As alternâncias de diátese e a expressão da estrutura de argumentos no português Helio Roberto de Moraes1, Bento Carlos Dias-da-Silva 2 1,2 Centro de Estudos Lingüísticos e Computacionais da Linguagem - Faculdade de Ciências e Letras - Universidade Estadual Paulista (UNESP) Caixa Postal 174 – 14.800-901 – Araraquara – SP – Brasil [email protected],[email protected] Resumo. Este trabalho objetiva sistematizar, para o português do Brasil, os principais tipos de alternância sintática de que os agumentos do verbo participam. Destacam-se três classes: as alternâncias que acarretam a redução da transitividade do verbo, as alternâncias que alteram a posição de realização sintática dos argumumentos internos do verbo e as alternâncias que acarretam o alçamento do complemento oblíquo para sujeito. Palavras-chave. verbos; estrutura de argumentos; alternâncias sintáticas; semântica lexical. Abstract. This paper aims to systematize the diathesis alternations in Brazilian Portuguese. Three classes of alternations are outlined: transitivity reduction alternations; alternations that alter the syntactic realization of internal arguments; oblique complement raising alternations. Keywords. verbs; argument structure, diathesis alternations; lexical semantics. 1. Introdução A estrutura de argumentos do verbo, isto é, o número e o tipo de argumentos que cada verbo projeta, constitui um dos níveis de representação da informação lexical e instaura a interface entre as propriedades semânticas e sintáticas do verbo (GRIMSHAW, 1990). Do ponto de vista semântico, os argumentos são associados a determinadas posições configuracionais na representação léxico-semântica do verbo. Por exemplo, nas estruturas conceituais de Jackendoff (1990), o predicador de estado BE projeta dois argumentos semânticos, definidos por suas posições no esquema conceitual e pelos tipos que as preenchem: o primeiro argumento, do tipo THING, associa-se ao papel temático Tema e, o segundo, do tipo PLACE, associa-se ao papel Locativo. Do ponto de vista sintático, a estrutura de argumentos do verbo fornece a informação lingüística mínima necessária para derivar o seu esquema de subcategorização e os modos alternativos de realização sintática dos seus argumentos (ALSINA, 1996). Assumindo-se a hipótese de que a face sintática da estrutura de argumentos do verbo correlaciona-se com suas propriedades semânticas, especialmente no que diz respeito às possibilidades de expressão e de realização dos argumentos, a determinação das alternâncias sintáticas de que o verbo participa, isto é, a caracterização de suas Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 433 / 438] Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 433 / 438 ] diferentes diáteses, pode auxiliar na identificação dos seus componentes de significado que são relevantes para a expressão sintática de seus argumentos, o que também contribui para a representação da dimensão léxico-semântica das entradas lexicais dessa categoria sintática (LEVIN, RAPPAPORT-HOVAV, 1991). Dessa perspectiva, a caracterização das alternâncias de diátese fornece uma estratégia lingüisticamente motivada para a classificação sintático-semântica do verbo, baseada na hipótese de que os verbos que participam dos mesmos tipos de alternâncias compõem classes semanticamente coerentes. Levin (1993), aplicando essa estratégia no estudo de mais de 3.200 verbos do inglês, isoloou 191 classes e subclasses semânticas. A análise partiu de um inventário de 79 alternâncias sintáticas. Embora no inventário de Levin haja tipos de alternâncias de que os verbos do português não participam como, por exemplo, a alternância dativa, o primeiro passo para compreender o jogo das alternâncias e apreciar sua relevância para a descrição sintatico-semânica dos verbos é investigar quais alternâncias isoladas por Levin para inglês aplicam-se a verbos do português. Observe-se, por exemplo, que classificações semelhantes têm sido elaboradas para línguas como o alemão, o bengali e o coreano (JONES, et. al., 1994). Nesse sentido, este trabalho apresenta a sistematização preliminar de três classes de alternâncias sintáticas descritas em Levin (1993) relevantes para a descrição dos verbos do português: as alternâncias que acarretam uma redução da transitividade do verbo (seção 2), as alternâncias que alteram a posição de realização sintática dos argumentos internos do verbo sem acarretar uma redução de transitividade (seção 3) e as alternâncias que acarretam o alçamento do complemento oblíquo para sujeito (seção 4).1 2. Alternâncias de Redução da Transitividade As alternâncias que afetam a transitividade do verbo envolvem uma diminuição de sua valência. Essa classe de alternâncias engloba duas subclasses que, por sua vez, abrigam outras subclasses. A primeira subclasse caracteriza-se pela supressão do argumento que desempenha a função sintática de sujeito na frase transitiva e pelo alçamento do argumento que desempenha função de objeto para a função de sujeito da frase intransitiva. Vários subtipos podem ser discriminados. Os exemplos de (1) a (7) ilustram esse tipo de alternância de transitividade. O exemplo (1) é a frase transitiva correspondente às frases intransitivas (2) e (3); o exemplo (4) é a frase transitiva correspondente à frase intransitiva (5); o exemplo (6) é a frase transitiva correspondente à frase intransitiva (7). Essas frases diferem entre si no que se refere às propriedades semânticas que expressam. A frase inacusativa, ou incoativa, (2) caracteriza-se por ter referência temporal específica, não implicitar necessariamente um Agente e expressar uma mudança de estado do Tema. Diferentemente, a frase medial (3) caracteriza-se por não ter referência temporal específica e implicitar um Agente (BASSAC, BOUILLON; 2002). Em (4), o argumento Agente, realizado como sujeito, é o “indutor” que leva o “induzido” (o Tema), este tipicamente marcado com os traços [+ animado] e [+ volição], a realizar a ação. (1) João (Agente) quebrou o copo de cristal (Tema). (2) O copo de cristal (Tema) quebrou. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 434 / 438] Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 434 / 438 ] (3) Copos de cristal (Tema) quebram facilmente. (4) João (Agente) saltou o cavalo (Tema) sobre a cerca. (5) O cavalo (Tema) saltou sobre a cerca. A alternância ilustrada em (6) e (7) ocorre com verbos que projetam dois argumentos com tipos semânticos específicos: (a) “fonte emissora” e (b) “substância emitida”. Diferentemente das três alternâncias anteriores, esta, denominada alternância de fonte e origem, permite a realização simultânea dos dois argumentos nas frases transitiva e intransitiva. O argumento que expressa a “fonte emissora”, na frase transitiva, realiza-se como sujeito e, na frase intransitiva, como adjunto. O argumento que expressa “substância emitida”, na frase transitiva, realiza-se como objeto direto e, na frase intransitiva, como sujeito. (6) O sol irradia calor. (7) Calor irradia do sol. A segunda subclasse caracteriza-se pela omissão do objeto (um tipo de escpecificador) da frase transitiva. Nas alternâncias desta subclasse, o sujeito da frase transitiva e o sujeito da frase intransitiva correspondente mantêm a mesma relação sintático-semântica com o verbo. Na frase intransitiva, o objeto não é sintaticamente especificado. Distinguem-se diversas subclasses, que são identificadas em função das diversas interpretações admitidas pelo objeto apagado na frase intransitiva: (a) o objeto omitido pode ser inferido a partir da natureza semântica do verbo como em (8), em que se infere que João comeu algum alimento; (b) quando o verbo expressa “reciprocidade”, que pode ser evidenciada pela coordenação de dois Agentes na posição de sujeito como em (9) e (10); (c) quando o verbo está no imperativo e projeta um argumento interno afetado que pode ser omitido quando recuperável pelo contexto como em (11) e (12). (8) João comeu. (9) João encontrou(-se) com Maria. (10) João e Maria se encontraram. (11) Asse o bolo por 30 minutos. (12) Asse por 30 minutos. De forma geral, dois processos sintáticos caracterizam as alternâncias de redução de transitividade: (a) a supressão do argumento Agente e alçamento do argumento Tema de objeto para sujeito e (b) a apagamento do objeto da frase, isto é, supressão do argumento Tema quando ele puder ser inferido a partir do valor semântico do verbo ou recuperado pelo contexto. 3. Alternâncias na Expressão Sintática de Argumentos Internos As alternâncias desta classe envolvem uma alteração na expressão sintática dos argumentos do verbo e, em sua maioria, não acarretam mudança de transitividade. Entre os verbos com dois argumenos internos, isto é, os verbos transitivos diretos e indiretos, as alternâncias ocorrem nos modos de expressão desses argumentos. Há verbos, porém, que exibem uma alternância entre a forma transitiva e a forma intransitiva. Esta pode ser considerada paralela àquela quando o verbo intransitivo for inacusativo, isto é, quando o Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 435 / 438] Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 435 / 438 ] sujeito da frase intransitiva e o objeto da frase transitiva correspondente desempenham o mesmo papel temático. A primeira subclasse, denominada alternância de alçamento/rebaixamento do objeto Locativo, inclui os verbos que projetam dois argumentos: um Locativo e um Tema. Quando o Locativo realiza-se como objeto direto, a frase é associada ao sentido holístico desse argumento, isto é, todo o Locativo é afetado. Assim, em (13), infere-se que o caminhão foi plenamente carregado. Quando o Locativo realiza-se como adjunto e o Tema é alçado para objeto, a frase é associada ao sentido partitivo do Locativo, isto é, ele é parcialmente afetado. Logo, em (14), entende-se que somente parte do caminhão foi carregada (LEVIN, 1993; BAKER, 1997). É importante ressaltar que a distinção semântica entre o efeito holístico e o partitivo não ocorre regularmente com todos os verbos que participam desta alternância (JACKENDOFF, 1990). Alguns verbos participam de algumas variantes: limpar, por exemplo, permite a supressão do Tema em uma das formas da alternância; pulular permite que o Tema e o Locativo se alternem nas funções de sujeito e de objeto. (13) João carregou o caminhão (Locativo) com maçãs (Tema). (14) João carregou as maçãs (Tema) no caminhão (Locativo). Uma segunda subclasse inclui os verbos dos campos semânticos de “criação” e “transformação”. Esses verbos projetam argumentos cujos tipos semânticos expressam ou uma “matéria-prima” e um “produto” ou um Tema e o seu "estado final", em (15), ou ainda um Tema, o seu "estado inicial" e "final", em (16). (15) A bruxa transformou-o (Tema) em sapo ("estado final"). (16) A bruxa transformou-o (Tema) de príncipe ("estado incial") em sapo ("estado final"). A terceira subclasse inclui os verbos que expressam uma relação de reciprocidade entre seus argumentos internos. Os verbos que participam dessas alternâncias podem ocorrer com ou sem complemento preposicional. Na ausência desse complemento, todos os participantes que constituem o sujeito, se o verbo for inacusativo, ou o objeto, se o verbo for transitivo, devem ser comparáveis como em (17) e (18). (17) Eu misturei o açúcar com a manteiga. (18) Eu misturei o açúcar e a manteiga. A quarta subclasse ocorre com os verbos que projetam tipos específicos de argumentos: (a) um “indivíduo” e uma “parte do seu corpo” e (b) um “indivíduo” e um dos seus “atributos”. No primeiro caso, exemplificado em (19) e (20), esses argumentos podem realizar-se de duas formas alternativas: os dois argumentos realizam-se conjuntamente como objeto - o argumento “parte do corpo” como núcleo e o argumento “indivíduo” como um especificador do núcleo - ou como constituintes separados - o argumento “indivíduo” como objeto direto e o argumento “parte do corpo” como adjunto. No segundo caso, exemplificado em (21) e (22), os verbos apresentam duas opções para realizar os argumentos “indivíduo” e “atributo”. Em uma delas, os dois argumentos realizam-se como um único sintagma nominal, que, dependendo da transitividade do verbo, pode exercer função sintática de sujeito ou de objeto direto como em (21), em que o “atributo” realiza-se como núcleo e o “possuidor” como Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 436 / 438] Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 436 / 438 ] especificador do núcleo. Na outra opção, ilustrada em (22), os dois argumentos realizam-se separadamente, um deles como sujeito ou objeto direto e o outro como adjunto. (19) Maria esmurrou o queixo de Joana. (20) Maria esmurrou Joana no queixo. (21) Eles louvaram a dedicação dos voluntários. (22) Eles louvaram os voluntários por sua dedicação. A quinta e última subclasse também se verifica com verbos que projetam argumentos com tipos semânticos restritos. Além disso, as frases que se alternam também apresentam uma alternância das preposições regidas pelos verbos. Por exemplo, a alternância das preposições de, com e contra, exemplificada em (23) e (24), ocorre com verbos que projetam três argumentos específicos: um Instrumental, que é movido por um Agente, que está em contato com um Locativo. O Agente é sempre o sujeito. Os argumentos Instrumental e Locativo se alternam nas funções de objeto direto e adjunto. A principal característica deste tipo da alternância é o uso das preposições com e contra. Aquela ocorre quando a função de adjunto é preenchida pelo Instrumental e esta quando essa mesma função é preenchida pelo Locativo. (23) João golpeou a cerca com o bastão. (24) João golpeou o bastão contra a cerca. Os verbos que participam das alternâncias apresentadas nesta seção caracterizam-se por apresentar modos alternativos de expressão de seus complementos. De forma geral, classificam-se em função (a) do tipos semânticos dos argumentos, (b) do significado do verboe (c) e da preposição que introduz os argumentos, que se alternam em funções sintáticas diferentes. 4. Alternâncias de Alçamento do Complemento Oblíquo para Sujeito Por fim, as alternâncias de alçamento do complemento oblíquo para sujeito. Esta classe reúne as aternâncias que acarretam uma alterações no número de sintagmas nominais selecionados pelo verbo, sem, porém, afetar sua transitividade. Em uma das frases alternantes, o argumento Agente é projetado como sujeito. Em outra, esse mesmo tipo de argumento é suprimido e o complemento oblíquo, é alçado para a função de sujeito. Este tipo de alternância pode ser subclassificado em função dos tipos semânticos expressos pelos complementos oblíquos que são alçados para sujeito. Os tipos incluem: “tempo”, “força natural”, “instrumento”, “causa abstrata”, “lugar”, “quantidade de dinheiro”, “container” e “origem”. As frases (25) e (26) exemplificam a alternância de sujeito Instrumental: (25) João quebrou a janela com o martelo. (26) O martelo quebrou a janela. 5. Considerações Finais Este trabalho discutiu a sistematização das alternâncias sintáticas apresentadas em Levin (1993) que se mostraram relevantes para a investigação da categoria verbal do Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 437 / 438] Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 437 / 438 ] português. Os três tipos de alternâncias apresentados subdividem-se em função de propriedades sintáticas e semânticas. Do ponto de vista sintático, as alternâncias caracterizam-se por processos de diminuição da valência do verbo ou processos de alçamento e rebaixamento dos seus argumentos. Do ponto de vista semântico, elas subclassificam-se em função das propriedades semânticas expressas pelos verbos e por seus argumentos. Desnecessário dizer que o conjunto de alternâncias discutido não é exaustivo. Um estudo mais abrangente encontra-se em Moraes (2004). Enfatizou-se, entretanto, a necessidade desse tipo de investigação e, dentro dos limites deste trabalho, a sistematização elaborada não só ilustra a importância, para a descrição lingüística, de se investigarem propriedades semânticas que são sintaticamente relevantes como também serve de ponto de partida para a estruturação do sistema de alternâncias para o português. Notas 1 Este trabalho contou com o apoio do CNPq. Referências ALSINA, A. The role of argument structure in grammar: evidence from Romance. Stanford, California: CSLI Publications, 1996. BAKER, M. Thematic roles and syntactic structure. In: Haegeman, L. (Ed.) Elements of grammar: Handbook of Generative Syntax. Dordrecht: Kluwer, p. 73-137, 1997. BASSAC, C; BOUILLON, P. The polymorphism of verbs exhibiting middle transitive alternations in English. In: BOUCHER, P.; PLÉNAT, M. (Ed.) Many morphologies. Somerville: Cascadilla Press, 2002. p. 29-47. GRIMSHAW, J. Argument structure. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1990. JACKENDOFF, R. Semantic structures. Cambridge (Mass.) : MIT Press, 1990. JONES, A. D.; et.al. Verb classes and alternations in Bangla, German, English and Korean. Cambridge (Mass.): MIT, 1994. Disponível em: http://www.mit.edu/~dajones/. Acesso em: 27 maio 2004. LEVIN, B. English verb classes and alternations: a preliminary investigation. Chicago: University of Chicago Press, 1993. LEVIN, B.; RAPPAPORT-HOVAV, M. Wiping the slate clean: a lexical semantics exploration. Cognition, Amsterdam, v. 41, p. 123-151, 1991. MORAES, H. R. O jogo de interdependências entre a semântica do verbo e as alternâncias de diátese. 2004. 119f. Dissertação (Mestrado em Lingüística e Língua Portuguesa) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2004. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 438 / 438] Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 433-438, 2005. [ 438 / 438 ]