a estrela1 - UNESP

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A ESTRELA1
Rubem ALVES
Poeminha do Mário Quintana intitulado "Das Utopias": "Se as coisas são inatingíveis...
ora! / Não é motivo para não querê-las... / Que tristes os caminhos, se não fora/ A mágica
presença das estrelas!".
Quase haicai, meu: "Na terra, ditadura/ Todos os caminhos, escuros. / Uma estrela
brilha no céu".
Assim era, no tempo da ditadura. Na terra, um grande medo escuro. Mas do escuro,
olhando para o céu, brilhava a estrela chamada esperança. Na noite escura as estrelas
brilham mais.
Naquele tempo minha alma estava mais inteira: ela tinha esperança. A esperança,
desejo único, faz a alma pura. A esperança mostrava o caminho. Lembro-me da canção de
Denoy de Oliveira e Ferreira Gullar, cantada pela Nara Leão: "Como dois e dois são quatro/
sei que a vida vale a pena, / embora o pão seja pouco e a liberdade pequena. / Como teus
olhos são claros e a tua pele morena, / como é azul o oceano e a lagoa serena, / como um
tempo de alegria por trás do terror me acena, / e a noite carrega o dia no seu colo de
açucena, / como dois e dois são quatro/ sei que a vida vale a pena".
Olhando a estrela a gente sonhava com um tempo de alegria. E a alegria, futura, era
um aperitivo que dava vontade de viver, coragem para lutar, paciência para esperar. "Apesar
de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia/ Você vai ter que ver/ Amanhã renascer/ E esbanjar
poesia/ Como vai se explicar/ Vendo o céu clarear/ De repente, impunemente/ Como vai
abafar/ Nosso coro a cantar/ Na sua frente/ (...) Eu pergunto a você/ Onde vai se esconder/
Da enorme euforia/ Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar/ Água nova brotando/
E a gente se amando/ Sem parar".
O nome da estrela era democracia. Quando se fala em democracia se pensa
normalmente em partidos, eleições, vereadores, deputados. Mas essas coisas não fazem a
democracia. São apenas ferramentas para sua realização. Culinária não se faz com fogões,
panelas, verduras, carnes e tempero. Culinária se faz com o pensamento do cozinheiro. Ele
sonha os prazeres gastronômicos e então lança mão dos meios para a sua realização. A
1
Artigo publicado originalmente na Folha de São Paulo e gentilmente autorizada a reprodução pelo Autor.
democracia se parece com a culinária. Ela se faz com os sonhos do povo. É isso que a
distingue dos outros sistemas políticos.
Todos os sistemas autoritários se fazem com os sonhos de uma minoria. E essa
minoria usa a maioria para realiza-los: felicidade para poucos, sofrimento para muitos. A
democracia se constrói a partir do sonho de uma felicidade comum. Todos têm o direito de
ser felizes. Partidos, eleições, vereadores e deputados são apenas meios para que o povo
realize os seus sonhos.
A democracia se inicia num sonho de felicidade comum. Sabia disso Vandré, que
escreveu "caminhando e cantando e seguindo a canção". Sem canção não há caminhada.
Sabia disso o Chico que cantou "A Banda": cada qual no seu canto, sozinho, com um sonho
que era só seu. Veio a banda, um sonho muito maior, sonhos de muitos, e cada um largou
seu pequeno sonho. A solidão se transformou numa "marcha alegre" espalhada pela
avenida. E os solitários viraram povo. Tudo por causa de um sonho comum de felicidade.
Na noite escura da ditadura a gente sonhava. A noite passou, o dia nasceu. Mas veio
logo um eclipse. Noite depois do dia nascer. E, no céu escuro, não se vê mais a estrela.
Onde está a esperança? Quais são os sonhos do povo? Quem acredita nos políticos? Os
mecanismos da democracia estão aí: eleições, partidos. Mas, em vez de serem instrumentos
para a felicidade de todos, eles servem para dar poder e impunidade a uns poucos. Os
Hildebrandos e os Farias são eleitos democraticamente. Como deputado é mais fácil cometer
o crime impunemente. E, como eles, um rol assombroso de políticos que chegaram ao poder
por meio dos mecanismos da democracia.
Descobrimos que a democracia não é flor que cresça em qualquer terreno. Ela exige
condições. Primeiro, ela não vinga num país de miseráveis. Miseráveis não levantam a
cabeça para contemplar as estrelas. Os miseráveis olham para baixo. Sua vida acontece na
premência imediata da fome, da doença, da dor, da morte. Sua condição de miserabilidade
os impede de pensar um tempo longo, algo maior que eles mesmos. Lembro-me da minha
infância, em que, no interior de Minas, os colonos das fazendas, aos domingos, diziam que
era dia de "comer o ganhado". Na segunda tudo iria começar de novo, da estaca zero.
Quem só pode pensar o tempo de uma semana não pode pensar o tempo da
democracia. Democracia é uma árvore que leva muito tempo para dar frutos. Os miseráveis
não têm esperança. Por isso eles se vendem por muito pouco. Vale mais um pássaro na mão
agora que uma vaca gorda no futuro.
A democracia não pode existir também num país cujo povo não seja educado. Ser
educado não é ter diploma de escola. Ser educado é saber pensar. Pensar, primeiro, a
estrela. Depois, pensar o caminho na sua direção. Se não vemos a estrela, como caminhar?
Quem não contempla a estrela não pode pensar. Há eruditos com PhD que só sabem
pensar os limites estreitos do seu laboratório e pesquisa. Sua estrela são as revistas
especializadas internacionais onde seus artigos são publicados. Nossas escolas e
universidades não têm ensinado o povo a contemplar as estrelas! Acúmulo de saberes não
significa sabedoria. Perguntava T.S. Eliot, num lamento: "Onde está a Vida que perdemos ao
viver? / Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? / Onde está o conhecimento
que perdemos na informação? Ou Manoel de Barros: "Quem acumula muita informação
perde o condão de adivinhar". Povo que não sabe pensar não vê a estrela; caminha
seduzido pelo brilho das imagens.
Todos se preparam para uma grande orgia: os números vão virar de 1999 para 200.
Festança e fogos de artifício. Alegria intensa num único momento de esbanjamento.
Psicologia dos miseráveis: comer o ganhado. Depois, o vazio. Essa tem sido uma das
características da psicologia do nosso povo. Sem ver as estrelas, o povo se alegra com os
fogos de artifício: o Carnaval, o campeonato de futebol, os programas de auditório, as missas
dançantes...
Não há razões para celebrações. "E cada qual no seu canto/ Em cada canto uma dor/
Depois da banda passar/ Cantando coisas de amor".
No dia 31 vou para um lugar bem escuro e vou contemplar os céus, para ver se
consigo ver a estrela. Quero sonhar de novo, para voltar a ter esperança. "Que tristes os
caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas...".
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