido ascórbico. Há duas formas
principais de hiperoxalúria:27
1. primária ou hereditária: doença rara causada por
uma deficiência funcional na atividade da enzima
hepática alanina peroxissômica glicosilado aminotransferase, levando a aumento da síntese de oxalato e de glicolato;19
2. entérica: condição na qual várias doenças crônicas
ou procedimentos cirúrgicos intestinais associamse a uma má-absorção de gorduras, levando a uma
hiperabsorção do oxalato da dieta.27
Hipocitratúria
O citrato tem dois efeitos importantes na prevenção da litíase renal por cálcio: efeito solubilizante dos
sais de cálcio e efeito inibidor da cristalização desses
sais. A excreção do citrato sofre a influência de vários
fatores: idade do indivíduo; sexo; conteúdo de ácido
cítrico e protéico da dieta; exercícios físicos; e estado
ácido-básico sistêmico. A influência da idade parece
refletir a atuação dos hormônios sexuais sobre a citratúria. Aparentemente, a urina dos idosos com mais de
60 anos e das crianças tem menos citrato que a dos
adultos. As mulheres excretam, em média, mais citrato
que os homens da mesma faixa etária. A maior excreção de citrato pelas mulheres é atribuída aos estrogênios, o que, presume-se, contribui para a menor incidência de litíase no sexo feminino. A dieta rica em
proteína causa redução da citratúria, assim como os
exercícios físicos forçados, por aumentarem a excreção ácida que induz a um aumento da reabsorção tubular do citrato. A ingestão exagerada de sódio também reduz a citratúria.32
Xantinúria
Distúrbio raro, autossômico recessivo, hereditário, caracterizado por uma deficiência total da atividade da enzima xantina-oxidase, é responsável pela
conversão da hipoxantina e da xantina em ácido úrico. Em conseqüência, os níveis séricos e urinários
de ácido úrico são baixos e ocorre a excreção urinária de xantina e hipoxantina. Ela é observada em
1% dos casos de litíase, e os cálculos puros são radiotransparentes. 33
Acidose tubular renal (ATR)
As nefropatias tubulares constituem um grupo he-
08/10/01, 15:58
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
171
Tostes V & Cardoso LR – Litíase urinária
terogêneo de doenças renais, envolvendo uma série
de distúrbios eletrolíticos, ácido-básicos, metabólicos
e/ou endócrinos. Elas afetam mecanismos de acidificação e concentração urinária, como os relacionados
ao controle do transporte de íons e oligoelementos
pelo néfron. A ATR é a mais importante desordem do
grupo das nefropatias tubulares, caracterizada por acidose metabólica hiperclorêmica na ausência de insuficiência glomerular. Ela compreende um conjunto
de distúrbios tubulares caracterizados, basicamente, por uma disfunção na reabsorção de bicarbonato
e/ou na excreção de hidrogênio. As ATRs são classificadas em quatro grandes tipos: ATR tipo I (distal);
ATR tipo II (proximal); ATR tipo III (mista); e ATR
tipo IV. A acidose intracelular, responsável pela hipocitratúria e pela hipercalciúria, associada ao pH
urinário alcalino, propicia a nefrolitíase e a nefrocalcinose. Parece ocorrer também hipomagnesemia
e hipomagnesiúria, que contribuem como fatores litogênicos secundários, já que o magnésio é um inibidor da formação de cálculo.34
Hiperparatiroidismo primário
urinário. Ele apresenta em sua composição fosfato
amoníaco magnesiano (estruvita) e carbonato apatita;
as bactérias associadas são produtoras de urease.37 A
urease hidrolisa a uréia em NH3 e CO2. A hidrólise de
NH3 e NH4OH resulta em acentuada elevação do pH
urinário; a hidratação de CO2 para ácido carbônico
(H2CO3) e sua subseqüente dissociação em carbonato
(CO3=) em meio alcalino acarretam a precipitação de
estruvita e carbonato apatita em torno do germe que,
por conseguinte, torna-se parte integrante do cálculo.
Os germes mais comumente considerados produtores de
urease são: proteus, providencia, klebsiella e serratia.33
Cistinúria
É uma doença hereditária, autossômica recessiva,
de penetrância incompleta, que se expressa por defeito na “borda em escova” dos túbulos contornados proximais, com diminuição na reabsorção de cistina e
outros aminoácidos dibásicos (lisina, arginina e ornitina). Na segunda década de vida, ocorre um aumento
da excreção de cistina na urina havendo, então, formação de cálculos.38
O hiperparatiroidismo é a causa mais freqüente de
hipercalcemia, sendo encontrado em 1% a 5% dos casos de litíase.35 No hiperparatiroidismo, ocorre uma
hipersecreção do hormônio da paratiróide (PTH), resultando em hipercalcemia. Embora o PTH estimule a
reabsorção tubular de cálcio, a excreção urinária de
cálcio pode ser muito elevada.36 O PTH aumenta o
transporte tubular renal de cálcio pela estimulação da
adenil ciclase, conseqüentemente aumentando a produção de AMP cíclico. Outras anormalidades bioquímicas encontradas são a hipofosfatúria, a hipercloremia, a elevação da fosfatase alcalina e a redução do
bicarbonato sérico.35
O ácido úrico é o maior produto final do metabolismo das purinas. É pouco solúvel nos líquidos orgânicos, precipita-se quando o fluxo urinário é baixo,
quando o pH é ácido e quando ocorre supersaturação
urinária de urato.27 Um quarto de sua excreção é por
via entérica, e 3/4, por via urinária. Os cálculos de
ácido úrico são radiotransparentes e podem não ser
identificados em radiografias simples de abdômen, a
menos que estejam misturados a sais de cálcio ou de
cistina.39 A ingestão excessiva de purinas e as doenças
linfo e mieloproliferativos são os distúrbios mais freqüentes que levam à hiperuricosúria.33
Infecção do trato urinário (ITU)
Avaliação e tratamento do paciente litiásico
A litíase do trato urinário pode ser causa ou conseqüência de processo de estase urinária, associando-se à ITU. A presença de cálculo no trato urinário,
conseqüente ao processo obstrutivo parcial ou total
ou à estase urinária (associados ao processo inflamatório da mucosa local), pode levar à proliferação
de determinado agente etiológico e conseqüente
ITU, muitas vezes potencializada por distúrbios metabólicos associados.
O cálculo coraliforme, que constitui 10% a 20% dos
casos de litíase, está relacionado às infecções do trato
3-1377litiase.p65
171
Hiperuricosúria
A avaliação do paciente litiásico envolve essencialmente a identificação do distúrbio metabólico e
as anomalias que envolvem o trato urinário. A anamnese minuciosa e a investigação laboratorial (exames de sangue, urina e radiológicos) são passos essenciais para o diagnóstico da litíase e de suas
prováveis causas.33
O tratamento deve ser inicialmente dirigido ao controle das manifestações agudas, e, assim que o diagnóstico etiológico seja estabelecido, deve-se iniciar o
tratamento específico.33
08/10/01, 15:58
172
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
Tostes V & Cardoso LR – Litíase urinária
Conclusão
A complexidade das substâncias presentes na urina e as múltiplas condições de saturação urinária trabalham juntas no processo de cristalização.36 Atuar sobre um desses fatores ou sobre ambos pode reduzir o
risco da formação de cristais.
O processo de cristalização é multifatorial, e fatores como a hipercalciúria, hiperuricosúria e a deficiência dos inibidores da formação e da agregação de
cristais predispõem à formação de cálculos.2,10 O fator nutricional parece ser decisivo tanto na agregação dos cristais2,4,5,7,40 quanto na atuação dos inibidores.4,41 Vários estudos ainda devem ser realizados
para determinar o papel da dieta na inibição urinária e se alterações dietéticas podem restaurar o balanço entre promotores e inibidores da cristalização.5
Particularidades genéticas, clima, profissão e classe
social também estão envolvidos no processo da formação calculosa.8,9
Os cristais que formam o núcleo na luz do néfron
podem ser retidos no rim para formar cálculos pela
ligação à superfície apical das células tubulares, levando à endocitose. Essa nova descoberta sugere que
fatores no líquido tubular que regulam a interação célula-cristal às moléculas específicas na superfície celular podem ser um determinante crítico na descoberta
do mecanismo que leva à nefrolitíase,17 para que, num
futuro próximo, possa-se erradicar esse mal.
Referências
1.
Baker PW, Rofe AM, Bais P. Idiopathic calcium oxalate
urolithiasis and endogenous oxalate production. Critical
Rev Clin Lab Scienc 1996;33(1):39-82.
2.
Joual A, Rais H, Rabii R, el Mrini M, Benjelloun S.
Epidemiology of urinary lithiasis. Ann Urol 1997;31(2):80-3.
3.
McDonald MW, Stoller ML. Urinary stone disease: a practical
guide to metabolic evaluation. Geriatrics 1997;52(5):38-40;4952;55-6.
4.
Trinchieri A, Rovera F, Nespoli R, Curò A. Clinical
observations on 2086 patients with upper urinary tract stone.
Arch Ital Urol Androl 1996;68(4):251-62.
5.
Laerum E. Urolithiasis in clinical practice: ocurrence,
etiology, investigation and preventive treatment. Tidsskr Nor
Laegeforen 1996;116(24):2897-902.
6.
Curhan GC. Dietary calcium, dietary protein and kidney stone
formation. Miner Electrolyte Metab 1997;2(3-6):261-4.
7.
Kmiecik J, Kucharska E, Suowicz W, Ochmanski W. Etiology
3-1377litiase.p65
172
and pathogenesis of urolithiasis. Przegl Lek 1997;54(3):173-9.
8.
Ekane S, Wildschytz T, Simon J, Schulman CC. Urinary
lithiasis: epidemiology and physiopathology. Acta Urol Belg
1997;65(3):1-8.
9.
Hesse A, Siener R. Current aspects of epidemiology and
nutrition in urinary stone disease. World J Urol
1997;15(3):165-71.
10. Jaeger Ph, Hess B, Takkinen R, Zipperle L. Nutritional
determinants of nephrolithiasis. Advanc Nephrol
1995;24:217-24.
11. Perrone HC, Toporovski J, Schor N. Urinary inhibitors of
crystallization in hypercalciuric children with hematuria
and nephrolithiasis. Pediatr Nephrol 1996;10:435-7.
12. Fleisch H. Inhibitors and promoters of stone formation.
Kidney Intern 1978;13:361-71.
13. Worcester EM. Inhibitors of stone formation. Semin in
Nephrol 1996;16(5):474-86.
14. Hansen NM, Felix R, Bisaz S, Fleisch H. Aggregation of
hydroxyapatite crystals. Biochim Biophys Acta
1976;451:549-59.
15. Robertson WG, Peacock M. Calcium oxalate crystalluria
and inhibitors of crystallization in recurrent renal stone
formers. Clin Sci 1972;43:499-506.
16. Lieske JC, Leonard R, Toback FG. Adhesion of calcium oxalate
monohydrate crystals to renal epithelial cells is inhibited by
specific anions. Am JPhysiol 1995;268:F604-F12.
17. Lieske JC, Toback FG. Interaction of urinary crystals with
renal epithelial cells in the pathogenesis of nephrolithiasis.
Semin Nephrol 1996;16(5):458-73.
18. Lieske JC, Walsh-Reitz MM, Toback FG. Calcium oxalate
monohydrate crystals are endocytosed by renal epithelial cells
and induce proliferation. Am J Physiol 1992;262:F622-F30.
19. Nishiura JL, Heilberg IP, Schor N. Hiperoxalúria. In: Schor
N, Heilberg IP, ed. Calculose renal: fisiopatologia
diagnóstico tratamento. São Paulo: Editora Sarvier; 1995.
p. 61-9.
20. Mandel NS, Mandel GS, Hasegawa AT. The effect of some
urinary stone inhibitors on membrane interaction potentials
of stone crystals. J Urol 1987;138:557-62.
21. Robertson WG, Peacock M, Nordin BEC. Calcium crystalluria
in recurrent renal stone-formers. Lancet 1968;21-4.
22. Daudon M, Hennequin C, Bader C, Jungers P, Lacour B,
Drüecke T. Inhibitors of crystallization. Advanc Nephrol
1995;24:167-216.
23. Pak CYC, Holt K. Nucleation and growth of brushite and
calcium oxalate in urine of stone formers. Metabolism
1976;25:665-73.
24. Robertson WG, Peacock M, Marshall RW. SaturationInhibition index as a measure of the risk of calcium oxalate
stone formation in the urinary tract. N Engl J Med
1976;294:249-52.
25. Michelacci YM, Boim MA, Bergamaschi CT, Rovigatti RM,
Schor N. Possible role for chondroitin sulfate in urolithiasis:
08/10/01, 15:58
J Bras Nefrol 2001;23(3):166-73
173
Tostes V & Cardoso LR – Litíase urinária
in vivo studies in an experimental model. Clin Chim Acta
1992;208:1-8.
26. Coelho STSN. Físico química da litogênese. In: Schor N,
Heilberg IP. Calculose renal: fisiopatologia, diagnóstico,
tratamento. 2nd ed. São Paulo: Editora Sarvier; 1995. p. 6-12.
27. Nakano M, Kainer G, Foreman JW, Chan JCM. Renal calculi.
In: Barakat AY, ed. Renal disease in children: clinical
evaluation and diagnosis. New York: Springer-Verlag; 1989.
p. 341-5.
28. Coe FL, Parks JH. Physical chemistry of calcium stone
disease. In: Coe FL, ed. Nephrolithiasis: pathogenesis and
treatment. 2nd ed. Chicago: Year Book; 1988. p. 38-58.
29. Coe FL, Parks JH, Asplin JR. The pathogenesis and treatment
of kidney stones. N Engl J Med 1992;327(16):1141-52.
30. Leonetti F, Lechevallier E, Dussol B, Berland Y. Lithiase
urinaire. La Revue du Praticien. 1996;1557-67.
31. Heilberg IP, Schor N. Hipercalciúria idiopática. In: Schor N,
Heilberg IP. Calculose renal: fisiopatologia, diagnóstico,
tratamento. 2ª ed. São Paulo: Editora Sarvier; 1995. p. 43-51.
32. Rebelo MAP. Hipocitratúria. In: Schor N, Heilberg IP, eds.
Calculose renal: fisiopatologia, diagnóstico, tratamento. São
Paulo: Editora Sarvier; 1995. 105-13.
33. Polinsky MS, Kaiser BA, Baluarte HJ. In: Gruskin AB,
Sheldon CA, Churchill BM, eds. Nefrologia pediátrica e
bases terapêuticas em urologia pediátrica. Editora
Interlivros, Rio de Janeiro; 1988. p. 149-77.
34. Andrade OVB, MelloVR, Toporovski J. acidose tubular
renal. In: Schor N, Heilberg IP, eds. Calculose renal:
fisiopatologia, diagnóstico, tratamento. 2ª ed. São Paulo:
Editora Sarvier; 1995. p. 87-103.
3-1377litiase.p65
173
35. Heilberg IP, Schor N. Hipercalciúria e hipercalcemia. In:
Schor N, Heilberg IP. Calculose renal: fisiopatologia,
diagnóstico, tratamento. 2ªed. São Paulo; 1995. p. 37-41.
36. Coe FL, Favus MJ. Disorders of stone formation. In:
Brenner BM, Rector FC, eds. The Kidney. 3th ed.
Philadelphia; 1986. p. 1403-42.
37. Andrade OVB, Chinelato MMR. Litíase e infecção do trato
urinário. In: Schor N, Heilberg IP, eds. Calculose renal:
fisiopatologia, diagnóstico, tratamento. 2ª ed. São Paulo:
Editora Sarvier; 1995. p. 77-85.
38. Gandolpho L, Heilberg IP, Schor N. Cistinúria. In: Schor
N, Heilberg IP, eds. Calculose renal: fisiopatologia,
diagnóstico, tratamento. 2ª ed. São Paulo: Editora Sarvier;
1995. p. 71-6.
39. Pinheiro ME, Schor N. Nefrolitíase por ácido úrico. In: Schor
N, Heilberg IP, eds. Calculose renal: fisiopatologia, diagnóstico,
tratamento. São Paulo: Editora Sarvier; 1995. p. 53-9.
40. Thomas WC, Howard JE. Studies on the mineralization
propensity of urine from patients with and without renal
calculi. Trans Assoc Am Physicians 1959;72:181-7.
41. Pak CYC, Hayashi Y, Finlayson B, Chu S. Estimation of the
state of saturation of brushite and calcium oxalate in urine:
a comparison of three methods. J Lab Clin Med 1977;89:891.
Última versão em 15/01/2001. Aceito em 31/5/2001.
Fonte de financiamento e conflito de interesses inexistentes.
08/10/01, 15:58
Download